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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.18 no.3 Uberlândia set./dic 2019  Epub 17-Ene-2020

https://doi.org/10.14393/che-v18n3-2019-11 

ARTIGOS

A literatura infantil, segundo Fernando de Azevedo

Maria do Rosario Longo Mortatti1 
http://orcid.org/0000-0003-1374-1425; lattes: 7159018256371571

Marcelo Augusto Totti2 
http://orcid.org/0000-0002-5188-5983; lattes: 7520642772477338

1Universidade Estadual Paulista (Brasil) m.mortatti@unesp.br

2Universidade Estadual Paulista (Brasil) marcelo.totti@unesp.br


Resumo

Embora diferentes aspectos da obra e da atuação de Fernando de Azevedo (1894-1974) venham sendo objeto de estudos que evidenciam suas decisivas contribuições para a sociologia, a educação e a cultura no Brasil, ainda estão inexploradas suas reflexões sobre literatura infantil. Com o objetivo de contribuir para a compreensão desse aspecto da obra do eminente intelectual brasileiro, analisa-se, neste artigo, a configuração textual do ensaio “A literatura infantil numa perspectiva sociológica”, publicado em 1952, na revista Sociologia, da Escola de Sociologia e Política da São Paulo, e republicado, na terceira edição, de 1953, do livro A educação e seus problemas (Melhoramentos). A análise se baseia na hipótese de sua relação com o projeto (político) de renovação educacional no Brasil e com a história da sociologia, da educação e da produção brasileira sobre literatura infantil, em que o ensaio figura como um clássico.

Palavras-chave: Fernando de Azevedo; Literatura infantil; História da educação

Abstract

Although different aspects of Fernando de Azevedo's work and career (1894-1974) have been the object of studies that show his decisive contributions to sociology, education and culture in Brazil, his reflections on children's literature remain unexplored. In order to contribute to the understanding of this aspect of this eminent Brazilian intellectual’s work, this paper analyzes the textual configuration of the essay “A literatura infantil numa perspectiva sociológica” [Children’s literature from a sociological perspective], published in 1952 in the Sociologia journal, of the São Paulo School of Sociology and Politics, and republished in the 3rd edition, 1953, of the book A educação e seus problemas [Education and its problems] (Melhoramentos). This analysis is based on the hypothesis that there is a relationship between this essay and the (political) project of educational renewal in Brazil and the history of Brazilian sociology, education and production on children's literature, in which the essay is considered a classic.

Key words: Fernando de Azevedo; Children’s literature; History of education

Resumen

Aunque diferentes aspectos del trabajo y la actuación de Fernando de Azevedo (1894-1974) han sido objeto de estudios que muestran sus contribuciones decisivas a la sociología, la educación y la cultura en Brasil, sus reflexiones sobre la literatura infantil aún no han sido exploradas. Para contribuir a la comprensión de este aspecto de la obra del eminente intelectual brasileño, este artículo analiza la configuración textual del ensayo "A literatura infantil numa perspectiva sociológica", publicado en 1952, en la revista Sociología, de la Escuela de Sociología y Política de São Paulo, y republicado, en la tercera edición, 1953, del libro A educação e seus problemas (Melhoramentos). El análisis se basa en la hipótesis de su relación con el proyecto (político) de renovación educativa en Brasil y com la historia de la sociología, la educación y la producción brasileña de literatura infantil, en la que el ensayo aparece como un clásico.

Palabras clave: Fernando de Azevedo; Literatura infantil; Historia de la educación

Introdução

O ensaio “A literatura infantil numa perspectiva sociológica”, de Fernando de Azevedo (1894-1974), foi publicado em março de 1952, no vol. XIV, n. 1, da revista Sociologia, da Escola de Sociologia e Política da São Paulo (ESPSP). Foi republicado, com o título “A formação e a conquista do público infantil (A literatura infantil numa perspectiva sociológica)”, na terceira edição, de 19531, do livro A educação e seus problemas (Melhoramentos).

Em 1952, Azevedo era já um intelectual brasileiro de grande prestígio e inegável autoridade decorrente da repercussão e reconhecimento de sua obra e atuação como educador, sociólogo, administrador, editor e escritor. A partir da década de 1980, esse reconhecimento vem sendo reiterado e aprofundado em estudos acadêmicos, especialmente nas áreas de (história da) educação e de sociologia, com foco em diferentes aspectos de sua obra e atuação profissional. No entanto, ainda estão a demandar estudos pontuais suas reflexões sobre a literatura infantil2. Embora possa parecer aspecto meramente “circunstancial” e “menor”, esse “problema especial” (AZEVEDO, 1952) se relaciona de modo orgânico com o conjunto de problemas da educação e da cultura brasileiras abordados por Azevedo e também com a produção brasileira sobre literatura infantil que antecedeu e sucedeu o ensaio mencionado.

Quais podem ter sido motivo e finalidade de esse renomado intelectual brasileiro a tratar da literatura infantil, publicar o ensaio em revista de sociologia e republicá-lo em livro sobre educação? Que lugar se pode atribuir ao tema no conjunto de sua obra e na história da produção brasileira sobre literatura infantil? Por que esse ensaio pode ser considerado pioneiro na abordagem do tema e um clássico dos estudos sobre literatura infantil no Brasil?

Essas são as principais questões norteadoras das reflexões apresentadas neste artigo, cujo objetivo é compreender sentidos possíveis do ensaio, por meio da análise de sua configuração textual3, e com base na hipótese de sua relação com o projeto (político) de renovação educacional no Brasil, de que Fernando de Azevedo foi protagonista e um dos principais propositores, e com a história da educação, da sociologia e da produção brasileira sobre literatura infantil, em que o ensaio figura como um clássico.

Fernando de Azevedo: aspectos da vida e da obra

Ao longo de sua extensa e intensa carreira profissional, durante mais de quatro décadas, esse intelectual de formação clássica, que “[...] aos poucos foi se atualizando com o pensamento social de sua época e com a necessidade de um embasamento científico” (PENNA, 2010, p. 15), teve atuação destacada como: professor de língua e literatura latinas no ensino secundário e de sociologia, no ensino normal e superior; especialista em educação física; redator e crítico literário em jornal; diretor e administrador de instituições e órgãos de educação e do ensino; presidente de sociedade científica; editor e escritor. Recebeu importantes homenagens, títulos e prêmios por sua obra e atuação profissional, com destaque para o “Prêmio Machado de Assis”, da Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1945, pelo conjunto da obra, em particular, pelo livro A cultura brasileira.

Nas palavras de Paschoal Lemme ([1976]/2004, p. 169), Azevedo “[...] foi, sem dúvida, uma das mais altas expressões da inteligência e da cultura do Brasil moderno”. Dentre os momentos “[...] mais significativos dessa vida extraordinariamente fecunda”, Lemme destaca:

[...] 1º.) A grande reforma do ensino no antigo Distrito Federal (1927-1930), da qual Fernando de Azevedo foi o líder, como diretor da Instrução Pública, [...] 2º.) O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), redigido por Fernando de Azevedo, documento único da história da educação brasileira, no qual se traçavam as diretrizes para a educação e o ensino no país, a serem adotadas pela Revolução de 1930. [...] 3º.) A monumental obra A cultura brasileira, redigida inicialmente para servir de introdução ao recenseamento de 1940, tornou-se de consulta obrigatória para quem deseje conhecer a evolução da cultura nacional, em todos os seus aspectos. (p. 170)

Do ponto de vista administrativo, a reforma da instrução pública no Distrito Federal em 1927, batizada com seu nome, foi um dos primeiros e mais importantes feitos de Azevedo. O convite para dirigir a pasta da Instrução Pública do Distrito Federal certamente decorreu do eficiente trabalho que realizara, no ano anterior, a pedido do grupo do jornal O Estado de S. Paulo, tendo resultado no “Inquérito sobre a Instrução Pública em São Paulo” (AZEVEDO, 1926/1960)4, que “[...] lançou Fernando de Azevedo como o grande perito em educação. Por essa época, enveredou, como autodidata, pelos caminhos da sociologia e dos problemas da educação por sentir que eram de maior urgência para o Brasil.” (PENNA, 2010, p. 15) No “Inquérito”, cujo objetivo foi coletar informações sobre a instrução púbica no estado de são Paulo, Azevedo

não se deteve simplesmente nos aspectos técnico-pedagógicos [da educação]; sua preocupação foi forjar um projeto político e educacional nos termos expressos pelo “grupo do Estado”, atendendo às expectativas em relação à educação formadora das elites.[...] Nele, Fernando de Azevedo afirmou que o principal problema da instrução pública paulista e nacional era a inexistência de uma política de educação clara e completa que pudesse vir a desempenhar a tarefa de formar as elites [intelectuais]. (TOTTI, 2009 p. 54)

Em seu discurso de posse como Diretor-Geral da Instrução Pública do Distrito Federal, propôs o recenseamento escolar como uma de suas linhas iniciais de trabalho. O objetivo era tomar contato com o aparelho educacional carioca, coletar dados e, posteriormente, traçar um programa de ideias e análises capazes de solucionar os problemas da educação no Rio de Janeiro. O recenseamento gerou forte oposição da imprensa carioca. Os jornais - O Globo, A Manhã e Correio da Manhã - atacavam frontalmente a ideia. Os principais argumentos contrários se baseavam na inutilidade da medida e no desperdício de recursos, já que esse trabalho havia sido realizado pela Diretoria de Estatística em 1920, e os dados não haviam mudado substancialmente. As críticas aumentaram, quando, para dirigir o recenseamento, Azevedo formalizou o convite ao educador, jornalista e escritor paulista, Sud Menucci. O convite foi criticado pelo Jornal do Brasil (RJ) tanto por Azevedo não ter encontrado um técnico carioca para essa tarefa quanto pelo fato de o paulista ter pouco ou nenhum conhecimento sobre o Distrito Federal (PILETTI, 1982, p. 34). O resultado do recenseamento, publicado em abril de 1927, além de ter demonstrado grandes disparidades com o censo de 1920, possibilitou a Azevedo se familiarizar com a precária situação da instrução pública carioca e desenvolver o que denominou uma “revolução no ensino” (AZEVEDO, 1971).

