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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.18 no.3 Uberlândia set./dic 2019  Epub 17-Ene-2020

https://doi.org/10.14393/che-v18n3-2019-12 

ARTIGOS

A Escola Oficina n.o 1 de Lisboa (1905-1987) e a afirmação de um processo de inovação pedagógica em Portugal

1Universidade de Lisboa (Portugal) mjmogarro@ie.ulisboa.pt


Resumo

A Escola Oficina n.º 1 de Lisboa (1905-1987) foi a mais emblemática das escolas novas portuguesas, tendo desenvolvido o seu projeto inovador principalmente entre 1907 e 1919. No entanto, a sua existência inscreveu-se num tempo longo, tendo funcionado durante mais de oitenta anos. O modelo pedagógico inovador que a caracterizou foi impulsionado por Adolfo Lima e inspirou-se nos ideais libertários e anarquistas, matriz a partir da qual foram interpretados os princípios da Educação Nova. Esta Escola adotou muitas das práticas inovadoras deste movimento, como o self-government escolar, a valorização dos trabalhos manuais, a educação física e a educação estética. Colocou o aluno no centro do processo pedagógico, visando a sua educação integral. Definiu rituais e normas no quotidiano escolar, assim como práticas de saúde e higiene. A partir dos anos trinta, com o regime político salazarista, perdeu o seu carácter experimental e tornou-se uma escola “normal”, igual a outras escolas oficiais.

Palavras chave: inovação, experiências pedagógicas; Educação Nova

Abstract

The Escola Oficina no. 1 [Workshop School no. 1], (1905-1987), in Lisbon, was the most emblematic of the Portuguese escolas novas [new schools], having developed its innovative project mainly between 1907 and 1919. However, it existed over a long period of time and functioned for over eighty years. The innovative pedagogical model that characterised the school was driven by Adolfo Lima, and inspired by libertarian and anarchist ideals, on the basis of which the principles of Educação Nova [New Education] were interpreted. This school adopted many of the innovative practices of this movement, such as school self-government, the promotion of manual works, physical education and aesthetic education. It placed the pupil at the core of the pedagogical process, aiming at their integral education. It defined rituals and norms in daily school life, as well as health and hygiene practices. From the thirties on, under the political regime of Salazar, it lost its experimental nature and became a “normal” school, like other state schools.

Keywords: innovation, pedagogical experiences; New Education

Resumen

La Escola Oficina n.º 1 (Escuela Taller n.º 1, 1905-1987), en Lisboa, fue la más emblemática de las escuelas nuevas portuguesas, que desarrolló su innovador proyecto principalmente entre 1907 y 1919. Sin embargo, su existencia se inscribió en una larga duración, trabajando por más de ochenta años. El innovador modelo pedagógico que la caracterizó fue impulsado por Adolfo Lima y se inspiró en ideales libertarios y anarquistas, la matriz desde la cual se interpretaron los principios de la Educación Nueva. Esta escuela ha adoptado muchas de las prácticas innovadoras de este movimiento, como el autogobierno escolar, la valoración del trabajo manual, la educación física y la educación estética. Ubicó el alumno en el centro del proceso pedagógico, con la finalidad de su educación integral. Definió rituales y normas en la vida escolar diaria, así como prácticas de salud e higiene. A partir de los años treinta, con el régimen político salazarista, perdió su carácter experimental y se ha convertido en una escuela "normal", como otras escuelas oficiales.

Palabras clave: innovación; experiencias pedagógicas; Educación Nueva

1. O percurso de uma escola diferente: a Escola Oficina n.º 1 (Largo da Graça, Lisboa)

A Escola Oficina n.º 1 surge em 1905, fundada pela Sociedade Promotora de Asilos, Creches e Escolas, tendo sido instalada, em 1906, no conhecido edifício do Largo da Graça, n.º 58, em Lisboa1. O seu início situa-se num tempo de transição em Portugal, entre o século XIX e o século XX, marcado pelo intenso debate sobre a importância da pedagogia e o papel da escola no desenvolvimento e progresso do país. Também se fazia sentir fortemente a necessidade de formar a população para os desafios económico-sociais do futuro. As diferentes propostas ideológicas que se degladiaram na arena política cruzaram-se com os modelos pedagógicos existentes. Estas pedagogias situavam-se num espetro largo, entre as que se filiavam nas correntes mais tradicionais até às que apresentavam uma natureza vincadamente inovadora. Foi neste tempo culturalmente rico, que se consolidou a Escola Oficina n.º 1, com origem na maçonaria e financiada por esta instituição.

Assim, a escola nasceu à sombra das relações entre o movimento operário de expressão anarcossindicalista e a educação e afirmou-se fortemente nas práticas educativas libertárias do princípio do século XX, em Portugal. Estas, por sua vez, reconheciam-se nas experiências pedagógicas inovadoras além-fronteiras, nomeadamente nas que decorriam na Europa e na América. A Escola Oficina n.º 1 deu corpo ao modelo educativo libertário, desenvolvido em articulação com a Educação Nova, que colocava a centralidade do processo educativo na liberdade e autonomia da criança, na sua relação com a natureza e o meio e na importância da formação moral. Este modelo privilegiava o ensino manual, em estreita articulação com a dimensão teórica, mais tradicional. A Escola-Oficina representou um caso de “fusão” entre a ação de políticos e pedagogos maçons, republicanos e anarquistas e o seu objetivo era a formação integral dos alunos, demarcando-se claramente do decadente modelo de ensino oficial então em vigor.

Alguns dos investigadores que marcaram o campo da História da Educação em Portugal salientaram a importância desta instituição. Rogério Fernandes (1979) considerou-a uma escola “digna de registo” na pedagogia contemporânea portuguesa. Por seu lado, António Candeias consagrou-a definitivamente em 1994, ao dedicar-lhe a sua tese de doutoramento com o título Educar de Outra Forma - A Escola Oficina nº1 de Lisboa (1905-1930). Mais recentemente, Manuel Henrique Figueira (2004: 104-124) integrou-a no seu roteiro das escolas novas e das práticas pedagógicas inovadoras em Portugal.

