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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.18 no.3 Uberlândia set./dic 2019  Epub 17-Ene-2020

https://doi.org/10.14393/che-v18n3-2019-10 

ARTIGOS

O espaço e a história da educação em Minas Gerais: uma análise a partir de Campanha da Princesa, no século XIX

Marcus Vinícius Fonseca1 
http://orcid.org/0000-0003-0127-5009; lattes: 2292740924965797

Vanessa Souza Batista2 
http://orcid.org/0000-0002-7073-2173; lattes: 7011647776785615

1Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Beneficiário do Programa Pesquisador Mineiro da Fapemig mvfonseca2@yahoo.com.br

2Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) vsouzabatista@gmail.com


Resumo

Este artigo tem como objetivo tratar da educação em Campanha da Princesa, cidade mais importante da região Sul de Minas Gerais, no Século XIX. Para tratar da educação em Campanha procuramos situá-la no processo de mudança do eixo social e político da capitania de Minas, que ocorreu a partir de um intenso desenvolvimento da comarca do Rio das Mortes, no final do século XVIII. Destacamos Campanha como elemento central desse processo e da construção de uma identidade territorial que deu origem à ideia do Sul de Minas como uma região específica. Apresentamos algumas particularidades da educação e do público que se encontrava em suas escolas destacando sua especificidade, sobretudo quando comparado com outras regiões de Minas Gerais. Assim, procuramos apontar alguns elementos que sinalizam para a importância de se considerar as especificidades regionais nas análises produzidas pela história da educação de Minas Gerais.

Palavras chaves: Sul de Minas - Campanha da Princesa - Historiografia educacional

Abstract

This article aims to bring elements that allow the analysis of education in Campanha da Princesa, the most important city in the southern region of Minas Gerais in the nineteenth century. In order to address the education of the city, we situate it in the process of social and political changes in Minas Gerais, which took place after the quick development of the Rio das Mortes region in the late 18th century. We highlight Campanha as the protagonist of this process and the constitution of a territorial identity that originated the idea of the South of Minas as a specific region. We present some particularities of education and the people in the schools. For this, we highlight its specificities, especially when compared with other regions of Minas Gerais. Thus, we present some elements that point to the importance of considering regional specificities in the studies of education in Minas Gerais.

Keywords: South of Minas - Campanha da Princesa - Educational Historiography

Resumen

Este artículo tiene como objetivo tratar de la educación en Campanha da Princesa, ciudad más importante de la región sur de Minas Gerais, en el siglo XIX. Para tratar de la educación en Campanha buscamos situarla dentro del proceso de cambio del eje social y político de la capitania de Minas, que ocurrió a partir de un intenso desarrollo de la Comarca do Rio das Mortes, a finales del siglo XVIII. Destacamos Campanha como elemento central de ese proceso y de la construcción de una identidad territorial que dio origen a la idea del sur de Minas como una región específica. Presentamos algunas particularidades de la educación y del público que se encontraba en sus escuelas destacando su especificidad, sobre todo cuando se compara con otras regiones de Minas Gerais. Así, intentamos apuntar algunos elementos que señalan para la importancia de considerar las especificidades regionales en los análisis producidos por la historia de la educación de Minas Gerais.

Palabras claves: Sur de Minas - Campanha da Princesa - Historiografía Educativa

Introdução

Os processos elaborados pela historiografia imprimiram mudanças significativas nos padrões de entendimento sobre a formação do território representado por Minas Gerais. Esse movimento se caracterizou pela superação de interpretações generalistas que na maioria das vezes se apoiavam em uma adaptação de elementos relativos à história do Brasil no entendimento sobre a história de Minas. Segundo Gonçalves (1998, p. 13)

O caminho seguido pela historiografia sobre Minas Gerais, ainda que longe de apresentar uma evolução linear, permite que se identifique uma tendência básica: a de uma produção historiográfica que tem como ponto de partida as teses que enfatizam as determinações externas na explicação do devir da História do Brasil; percorre, em seguida, um caminho com diversas ramificações sendo que uma delas, talvez a mais importante, assenta-se em uma interpretação aparentemente oposta a anterior e que privilegia as determinações internas do sistema, mas segue apontando para a possibilidade de síntese entre as citadas abordagens que, num primeiro momento, pareciam irredutíveis. (Gonçalves, 1998, p.13)

Esse movimento de mudança da historiografia sobre Minas contempla aquele que vem sendo desenvolvido no campo que trata das questões relativas aos processos históricos da educação na sociedade mineira. A história da educação sobre Minas Gerais também se desenvolveu por meio de narrativas de caráter generalista que se estruturavam em interpretações fundamentadas em uma história da educação no Brasil e consequentemente a sua adaptação ao contexto representado pela sociedade mineira.

A partir dos anos de 1990, essas interpretações passaram a ser acompanhadas pela construção de narrativas estruturadas no desenvolvimento da educação dentro da dinâmica interna da região. Em uma caracterização desse movimento da historiografia educacional sobre Minas, Carvalho; Faria Filho (2019, p.17) afirmam que

Desta forma, emergem debates em torno dos estudos relacionados aos aspectos locais versus os fatores macroestruturantes em termos de política educacional do estado... busca-se a compreensão das aproximações/tensões entre vários espaços mineiros, e de como as questões ligadas aos problemas educacionais foram ‘acomodadas’ no decorrer da promoção da educação no interior da sociedade, além da tentativa de explicitação dos interesses políticos, culturais, ideológicos e antropológicos que permearam a luta pela constituição do sistema de ensino no estado (Carvalho;Faria Filho, 2019, p.17).