Após seu retorno à capital paulista, em 1931, outras atividades de grande envergadura administrativa acompanharam a trajetória de Azevedo.

Foi redator e primeiro signatário do documento A reconstrução educacional no Brasil: Ao povo e ao governo: manifesto dos pioneiros da educação nova, publicado em 19/03/19325, no qual se lançaram as bases e as diretrizes de uma nova política de educação. Como se sabe, nesse documento doutrinário e de política educacional (SAVIANI, 2008, p. 251) de grande impacto, por meio do qual se iniciou no Brasil o movimento escolanovista, liderado por três “cardeais da educação”6 - Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho - seus signatários articulavam preocupações com a educação, o debate político em torno de projeto modernizador de nação e as condições objetivas para a ação, criadas com a instalação da “Nova República”/“Era Vargas” e notadamente após a criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930. Esses intelectuais ocuparam proeminente “[...] lugar social e político [...] no debate público sobre a educação”, tendo contribuído para o “adensamento da fórmula da Escola Nova” (VIDAL, 2013, p. 582, 587), fundamentada no princípio da educação pública, laica, gratuita e obrigatória, que sintetizou um dos polos de

disputas pelo controle do aparelho estatal e pela definição dos rumos da educação nacional [que] tenderam a estreitar as relações entre um amplo ideal pedagógico, a defesa de uma concepção de Estado educador e a recomposição da frente de educadores na dinâmica das defecções e das novas alianças. Como bandeira, Escola Nova acabou equivalendo a um movimento e estabeleceu as fronteiras de uma batalha, opondo pioneiros a católicos. (VIDAL, 2013, p. 582-583)

Em dezembro de 1932, Azevedo foi nomeado Diretor-Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo, cargo em que permaneceu até julho de 1933 e que ocupou novamente em 1947, dessa vez como Secretário da Educação e Saúde Pública. Neste cargo, implantou o ensino de Sociologia em todas as Escolas Normais do Estado e elaborou o Código de Educação do Estado de São Paulo.

Devem se destacar ao menos outras duas contribuições de Azevedo: sua participação no processo de fundação e consolidação da Universidade de São Paulo (USP), em 1934, e suas atividades como escritor e editor.

Em 1933, atuou como fundador e primeiro diretor do Instituto de Educação de São Paulo (no ano seguinte incorporado à USP) e como professor de Sociologia Educacional da Escola de Professores desse Instituto. Em 1934, participou como “viga mestra” (Candido apud PENNA, 2010, p. 18), na criação da USP e na idealização do Instituto de Educação e da Faculdade de Filosofia, da qual foi diretor e catedrático de Sociologia Educacional, tendo se destacado “[...] como um lutador incansável pela implementação do verdadeiro espírito universitário, plenamente identificado com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras como anima mater da Universidade.” (PILETTI, 1994, p.183, grifos no original).

Não menos significativa foi sua obra como escritor e sua atuação como editor. Entre 1920 e 1971, Azevedo teve publicadas mais de duas dezenas de livros, sobre língua e literatura, sociologia e educação, além de ensaios, artigos, prefácios e textos em colaboração/coautoria. Sua “monumental obra” (PENNA, 2010), A cultura brasileira, foi finalizada em 1943, após ter publicado as sistematizações teóricas que lhe serviram de referência para selecionar os principais problemas e organizar conceitos como “ciência”, “cultura”, “civilização” e “educação” (XAVIER, 1998), demarcando uma interpretação do Brasil e do pensamento social brasileiro. Sua atração para o ofício de escritor é destacada por ele, no discurso na ABL, em 1945.

Eu me senti atraído, desde a mocidade, para o ofício de escritor como se vê dos 25 volumes de que constam minhas Obras Completas. Se me anunciavam que haviam sido suspensas as aulas, não sofria por não ter de dá-las, embora sempre ministrasse com prazer meus cursos habituais ou extraordinários. Mas não era pouco o meu pesar quando me tomavam as horas em que costumava escrever. É por isso que, sendo sociólogo e um político de Educação que se empenhou a fundo em tantas reformas, creio ter sido, antes de tudo, para minha vida e obra de escritor que voltastes vossa atenção, quando resolvestes eleger-me para participar de vosso convívio. (AZEVEDO, ([1945]/1968)

Em 1931, iniciou a atuação como editor na Companhia Editora Nacional (SP), onde fundou, organizou e dirigiu, até 1946, a Biblioteca Pedagógica Brasileira, composta por cinco séries: Literatura Infantil; Livros Didáticos; Atualidades Pedagógicas; Iniciação Científica; e Coleção Brasiliana. Em 1961, encerrou sua participação na vida pública, aposentando-se da função de Professor Catedrático de Sociologia da FFCL-USP, após 41 anos de magistério.

As contribuições de seu pensamento e a atuação podem ser avaliadas de diferentes pontos de vista. Para Penna (2010):

[a] contribuição original de Fernando de Azevedo não está apenas na afirmação dos princípios da Escola Nova, mas sim na nova finalidade atribuída ao sistema de educação e, portanto, na própria filosofia de que se desprendeu. Os problemas em educação apenas adjetivamente são problemas técnicos (de administração da organização educacional, de técnicas pedagógicas, etc.), porque substantivamente - Fernando de Azevedo repetiu isso ad nauseam - são problemas de ordem política, social, econômica e filosófica. (p. 57)

Nas palavras de Piletti (1994), Azevedo foi “um homem de ação”,

acima de tudo, um homem íntegro, um humanistana verdadeira acepção da palavra. Por isso, um homem permanentemente atormentado [...], que lutou pelo desenvolvimento do humanismo [...] Por isso, que o digam Florestan Fernandes, Antônio Cândido e Maria Isaura Pereira de Queiroz, seus assistentes na USP, o seu apoio àqueles que com ele trabalharam, a sua solidariedade ativa para com os colegas, levando-o a comparecer espontaneamente, apesar de aposentado, para acompanhar de perto os depoimentos dos professores convocados para depor em inquérito policial militar, em 1964.” (p. 184, grifos no original)

Para compreender esse intelectual brasileiro, é necessário, no entanto, também aceitar que “[t]odo ele é contraditório. (Candido apud PENNA, 2010, p. 77). A ambiguidade de seu pensamento se evidencia por meio do “raciocínio autoritário”, baseado na ideia de que “cabe às elites orientar e dirigir as massas”, ao mesmo tempo em que “[...] propõe reformas radicais, antielitistas e acredita na importância do papel histórico das massas”. (PENNA, 2010, p. 78- 79)

Em que pesem essas contradições, é inegável a importância de Azevedo, tanto nas reformas educacionais quanto na construção intelectual de certa intepretação do Brasil, fundada em sua convicção da necessidade de renovação e modernização do país, por meio da educação e da cultura.

O ensaio na revista

A revista Sociologia “[...] foi o primeiro periódico brasileiro especializado em Sociologia e não tardou a ser reconhecido, dentro e fora do país, como importante divulgador das Ciências Sociais” (NEUHOLD, 2014, p. 183). Criada, em 1939, por iniciativa pessoal de Roberto Barreto e Emilio Willems, a revista foi editada com periodicidade anual até 1966. Em seu ciclo de vida, é possível identificar os seguintes períodos ou fases:

[o] primeiro, anterior a 1947, quando a revista era oficialmente desvinculada da Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP); o segundo, de 1947 em diante, quando se torna órgão oficial da instituição. Fernando Limongi toma como parâmetro para dividir as diferentes fases do periódico as mudanças em sua direção. Teríamos, assim, três fases: Emílio Willems e Romano Barreto (1939-1948); Oracy Nogueira e Donald Pierson (1949-1957); Alfonso Trujillo Ferrari (1958-1966). (JACKSON, 2004, p. 263)

Intitulada inicialmente Sociologia: revista didática e científica, sua característica na primeira fase foi mais didática, voltada aos métodos e técnicas de ensino de Sociologia, uma disciplina ainda nascente no contexto acadêmico no Brasil. A ideia era angariar contribuições de professores de Sociologia das escolas normais e do ensino secundário.