A Escola Oficina n.º 1 constituiu uma referência para as escolas inovadoras que, em Portugal, surgiram ao longo do século XX, assumindo simbolicamente o lugar de uma instituição antecipatória de um processo que conduziu à criação de escolas alternativas, diferentes e inovadoras. Neste sentido, ela integrou o projeto de investigação INOVAR - Roteiros da inovação pedagógica: Escolas e experiências de referência em Portugal no século XX, coordenado por Joaquim Pintassilgo, com financiamento da FCT - Fundação para a Ciência e Tecnologia (referência: PTDC/MHC-CED/0893/2014). O presente artigo integra-se neste projeto (Mogarro e Namora, 2019; Mogarro, 2018; Pintassilgo e Alves, 2019).

A longa duração é o tempo em que se inscreve a existência da Escola Oficina n.º 1, pois a sua evolução abarca um arco temporal que se estende entre 1876 (se atendermos aos seus primórdios) e 1987, quando a escola encerra. António Candeias (1994) considera cinco fases, que aqui apresentamos.

A primeira fase (1876 a 1904) correspondeu a uma pré-etapa, com a constituição, em 1876, da Sociedade Promotora de Creches e o desenvolvimento de atividades, essencialmente com um espírito caritativo e de beneficência, que pretendiam melhorar as condições de vida das mães trabalhadoras e pobres da zona da Graça, em Lisboa, na qual a escola está situada. O final desta fase foi marcada por uma crise financeira e a falência da creche promovida pela instituição.

A segunda fase, de 1904 a 1907, teve o seu início com a constituição da Sociedade Promotora de Asilos, Creches e Escolas e a fundação da Escola Oficina n.1, em 1905, com uma estrutura de ensino clássico e tradicional, que correspondia ainda ao espírito de beneficência e filantropia que caracterizava a Maçonaria. A Escola Oficina n.º 1 era uma escola profissional de Marcenaria/Carpintaria que tinha o objetivo de formar “bons artistas” (artesãos). Primeiramente instalada na rua de S. João da Praça, transferiu-se em 1906 para o prédio urbano do Largo da Graça, no centro da cidade de Lisboa, o qual tinha sido construído em 1878 para funcionar como creche. O edifício, amplo, de dois pisos (com 1600 m2 de área útil), ainda hoje existe, pertence à maçonaria (GOL) e tem um quintal que ocupa uma área de cerca de 600 m2. As instalações tinham 5 salas de aula, sala de desenho, 2 oficinas (marcenaria; modelação e talha), ginásio/salão de festas com palco, laboratório-museu e biblioteca escolar; as instalações de apoio incluíam sala de direção, secretaria, posto médico/farmácia, refeitório/cozinha, câmara escura fotográfica, quintal, vestiário e casa do contínuo. O quintal tinha um pátio coberto de 60 m2, zona de recreio, espaço para ginástica ao ar livre, jardim, horta com 40 m2, zona de árvores de fruto e zona de criação de animais. Estas três últimas zonas acolhiam as atividades que os alunos deviam desenvolver em contacto com a natureza e os animais (ponto 7.º da escala de 30 pontos da Educação Nova) e os aproximava de contextos rurais que o centro da cidade não incentivava. Por estas razões, tais zonas seriam particularmente importantes no desenvolvimento do projeto pedagógico inovador.

Na terceira fase, entre 1907 e 1919, a Escola atingiu o corolário do seu projeto inovador e foi marcada pela implementação e consolidação do seu modelo libertário. Neste período foram aprovados e implementados os Planos de Estudo libertários (1907, 1912), de raiz anarquista, matriz a partir da qual foram interpretados os princípios da Educação Nova. Os seus principais autores lideraram a Escola durante este tempo: Adolfo Lima, que abandonou a Escola em 1914, foi o principal impulsionador do processo de inovação, fazendo juz ao lugar que ocupava como um dos pedagogos portugueses de referência, na área da Educação Nova e fortemente preocupado com as questões sociológicas; e Luís da Mata, que foi diretor e permaneceu na instituição até 1918.

A quarta fase, a partir de 1918 e que se prolongou até 1930, correspondeu ao período de decadência do modelo pedagógico, marcado por conflitos internos.

A quinta fase, que António Candeias estabeleceu de 1930 até ao final, em 1987, correspondeu a um processo de acomodação ao modelo tradicional de ensino. O Estado Novo proíbiu a co-educação na Escola em 1941 e encerrou as suas oficinas, as quais tinham sido um ds seus símbolos e o seu orgulho. A partir de então, a Escola Oficina n.º 1 passou a ser uma escola normal para as crianças do bairro da Graça, em Lisboa.

No entanto, esta última e longa fase indicada por Candeias não foi homogénea. Hoje, temos de sublinhar uma cultura de resistência, que nos finais dos anos vinte e no início da década de trinta se traduziu na objeção (mesmo que subliminar) às medidas do regime político ditatorial e nos difíceis equilíbrios que, com com esse regime, a Escola Oficina n.º 1 foi conseguindo estabelecer ao longo dos anos (e décadas) subsequentes. As atas do Conselho Escolar e da Direção espelham este caldo de resistência, nomeadamente quando os professores registam o seu apoio ao colega César Porto, quando ele é preso pela ditadura. No mesmo sentido, os docentes, apesar de terem passado a implementar os programas oficiais do regime, continuam a levar à prática os seus princípios pedagógicos, que expressam, nomedamente, na preocupação com as condições de ensino e de vida dos alunos, na organização de visitas de estudo, excursões, exposições e festas, etc. Por seu lado, a direção tenta manter o nível de remuneração dos professores, apesar das dificuldades financeiras com que a instituição se debate de forma permanente, quando legalmente podia baixar o seu valor. As décadas de 40 e 50 são marcadas pela saída dos últimos professores que tinham protagonizado de forma mais consistente o projeto inovador da Escola Oficina n.º 1 e acentua-se o processo de diluição do património pedagógico desta instituição inovadora.