Portanto, nos últimos anos, o movimento de transformação da história da educação sobre Minas tem colocado em destaque a dinâmica interna da própria região. Dentro desse processo de renovação se faz necessário uma atenção maior com o espaço e seu processo de configuração dentro do movimento histórico representado por Minas. De uma maneira geral, a história da educação sobre Minas tem conferido pouco significado a essa questão, ou problematizado pouco as suas implicações. Com isso, análises que são dirigidas a uma sub-região são entendidas como válidas para toda região desconsiderando-se, assim, as diferenças relativas ao território mineiro.

A historiografia sobre Minas Gerais vem construindo um movimento de análise que tem indicado a importância das sub-regiões que compõe o território mineiro revelando, com isso, a necessidade de levar em consideração as particularidades do espaço no entendimento dos processos históricos. A vastidão do território mineiro associada a uma dinâmica particular de ocupação de suas diferentes regiões indica a necessidade de uma consideração mais efetiva da categoria espaço nas análises relativas ao desenvolvimento histórico de Minas.

Entendemos que esse tipo de análise requer a atenção dos historiadores da educação, ou seja, é preciso levar em conta aspectos relativos aos processos históricos de ocupação do espaço como parte das explicações da dinâmica da educação nas diferentes regiões de Minas Gerais.

É a partir dessa perspectiva que buscaremos situar a educação em Campanha da Princesa, umas das cidades mais importantes no processo de construção de uma região muito específica: o sul de Minas.

Para realização dessa tarefa utilizamos uma abordagem regionalista, ou seja, que define um espaço através de uma relativa homogeneidade interna identificada com relação a alguns critérios (Barros, 2006). Para isso buscamos situar Campanha da Princesa no processo de construção do chamado Sul de Minas, procurando demonstrar como a atividade educacional pode ser entendida como uma das características que compõe o processo de produção de uma identidade da região.

Segundo Gomes (2006), a ideia de região enquanto conceito geográfico foi inicialmente considerada como uma delimitação da realidade concreta baseado principalmente em elementos físicos. Essa noção passou a ser revista quando se compreendeu que a ideia de região só poderia ganhar um sentido efetivo a partir de uma superação da ideia de espaço natural. Assim, região não corresponderia a um espaço dado mas seria produzida a partir da identificação dos elementos que concorreram para construção e apropriação do espaço como portador de uma identidade específica.

Essas considerações de Gomes (2006) são pertinentes em relação ao processo de regionalização que vem sendo elaborado em relação a Minas Gerais, sobretudo na historiografia referente os séculos XVIII e XIX, na qual encontramos uma superação das divisões que levavam em consideração apenas limites político-administrativos, principalmente na sua representação através da ideia de comarcas.

Segundo Martins (2010), iniciou-se nos anos de 1990 uma reconfiguração em relação à percepção do espaço das Minas Gerais. As unidades regionais de Minas deixaram de ser concebidas como algo dado, ou natural, para serem construídas a partir de critérios que levam em conta elementos físicos, demográficos econômicos, políticos, históricos e culturais.

Para Frémont (1980) o termo região envolve a ideia de um espaço-tempo vivido, pois não é possível separar o espaço da experiência humana que perpassa o imaginário da população e o desenvolvimento de uma identidade com um determinado território. Logo, a região compreende os aspectos da cultura dos seus moradores que constroem um sentimento de pertencimento produzindo a formação de “imagens regionais”. Para Frémont (1980), é constante o processo de “enraizamento”, ou seja, a ligação estabelecida entre os homens, seus valores e a terra com a qual se relacionam diretamente.

É a partir dessa percepção que procuramos tratar a cidade de Campanha como elemento constitutivo do sul de Minas enquanto uma região específica. Assim, procuramos caracterizar Campanha como parte de um processo de afirmação da Comarca do Rio das Mortes, na passagem do século XVIII para o XIX, e também como elemento ativo no processo de construção da ideia de sul de Minas. Nesse movimento, destacamos o lugar ocupado pela educação na vida da cidade, sobretudo a partir da especificidade do público que gravitava em torno dos espaços escolares.

A Comarca do Rio das Mortes no desenvolvimento das Minas Gerais

A ocupação do território de Minas Gerais se deu a partir do final do século XVI através de um imponente fluxo migratório que foi impulsionado pela exploração de metais preciosos. A materialização desse processo ocorreu por meio de um ordenamento espacial que dividiu a capitania em quatro comarcas: Comarca de Vila Rica, Comarca de Sabará, Comarca do Serro e Comarca do Rio das Mortes, essa última mais ao sul da capitania, objeto destacado em nossa análise.

No interior das comarcas havia uma dinâmica permanente de surgimento de pequenos povoados que, à medida que se desenvolveram, foram transformados em vilas1. O surgimento dessas vilas pode ser entendido como a demarcação da importância alcançada pelo território das Minas Gerais representando também o desenvolvimento das diferentes comarcas que compunham a capitania.

Até o ano de 1730, temos em Minas um total de nove vilas que foram distribuídas a partir de um relativo equilíbrio entre as diferentes comarcas, ou seja, cada uma com duas excetuando-se a Comarca do Serro onde foram criadas um total de três vilas2. Essa situação se manteve estável até o final do século XVIII, quando tivemos um novo fluxo de estabelecimento de vilas em Minas. Esse movimento teve início com o surgimento da Vila de Itapecerica, em 1789, em seguida a Vila de Queluz (1790), a Vila de Barbacena (1791) e as vilas de Campanha da Princesa e Paracatu do Príncipe (1798). Quatro dessas vilas foram criadas na Comarca do Rio da Mortes, ou seja, apenas Paracatu do Príncipe estava situado fora desta região pertencendo à Comarca do Rio das Velhas.