O ensaio de Azevedo foi publicado na “segunda fase” da revista, com direção do Nogueira e Pierson. Nessa fase, com a “[...] confirmação da revista como órgão oficial da ELSP, [...] diminuiu sensivelmente a presença da USP em suas páginas”, e o “[...]o foco principal de Sociologia será os ‘estudos de comunidades’, coordenados por Pierson [...]. O periódico assume, então, a divulgação das pesquisas realizadas pela ELSP”. (JACKSON, 2004, p. 264)

Nessa segunda fase, ainda, a revista tem um caráter mais científico, e os estudos empíricos nela publicados foram marcantes para a consolidação da ciência sociológica no Brasil. Outro fator relevante é a distinção dos estudos implementados pelas duas cadeiras de Sociologia da USP. Na de Sociologia I, liderada por Roger Bastide, a tradição dos estudos empíricos era proeminente, enquanto Fernando de Azevedo, na cadeira de Sociologia II, implementava um “humanismo novo”, de cunho mais ensaístico e com preocupações teóricas, algo que a “[...] Cadeira de Sociologia I buscava superar. Muito embora o catedrático da Sociologia II tenha tido um papel histórico reconhecidamente importante no estímulo de pesquisas empíricas em Ciências Sociais” (PULICI, 2008, p. 82).

No número de março de 1952, foram publicados os seguintes textos: “A ‘história-de-vida’ como técnica de pesquisa”, de O. Nogueira; “A cidade de São Paulo no período de 1970-1890 (1)”, de R. Morse; “A literatura infantil numa perspectiva sociológica”, de F. Azevedo; “Relações raciais em Cruz das Almas”, de D. Pierson “Terminologia de parentesco de Kaingang”, de H. Baldus.

Como se pode constatar, Azevedo estava acompanhado de outros eminentes intelectuais da sociologia e antropologia, da etnologia e da historiografia, que se dedicavam ao estudo de temas mais “nobres” e centrais para a sociologia da época, com considerável trabalho de pesquisa.

O ensaio no livro

O livro A educação e seus problemas teve quatro edições: pela Companhia Editora Nacional, a 1ª., de 1937, e a 2ª., de 1946; e, pela Edições Melhoramentos, a 3ª. edição, de 1953, e a 4ª., de 1958, revista e ampliada, em dois tomos, integrando a publicação de “Obras completas - volume VIII”, de Fernando de Azevedo.

Embora sem alteração no conteúdo, a (re)publicação do ensaio, a partir da terceira edição do livro, representa um triplo deslocamento: da interlocução direta com leitores do campo da sociologia para os do campo da educação; de revista para livro e deste, da Nacional para a Melhoramentos. Do ponto de vista da divulgação científica, trata-se de indicativo de ampliação da abrangência de leitores previstos e do interesse do tema também para o campo da educação; do ponto de vista editorial, trata-se de indicativo da consolidação da então antiga relação de Azevedo com outro eminente intelectual de sua geração: Manoel Bergström Lourenço Filho. Do ponto de vista da formação e atuação de Azevedo, trata-se, porém, não de deslocamento de interesses científicos ou educacionais, mas de explicitação de seu anseio “[...] pela aproximação entre dois mundos [o das letras e o da educação] que pareciam viver quase separados” (AZEVEDO, 1953c7, p. 237).

De oito títulos de Azevedo com datas de primeira edição entre 1920 e 1930, seis foram editados pela Weisflog/Melhoramentos; um, pela Companhia Editora Nacional; um, pela Irmãos Marrano; e um, pela Nova Era.

Pela Nacional, entre 1931 e 1943, período em que Azevedo dirigiu a coleção Biblioteca Pedagógica Brasileira, foram publicados, além do Manifesto de 1932, nove livros seus, oito deles em séries dessa coleção: cinco, em Atualidades Pedagógicas; dois, em Iniciação Científica; e um, em Brasiliana.

As duas primeiras edições de A educação e seus problemas integram a série Atualidades Pedagógicas, que se tornou “[...] espaço de difusão das concepções educacionais do grupo” de Azevedo e “[...] referência nacional do escolanovismo, pelas estratégias de produção e difusão mobilizados”, com objetivo de “[...] construção de uma nova cultura pedagógica, marcada pela fé nos avanços das ciências e, especificamente, das ciências humanas.” (TOLEDO, [2007]), p. 4-5). Para essa série, Azevedo

[p]rogramou autores e textos oriundos da reforma empreendida por Anísio Teixeira, no Distrito Federal, entre 1931 e 1935; e da sua própria reforma, em São Paulo, em 1933, que projetou a institucionalização do Instituto de Educação de São Paulo; assim como os autores da ABE carioca. Buscou publicar textos que versassem sobre as “ciências bases da educação” e os frutos das pesquisas desenvolvidas por essas novas perspectivas. Para isso, propôs a tradução dos textos e autores do movimento internacional do escolanovismo, programando-os de modo que autores brasileiros e estrangeiros conformassem uma coesa cultura pedagógica projetada como renovação. (TOLEDO, [2007], p. 5)

Enquanto dirigiu a Série, além de quatro livros seus, nela foram publicados (de forma intercalada na sequência de volumes), livros de autores brasileiros, como A. Teixeira, A. Peixoto, D. Carvalho, A. Ramos, Almeida Junior, A. Espinheira, Carneiro Leão, Venâncio Filho; e estrangeiros, como J. Dewey, E. Claparède, H. Piéron, H. Wallon, A. M. Aguayo, P. Monroe. R. Nihard.

No final da década de 1930, esse projeto político-educacional de Azevedo e seu prestígio editorial foram “abalados”, em decorrência da intervenção por parte do regime de Vargas e da propaganda desmobilizadora de educadores católicos, e a “[...] a rede de autores por ele montada se dissolve com a derrota política de parte do projeto sintetizado na reforma de Teixeira do Distrito Federal, no Instituto de Educação da USP e no desenho da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras também da USP.” (TOLEDO, [2007], p. 8). Com a saída de Azevedo, a série passou a ser dirigida por J. B. Damasco Penna, que reformulou o projeto editorial.8

Atualidades Pedagógicas foi contemporânea de outras iniciativas editoriais brasileiras e estrangeiras, com objetivos semelhantes, destacando-se o “pioneirismo”, no Brasil, da coleção Biblioteca de Educação, da Melhoramentos, onde Lourenço Filho9 - “um segundo ego da editora”, nas palavras de Hernani Donato -, atuou intensamente como editor, revisor de livros de literatura infantil, tradutor, adaptador, prefaciador, organizador e orientador das coleções Biblioteca da Educação (1927) Biblioteca Infantil (1925) e Viagem Através do Brasil (1934).

Pioneira na publicação de textos de divulgação das bases científicas e dos processos racionais da educação, na avaliação do psicólogo francês, Henry Piéron, e em consonância com o movimento de renovação educacional, a coleção Biblioteca da Educação foi dirigida por Lourenço Filho, mesmo depois de aposentado, em 1957, até seu falecimento. Nessa coleção, até 1940, ano de seu terceiro livro na coleção10, foram publicados livros de autores brasileiros e estrangeiros, que se destacavam em campos como os da psicologia, sociologia e filosofia, representando importantes referências na proposição e divulgação de ideias do movimento de renovação educacional. Entre os brasileiros, constam: A. Sampaio Dória, A. Espinheira, M. Teixeira de Freitas; entre as traduções de autores estrangeiros, principalmente europeus e estadunidenses, constam: H. Piéron, E. Claparède, É. Durkheim, A. Binet e T. Simon, J. Dewey, W. Kilpatrick.

Embora, talvez por motivos circunstanciais, A educação e seus problemas não tenha integrado a série Atualidades Pedagógicas ou a coleção Biblioteca de Educação, as reflexões sobre literatura infantil apresentadas e discutidas por Azevedo nesse livro se relacionam diretamente com as questões educacionais e culturais da época, destacadamente em sua relação com educação e sociologia.

Se, quando da publicação da primeira edição do livro, Azevedo era reconhecido por sua atuação como administrador, professor e escritor, com destaque para suas publicações sobre educação e sociologia (com oito títulos pela Melhoramentos), nas décadas de 1940 e 1950, quando foram publicadas as edições seguintes do livro em análise, seu prestígio estava já consolidado, tendo-se ampliado com o reconhecimento nacional representado pela premiação da ABL, seguido de publicações importantes no campo da sociologia e da ocupação de outras também importantes funções administrativas e científicas.

O deslocamento editorial da terceira e da quarta edições do livro provavelmente prenunciava o projeto de publicação, pela Melhoramentos, das obras completas de Azevedo, com 25 volumes, os dois primeiros publicados em 1960. Esse projeto, por sua vez, representou a reunião, em mesma editora, de Azevedo e Lourenço Filho e seus respectivos projetos editorais. Desde as décadas de 1920 e 1930, esses projetos estavam articulados diretamente com as “bandeiras” escolanovistas de renovação e modernização educacional e cultural no Brasil, para cuja implementação e difusão as publicações científicas e didáticas que cada um deles dirigia representaram veículos privilegiados, alcançando professores, normalistas e alunos.

Com a publicação da terceira edição de A educação e seus problemas, pela Melhoramentos, na década de 1950, consolidava-se, portanto, a relação desses dois eminentes educadores brasileiros, que, com Anísio Teixeira, integraram uma geração de intelectuais cujas atuação profissional e produção escrita contribuíram exponencialmente para a educação brasileira naquele momento, tendo deixado legado organizacional e científico presente até os dias atuais.