Importa realçar que na terceira fase da sua existência, mais precisamente em 1912, a Escola Oficina n.º 1 atingiu o seu ponto alto como instituição inovadora. O Estado Republicano reconheceu-a como uma instituição de utilidade pública e foi-lhe atribuído um financiamento para custear uma parte importante das suas despesas. Também lhe foi reconhecida elevada qualidade e dada equivalência aos seus diplomas.

O legado desta instituição é constituído por um importante património, de natureza arquivística, bibliográfica, material e iconográfica que nos permite estabelecer o seu itinerário e compreender os atores educativos que a marcaram, reconstituindo o seu funcionamento interno. Símbolo desse património é o próprio edifício, que conserva na sua fachada as inscrições do tempo da República, conferindo assim visibilidade e significado ao espaço que é hoje um lugar da memória educacional.

Fonte: Arquivo do projeto INOVAR

Fig. 1 Fachada do edifício da Escola Oficina n.º 1 no Largo da Graça, Lisboa 

Como sublinha Manuel Henrique Figueira, a Escola Oficina n.º 1 não foi criada como uma Escola Nova e não cumpriu alguns dos princípios fundamentais da Educação Nova, como a instalação no campo e o regime de internato. Contudo, no seu período de apogeu como instituição inovadora teve muitas afinidades com aquele movimento de inovação educativa e sempre foi tida, pelos que se situavam neste universo,

como a instituição que melhor encarnava o seu espírito. Por isso, quando era necessário dar um exemplo de modernidade pedagógica, mostrar como se fazia diferente era sistematicamente referida. Pode considerar-se portanto uma escola de referência, pelo importante contributo que deu para a implantação do ideário da Educação Nova em Portugal. (Figueira, 2004: 124)

2. O património educativo e as fontes de informação: a sua relevância histórica

Uma das principais fontes consultadas para o estudo desta escola foi o seu arquivo histórico. Este arquivo encontra-se disperso e é constituído principalmente por dois núcleos: um encontra-se no histórico edifício do Largo da Graça e o outro é um fundo localizado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. A estes arquivos, somam-se alguns outros que integram documentos relativos à Escola Oficina n.º 1. Esta dispersão atual evidencia os percursos divergentes seguidos pela documentação e a dificuldade em reconstruir a identidade da instituição: são os arquivos próprios que espelham essa identidade e nos permitem o acesso à configuração que a escola foi assumindo (Mogarro, 2006).

O estudo do arquivo localizado no Largo da Graça revelou-se particularmente difícil. A documentação encontrava-se completamente desorganizada num armário no edifício da escola, pelo que se procedeu à realização do inventário de toda a documentação ao nível da unidade de instalação, no âmbito do Projeto Inovar. Foram assim inventariadas 319 unidades de instalação com documentação manuscrita e impressa (em livros, caixas, capilhas, dossiers e maços) produzida entre os anos de 1891 e 2002, no âmbito da Sociedade Promotora de Asilos, Creches e Escolas (designada, a partir de 1913, Sociedade Promotora de Escolas). A documentação encontra-se num estado de conservação razoável e está ainda acondicionada nas unidades de instalação originais, podendo-se encontrar neste arquivo documentos que testemunham o funcionamento desta escola ao longo de quase um século (Mogarro e Namora, 2019).

Outra documentação fundamental para se estudar a Escola Oficina n.º 1 encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, constituindo o fundo “Escola Oficina Nº 1 - Sociedade Promotora de Escolas”, cuja incorporação terá sido feita a partir do Arquivo Distrital de Lisboa, dado que muitos documentos apresentam o carimbo deste arquivo. Este fundo documental, com documentação produzida entre 1872 e 1992, é composto por seis secções: Organização; Administração; Diversos; Publicações impressas; Documentação de Eduardo Augusto de Faria e Documentação de António Candeias que incluem, entre outra documentação, as atas da direção, do conselho escolar, da assembleia geral, o inventário do arquivo, livros de presenças nas assembleias gerais, fichas de corpos gerentes, registo de sócios, livros de visitantes, contratos com professores, inquéritos e processos de sindicância dos docentes, diário escolar de Mário de Oliveira, método de leitura, partituras manuscritas e impressas, peças de teatro, recortes de imprensa, fotografias, boletins médicos de alunos. A documentação que compõe a secção Documentação de António Candeias Martins é de outra natureza, pois não resulta do funcionamento da escola, mas decorre de uma primeira investigação sobre ela, que culminou na tese de doutoramento publicada em 1994 e em artigos deste autor.

Um documento de especial relevância é o Inventário em 31 de Dezembro de 1917. Escola Oficina n.º 1 que apresenta a lista do material existente na Escola naquela data. É um documento manuscrito a tinta, que apresenta os materiais agrupados por aulas e, dentro de cada aula/disciplina, pelas seguintes secções: Material de Ensino; Utensílios de Ensino e Biblioteca. Este documento assume particular importância, pois que permite compreender a organização da escola e o seu projeto inovador por via dos livros indicados como compondo a sua biblioteca e pela materialidade da cultura escolar que se espelha neste documento. A aposta em materiais didácticos numerosos e que se utilizavam como auxiliares de ensino, no contexto de um projeto inovador, carimbam a vitalidade do modelo pedagógico seguido pela Escola Oficina n.º 1 nos seus primeiros anos (Mogarro e Namora, 2019).

Outros espólios particulares, ligados a personalidades principalmente dos meios anarquistas e sindicalistas, assim como de professores e intelectuais portugueses, guardam documentação significativa sobre a Escola Oficina n.º 1. Estes documentos constituem evidências de um círculo de sociabilidades políticas, culturais, educativas e pedagógicas que, ao longo do período de existência desta escola, alimentaram laços associativos, profissionais ou de mera solidariedade, comungando do projeto de inovação educativa que a instituição protagonizou. Estes espólios ou arquivos pessoais encontram-se no Arquivo de História Social (Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa), no Arquivo Histórico-Social (Projeto MOSCA, Universidade de Évora) e na Fundação Mário Soares, em Lisboa. Devem ainda ter-se em consideração outros arquivos, como os da Câmara Municipal de Lisboa (estudo das instalações da escola) e os arquivos maçónicos, dada a estreita relação da Escola com a maçonaria, principalmente através da Sociedade Promotora das Escolas.