Portanto, praticamente todas as novas vilas que surgiram nesse período foram criadas na Comarca do Rio das Mortes, o que indica a importância alcançada por essa região no final do século XVIII.

No período anterior, ou seja, nas primeiras décadas do século XVIII, o principal fluxo de desenvolvimento da capitania havia ocorrido de forma mais consistente na região central, onde se encontravam as Comarcas de Vila Rica e Sabará. Nessas duas comarcas o exercício das atividades ligadas à exploração do ouro gerou um crescente desenvolvimento populacional e econômico. Em contrapartida, a região representada pela comarca do Rio das Mortes contou apenas com duas vilas - São João del-Rei e São José del-Rei -, situação que, como vimos, se alterou no final do século XVIII quando quatro localidades foram promovidas essa condição.

Essa situação adquire contornos mais claros quando consideramos os aspectos demográficos da capitania. Em 1776, Minas contava com uma população que girava em torno de 319.769 habitantes que se distribuíam da seguinte forma em suas comarcas:

Fonte: Adaptado de Araújo, 2008.

Gráfico 1 População da Capitania de Minas Gerais - 1776 

Em 1776, encontramos um relativo equilíbrio da população de Minas. Isso é indicado pelos índices populacionais que eram próximos na Comarca de Sabará e na do Rio das Mortes, respectivamente 25% e 26%, e um pouco abaixo no Serro, 18%. Em meio a esse relativo equilíbrio encontramos um ligeiro predomínio populacional na Comarca de Vila Rica, com 31%.

Essa situação se altera de forma substancial no início do século XIX, período no qual a população de Minas atingiu o número de 492.436 indivíduos, cuja maioria deles se concentrava na Comarca do Rio das Mortes:

Fonte: adaptado de Araújo, 2008.

Gráfico 2 População da Capitania de Minas Gerais - 1821 

É nítida a direção do processo de mudança na população de Minas entre os anos de 1876 e 1821. Nessa mudança o elemento preponderante foi a queda no percentual relativo à população de quase todas as regiões: a Comarca de Vila Rica passou de 31% para 24%, a Comarca de Sabará passou de 25% para 15% e a Comarca do Serro passou de 18% para 17%. Em contrapartida a esse movimento de refluxo da população dessas três comarcas encontramos um expressivo crescimento na Comarca do Rio das Mortes, que chegou a números próximos à metade da população de toda capitania: 44%.

Portanto, o processo de criação de vilas em Minas - especificamente Itapecerica, Queluz, Barbacena e Campanha da Princesa - era parte de um movimento mais amplo que modificou a dinâmica econômica da capitania fazendo da Comarca do Rio das Mortes um de seus principais pólos de desenvolvimento.

Na verdade, este movimento que ocorreu entre os séculos XVIII e XIX é parte de um processo de mudança na estrutura produtiva da capitania. Minas Gerais se desenvolveu, ao longo do século XVIII, sob um forte impacto da exploração de metais precisos. Isso fez da região mineradora, que se encontrava no centro da capitania, o principal pólo de desenvolvimento econômico e social de Minas.

Na segunda metade do século XVIII, houve um refluxo da atividade mineradora modificando o eixo de desenvolvimento econômico, cuja principal marca foi uma diversificação da matriz produtiva e o desenvolvimento de outras regiões (PAIVA, 1996). Foi em torno desse processo de diversificação da matriz produtiva que ganhou destaque a Comarca do Rio das Mortes, pois seu desenvolvimento se deu a partir da conjugação de diferentes atividades econômicas, destacadamente a agricultura e a pecuária que fizeram dessa região elemento central no processo de abastecimento das capitanias de Minas Gerais, São Paulo e do Rio de Janeiro.

O movimento de afirmação de Campanha da Princesa como vila, no final do século XVIII, é uma representação desse movimento de deslocamento espacial do eixo de poder econômico e político na capitania de Minas. Esse movimento teve como característica a transformação da região sul em um dos principais polos de desenvolvimento de Minas Gerais. De outro lado, representa também um ciclo de transformação da economia mineira, ou seja, a passagem de uma economia de monocultura, estruturada na exploração mineral, para uma economia que conjugava diferentes atividades produtivas.

A partir dessa nova configuração é possível compreender que a região situada ao sul da capitania percorreu uma trajetória diferenciada das demais localidades, tornando-se um importante centro comercial e agropecuário que se desenvolveu juntamente com um grande aumento populacional.

Além dessas particularidades no desenvolvimento econômico e demográfico da região sul de Minas também é possível identificar uma especificidade política, sobretudo através da formação de uma classe de proprietários que atuou diretamente na política imperial. Logo, o Sul de Minas se tornou uma região de base agrária, composta por grandes proprietários de terra, comerciantes e escravistas (Paschoal, 2008).

Essa perspectiva foi constatada por Andrade (2005, p. 53) que procurou caracterizar o estabelecimento de uma elite na cidade de Campanha, no século XIX. Para caracterização dessa elite utilizou como referência documental inventários nos quais os indivíduos que compunham esse segmento registravam seus bens e o conjunto de atividades econômicas que a eles estavam vinculadas.

Por meio do mapeamento geral dos inventários analisados, pôde-se constatar a importância do termo de Campanha no cenário sul-mineiro, seja pela diversidade de empreendimentos realizados, seja pelo crescimento populacional verificado na primeira metade XIX ... característica marcante a ser enfatizada é o fato de as fazendas escravistas consorciarem diversas atividades - ao mesmo tempo em que criava gado, cavalos, porcos e ovelhas, plantava-se arroz, milho e feijão, sendo que muitos desses produtos destinavam-se ao comércio inter e intraprovincial.