Em sua primeira edição, de 1937, o livro estava estruturado em “Introdução”, com dois textos; “Primeira parte - Problemas gerais”, com sete textos; “Segunda parte - Problemas especiais”, com sete textos. Na segunda edição, de 1946, foram feitas as seguintes alterações: na segunda parte, foi incluído o discurso de 1945 (“Educadores e homens de letras (Pela aproximação de dois mundos que pareciam viver quase separados)”, e dois textos (“O idealismo na educação nova” e “Pela cultura e liberdade de espírito”) dessa parte foram remanejados para a seção “Conclusão”, acrescentada nessa edição. Na terceira edição, de 1953, houve apenas o acréscimo do ensaio “A formação e a conquista do público infantil (A literatura infantil numa perspectiva sociológica11)”, que passou a constar como o quarto na ordem dos textos, tendo-se o deslocamento de “A mulher e a escolha da profissão” para quinto lugar. 12

Na terceira edição do livro, constam, portanto, 18 textos: em “Introdução”, um trecho do Manifesto dos pioneiros da educação nova e um discurso; em “Problemas gerais”, sete conferências; em “Problemas especiais”, quatro discursos, dois ensaios e uma oração; em “Conclusão”, dois discursos. 15 desses textos são acompanhados de nota de rodapé com indicação de tipo, finalidade e data de produção, de 1932 a 1936; um, de 1945. Não consta a data nos dois ensaios: “A formação e a conquista...” e “O ensino das línguas clássicas” (este sem indicações em rodapé). O discurso de 1945 é o proferido por Azevedo na ABL, ao receber o “Prêmio Machado de Assis”.

O trecho do Manifesto... e o discurso de encerramento na 5ª Conferência Nacional de Educação marcam a “definição de princípios e posição”, o ponto de vista do autor: os problemas da educação pensados à luz dos princípios da educação (nova) e da sociologia. Em “Problemas gerais”, encontram-se as conferências em que são abordados assuntos relativos a educação rural, missão da universidade, relações entre política, unidade nacional e educação. Foram pronunciadas em associação de professores primários e na USP (Instituto de Educação e Faculdade de Direito) e na Universidade do Paraná.

Nos discursos, oração e ensaios de “Problemas especiais”, são abordados, além de literatura infantil, os seguintes assuntos: relação entre a renovação educacional e o livro (também escolar), bibliotecas e laboratórios, problemas metodológicos do ensino de línguas clássicas, mulher e escolha da profissão e a relação entre “educadores e homens de letras”.

Nos dois discursos apresentados em “Conclusão”, reiteram-se os princípios: “O idealismo na educação nova” e “Pela cultura e liberdade de espírito”. Foram pronunciados em sessões de encerramento ou inauguração de eventos relacionados com livro e biblioteca, na USP, em escola primária e na ABL.

O conteúdo do ensaio

Como informamos, o ensaio “A literatura infantil numa perspectiva sociológica” (p. 43-63) é o terceiro na ordem de apresentação na revista; e, com o título “A formação e a conquista do ‘público infantil’ ” (A literatura infantil numa perspectiva sociológica)” (p. 205-220) é o quarto na ordem de apresentação da segunda parte do livro, destinada aos “problemas especiais” da educação.

Em ambas as publicações, consta a nota de rodapé transcrita abaixo, em que Azevedo adverte sobre características e objetivos do ensaio. Nessa nota, dois aspectos merecem destaque: tem-se mais uma indicação a confirmar a precedência de publicação do ensaio na revista: a destinação preferencial e originalmente a sociólogos e sua acessibilidade também a “educadores, escritores e historiadores e críticos literários”; e a advertência de que não se trata de “estudo empírico”, talvez como uma justificativa antecipada, considerando a orientação mais científica na segunda fase da revisa, como destacamos no tópico anterior.

Neste pequeno ensaio não pretendemos senão apontar os aspectos sociológicos de alguns problemas que levanta o estudo da literatura infantil. Não é um estudo empírico que exigiria trabalho de pesquisa considerável, mas uma análise teórica da formação e desenvolvimento do público infantil, de suas causas sociais (transformações das sociedades de folk), ideológicas e culturais, como de sua natureza e composição interna, e das relações entre essa literatura e a vida e as classes sociais. Antes a “indicação” dos problemas sociológicos que envolve o fenômeno moderno da expansão dos livros para crianças do que a abordagem e o tratamento do assunto com rigor de método e terminologia científica. Assim, como pensamos, o trabalho que interessa a sociólogos, tornar-se-ia mais acessível a educadores, escritores e historiadores e críticos literários. (AZEVEDO, 1937, p. 205, grifos nossos)

O texto se mantém inalterado na republicação no livro, identificando-se apenas diferenças formais relativas a padrões editoriais, como a utilização de itálico ou aspas em títulos de livros citados. O ensaio está estruturado em sete tópicos, sem títulos e separados por asteriscos. Num misto de preocupação didática e demonstração de erudição, o método expositivo utilizado faz com que a argumentação se desenvolva por meio de retomadas, reiterações e ampliações dos aspectos abordados em cada tópico; e, em decorrência do estilo ensaístico, há muitas paráfrases ou citações de textos e autores, sem a indicação da correspondente referência bibliográfica.

No primeiro tópico, à guisa de introdução, são apresentados princípios sociológicos e evidenciadas erudição e familiaridade de Azevedo com literatura e cultura clássicas e contemporâneas à sua época. Para definição de princípios, cita o professor e sociólogo francês, Célestin Bouglé: “[...] depois de mostrar que os fenômenos econômicos, jurídicos e morais, religiosos ou estéticos variam em função das formas de sociedade, lembra que os ‘fatores sociológicos’ aparecem cada vez mais nitidamente como os mais determinantes na ‘evolução dos gêneros [literários]”, caracterizando “relações e interdependências estreitas” entre formas sociais e categorias estéticas (p. 205)13.

No segundo tópico, aborda: as origens da literatura infantil no folclore, transmitido oralmente desde a Antiguidade greco-romana, “sob as mais diversas formas, de geração em geração” (p. 207); o desenvolvimento, como resultado de mudanças na estrutura econômica e social, desse “novo tipo de literatura” ou “novo gênero literário”, a literatura infantil, ou “literatura constituída de ‘livros para crianças’ ” (p. 206), e a “formação e alargamento de um ‘público infantil’ ” (p. 207).

No terceiro tópico, como fatos/causas que contribuíram para a aparecimento e expansão da literatura infantil escrita, destaca, com base em estudos do historiador francês, Henri-Irénée Marrou, as mudanças na condição dos adultos que transmitiam a literatura oral, conforme as mudanças na estrutura econômica e social, desde as antigas sociedades até a que lhe é contemporânea. Destaca, ainda, que, em vez de vir de baixo, “[...] nas sociedades de hoje que deram origem aos livros de crianças [...], toda essa corrente de literatura infantil já flui de cima, se não das elites intelectuais, de uma parte mais ou menos culta dessas elites, e é canalizada para as crianças diretamente pelos livros. Mães, avós, domésticas já quase não têm tempo nem paciência para lhes contar histórias...” (p. 209)

Outro fato destacado por Azevedo (citando o historiador, filósofo e pedagogo francês, René Hubert) por sua contribuição para o surgimento e multiplicação de livros de crianças, em vários países, foi o “crescente interesse científico pela criança” (p. 210), decorrente do impulso dado aos estudos pedagógicos, desde o século XVIII, pelas precursoras doutrinas pedagógicas dos educadores J. A. Comenius, F. Fröebel e J. H. Pestalozzi, e, a partir do século XIX, do “progresso das ciências humanas, como [...] filosofia, sociologia e psicologia” (p. 210), quando:

a criança passou a ser objeto constante de reflexões de filósofos e educadores e das observações e pesquisas científicas de especialistas que trabalham no campo de duas ciências novas e vizinhas: a sociologia e a psicologia. [...] Se acrescentarmos, pois, a esse movimento de ideias pedagógicas tão intimamente ligado às modificações de estrutura econômica e social, o extraordinário progresso da psicologia da criança e da sociologia, com suas contribuições sumamente importantes aos estudo dos fatos da educação, já nos será fácil compreender o crescente interesse científico pela criança que, com seus problemas, passou a atrair a atenção de todos e a constituir, nos grandes centros culturais, o objeto de análise e investigações científicas.

[...]

É desse interesse [...] que começam a participar escritores, dando-nos, já no século XVII e sobretudo a partir do século XIX, livros preciosos que se tornaram clássicos , - embora alguns como o de Perrault e os dos irmãos Grimm não tenham sido originalmente destinados ao público infantil, - e, mais tarde, nestes últimos 25 anos, uma produção tão numerosa como desigual.