3. O projeto pedagógico na senda da inovação: currículos, materiais de ensino e novas práticas em tempos de mudança

De forma clara, António Candeias (1993;1994) definiu o modelo pedagógico libertário que esteve subjacente ao projeto inovador da Escola Oficina n.º 1. Nas suas palavras, o modelo educativo libertário constituiu uma síntese entre os conceitos metodológicos e pedagógicos da Educação Nova do princípio do século XX e os planos educativos de tradição socialista que defendem a educação integral como uma forma de combater a desigualdade social, traduzida pela existência, desde sempre, nos sistemas educativos ocidentais de duas vias: uma profissionalizante, virada para o mundo do trabalho; outra de natureza académica, que visa o prosseguimento de estudos de grupos sociais mais favorecidos.

Os princípios da Educação Nova muito influenciaram os professores libertários desta Escola, que os mobilizaram para: o rigor no estudo do desenvolvimento físico e intelectual da criança; a necessidade de ter em atenção que, na base dos processos educativos, existem as motivações “naturais” da criança e estas são incompatíveis com a repressão física e intelectual. No entanto, a tradição socialista da educação também influenciou os anarquistas, que salientaram a necessidade de os processos educativos serem tanto mais globais quanto possível, articulando os aspetos técnicos e de aprendizagem profissional com as dimensões científica, artística, estética e cultural que são próprias de uma “boa educação tradicional”.

Para os professores da Escola Oficina n.º 1, a educação era muito mais que ensinar a ler, escrever e contar, em linha com a pedagogia anarquista. Para eles, educar era essencialmente fornecer as bases espirituais, culturais e técnicas para a libertação do homem, no sentido de dotarem os seus alunos com instrumentos que lhes permitissem construir uma análise da vida e do Mundo e que eles adquirissem a capacidade para, no futuro, escolher, de forma livre e autónoma, alicerçada no máximo de informação acumulada e entre as opções possíveis, o caminho que queriam para a sua vida e para a sociedade em que se inseriam. Eram homens com este perfil que a Escola Oficina n.º 1 aspirava formar com os seus programas inovadores.

Os Planos de Estudos da Escola corporizam estes princípios. O Plano de Estudos de 1907 consagra uma profunda mudança nas práticas de ensino da Escola Oficina n.º 1 e expressa claramente uma visão integral da educação. Neste Plano, denotam-se duas linhas de força. Uma, dá continuidade à experiência anterior do curso de Marcenaria, na especialização de “entalhador”, e continuam a integrar o currículo as matérias cracterísticas desta formação, como Desenho, construção de Mobiliário e trabalho de Talha; mantém-se também as disciplinas de Português e de Aritmética. Outra, imprime-lhe o cunho mais inovador, com as novas componentes curriculares de Ginástica e Francês, Noções Práticas rudimentares de Ciências (estudo da Zoologia, da Botânica, da Física, da Química e da Higiene) e Sociologia (continuada pelo ensino da Geografia, de forma articulada entre as duas matérias, ao longo dos anos do curso). Os estudos eram completados com missões escolares que tinham o objetivo recorrentemente expresso nos documentos da Escola de desenvolver os conhecimentos dos alunos e a sua educação profissional e artística.

Os alunos entravam na Escola com seis anos e frequentavam um curso de seis anos. Em 1912, com o novo Plano de Estudos, introduzem-se novas componentes curriculares, como o Inglês, a ginástica sueca, a música e o canto coral, as artes caseiras, domésticas e/ou culinárias (principalmente após a introdução da coeducação, envolvendo as meninas e os meninos), o Alemão (começou em 1914 e foi substituído em 1918 pelo Inglês), a dança (começou só em 1918) e a maternal (após 1919). O curso passa a ser de oito anos e bifurca-se em dois ramos: um de aprendizagem profissional, herdeiro da tradição da escola; outro designado de curso especial primário, para atrair crianças da classe média. Mas as disciplinas comuns continuavam a ser dominantes, face às disciplinas específicas de cada um dos ramos. As excursões educativas faziam explicitamente parte do currículo de algumas disciplinas.

Os ideários libertários e da Educação Nova, que marcaram as práticas pedagógicas no âmbito do projeto consagrado no Plano de Estudos de 1907, refletiram-se na avaliação do trabalho escolar - os exames foram abolidos a partir de 1909 e assumiu-se uma avaliação contínua e formativa. Esta avaliação baseava-se no critério dos professores, que respeitavam o ritmo de cada aluno, e também nas exposições públicas dos trabalhos escolares feitos pelos estudantes. Os próprios alunos participavam na avaliação do trabalho escolar, através de processos de verificação do cumprimento de objetivos mínimos.