Campanha da Princesa pode ser entendida como uma cidade que representa bem o processo de desenvolvimento da comarca do Rio das Mortes, onde a exploração do ouro passou a conviver com as atividades agropastoris, o trabalho de pequenos artesãos e o comércio. É também uma cidade que exprime bem o padrão de sociabilidade que se estabeleceu na região que se convencionou chamar de Sul de Minas.

Campanha da Princesa na construção do sul de Minas como uma região

Campanha da Princesa foi uma das mais importantes cidades da região que ficou conhecida como Sul de Minas. Foi em torno dela que se formou a própria ideia do Sul de Minas como espaço portador de uma identidade específica. Essa ideia surgiu no século XIX e ganhou consistência nos períodos posteriores sendo, ainda hoje, uma referência identitária para o conjunto de cidades existentes naquela região.

A construção do espaço representado pelo Sul de Minas está diretamente relacionado ao desenvolvimento da cidade de Campanha:

É importante situar o leitor em relação a alguns aspectos históricos de uma importante vila da província de Minas Gerais, região que deu origem ao que hoje é definido imprecisamente como ‘sul de Minas’. Todos os memorialistas da região são enfáticos em afirmar que a cidade de Campanha é o ‘berço do sul de Minas’, não só por sua importância política e econômica, mas também por ser a mais antiga da região e ter sido a sede da comarca do Rio Sapucaí a partir de 1833 (Andrade, 2005, p.44).

O surgimento de Campanha ocorreu por volta de 1737 através de um povoado que foi inicialmente chamado de Arraial de São Cipriano. Logo em seguida, passou a ser chamado de Campanha da Princesa sendo, em 1798, promovido à condição de uma vila que englobava quase todas as localidades abaixo do Rio Grande. Em 1833, Campanha aumentou de forma substancial o seu poder e prestígio quando foi definida como sede de uma nova comarca que foi criada na região, cujo nome era Comarca do Rio Sapucaí.

Em 1842, Campanha foi transformada em cidade e intensificou suas ambições de expansão territorial passando a desempenhar papel preponderante no movimento que se articulou em torno da ideia de transformar o Sul de Minas em uma província, ideia que alimentou parte da população da região durante a segunda metade do século XIX3.

Um dos maiores entusiastas da criação de uma província no Sul de Minas foi o campanhense Bernardo Saturnino da Veiga que, em 1874, organizou uma publicação intitulada Almanach Sul Mineiro que trazia diferentes informações sobre os municípios da região. O próprio Almanach foi concebido como parte do processo de produção de uma identidade para a região trazendo consigo a defesa da criação da nova província. Aliás, como pode ser visto nos elementos que justificavam a organização dessa publicação:

Entretanto diz-nos a consciência que alguma utilidade tem ele (o Almanach), porque, pelo menos, dá conhecimento do que somos no presente, e esperanças do muito que poderemos vir a ser no futuro. E si o bom destino permittir que um dia possa esta parte da grande província de Minas estabelecer sua economia separada, creando-se aqui um centro de administração, para melhor serem aproveitadas as imensas riquezas que possuímos, servirá este livro para mostra que não é sem justa razão que desde muito se pugna pela creação da província de Minas do Sul (Veiga, 1874, p.8).

A publicação do Almanach é resultado de um processo que se iniciou em 1853 quando apareceu na câmara dos deputados o pedido de criação de uma província ao sul de Minas Gerais. Castro (2012) destaca que o pedido reapareceu na câmara dos deputados em 1862, em 1868 e em 1885, nestes três momentos a proposta foi apresentada ao parlamento por deputados oriundos de Campanha. Para aqueles que defendiam a criação da nova província a alegação era que a região possuía limites geográficos específicos e também especificidades políticas e históricas que justificavam sua emancipação.

A criação da província “Minas do Sul” não foi aprovada durante o período Imperial. Entretanto, destacamos a importância desse projeto principalmente para demonstrar a forma como parte dos habitantes daquele território o enxergavam, ou seja, reivindicando uma identidade territorial que justificaria a produção de uma nova realidade político-administrativa dentro do processo de organização do governo do Império.

A educação em Campanha da Princesa no século XIX

Desde que se estabeleceu como vila, em 1798, Campanha passou a demandar investimentos em urbanidade e também na civilidade de sua população, dimensões que abriram espaço para iniciativas no campo educacional. Um dos elementos que foi apontado como condição necessária para afirmação da nova vila era a criação de cadeiras de ler, escrever e gramática latina para “a boa educação da mocidade”.

Com isso, em 1800, encontramos em Campanha o registro da existência de uma aula de ler e escrever, com 27 discípulos4. Segundo Lage (2007), em 1826, a escola pública de primeiras letras contava com 50 alunos. Em 1831, como resultado da iniciativa privada, foi criada a Sociedade Philantropica Campanhense com a finalidade de auxiliar as crianças desvalidas e promover a instrução pública. No mesmo ano, também foi criada uma escola de ensino mútuo de primeiras letras.

As escolas que surgiram em Campanha estavam no padrão de ordenamento daquilo que caracterizava a primeira metade do século XIX, na qual se destacava limitações do ponto de vista do espaço e também da organização pedagógica. É o que podemos encontrar em um relato de Francisco Ferreira Rezende5 (1987 ) que registrou as características da aula que frequentou em Campanha, nos anos de 1840:

Nunca, é certo, ele (o professor) nos animou e nem sequer um só momento nos abriu a sempre fechada cara; mas compreendo, e compreendo muito bem, que seria uma verdadeira crueldade conservar-nos durante cinco ou seis horas sentados e presos àqueles tão duros bancos de madeira; a uma certa hora do dia ou quando ele julgava oportuno, mandava-nos que entrássemos para o interior da sua casa; e ali, não só tínhamos a mais completa liberdade de brincar no pátio e na horta; mas sua mulher, que era ainda bem moça ( assim como ele mesmo não era velho) nunca deixava de nos dar alguma dessas lambiscaria que andam sempre pelos armários, como o doce, o queijo, os biscoitos, etc, as quais nos pudessem entreter o estômago até a hora de nos recolhermos.