[...] corrente contínua que borbulha por toda parte e em que uma quantidade enorme de livros, de sucesso passageiro ou de todo o ponto medíocres, se misturam algumas jóias literárias e pequeninas obras-primas. (AZEVEDO, 1953a, p. 210-211)

No quarto tópico, Azevedo aborda a relação entre concepções de criança e a constituição de novo(s) público(s) (para escritores), cada vez mais renovado(s) e diversificado(s), enfatizando as relações entre sua expansão, modificações na estrutura econômica e social e “fatores de ordem cultural e ideológica”. Dentre estes fatores, destaca o “[...] interesse pedagógico e científico pela criança, [...] pela multiplicidade e importância de estudos e pesquisas que têm por objeto a criança, normal e anormal, de um e de outro sexo, de idades diversas e das diferentes classes sociais [...]” (p. 212), impulsionado pelo “[...] extraordinário desenvolvimento que teve a educação popular, em consequência do advento da democracia e sob pressão cada vez mais poderosa da ideias democráticas e socialistas, [a] ‘universalidade’ e a ‘obrigatoriedade’ da educação fundamental [...] (p. 212)

[P]or toda parte, estende-se, lenta mas constantemente, a rede de educação primária, para apanhar todas as crianças em idade escolar, contribuindo, desse modo, para a extensão e renovação crescentes do “público” infantil. A escola primária, fundindo como que num todo orgânico, numa só massa, o público de crianças, de um e outro sexo, de todas as classes, em cada país, tende a alargar, além de fronteiras insuspeitadas, esse “público” aparentemente homogêneo, flutuante e mais ou menos fechado, constituído não só de meninos mas de meninas que recebem até certo grau uma educação geral ou comum a todos. (p. 212)

Da diversidade e complexidade biopsicológica e social desse “novo público ou grupo social”, decorrem também “[...] diversos tipos e graus os livros de crianças que se destinam aos diferentes tipos em que se reparte o público da infância e primeira adolescência”, que buscam atender às diferentes necessidades desse “[..] público flutuante, que se renova a curtos intervalos, ou de duração efêmera [tempo de crescimento de cada categoria de idade dos 8 aos 14 anos]”, quando comparado com a “outra literatura (a dos adultos - 18-60 anos)”. (p. 212-213)

A essas questões, Azevedo acrescenta as relativas ao lugar do adulto e da criança na escolha dos livros desse então novo gênero literário assim como as marcas do momento histórico e social nos assuntos escolhidos pelos escritores e na maneira de deles tratarem:

as crianças não “escolhem” nem compram seus livros, mas são os pais, parentes ou amigos, as escolas e o Estado que os compram para elas. [...] São elas certamente que “consagram” ou desaprovam os livros [...], mas esse “peneiramento” pelas crianças não se faz senão entre livros já previamente escolhidos pelo julgamento dos adultos, conforme sua “razão”, isto é, as suas concepções de vida, ideias e sentimentos. (p. 213)

Considerando que a literatura infantil (como toda literatura) espelha “[...] não apenas o espírito de uma época, mas o pensamento, as atitudes e tendências de uma classe social” e, ainda, “o acordo do escritor com certas classes sociais” (p. 214), Azevedo pondera que, no estudo da literatura infantil, a

análise do “papel social” dos escritores, da influência que essa literatura sofre da situação social e também de uma certa “expectativa de público”, seria, pois, tão útil como a sondagem, por inquéritos e investigações, sobre os livros efetivamente preferidos pelas crianças ou, por outras palavras, sobre as atitudes e reações desse público, variável, em certa medida, conforme os sexos, segundo os meios, rural e urbano, e as classes sociais que, sobre um conjunto de traços comuns a todos os indivíduos da mesma idade, nele introduzem gradações sensíveis ou diferenças importantes que o fragmentam e não pequena variedade de “públicos”. (p. 213, grifos no original)

No quinto tópico, trata da relação entre o crescimento e a diversificação (por idades, níveis mentais, classes sociais e meios urbano ou rural) do público infantil, o “[...] crescimento das necessidades de consumo, da produção e da disputa entre produtores (escritores e editores, para a conquista do mercado)”, as desigualdades qualitativas na produção “intensa e numerosa” (p. 215), e a busca de equilíbrio entre “[...] instrução e recreação, que são objetivos de toda literatura infantil e juvenil”. (p. 216)

Comparando livros de literatura infantil do início do século XX com os catálogos de 1950-1951, destaca o “[...] extraordinário desenvolvimento [da] produção editorial, cada vez mais facilitadas pelas novas técnicas da indústria e do livro” 14 (p. 214), o “[...] aumento notável de consumidores, a competição para a conquista do público, da infância e primeira adolescência e a desigual qualidade dessa produção. Ao lado de “[...] coleções originais e preciosas”, há “[...] literatura banal, vulgar e insuportável, quer pela escassez de escritores de verdade que se dediquem a esse gênero, quer pela suposição de ser fácil escrever para crianças.” (p. 214)

Ressalva que a “literatura mofina e superficial”, “sem imaginação, sem estilo e sem ideias”, “refúgio de medíocres”, “[...] faria mal às crianças, se elas não tivessem a ‘distração’ que funciona como ‘instinto de reação de defesa’”, pois elas “[...] querem sensibilidade e fantasia, a graça feita de simplicidade, a linguagem maleável e viva, imaginosa e pitoresca [...]”. (p. 215)

Defende, portanto, o necessário equilíbrio entre recreação e instrução na literatura infantil e juvenil15, uma vez que:

[a] excessiva intervenção do escritor nesse mundo misterioso, já pela densidade de conhecimentos que encerra, já por suas intenções ostensivamente moralizantes e ideológicas, em todos os casos, a parte do “ensinamento” que o livro deveria ou poderia conter, prepondera por tal forma sobre a finalidade estética ou recreativa que acaba por sufocá-la, tornado o livro fastidioso para a criança. Livros que, escritos para elas, satisfariam talvez mais aos pais. Instrução ou recreação que são objetivos de toda literatura infantil ou juvenil e se misturam em proporções desiguais conforme as criações artísticas, devem combinar-se de modo que se deixem as crianças levar pelo encanto da narrativa pelo interesse dos personagens, para obterem o máximo de proveito dos ensinamentos que nela estejam implicados ou discretamente disseminados, através de suas peripécias ou aventuras.

Se o que se tem de transmitir, - o conteúdo cultural - aumentou consideravelmente nas sociedades modernas, mas não aumentou de forma alguma a capacidade de aprendizagem, e se é cada vez maior a distância cultural que separa o adulto de uma criança, como se poderá inculcar prematuramente no espírito infantil noções, conhecimentos e ideias que não pode assimilar? (AZEVEDO, 1953a, p. 216)

Como “livros de primeira ordem”, “exemplos dessa arte soberana” (p. 216), destaca: na prosa, As aventuras de Pinocchio, de Collodi, As aventuras de um melro, de Rigiulfo, Reinações de narizinho e Viagem ao Céu, de Monteiro Lobato, “o maior de todos, entre nós e um dos grandes da literatura universal”; Atíria, a borboleta, de Lucia M. de Almeida; e, na poesia, Cantos do meu casal, de Mário Pederneiras, e O menino poeta, de Henriqueta Lisboa.

No sexto tópico, Azevedo aborda as relações entre razão e emoção na literatura infantil, apresentando problemas e desafios a autores, relativamente às características necessárias a esse gênero literário, para atender às necessidades das crianças de sua época.

Critica livros de literatura infantil que ou “[...] resvalam para a sentimentalidade simplória ou se empenham em excesso de racionalidade”, substituindo o “irracional” pelo “racional” (p. 216), como nos romances com “[...] inspiração manifestamente de ‘esquerda’, e em que se reflete a teoria do marxismo16, extremamente racionalista, que não reconhece o ‘irracional’ no mundo natural, na história ou, particularmente, na natureza humana.” (p. 217) Contrapondo-se a essa “literatura excessivamente cerebral para crianças” (p. 217), defende a necessidade de estarem presentes a “emoção, lei básica da vida” e a “surpresa ([que] nas justas palavras de Bruna Becherucci) ‘é uma das mais belas expressões da emotividade humana’.” (p. 217)

Com uma visão nostálgica, compara “mundo anterior ao nosso” com “vida de hoje”, em que “mais do que nunca se misturam as crianças à vida dos pais”, nesse “[...] novo mundo artificial e mecânico, sem pomares e quintais, sem parques e jardins”, “[...] que se transformou para os adultos [e] mudou completamente para as crianças, cuja famílias desterradas do chão original ‘carregaram para seu exílio de cimento a nostalgia de vegetais e bichos’.” (p. 217). E “[...] segundo observa Jeannine Roy, nosso mundo impuro e impudico deveria penetrar o jardim de nossos filhos [...] A vida cara, o fascismo, o comunismo, as calamidades e crimes de toda ordem [...] chocam, contornam o pensamento infantil [...] sem realmente lhe embaciar a frescura e sem lhe toldar a pureza dos sentimentos espontâneos e incontaminados. Elas continuam a sonhar com Papai Noel, brinquedos e aventuras”. (p. 218)

De acordo com essas características da sociedade de que é contemporâneo e, ao mesmo tempo, criticando a “puerilidade” nesse então novo gênero, alerta sobre a “dificuldade considerável” para os que “querem procurar caminhos novos no domínio da literatura infantil”:

[...] a infância permaneceu ingênua, mas já não é tola. Como respeitar essa ingenuidade sem lhe dar a impressão de fraude ou mistificação?

Esse é o problema que se põe com uma acuidade particular para a primeira adolescência e que só o conhecimento ou a intuição da alma infantil associado a uma grande sensibilidade estética poderá resolver, pela reintegração geral da criação em seu estado de inocência e de graça, perfeitamente compatível com as mais finas qualidades literárias. (AZEVEDO, 1953a, p. 218)

No sétimo tópico, à guisa de conclusão, considerando a formação da personalidade de crianças e jovens, destaca suas características psicológicas e a “importância capital de tudo o que sucede nessa fase”, reiterando “[...] a grande importância que assume a literatura infantil [e] a responsabilidade que pesa sobre os escritores que se dirigem a esse público.” (p. 219)

Na sua primeira fase, de entusiasmo e deslumbramento, em que a criança e o adolescente vivem sua vida natural, com a curiosidade no espírito e a poesia na alma, toda a educação é um romance no curso de cujos incidentes a fantasia e a verdade, a pesquisa e a descoberta, os atritos com a realidade e as fugas para o ideal tecem, a cada momento, a trama sutil da personalidade humana. (AZEVEDO, 1953a, p. 219)

Citando escritores17, como Dostoiewsky, A. Guimaraes Filho, Rivarol, J. Cocteau, A. Vignet, destaca o estado poético em que vivem as crianças e a necessidade de os escritores restituírem o “olhar novo da criança”, de serem “crianças sublimes” e terem nos olhos o brilho de “encantadores de crianças”, citando Miéville. É esse “estado poético” que, segundo Azevedo, atingiram clássicos da literatura infantil, que exerceram “atração poderosa” na infância e adolescência de grandes escritores, como Goethe, G. Sand, A. France, C. Spitteler.