O projeto inovador da Escola Oficina n.º 1 reflete-se no espaço e na sua organização, constituindo-se como um exemplo paradigmático. É o caso da sala de desenho, reservada para os fins específicos desta disciplina, com o seu estrado e os usos que lhe foram destinados. Numa primeira aula (foto tirada entre 1906 e 1907), o estrado suporta a cadeira e secretária do professor, numa sala rigidamente ordenada segundo padrões tradicionais; na segunda aula (foto tirada entre 1907 e 1912), a mesma sala está ocupada por muitos mais alunos, empenhados em atividades de disciplinas diferentes e o estrado serve de base para a exposição de obras artísticas…

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 2 Sala de desenho, 1906-1907  

Fonte: António Candeias, Educar de outra forma

Fig. 3 Sala de desenho de outro ângulo, foto tirada entre 1907-1912  

Em outra sala de aula registam-se também aspetos impressivos das transformações pedagógicas que influenciam os cenários escolares. Uma primeira foto, tirada entre 1906 e 1907, apresenta o espaço, os equipamentos e materiais organizados de forma tradicional, com os alunos sentados em carteiras típicas da época e dispostas em fila, uns atrás dos outros; na segunda foto, tirada entre 1907 e 1912, a mesma sala, apresenta o professor (identificado como Adolfo Lima) e os alunos sentados em volta de uma mesa, em trabalho de grupo, numa sala muito decorada com materiais didáticos. Após 1912, a mesma sala reordena-se…mais alunos em grupos, menos materiais didáticos que se colocam disiciplinadamente…

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 4 Sala de aula típica das conceções pedagógicas dominantes nesta escola entre 1905-1907 

Fonte: António Candeias, Educar de outra forma

Fig. 5 Sala de aula da imagem anterior entre 1907 e 1912 

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 6 Sala de aula anterior após 1912 

O espólio patrimonial da Escola Oficina n.o 1 fica também evidenciado em duas fotos do Museu Laboratório (uma delas tirada entre 1907 e 1912; a outra, após 1912), que revelam o investimento feito em materiais didáticos colocados à serviço do ensino inovador que se desenvolvia na escola. Os laboratórios eram espaços essenciais para a concretização das conceções pedagógicas dominantes, a par das oficinas, onde se assegurava a dimensão profissional do ensino praticado nesta escola. Nas duas fotos o professor António Lima surge com os seus alunos, que estão a desenvolver atividades - como a aluna que, na segunda fotografia, utiliza o microscópio.

Fonte: António Candeias, Educar de outra forma

Fig. 7 Aula de química, 1907 e 1912 

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 8 Museu laboratório, após 1912 

As atividades escolares são o tema de várias fotografias deste período, evidenciando o empenho em documentar o projeto pedagógico inovador da instituição. As Aulas de Marcenaria estão numa foto tirada entre 1905 e 1912 e em uma outra, posterior a 1913, na qual se revela a presença das meninas no corpo discente e nas atividades de carpintaria. Aliás, nessa época, raparigas e rapazes aprendiam a coser e a cozinhar, embora os alunos gostassem pouco destas tarefas…

Fonte: António Candeias, Educar de outra forma

Fig. 9 Aula de Marcenaria, entre 1905 e 1912 

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 10 Aula de Marcenaria depois de 1912 

Em várias outras fotos mostram-se a exposição de trabalhos de alunos, realizados em Marcenaria, Escultura e Talha, alguns dos quais de grande qualidade. Outras atividades escolares são apresentadas, como a Iniciação á leitura pelo método da Escola Oficina n.º 1 e Exposições de trabalhos no final do ano letivo, em que surgem professores e alunos, de ambos os géneros, com os materiais produzidos pelos alunos.

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 11 Exposição de trabalhos feitos por alunos, no final do ano letivo 

Os materiais que surgem nestas imagens integram certamente o Inventário em 31 de Dezembro de 1917. Escola Oficina n.º 1. Além das aulas/disciplinas (referidas no ponto anterior), o Inventário de 1917 inclui outras rúbricas relativas a Museu, trabalhos de alunos, vestuário, mobiliário, etc., numa preocupação evidente de registar exaustivamente todo o património da instituição. As rúbricas referidas no Inventário seguem a seguinte sequência: Português, Francês, Aritmética, Geometria, Desenho e Modelação, Sociologia, Culinária, Costura, Flores, Aguarela, Marcenaria, Talha, Estofo, Música, Noções, Física, Química, Botânica, Zoologia, Biologia, Anatomia e Fisiologia, Trabalhos Manuais Cartão, Trabalhos Manuais Papel, Trabalhos Manuais Metal, Horta, Ginástica, Museu, Gabinete Pedagógico, Biblioteca Pedagógica, Material para Aulas (em depósito), Utensílios de Ensino (em depósito), Trabalhos de Alunos, Para aula de Noções (vide atrás), Para aula de Aritmética (vide atrás), Vestuário, Roupas, Inspecção Dentária, Utensílios de Ensino, Mobiliário, Revista de Pedagogia (Educação, Gravuras), Edifícios, Mobiliários, Cotas (em dívida) e Papéis de Crédito. Entre este conjunto muito diversificado de materiais encontram-se quadros parietais, nomeadamente da editora Deyrolle, instrumentos científicos, animais naturalizados/embalsamados, animais conservados em álcool e em outros ambientes húmidos, ferramentas de marcenaria, máquinas de costura, utensílios de cozinha, mobiliário, etc.

Muitos destes materiais permaneceram nas instalações da escola por décadas, até ao presente. As obras recentes de renovação do edifício, onde estão atualmente instalados o Instituto Maçónico, o Arquivo Maçónico e a Biblioteca Maçónica (GOL - Grande Oriente Lusitano), fizeram emergir, a partir de 2013, este universo material, depositado e esquecido no andar térreo do prédio. Estes materiais encontravam-se em condições muito precárias, cobertas de poeira e sujeitas à degradação do tempo, provavelmente desde o encerramento da escola em 1987. A coleção científica que se encontrava entre eles foi identificada e entregue à custódia do MUHNAC - Museu Nacional de História Natural e Ciência para ser o fiel-depositário das peças. Esta coleção científica é constituída por 14 animais taxidermizados (6 pássaros, 1 peixe, 7 mamíferos), 87 animais na coleção húmida, conservados em vidros com líquidos (49 peixes, 18 répteis e anfíbios, 9 mamíferos, 4 pássaros, 3 moluscos, 2 crustáceos e também um exemplar de inseto, verme, etc.) e 7 esqueletos inteiros (1 réptil, 1 mamífero, 2 pássaros e 3 peixes) e cerca de 40 conchas e fósseis. Estes animais terão sido obtidos por aquisição, doação ou recolha dos alunos nas suas visitas de campo, segundo as informações das respetivas etiquetas (Monteiro, 2018; 2013). Para além da coleção científica, alguns dos outros objetos referidos ocupam hoje os espaços do edifício, como na entrada, convocando a memória dos tempos em que a Escola Oficina n.º 1 habitava aquele lugar.