A narrativa descreve um modelo de escola onde a função pública da educação se confundia com a dinâmica da casa do próprio professor. Vidal e Faria Filho (2000) caracterizam esse modelo como escola-do-improviso, ou seja, uma dinâmica que antecede ao processo de afirmação do espaço escolar como um local específico e também como elemento central no princípio da moderna arte de governar. Para Vidal e Faria Filho (2000), esse era um modelo de escola caracterizado pelo improviso e por um ordenamento social onde a ordem privada se sobrepunha ou se confundia com a esfera pública (estatal) 6.

Na escola do improviso fundia-se o público e o privado ambos materializados na figura do professor que com severidade preservava a hierarquia das relações sociais da casa que se fundia com a escola. Nesse universo, o professor retratado por Ferreira Rezende (1987) caracterizava-se como um ente patriarcal que projetava seu poder sobre a esposa e também sobre seus alunos.

Essa autoridade do professor foi experimentada por Ferreira Rezende (1987, p.176) através da avaliação de seu desempenho em uma aula de gramática:

Eu já estava estudando gramática; e um dia julgava ter a lição tão sabida, que não acreditava houvesse na classe quem a desse tão bem como eu; e nesse meu entusiasmo, fui desasadamente colocar-me na ponta do banco, para ser o primeiro a dar a lição quando chegasse a hora. A presunção, porém, ou a soberba, é, como ninguém há que o ignore, a coisa que mais se paga neste mundo; e aquela minha soberba ou aquela minha presunção, eu, a tive de pagar naquele mesmo dia; porque eu sabia, e sabia muito bem como dizer a minha lição; mas muito criança ainda convivendo com gente mais ou menos ignorante, eu algumas coisas pronunciava como via essa gente pronunciar; e assim, tendo de repetir um dos exemplos da gramática, disse duas águias ‘avoaram’, uma do oriente e outra do ocidente - O mestre perguntou simplesmente - como? E eu, que estava bem certo do exemplo, e que não podia ter a menor consciência de haver errado, o repeti pelo mesmo feitio com que antes havia feito e tomei os bolos... mas por presunção ou por soberba, quis ser o primeiro a dar a lição, e a dei com acréscimo daquele maldito - a - e fui humilhado.

A escola de Campanha apresentava limitações quanto a organização do espaço e também do ponto de vista pedagógicas, mas acolhia um amplo e variado conjunto de alunos. Isso pode ser visto quando procuramos identificar o público que frequentava as escolas por meio de um conjunto de dados que se encontra em uma documentação censitária, relativa aos anos de 1830.7

Em 1831, a vila de Campanha possuía uma população de 5.500 indivíduos, destes 207 estavam na escola elementar. Se considerarmos o que foi estabelecido pela legislação mineira, de 1835, que definiu que o público escolar eram os meninos livres, de 8 a 14 anos, temos um bom nível de cobertura para aquilo que poderíamos chamar de população definida como em idade escolar8.

Do total de 5.500 indivíduos registrados na população 904 estavam na faixa etária entre 08 a 14 anos. Se excluirmos desse universo os escravos e as mulheres, temos 361 indivíduos que estavam aptos a frequentar a escola, desses 117 frequentavam a escola de primeiras letras, ou seja, 32,4%.9

No conjunto desses dados e do movimento de estabelecimento dos processos formais de educação em Campanha não podemos deixar de destacar a presença feminina nas escolas de instrução elementar. Em Minas, nos anos de 1830, não houve uma definição quanto a obrigatoriedade escolar para esse grupo, a lei de 1835 se referiu à escolarização do sexo feminino apenas através de uma recomendação, ou uma possibilidade a ser implementada em algumas localidades.

Na província de Minas Gerais, na década de 1830, encontramos um número muito pequeno de meninas nas escolas. Na maioria das cidades para os quais encontramos registros censitários esse número era praticamente insignificante. Dentro desse universo Campanha é uma exceção, pois dos 207 indivíduos que estavam na escola 55 eram meninas, ou seja, mais de um quarto do total. Esse fato é destacado pelo relato de Ferreira Rezende (1987, p. 207):

Quando me conheci por gente, já na Campanha existia uma aula pública de meninas que tinham uma frequência talvez de cinquenta alunas; e ainda me recordo ter ali alcançado uma velha muito velha que tinha sido professora de meninas; mas sem que eu saiba se tinha sido pública ou particular.

A presença feminina nas escolas de Campanha obteve destaque e ganhou contornos institucionais cada vez mais efetivos, durante o século XIX (Lage, 2007). No entanto, era apenas uma parte da diversidade dos alunos que encontramos nas escolas, pois a ela se soma a presença de negros que aparecem registrados na lista nominativa de habitantes.

Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de Campanha, 1831

Gráfico 3 Perfil Racial da Escola Elementar de Campanha/MG - Raça/cor 

Em Campanha havia um predomínio absoluto de alunos brancos na escola de instrução elementar e uma presença minoritária de negros - todos eles designados na categoria pardo10 - contudo trata-se de um número importante para caracterizar a diversidade do espaço escolar da vila de Campanha.