Literatura infantil entre os problemas da Sociologia, da Educação e das Letras

Como se pode constatar, para Azevedo a literatura infantil é um gênero literário novo em sua época, não definido por características internas aos livros, mas relacionado com aspectos da organização social e cultural, correspondendo a expressões da sociedade em diferentes períodos históricos e sociais. Para evidenciar essas relações, resgata as transformações históricas e o papel que a literatura para crianças, constituída de transmissão oral por meio do que denomina de “lore popular”, exerceu na Antiguidade greco-romano, na Idade Média e com a ascensão da burguesia. Ressalta, ainda, que a literatura infantil e o livro infantil são produtos da sociedade moderna, de construção da civilização e de uma nova sociedade. Como produto da ruptura com o passado, com uma sociedade em vias de desaparecer, a literatura infantil escrita só “apareceu” e se desenvolveu com a “[..] decadência da sociedade aristocrática e da família patriarcal” (p. 208).

Na perspectiva sociológica proposta por Azevedo, a literatura infantil transforma seu status, traduz uma conexão intrínseca com a sociedade e com uma mudança social.18 Espelha, portanto, os acontecimentos de sua época, as tendências do seu tempo e da classe social hegemônica. Evidentemente, Azevedo não é ingênuo e salienta que as marcas da classe social dominante se encontram também na produção intelectual infantil, embora “[...] a classe revolucionária, nos países de regime democrático, imprime o selo de seu espírito e de suas aspirações em não poucos livros que integram a sua produção”. (AZEVEDO, 1953b, p. 203) No entanto, embora convicto da importância da revolução burguesa e do processo civilizatório, destaca que esse processo não se dá de modo retilíneo e evolutivo, mas contraditório e construtivo, algo que só os regimes democráticos seriam capazes de proporcionar.

Nesse sentido, para Azevedo, a questão da sensibilidade infantil não pode ser observada com “sentimentalismo ingênuo”, muito menos com um “excesso de racionalização”. Mas também não deixa de criticar o que denomina de “racionalismo burguês”, fruto de uma concepção adulta sobre o mundo infantil e de uma esfera baseada na ciência e na técnica. O que Azevedo propõe é uma nova compreensão da infância, que possibilite observá-la e a seu mundo sob sua própria lente, deslocando-a do mundo adulto e do processo de socialização baseada na intermediação do adulto - que age coercitivamente sobre o mundo infantil -, para reconhecer que a criança não ingênua e incapaz. Procura, então, compreendê-la dentro do seu mundo, sem mistificações. Ao comentar os problemas que assolavam o mundo na primeira metade do século XX, destaca que a criança, mesmo em um período desalentador, continuava tendo sonhos, o que, porém, não deveria ser visto como algo “incontaminado” ou “excessivamente ingênuo”, pois se trata de entender seu “pensamento espontâneo” infantil.

Justamente por identificar e compreender esse processo, Azevedo ressalta que a melhor forma de atingir o público infantil é adentrar ao seu mundo, observar suas potencialidades, pois “[...] as crianças se movem hoje em um mundo de pensamento e hábitos de todo em todo diferentes daqueles que o sugere”. (1953a, p. 218). Nesse sentido, a literatura infantil

constitui ou pode constituir, com as outras artes, uma espécie de trama social, a vida antiga, em que a religião que tudo transfigurava com seu simbolismo e os seus ritos, a natureza, com seus encantos e mistérios, e toda uma teoria de fábulas e lendas populares bastavam para lhes criar no deserto de suas distrações medíocres, um oásis de poesia e sonho; e em que, portanto, a inteligência não se havia privado. (AZEVEDO, 1953a, p. 218-219)

As reflexões apresentadas no ensaio em análise se relacionam, complementarmente, com as de outros textos sobre assuntos similares publicados em A educação e seus problemas e com os problemas gerais da sociologia e da educação.

Principalmente nos textos da segunda parte do livro, Azevedo defende aspectos do processo de formação escolar distinto da “escola tradicional’. Para ele, aspectos como uma mudança de métodos de ensino e de livros de leitura na escola deveriam ser o eixo norteador de uma mudança substancial, em relação ao público infantil, do acesso a e do interesse pela leitura. Baseando-se nos preceitos escolanovistas, destaca que o grande problema da leitura para as crianças nas escolas é a imposição dos “livros de texto”, que escraviza a criança, cerceando sua liberdade de escolha, habituando-a a esquemas lógicos e pré-determinados, buscando sistematizar seus interesses. Em sua ótica,

de acordo com os novos ideais de educação, o centro de gravidade do problema se desloca do professor em que se fixava na escola tradicional, para a criança e para o respeito de sua liberdade e espontaneidade, o livro longe de desaparecer, ganha relevo pelas novas oportunidades que se abrem à consulta e ao manuseio. (AZEVEDO, 1953c, p. 191)

Esses novos ideais de educação levariam a uma mudança na concepção de ensino-aprendizagem, deslocando-se o centro da figura do professor e proporcionando-se à criança maior liberdade de escolha. Para isso, Azevedo propõe o reconhecimento do horizonte cultural da criança como elemento de desenvolvimento intelectual. Ao contrário do que se propunha no período de uma criança “sem voz” (MORTATTI, 2008), Azevedo busca dar voz às crianças, observando-lhe seu direito de escolha. Assim, os “livros de textos” indicados pelas escolas e seguidos fielmente por professores deveriam ser substituídos por outras atividades, como visitas a e utilização das bibliotecas, transformando o livro apenas em instrumento de trabalho. O objetivo era transformar o livro em mais um elemento de cultura para possibilitar reflexão e esclarecimento de dúvidas, deixando ao alcance das crianças aquilo que lhes interessa ler e pesquisar, pois “[só] se pode despertar e desenvolver o gosto pelos livros, pondo-se ao alcance das crianças os livros que tenha prazer de ler e que são devorados, mal lhes caem nas mãos”. (AZEVEDO, 1953c, p.192)

Além dessas, propunha uma mudança mais profunda, incluindo a ampliação do interesse pela literatura infantil, articuladamente à organização das bibliotecas infantis, fundamentando-se no pressuposto da indissociabilidade entre livro, leitura e biblioteca, tendo como primeiro passo a ampliação e a disseminação do novo gênero literário.

É por isso que, por toda a parte, aumentam o interesse e a admiração pelos escritores e poetas, que sabem explorar esse tesouro inesgotável, que é a alma das crianças, pondo todo o seu ser em vibração, como uma harpa, e tirando dele toda a sua música interior. Selma Lagelöff, a original escritora escandinava, escreve para crianças. Os seus livros de histórias encantadas correm mundo e acabam arrebatando para ela, um dia, o “prêmio nobel” de literatura. E ainda há pouco (vede bem a importância que se dá em outros países à literatura infantil e a esses mágicos que conquistam a alma das crianças) erigiu-se, em Londres, um monumento a Lewis Carrol, autor de “Alice no País das Maravilhas” e “Alice no País do Espelho”, que Monteiro Lobato traduziu e adaptou. (AZEVEDO, 1953c, p. 193)

A literatura infantil, portanto, ganha destaque no ideário azevediano e escolanovista, principalmente considerando que a disputa entre defensores da Escola Nova e os católicos ocuparam o centro do debate educacional desde os anos 1930, no Brasil, e a conjunção de livro infantil e atenção à criança, visando a se respeitar sua autonomia, iam provavelmente de encontro aos ditames dos católicos e da pedagogia tradicional. Azevedo assim define os preceitos que propõe para essa conjunção: “[...] a educação nova se empenha em que a criança se eduque num meio semelhante àquele em que agirá amanhã, como cidadão, e sua vida, na escola sem a rigidez da disciplina, que conspira com ideais democráticos”. (AZEVEDO, 1953c, p. 193).

Considerando esse contexto imediato e sua relação com as contradições no processo de mudanças sociais, a disseminação da literatura infantil e a conquista de seu público, portanto, deviam integrar, para Azevedo, um conjunto mais amplo de transformações, como a implementação de bibliotecas escolares, que, articuladamente aos novos métodos de ensino, tomariam um impulso vigoroso e ganhariam “[...] não só em extensão, multiplicando-se por toda a parte, em escolas de todos os graus e categorias, mas em linha vertical, renovando-se e aperfeiçoando-se, para se tornarem por toda a parte, em escolas de todos os graus e categorias, para se tornarem cada vez mais acessíveis, atraentes e utilizáveis sob o influxo das novas ideias da educação.” (AZEVEDO, 1953d, p. 195).