Fonte: Coleção Científica da Escola Oficina N.º 1, MUNHAC

Fig. 12 Um exemplar de animal naturalizado 

Fonte: Coleção Científica da Escola Oficina N.º 1, MUNHAC.

Fig. 13 Um exemplar de um animal conservado em frasco com líquido  

Fonte: Coleção Científica da Escola Oficina N.º 1, MUNHAC

Fig. 14 Um exemplar de esqueleto animal 

Este notável universo material ilustra, nos seus objetos/artefactos, a tecnologia educativa colocada ao serviço do projeto inovador da Escola Oficina n.º 1 e que permitiram metodologias ativas, práticas educativas baseadas no ensino experimental e promotoras da participação dos alunos, da coeducação, do associativismo escolar com fins solidários (a associação “A Solidária”) e da construção de um processo de autonomia crescente por parte dos educandos, isto é, de uma educação verdadeiramente integral.

A ditadura militar e depois o Estado Novo aceitariam o funcionamento desta Escola, apesar das pressões iniciais e da vigilância que sobre ela e os seus docentes exerceram. A Escola Oficina n.º 1 teve de se adaptar às exigências do regime político salazarista, adoptando os programas e a organização escolar em vigor, os exames, a opção por ser uma escola exclusivamente feminina e as restantes orientações para o ensino particular. A geração de professores que havia protagonizado o projeto educativo inovador desaparece definitivamente do corpo docente e a escola é cada vez mais uma escola igual às outras escolas portuguesas - quer durante o Estado Novo, quer, depois de 1974, no período democrático.

4. O papel dos professores e das publicações na construção do projeto pedagógico da Escola Oficia n.º 1

O projeto inovador da Escola Oficina n.º 1 foi construído fundamentalmente pelos professores que nela lecionaram no período de 1906 a 1919, destacando-se entre eles a figura carismática de Adolfo Lima e Luís Filipe da Mata, que assumiram posições fortes de liderança na instituição. Eles foram acompanhados por António Lima, César Porto, Deolinda Lopes Vieira Quartin, José Carlos de Sousa e Luís da Mata (filho), entre outros. Alguns deles foram elementos importantes das correntes inovadoras em Portugal e destacados militantes da Educação Nova.

O cargo específico de diretor não existiu na Escola Oficina n.º 1. A gestão pedagógica e a ligação entre os professores e a direção da Sociedade Promotora de Asilos, Creches e Escolas / Sociedade Promotora das Escolas foram asseguradas por um responsável que teve a designação de Secretário do Conselho Escolar, entre 1910 e 1914 (funções exercidas por Adolfo Lima) e, depois de 1914, a designação de Diretor Técnico. Foram Diretores Técnicos Luís da Mata, entre 1914 e 1918, e César Porto, de 1918 até ao final dos anos vinte. José Carlos de Sousa também exerceu estas funções, embora durante pouco tempo.

Importa sublinhar os principais traços biográficos dos agentes educativos mais destacados.

Adolfo Ernesto Godfroy de Abreu e Lima (1874-1943) nasceu e faleceu em Lisboa. Formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra, mas a educação foi o seu campo privilegiado de atuação. Entre 1906 e 1914 foi professor de Sociologia e diretor técnico da Escola Oficina n.º 1. Adolfo Lima é, a partir de 1907, o mais influente dos professores anarquistas da escola que conceberam o projeto inovador plasmado no Plano de Estudos de 1907 e na organização pedagógica subsequente. Foi, verdadeiramente, uma outra forma de educar (Candeias, 1994), um modelo pedagógico alternativo e inovador, que teve em Adolfo Lima e no seu grande amigo Luís da Mata os principais rostos. Defensor da divulgação das ideias que presidiam a este projeto e consciente da importância da imprensa pedagógica nessa difusão, Adolfo Lima impulsionou também a revista de pedagogia Educação, publicada quinzenalmente pela Sociedade Promotora de Escolas durante o ano de 1913. Após deixar a Escola Oficina n.º 1, Adolfo Lima lecionou no Liceu Pedro Nunes e, em fevereiro de 1918, assumiu a direção da Escola Normal Primária de Lisboa, cargo que assegurou até maio de 1921, mantendo-se como seu professor até à década de trinta. Em outubro de 1927 foi preso pelas autoridades da Ditadura Militar. Em 1933, foi nomeado para diretor da Biblioteca-Museu do Ensino Primário, anexa à Escola do Magistério Primário de Lisboa, onde se manteve até à sua morte. Nesta Biblioteca-Museu desenvolveu um notável trabalho de organização de um dos mais importantes fundos bibliográficos de natureza pedagógica, que hoje está integrado na Biblioteca Histórica do Ministério da Educação. Entre 1924 e 1927, dirigiu a revista Educação Social, publicação importante na sua vasta obra composta dos muitos livros e artigos que escreveu e das revistas e enciclopédias que organizou. António Candeias (2003) definiu-o como um aristocrata anarquista, ao definir o perfil deste nome maior do movimento libertário e da pedagogia da Educação Nova em Portugal. Mesmo afastado da Escola Oficina n.º 1, não obstante os conflitos que levaram à sua saída, Adolfo Lima jamais a esqueceu - a ela se referiu bastantes vezes nos vinte e tantos artigos que publicou na revista Educação Social e sempre a apresentou como um símbolo da pedagogia inovadora. A Escola Oficina n.º 1, os seus diretores e professores também não o esqueceram, mantendo os contactos ao longo de anos e lamentando publicamente a sua morte, tal como fizeram junto do irmão, António Lima, que se manteve como professor da instituição (Pintassilgo, 2017).