Essa diversidade também pode ser verificada por meio da condição social dos alunos. Para aferir a condição social desses alunos podemos utilizar como referência a posse de escravos nos domicílios dos indivíduos que se encontravam nas escolas de instrução elementar, pois, naquele tempo um homem rico evidentemente detinha a posse de homens e terras (Andrade 2008).

Em uma sociedade escravista o braço cativo era fundamental para o funcionamento do sistema econômico e também para a ampliação e manutenção da riqueza. Desse modo, o índice de presença de escravos nos domicílios é um forte indicativo da condição social das crianças que estavam nas escolas. A maioria das crianças que estavam na escola elementar de Campanha eram oriundas de domicílios nos quais havia somente pessoas livres: 55% desses domicílios não contavam com a presença de escravos. Portanto, a maioria do público escolar não era parte daquilo que poderíamos chamar da elite escravista que se fazia presente em Campanha.

No entanto, se podemos afirmar que essa elite não era a maioria isso não quer dizer que ela não se fazia presente nos espaços escolares. Para dimensionar sua presença isolamos os domicílios onde encontramos escravos, ou seja, 45%, e os classificamos a partir de um padrão que considerou quatro intervalos: domicílios com um a três escravos; quatro a nove escravos; dez a dezenove escravos e mais de vinte escravos.

Fonte: Listas Nominativas de Habitantes de Campanha, 1831

Gráfico 4 Número de escravos nos domicílios com crianças nas escolas de Campanha 

Nas escolas de instrução elementar de Campanha temos um número significativo de indivíduos que eram oriundos de domicílios que possuíam entre quatro e nove escravos (41%), o mesmo pode ser dito com mais de dez escravos (29%) e mais de vinte (9%). Portanto, podemos dizer que as escolas não eram monopolizadas pela elite, mas esse grupo também se fazia presente nesse espaço.

Outro padrão de observação que estabelecemos em relação aos domicílios foi o perfil dos grupos familiares nos quais encontramos crianças em processo de escolarização. Para isso utilizamos três categorias especificas de classificação dos grupos familiares: o primeiro refere-se grupo familiar simples, aquele que corresponde ao padrão mais comum de família admitido na civilização ocidental, ou seja, onde havia um homem e uma mulher reconhecidos formalmente como casados e geralmente acompanhado por filhos; o segundo e terceiro tipo de domicílio são representados por grupo chefiado por homem e grupo chefiado por mulheres, aqueles em que encontramos um indivíduo do sexo masculino, ou feminino (solteiro, ou viúvo) registrado na condição de chefia do domicílio.

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes de Campanha, 1831

Gráfico 5 Perfil do Grupo Familiar com Crianças na Escola Elementar de Campanha/MG 

Em Campanha, encontramos um predomínio absoluto do grupo familiar simples. Aqueles que eram chefiados por mulheres que representavam 25% e os que eram chefiados por homens 10%.

O conjunto dos dados que apresentamos indica que havia um perfil mais tradicional dos grupos sociais que estavam vinculados aos espaços escolares de Campanha, ou seja, esse era composto majoritariamente por crianças brancas, do sexo masculino que eram provenientes de domicílios que correspondiam ao padrão mais convencional de família, o grupo familiar simples.

A particularidade de uma região, ou os critérios que lhe conferem homogeneidade, ganham uma nitidez maior quando expressam a diferenciação com outros espaços. Portanto, entendemos que as características da escola de Campanha adquirem uma evidência maior quando promovemos uma comparação com outras cidades que estavam situadas em regiões que tiveram um desenvolvimento diferente daquele que encontramos no sul de Minas.

A partir dessa perspectiva metodológica confrontaremos os dados de Campanha com os de Mariana, cidade que estava situada na região central de Minas, que teve o seu desenvolvimento vinculado aos primeiros momentos da ocupação da capitania, ou seja, início do século XVIII.

Mariana foi promovida à vila em 1711 e a condição de cidade no ano de 1745, portanto, praticamente cem anos antes da Campanha. No entanto, o censo de 1831 registra sua população com um total de 2.973 indivíduos, quase a metade dos 5.500 que encontramos em Campanha11.

Esses dados revelam que o padrão de deslocamento da população que encontramos em relação às Comarcas de Vila Rica e a do Rio das Mortes pode também ser encontrado em relação a vila de Campanha e a cidade de Mariana, em 1831.

O mesmo se verifica em relação aos dados relativos ao registro de alunos que frequentavam a escola de instrução elementar. Como vimos, em Campanha havia um total de 207 alunos, algo muito superior aos 65 que foram registrados em Mariana.

Por outro lado, o perfil desses alunos coloca as duas localidades em flagrante oposição. Em Campanha, praticamente um quarto dos alunos era composto por mulheres (55 alunas), em Mariana encontramos apenas duas meninas assinaladas na escola.

A maioria absoluta dos alunos de Campanha foram registrados como brancos (65%), algo muito diverso do público que compunha as escolas de Mariana que eram frequentadas por 60% de crianças que foram classificadas como negras (pardos, crioulos e cabras).

O perfil dos grupos familiares com crianças na escola elementar segue demarcando as diferenças que existiam entre região a central e a região sul, pois, enquanto em Campanha predominava o grupo familiar simples, em Mariana encontramos um expressivo número de domicílios chefiados por mulheres:

Fonte: Listas Nominativas de Habitantes em Mariana, 1831

Gráfico 7 Perfil do Grupo Familiar com Crianças na Escola Elementar de Mariana/MG 

Em Mariana, o grupo familiar simples reuniu 46% dos domicílios com crianças nas escolas de instrução elementar seguido por 41% de domicílios que eram chefiados por mulheres e 13% chefiados por homens. O que chama atenção em relação a esses dados é a forte presença de domicílios que eram chefiados por mulheres, pois o número se aproximava muito daqueles que eram compostos pelo grupo familiar simples que correspondia ao padrão mais tradicional de família, no Brasil.