A perspectiva de relação com a sociedade e com uma sociedade democrática é também destacada por Azevedo, quando aponta a necessidade de ampliação de e acesso às bibliotecas. Para ele, “[...] os livros, assim entendidos, como obras de pensamento e de sensibilidade, de sentimento e de cultura, apropriados a cada idade, longe de acentuarem o divórcio entre escola e vida, só poderão contribuir para que uma e outra se aproximem”. (AZEVEDO, 1953d, p. 196)

Dessa perspectiva, a questão da sensibilidade relacionada com a então nova concepção de infância, decisivas para a compreensão das características e função da literatura infantil, são aspectos de fundamental importância no pensamento azevediano. E se encontram relacionados com o processo de socialização, em especial no que se refere à socialização escolar, uma das preocupações fundantes do autor no ensaio em análise e em outros escritos. Essa preocupação é oriunda dos autores e correntes com os quais dialoga, sobretudo os sociólogos franceses, C. Bouglé e É. Durkheim. Embora este não seja citado diretamente no ensaio em análise, suas ideias estão presentes na argumentação de Azevedo, por intermédio sobretudo de princípios teóricos postulados por Bouglé, citados no início do ensaio, conforme transcrevemos em tópico anterior deste artigo.

Azevedo recontextualiza o pensamento durkheimiano, incorporando novos preceitos e aspectos teóricos, como pode ser observado no tocante à questão da socialização, que, para o sociólogo positivista francês, tem um conteúdo moral e coletivo e é uma forma de integração do indivíduo à sociedade. Trata-se, assim, de um processo metódico intermediado pelas gerações adultas sobre a mais jovens, que visa a coibir sentimentos egoístas e fazer prevalecerem os elementos sociais. Nesse processo, a educação e professor exercem papel singular sobre a criança, que se encontra “[...] em estado de passividade perfeitamente comparável àquele em que o hipnotizador é artificialmente colocado”, e o professor age com a ascendência moral “[...] que o mestre naturalmente possui sobre o discípulo, em razão da superioridade da experiência e cultura.” (DURKHEIM, 1978, p. 53).

Nesse sentido, Durkheim atribui conotação pejorativa ao conceito de infância, pois concebe a criança como um ser inerte, uma tábula rasa passível de ser moldada ao prazer dos ditames sociais, fruto de uma anomia moral oriunda da sociedade moderna e, como aponta Fernandes (1994), “[...] escrava dos caprichos mais antinômicos que se sucedem uns aos outros nas direções mais divergentes, de modo que, aparentemente onipotente, é, de fato, impotente.” (p. 87) Logo, pela ausência do espírito de disciplina, pelo apetite por desejos de todos os tipos, a criança encarna um adulto sem moralidade. Por esse motivo, Durkheim defendia que a educação moral deveria impor regras e regularidade, para possibilitar a assimilação dos costumes e valores requeridos pela sociedade. O adulto e o professor funcionariam, então, como representantes da sociedade, e esse processo de socialização nas sociedades modernas dar-se-ia apenas nas escolas, onde o professor deveria inculcar nas crianças os valores capazes de controlar suas paixões. O processo de socialização, na ótica do sociólogo francês, portanto, não é uma troca ou assimilação do mundo infantil, mas inculcação de valores morais reclamados pela sociedade.

A leitura e apropriação que Azevedo faz da obra de Durkheim é, mais que polissêmica, recontextualizada e com uma “releitura” das noções de individualidade, liberdade e socialização. Referentemente à questão da socialização, em diversos textos seus, Azevedo não reconhece como assimétrica a relação entre adulto-professor e criança-aluno, mas como conflituosa, com uma dialética interna que impõe “pressão” dos adultos, mas não “[...] sem a ‘reação’ dos jovens, [pois] é um processo social, essencialmente vivo e dinâmico.” (AZEVEDO, 1951, p. 76) Em outro texto em que dialoga com a obra de Durkheim, Azevedo é mais preciso e ratifica sua visão sobre a socialização como “[...] um movimento dialético que consiste em ultrapassar sem cessar uma tensão entre o ‘eu social’ que lentamente se organiza e o ‘eu individual’ ou da individualidade orgânica que reage à ação pertinaz sofrida da parte dos adultos.” (AZEVEDO, 1967, p. 72)19

Em que pesem certas marcas do pensamento sociológico da época, algumas generalizações indevidas20 e muitas reiterações desnecessárias - possivelmente decorrentes do estilo ensaístico de Azevedo - é justamente pelo modo como ele compreende e apresenta a complexidade desse processo de socialização (escolar) da criança que adquirem caráter precursor no Brasil também suas reflexões sobre o conceito de literatura infantil assim como suas “recomendações” a professores, escritores e editores, visando à formação e à conquista do público infantil, como um problema “especial” dos campos de sociologia, educação e letras (predominantemente literatura, no contexto da obra azevediana).

O ensaio na obra de Azevedo e na história da produção brasileira sobre literatura infantil

Com base no que apresentamos, são possíveis tentativas de “respostas” às questões formuladas no início deste artigo.

Alguns indícios de motivos e finalidades de Azevedo ter tematizado a literatura infantil numa perspectiva sociológica e ter publicado o ensaio em revista de sociologia, com republicação em livro sobre educação, podem ser encontrados tanto na trajetória profissional e nos temas, problemas e abordagens no conjunto de sua produção intelectual quanto em aspectos autobiográficos apresentados, de forma direta ou indireta, em seus escritos.

Síntese parcial desses indícios pode ser identificada no título/subtítulo atribuído por Azevedo ao discurso que proferiu em 1945: “Educadores e homens de letras (Pela aproximação de dois mundos que pareciam viver quase separados)”. Considerando, porém, o conjunto de sua obra e atuação profissional, é pertinente ampliar para ao menos três os “mundos” que, mais do que se aproximarem, complementam-se e se interpenetram na figura desse eminente educador, sociólogo, administrador, editor e escritor brasileiro. Tanto em sua ação/atuação quanto no pensamento teórico que elaborou para e por meio de proposição e análise de assuntos que escolheu, letras, educação, sociologia (nesta ordem) são “mundos”/territórios inter-relacionados e interdependentes, embora por vezes um ou outro sobressaia, em consonância com especificidade de temas e problemas enfocados ou privilegiados, em diferentes momentos de sua trajetória profissional.

Em relação à literatura infantil, é a interpenetração (mais do que “aproximação”) desses três mundos que confere pioneirismo à análise realizada por Azevedo e ao objeto de estudo por ele produzido no ensaio analisado. Questões sociológicas, educacionais e literárias estão em posição de interdependência na definição dos seguintes conceitos teóricos e categorias analíticas: literatura infantil (e juvenil), como então novo gênero literário constituído de livros escritos/impressos para crianças e adolescentes, em que deve prevalecer o equilíbrio entre instrução e recreação, articulados diretamente com os então novos conceito de infância e fins da educação (escolar) democrática; e “público (infantil)”, como conceito e categoria sociológica necessária tanto à compreensão da origem e desenvolvimento desse gênero literário e sua relação com mudanças históricas de estruturas sociais e familiares quanto, mais contemporaneamente a ele, à formulação de critérios definidores da “qualidade” dos livros para crianças, envolvendo aspectos, como a profissionalização do escritor de textos desse gênero e o desenvolvimento de um mercado editorial, cada vez mais sofisticado, visando à formação e à conquista do público (consumidor) infantil.

No ensaio analisado, Azevedo estabelece um estatuto epistemológico para a literatura infantil, ao colocá-la no cerne das transformações históricas e sociais e lhe conferir relevo e maioridade, em conjunto com as demais formas de aquisição de cultura, atenção que era pouco ou quase nada dispensada a esse gênero literário pela sociologia, pela educação e pelos estudos literários. Para Azevedo, não apenas a literatura infantil adquire outro status, mas também a criança, que ele busca compreender para além de sua condição de “adulto em miniatura” - como era (in)compreendida em sociedades marcadamente adultocêntricas -; vista em seu mundo e em sua perspectiva, ela não é moldada, mas observada e reconhecida como um ser “em si”.

Se, no conjunto da obra de Azevedo, o ensaio não parece ter tido lugar (científico, discursivo e histórico) de destaque, comparativamente a outros temas pelos quais obteve reconhecimento e prestígio, as questões por ele apresentadas e suscitadas sobre literatura infantil e a forma de abordá-las integram seu pensamento. Esse “problema especial” se relaciona, de modo orgânico, com o conjunto de sua obra e atuação profissional e com o projeto (político) de renovação educacional no Brasil, de que ele foi um dos protagonistas, sendo, por isso, igualmente importante para a compreensão do caráter multifacetado desse intelectual e seu legado.

Além das relações entre tema e abordagem, condições de produção e lugar ocupado na obra de Azevedo assim como na cultura brasileira, para compreender suas reflexões sobre literatura infantil é necessário, ainda, situá-las no diálogo com as que o precederam e com as de outros insignes educadores e escritores de sua época21. Dentre estes, destacam-se Lourenço Filho e Cecília Meireles - signatários do Manifesto... de 1932 -, que na primeira metade do século XX também tematizaram, pioneiramente, a literatura infantil. No artigo “Como aperfeiçoar a literatura infantil” (1943), Lourenço Filho enfatiza aspectos psicológicos e editoriais da produção desse gênero literário, subordinando-o às necessidades educacionais e psicológicas, conforme fases do desenvolvimento infantil; no livro Problemas da literatura infantil (1951), Cecília Meireles enfatiza a complexidade desse gênero literário de que decorre a dificuldade de estabelecimento de critérios para avaliar a qualidade do que se dava a ler às crianças, cujo “gosto”, na opinião da poeta, devia ser balizador principal do que se lhe oferece para ler.