Luís Filipe da Mata (1853-1924) surge a par de Adolfo Lima na consolidação do modelo pedagógico inovador da Escola Oficina n.º 1, instituição para cuja criação fortemente contribuiu. Foi ele que chamou Adolfo Lima para a Escola. Comerciante abastado, republicano e maçon, desempenhou importantes cargos na maçonaria e nas estruturas republicanas e desenvolveu uma importante atividade social e política. Foi director da Associação Comercial de Lisboa e vice-presidente da comissão executiva do monumento ao Marquês de Pombal; foi eleito deputado nas eleições suplementares de 1913 (1913-1915) e senador ao Congresso da República (1915-1917); assumiu o cargo de vereador da Câmara Municipal de Lisboa (1908-1911) e provedor da Assistência Pública (1912-1917); teve um importante papel na promoção do ensino laico, apoiando o Asilo da S. João e a criação de escolas primárias; dirigiu o Vintém das Escolas. Fiel aos ideais republicanos, maçónicos e anti-jesuíticos, foi uma das mais influentes figuras da maçonaria portuguesa, onde ascendeu ao lugar de grão-mestre do Grande Oriente Lusitano. Contudo, na altura da sua morte, celebraram fundamentalmente o fundador da Escola Oficina n.º 1.

Luís da Mata, seu filho, realizou nesta Escola um trabalho pedagógico e institucional muito importante, sendo considerado mesmo como um dos seus pilares, nomeadamente durante o período áureo da instituição. Ele foi um elemento fundamental na direção pedagógica da Escola Oficina, colaborando com Adolfo Lima, apesar da conflitualidade que se instalou entre ambos em diversas ocasiões. No entanto, ele assinará um número significativo de entradas na Enciclopédia Pedagógica Progredior, dirigida por Lima.

Pai e filho deixam os seus nomes ligados à mais simbólica experiência pedagógica realizada em portugal, ambos em estreita articulação com Adolfo Lima, como salienta António Nóvoa (2003, p. 897).

António Lima, mais exatamente António Godfroy de Abreu e Lima (1883-1968), era irmão de Adolfo Lima e estudou, sucessivamente, no Colégio Nacional, Liceu do Carmo, Escola Industrial Marquês de Pombal e Instituto Industrial, onde concluiu o curso de Química Industrial. Profissionalmente, foi diretor técnico da Secção de Indústrias da Casa Nunes & Nunes e da Casa Industrial Mercantil do Oeste e chefe de secção da Companhia Portuguesa de Higiene. No entanto, António Lima foi essencialmente um professor e a educação o seu campo de atividade por excelência. Ele construiu uma carreira docente indissociável da escola a que dedicou a maior parte da sua vida, a Escola Oficina n.º 1. Antes, iniciou as suas atividades docentes no Colégio Francês e colaborou, ainda que de forma pontual, com o projeto de escola nova experimentado pelo Colégio Infante de Sagres, fundado nas Laranjeiras, Lisboa, em 1928. No exercício do magistério, dedicou-se principalmente a duas áreas: aos Trabalhos Manuais Educativos (modelação em barro e papel) e às Ciências Físicas, Químicas e Naturais. As suas numerosas publicações evidenciam o interesse pelas metodologias ativas e pelas questões práticas, aliando teoria e prática e expressando com grande clareza o seu pensamento inovador sobre a dimensão pedagógica dos trabalhos manuais (que até então tinham uma feição profissional) e a necessidade de mobilizar as várias disciplinas das ciências naturais para explicar os fenómenos, com vista à compreensão da globalidade da natureza e da vida. Ele publicou de forma significativa sobre as aulas de ciências na revista Educação, no Boletim da Escola Oficina Nº 1 (que deu continuidade à revista Educação) e na revista Educação Social, dirigida por seu irmão Adolfo, entre outras (Figueira, 2003). Participou ativamente no movimento associativo dos professores, integrou a direção de várias associações e comissões. Em 1959, já aposentado, ainda exercia as funções de bibliotecário da Biblioteca Infantil e Juvenil da sua Escola Oficina n.º 1. Ele foi, talvez da forma mais sólida, o professor que protagonizou a resistência ao regime político salazarista, continuando a afirmar no interior da escola e de forma discreta, os princípios pedagógicos que haviam presidido ao projeto inovador da instituição.

Deolinda Lopes Vieira Pinto Quartin (1888-1993) era natural de Beja, onde frequentou a escola primária, tendo vindo para Lisboa com seus pais aos 12 anos de idade. Nesta cidade foi aluna do Liceu do Carmo e depois da Escola Normal. Entusiasta das ideias anarquistas desde cedo, consolidou o seu pensamento com a leitura das obras de Tolstoi, Kropotkin, Élisée Reclus, Sebastien Faure, Jean Grave e outros e com o contacto pessoal e de trabalho com figuras fundamentais da pedagogia moderna, como Adolfo e António Lima e César Porto. Feminista, encontrará em Adelaide Cabete uma referência para o seu militantismo, entusiasta mas discreto. Conheceu o brasileiro António Pinto Quartim (um dos principais divulgadores do anarquismo em Portugal, autor de vários livros e responsável por projetos culturais e jornalísticos), com quem casou. Deolinda começou a trabalhar como professora na Escola Oficina Nº 1 por volta de 1910. Um ou dois anos depois, acompanhou o marido em viagem ao Brasil, tendo regressado em 1915 e voltado então a trabalhar na Escola Oficina n.º 1. Entretanto, lecionou também em algumas escolas móveis republicanas, que foram extintas em 1930. Em 1919, especializou-se em educação infantil na Escola Normal Primária de Lisboa, na época dirigida por Adolfo Lima. A partir de então, trabalhou alternadamente na Escola Oficina n.º 1 e no ensino oficial infantil. Com a extinção do ensino infantil, foi transferida para uma escola do ensino primário oficial onde se manteve até à sua aposentação, ocorrida por volta de 1939-1940. A sua participação intensa nas organizações feministas e de professores revelam o seu empenho na luta das mulheres, mas também na defesa da coeducação e da escola única, que defendeu nos artigos que publicou em diversas revistas (Ferreira, 2003).