Esses dados indicam que a cidade de Mariana possuía uma configuração social menos tradicional que, entre outras coisas, permitia um certo nível de circulação para negros e mulheres, grupos que vivenciavam uma situação de preconceito e desvantagem social dentro da estrutura patriarcal que marcou o processo de desenvolvimento da sociedade brasileira12.

Mariana não era uma cidade que se encontrava distante do padrão social produzido pela escravidão e nem tampouco pela cultura patriarcal e seus consequentes desdobramentos em uma posição de inferioridade ocupada por mulheres e negros em sua estrutura social. No entanto, a força da escravidão e do patriarcado não impediram que negros e mulheres estabelecessem contato com espaços como as escolas que, entre outras coisas, poderiam ser utilizadas como uma instância que lhes conferia um status de afirmação dentro do espaço social.

Em Campanha, a escolarização se desenvolveu em correspondência com o crescimento populacional da cidade e da Comarca do Rio da Mortes, mas esse processo ocorreu a partir da construção de uma sociedade com perfil mais tradicional do ponto de vista racial e em parte de gênero. As mulheres se faziam presentes como alunas nas escolas de Campanha em um nível considerável, porém, eram oriundas de domicílios vinculados ao modelo mais tradicional de família. Do ponto de vista racial, os negros estavam presentes nos espaços educacionais, mas em escala muito inferior aos alunos brancos indicando que esse segmento estava ligado a padrões sociais que de forma incisiva definia com mais rigor o lugar dos diferentes grupos raciais. Isso pode ser visto no registro que Ferreira Rezende (1987, p.212) apresenta em sua caracterização das relações raciais na cidade:

Assim, conheci na Campanha algumas famílias de pardos, muito respeitáveis, e que pela sua posição e fortuna reuniam todas as condições para pertencerem a classe superior. E com efeito, essas famílias eram muitas vezes convidadas para o baile dos brancos. Mas eram convidadas e se quase nunca deixavam de aceitar o convite, isto não quer de modo algum dizer que lá fossem para dançar ou tomar parte no baile; porque na realidade o que se dava é que elas apareciam nesses bailes unicamente para ali figurarem como simples espectadores, ou para lá irem, como vulgarmente se diz, fazer o papel de simples placas apagadas.

O registro de Ferreira Rezende (1987) deixa claro que os deslocamentos sociais da população negra eram possíveis, mas eram acompanhados por uma linha demarcatória que os colocava em condições inferiores ao segmento representado pelos brancos:

as diversas raças não só nunca se confundiam, mas muito pelo em vez disso, cada raça e cada uma de suas classes nunca deixavam de mais ou menos manter seu lugar; porque em todas havia gradações e os limites que as estabeleciam não podiam ser passados sem a violação da mais poderosa de todas as leis - a que se funda sobre prejuízo antigo mais ou menos universal (REZENDE, 1987, p.176).

Não é tarefa fácil justificar as diferenças que detectamos em relação a Mariana e Campanha, contudo, são realidades que necessitam de análise que levem em conta o desenvolvimento das regiões em que estavam inseridas. Assim, não podemos desconsiderar os processos econômico e sociais que promoveram o desenvolvimento de Mariana no século XVIII e aqueles que determinaram mudanças na capitania/província, entre os séculos XVIII e XIX, gerando um desenvolvimento da região onde estava situada a cidade de Campanha.

Nesse processo é preciso destacar o deslocamento e o uso mais intenso do trabalho escravo na região sul, no século XIX, determinando uma vinculação mais forte dos negros à escravidão e a construção de uma hierarquia racial que produzia uma estrutura que dificultava uma circulação mais ampla desses sujeitos. Situação diferente daquela que encontramos em Mariana onde os processos de discriminação não impediam a circulação desse grupo em diferentes espaços, inclusive nas escolas de instrução elementar.

Considerações finais

Em Minas Gerais, o processo de elaboração das práticas educativas é permeado de particularidades que encontram diferentes níveis de configuração no tempo e no espaço. Em relação ao primeiro aspecto podemos dizer que a questão é praticamente auto evidente e recebe diferentes níveis de problematização no movimento de entendimento da história da educação que se desenrola entre os períodos da Colônia e da República (Carvalho e Faria Filho, 2019).

O mesmo não pode ser dito em relação ao espaço que nem sempre recebe a devida problematização nas abordagens promovidas pela história da educação de Minas Gerais que, no geral, tende a naturalizar seu entendimento. O resultado disso são análises que unificam a região a partir de elementos como capitania, província, estado, comarcas, cidades etc. Esses termos político-administrativos muitas vezes são utilizados sem uma problematização do seu significado do ponto de vista espacial, sobretudo naquilo que foi definido por Fremont (1980) como espaço vivido, ou seja, aquele que é revestido de uma identidade que lhe é dada a partir das experiências dos sujeitos.

Nesse sentido, procuramos demonstrar a especificidade do processo de desenvolvimento da região representada pelo sul de Minas e suas particularidades em relação a aspectos econômicos, políticos e sociais. Essas particularidades se manifestaram também na educação que, como vimos na Campanha da Princesa, desenvolveu-se em um padrão que acompanhou o próprio desenvolvimento da comarca do Rio das Mortes. Nessa comarca encontramos a maior densidade populacional de Minas, no século XIX, situação que tinha paralelo com o registro de indivíduos em processo de escolarização em Campanha, onde encontramos níveis muito superiores às demais vilas e cidades de Minas.