Considerando a relação entre o conjunto de aspectos da configuração textual do ensaio pode se afirmar, portanto, que Azevedo funda uma tradição na história da produção brasileira sobre literatura infantil. O ensaio se tornou um clássico e referência obrigatória em tematizações posteriores, produzidas nas décadas de 1960 e 1980 - como as de Leonardo Arroyo, Marisa Lajolo, Regina Zilberman e Edmir Perrotti -, e suas reflexões e proposições pioneiras sobre literatura infantil numa perspectiva sociológica se encontram incorporadas (muitas vezes de forma “silenciosa”), até os dias atuais, na profusão de tematizações (em estudos acadêmicos, sobretudo), concretizações (em livros de literatura infantil) e normatizações (em políticas públicas) sobre o assunto.

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1Em exemplares da terceira edição do livro, consta 1953 como ano de publicação, e não há indicação de se tratar de reimpressão; na relação de obras completas do autor (divulgada na quarta edição) consta 1952 como ano de publicação da terceira edição. Inferimos ser provável que 1953 seja o ano correto e que a discrepância se deva a possível descompasso entre o cronograma editorial de confecção do livro e o de seu lançamento. Para análise neste texto consideramos, portanto, que o ensaio foi originalmente publicado na revista e republicado (com mesmo conteúdo) no livro. Essa hipótese também se baseia na comparação entre os títulos diferentes atribuídos ao ensaio. No livro, o título é sucedido pela repetição, entre parênteses e com itálico, do título na revista. Essa indicação pode ser confundida/interpretada como subtítulo ou como citação a indicar que se trata de republicação.

2Em estudos como os de Penna, Piletti, Monarcha e Vidal, há apenas algumas menções a esse aspecto.

3O conceito de configuração textual designa o conjunto de aspectos que conferem singularidade a um texto e são responsáveis por seu sentido. Nesse conceito, baseia-se o método de análise em que se considera não apenas o conteúdo do texto, mas também autor, leitores previstos, motivos, finalidades, lugar social e momento histórico de produção. Sobre o assunto, ver, principalmente, Magnani (1993) e Mortatti (2000).

4Esse Inquérito foi publicado em 1937, com o título A educação em São Paulo: problemas e discussões (AZEVEDO, 1937), e incorporado às obras completas de Azevedo, pela Melhoramentos, com o título A educação na encruzilhada: problemas e discussões. Inquérito para O Estado de S. Paulo em 1926.

5Daqui em diante, utilizaremos apenas “Manifesto” ou “Manifesto de 1932” em referência a esse documento. O Manifesto contou com 26 signatários, que formavam um “grupo de figuras exponenciais da cultura nacional”: 1. Fernando de Azevedo (redator); 2. Afrânio Peixoto; 3. Antônio Sampaio Dória; 4. Anísio Spinola Teixeira; 5. Manoel Bergström Lourenço Filho; 6. Edgard Roquete-Pinto; 7. José Getúlio da Frota Pessoa; 8. Júlio de Mesquita Filho; 9. Raul Briquet; 10. Mário Casassanta; 11. Carlos Delgado de Carvalho; 12. Antônio Ferreira de Almeida Júnior; 13. J. P. Fontenelle; 14. Roldão Lopes de Barros; 15. Noemy M. da Silveira; 16. Hermes Lima; 17. Atílio Vivacqua; 18. Francisco Venâncio Filho; 19. Paulo Maranhão; 20. Cecília Meireles; 21. Edgar Süssekind de Mendonça; 22. Armanda Álvaro Alberto; 23. Garcia de Rezende; 24. Nóbrega da Cunha; 25. Paschoal Lemme; 26. Raul Gomes.” (LEMME, [1976]/2004, p. 100).

6Esse epíteto foi formulado por Afrânio Peixoto em referência aos “[...] quatro expoentes da educação nacional brasileira [...]: Carneiro Leão, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho [...].” (LEMME, [1976]/2004, p. 99)

7Trata-se do discurso na ABL, em cujo site se encontra uma versão diferente do discurso (Azevedo [1945]/168), que também consultamos.

8Até 1978 (ano em que a editora foi comprada pela IBEP), foram publicados 134 volumes nessa Série.

9Sobre esse educador, ver, entre outros, os textos reunidos em Por Lourenço Filho: uma biobibliografia (2001).

10Trata-se de Tendências da educação brasileira (v. 29). Em 1938, Lourenço Filho assumiu a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, e essa coleção inaugurou nova fase, com pouca ampliação de títulos e autores.

11Neste e no título anteriormente citado, os trechos estão entre parênteses e em itálico no original, possibilitando inferir, como apontamos anteriormente, que se trata de recurso editorial utilizado para indicar citação de títulos atribuídos aos textos em exposições orais ou publicações anteriores.

12Considerando as dificuldades de localização de exemplares do livro, optamos por apresentar as informações detalhadas que se encontram neste tópico e no seguinte.

13A partir desta citação de trechos do ensaio, indicamos somente o número da página, exceto nas citações destacadas do corpo do texto.

14Em nota de rodapé, Azevedo (1953a) apresenta as seguintes informações: “O ‘Catálogo infantil’, n. 20, da Melhoramentos, arrola uma quantidade enorme de histórias, de contos e historietas, de coleções e álbuns e outras publicações especiais. Só a Biblioteca Infantil [...] conta hoje, segundo nos informa: ’91 volumes seguidamente reeditados e continuamente revistos’. Além de ser uma resenha de consulta fácil e aspecto atraente, — a melhor e a mais completa publicada entre nós —, o Catálogo Infantil [...] é uma amostra importante da produção editorial nesse setor da literatura. Por ela e pelos catálogos de outras casas que trabalham neste campo, como, por exemplo, a Comp. Editora Nacional, a Livraria Editora Brasiliense e a Livraria do Globo, pode-se dar o balanço à numerosa produção nacional, em obras originais e em traduções, de livros para crianças e adolescente.” (p. 214)

15Esta é a primeira vez no ensaio em que, para caracterizar o público previsto para esse novo gênero literário, Azevedo utiliza o adjetivo “juvenil” em complementação a “infantil”. Merece problematização relacionada com o conceito, então emergente, de “adolescência”, como fase do desenvolvimento humano a que Azevedo também se refere algumas vezes no ensaio. Devido, porém, às limitações de espaço neste artigo, essas questões serão abordadas em outro momento.

16Provavelmente neste ponto Azevedo estivesse se referindo ao “realismo socialista”. Para uma crítica mais apurada sobre esse movimento estético na antiga URSS, ver Lukács (2009).

17Evidenciando erudição, ao longo do ensaio Azevedo cita mais de 50 títulos/escritores, a maioria deles portugueses, europeus/franceses e estadunidenses (estes traduzidos para o português) de textos predominantemente de literatura e literatura infantil, como, além dos que já citamos: Homero, Petrônio, Camões, Stendhal, Balzac, Cervantes, Shakespeare, Defoe, Swift, Esopo, La Fontaine, Valéry, Goethe, Perrault, Grimm, Andersen, Verne, Condessa de Ségur, Dickens, Charles e M. Lamb, G. MacDonald, W. Irving, S. Lagelöff e L. Carrol,; e de filosofia, como Platão, Apuleio, Cícero, Bergson.

18Essa concepção sociológica já estava presente no Manifesto... na reforma da educação no Distrito Federal, de 1927, com a defesa de uma nova escola que propiciasse uma formação integral da criança, incorporando a educação física, as artes, o cinema educativo, com edificações que proporcionassem um ambiente de conforto para educar as crianças.

19Atualmente vêm sendo disseminadas diversas “releituras” do conceito de socialização, abrindo novos campos de investigação, conforme tendência marcadamente europeia, mas que possibilita estabelecer comparações com certas concepções precursoras de Azevedo. Sarmento (2008) destaca que o conceito de socialização passou por inúmeras revisões, discussões e versões, reificando-se na condição de não considerar as crianças como seres plenos, mas como um vir a ser, não adquirindo um “estatuto ontológico social pleno” e, “[...] mais do que ignoradas, têm sido marginalizadas e ‘menorizadas’ pelo discurso sociológico.” (p. 20) Observados esses apontamentos, cresce a tendência de uma sociologia que se propõe a procurar um status analítico com entendimento e objetos de estudos particularmente delimitados: “[...] as crianças como atores sociais, nos seus mundos de vida, e a infância, como categoria social do tipo geracional”. (SARMENTO, 2008, p. 22)

20Embora essas marcas de época da perspectiva sociológica utilizada por Azevedo possam ser criticadas atualmente, não perdem seu caráter precursor, em particular na relação entre sociologia e educação. Quanto às generalizações indevidas, estas se encontram principalmente em trechos em que Azevedo “aplica”/transfere à análise da formação social do Brasil conceitos e categoria analíticas relativas a sociedades europeias, à criança e á estrutura familiar aristocrática ou burguesa, sem considerar as significativas diferenças cronológicas, sociais e culturais entre aquelas e a realidade brasileira.

21Em relação à história da produção brasileira sobre literatura infantil ao longo do século XX, ver, especialmente: Mortatti (2008; 2015) e Bertoletti e Mortatti (2018). Encontra-se em elaboração também um livro, em que se abordam textos clássicos dessa produção, como o ensaio de Azevedo aqui analisado.

Recebido: 01 de Abril de 2019; Aceito: 01 de Agosto de 2019

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