Por outro lado, encontramos também traços específicos em relação ao perfil do público que se encontrava nas escolas de instrução elementar que apresentava uma diversidade na sua composição, porém, em padrões diferenciados daqueles que encontramos para outras regiões sinalizando a existência do perfil de uma sociedade mais tradicional.

Esses elementos indicam a importância da incorporação do espaço nas análises da historiografia educacional reafirmando a necessidade de levar em conta essa dimensão na descrição dos processos de estabelecimento da educação em Minas Gerais. Análises que levem em consideração os processos históricos de ocupação do território representado por Minas certamente nos auxiliarão no entendimento das diferentes características dessa região e dos processos educacionais que nela se desenvolveram. A história da educação de Minas Gerais necessita percorrer esse caminho para assumir aquilo que foi estabelecido de forma assertiva e enigmática por Guimarães Rosa (2009, p. 248): Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas!

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1A promoção de um arraial à condição de vila representava uma mudança de status implicando, entre outras coisas, uma maior autonomia política. Em termos institucionais isso se efetivava por meio do estabelecimento de uma Câmara de Vereadores e o exercício da justiça no interior de seus domínios.

2As primeiras vilas de Minas Gerais foram criadas em 1711 e foram designadas como Vila do Ribeirão do Carmo e Vila Rica, ambas situadas na Comarca de Vila Rica; foram criadas também a Vila Real de Nossa Senhora da Conceição e a Vila Nova Rainha do Caeté (1714), na Comarca de Sabará; na comarca do Rio das Mortes foram criadas a Vila de São João del-Rei (1713) e São José del-Rei (1730); na Comarca do Serro surgiram a Vila do Príncipe (1715), Vila do Nossa Senhora da Piedade do Pintangui (1718) e a Vila de Minas Novas (1730).

3Quando Campanha solicitou a elevação à condição de Vila requereu como extensão todo o território situado abaixo do Rio Grande, posteriormente esse foi o território que viria a se configurar na pretensão de criação da Província Minas do Sul .

4Vereação de 15 de fevereiro de 1800. Memórias Municipais - V Campanha. Revista do Arquivo Público Mineiro, 1896, p. 483-484.

5Francisco de Paula Ferreira Rezende nasceu em Campanha, em 1832, formou-se em direito, em São Paulo, ocupando o cargo de juiz em algumas cidades mineiras. Foi deputado na assembleia provincial (1864-1865), Vice-governador de Minas e Ministro do Supremo Tribunal - cargo que ocupou no início do período republicano. No final do século XIX, escreveu o livro Minhas Recordações, obra na qual registrou suas memórias.

6Segundo Vidal e Faria Filho (2004, p. 24): “A educação escolar, ao longo do século XIX, foi, progressivamente, assumindo as características de uma luta do governo do estado contra o governo da casa. Nesses termos, simbolicamente, afastar a escola do recinto doméstico significava afasta-la também das tradições culturais e políticas a partir das quais o espaço doméstico organizava-se e dava-se a ver.”

7 Na primeira metade do século XIX, foram feitos alguns censos populacionais em Minas Gerais. Uma boa parte desse material encontra-se disponível através de Listas Nominativas de Habitante. Essas eram organizadas a partir dos domicílios que listavam todos os indivíduos que estavam a ele vinculados a partir dos seguintes campos: Nome, Qualidade (raça), Condição (livre ou escravo), Idade, Estado Civil e Ocupação. Arquivo Público Mineiro: Lista Nominativa dos Habitantes de Campanha. Coleção Mapas De População. CX. 10, DOC. 19.

8“Art. 12o. Os Pais de Família são obrigados a dar a seus filhos a instrução primária do 1o. grau ou nas Escolas Públicas, ou particulares, ou em suas próprias casas, e não os poderão tirar delas, em quanto não souberem as matérias próprias do mesmo grau (...) Art. 13o. A obrigação imposta no artigo precedente aos Pais de Família começa aos oito anos de idade dos meninos, mas se estende aos que atualmente tiverem quatorze anos de idade”(LEI 13/1835, p.29).

9Para efeito de cálculo ao atendimento daquilo que chamamos de população em idade escolar excluímos das 207 crianças que foram registradas como alunos aquelas que frequentavam a escola mas estavam fora dos termos definidos pela Lei 13, ou seja, as que estavam fora do intervalo entre 08 a 14 anos, um total de 35 indivíduos; retiramos também as mulheres que foram assinaladas como em processo de escolarização, ou seja, 55 meninas.

10Pardo não deve ser entendido como uma forma de designação que se refere ao fenótipo dos mestiços, na verdade, trata-se de algo que vai muito além da miscigenação representando uma conjugação entre classificação racial e lugar social. Dessa forma podemos dizer que na lista nominativa de Campanha o termo pardo era uma forma preferencial de designar negros em processo de escolarização.

11Lista nominativa de Mariana, 1831. Arquivo Público Mineiro: Fundo Presidente de Província. Cx 02, Pacotilha 17.

12“O modelo de família patriarcal pode ser assim descrito: um extenso grupo composto pelo núcleo conjugal e sua prole legítima, ao qual se incorporavam parentes, afilhados, agregados, escravos e até mesmo concubinas e bastardos; todos abrigados sob o mesmo domínio, na casa-grande ou na senzala, sob a autoridade do patriarca, dono das riquezas, da terra, dos escravos e do mando político. Ainda se caracterizaria por traços tais como: baixa mobilidade social e geográfica, alta taxa de fertilidade e manutenção dos laços de parentesco com colaterais e ascendentes, tratando-se de um grupo multi-funcional”. (Teruya, 2005, p.03)

Recebido: 01 de Março de 2019; Aceito: 01 de Julho de 2019

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