César Porto (1873-1944) foi outro dos impulsionadores da Educação Nova em Portugal. Formou-se em Antropologia, em Paris, e exerceu o magistério primário em várias escolas portuguesas. Maçon e republicano, iniciou sua vida política nas “lides libertárias”, tendo sido um assíduo colaborador do jornal A Batalha. Na Escola Oficina n.º 1 foi, a partir de 1912, professor de Português e Sociologia. Após 1918, assumiu a direção pedagógica dessa mesma escola. De entre outras atividades, compôs a comissão promotora da Liga de Ação Educativa, fez parte do conselho pedagógico da Universidade Popular Portuguesa e visitou a Rússia a convite da Federação Pan-Russa dos Trabalhadores de Ensino (Castelo, 2003). Preso pela ditadura militar em 1927, recebe o apoio dos colegas da escola Oficina n.º 1, vindo pouco depois a deixar a instituição.

José Carlos de Sousa (1871-1935) frequentou o Instituto Comercial de Lisboa e exerceu a profissão de contabilista e a de professor de línguas no ensino particular. Em 1930 e 1931 dirigiu a Escola-Oficina n.º 1, como seu diretor técnico, tendo aí sido professor. No entanto, a sua passagem por esta escola foi turbulenta e terminou com a sua demissão e um processo de inquérito, em que se coloca em causa, entre outros factos, a orientação que pretendia imprimir à relação pedagógica. A sua correspondência e artigos públicados demonstram o conhecimento que tinha dos princípios da Educação Nova e dos seus autores. Em 1924 entrou para o Conselho Administrativo da Universidade Popular Portuguesa e tornou-se, até à sua morte, o principal rosto desta instituição de educação de adultos. Ele foi um incansável propagandista dos ideais anarquistas e comungava com os seus companheiros da crença ilimitada na educação para a transformação da sociedade (Bandeira, 2003).

Estes são os rostos mais visíveis dos professores da escola Oficina n.º 1 e que marcaram a construção do projeto educativo da instituição. No entanto, eles foram acompanhados por muitos outros professores, alguns dos quais permaneceram na Escola por períodos muito curtos e outros, apesar de permanecerem durante mais tempo e participarem no Conselho Escolar, não assumiram visibilidade. Por exemplo, por um período breve, Canhão Júnior e Emílio Costa foram professores na escola, a partir de 1918, quando já se começava a sentir alguma decadência no projeto inovador.

Após a instauração da ditadura militar no país, a situação altera-se. O processo de nornalização da Escola exigido pelo regime, com a aproximação ao ensino regular que se configurava aos valores vigentes, assim como a opção de ela ser exclusivamente feminina, conduziu a um novo perfil na direção da instituição. Entre 1936 a 1943, Anémona Xavier de Basto exerceu as funções de diretora pedagógica, sendo seguida por Lucinda Pina Lopes que foi diretora de 1943 até cerca de 1979. Foram mandatos longos, expressão da regularidade e homogeneidade da Escola em tempos que o exigiam, e exercidos no feminino, como se requeria numa Escola que optou por ser uma escola de meninas a partir da década de 40.

A imagem da Escola Oficina n.º 1 foi em grande medida refletida pelas suas publicações. Em 1913, é publicada Educação, revista quinzenal de pedagogia, editada regularmente entre 15 de janeiro e 31 de dezembro desse ano. Com periodicidade quinzenal, foi da responsabilidade da Sociedade Promotora de Escolas (proprietária), dirigida por E. A. Lima Bastos (diretor), Luís da Mata (secretário da redação), José Faustino Rodrigues (administrador) e Raul de Lima Cruz (editor). Os seus principais colaboradores foram os professores de vários estabelecimentos de ensino, os docentes da Escola Oficina n.o 1 de Lisboa e os intelectuais associados ao movimento pedagógico renovador, destacando-se Adolfo Lima, César Porto e António Lima (Nóvoa, 1993, pp. 270-272; Barreira, 2006, 2008).

Em 1918, novamente sob a égide da Sociedade Promotora de Escolas (propriedade e edição), foi publicado o Boletim da Escola Oficina n.º. 1 entre janeiro e outubro desse ano. A sua periodicidade foi eventual e apenas 4 números foram publicados. O Conselho Escolar da Escola Oficina n.º 1 detinha a direção do Boletim e os seus principais colaboradores foram António Lima, César Porto, Adolfo Lima, João Mântua, João de Barros e Luís da Mata. Esta publicação é considerada como dando continuidade à Revista Educação, mas na realidade a proximidade temática e o posicionamento pedagógico são neste Boletim mobilizados para a realidade da Escola Oficina n.º 1, centrrando-se “na divulgação das práticas educativas constituintes do ensino integral desenvolvido naquela instituição escolar” (Nóvoa, 1993, p. 119). A associação “A Solidária” aparece com um papel de destaque na publicação, com referências à sua estrutura organizativa e às atividades que promovia, em linha com a divulgação ampla das realizações da Escola (Nóvoa, 1993, pp. 118-120; Barreira, 2010, 2013).

5. Por uma educação integral: os alunos da Escola Oficina n.º 1 e a afirmação de uma outra forma de associativismo estudantil

Apesar de inicialmente concebida para acolher um número máximo de 20 alunos, a Escola Oficina n.º 1 entra em funcionamento, em 9 de fevereiro de 1905, com apenas 4 alunos do sexo masculino. Tal facto é atribuído ao desconhecimento da existência da escola por parte da população a quem este projeto poderia interessar. No entanto, em julho de 1905 a escola resolve suspender os requerimentos de admissão de alunos por já ter atingido o número de 20. A partir desta data vão entrando alunos novos em substituição daqueles que desistem ou que, por razões diversas, vão sendo expulsos.

Nos anos seguintes assiste-se ao aumento gradual do número de discentes. É difícil estabelecer de forma regular a evolução dos alunos, dada a diversidade de fontes de informação (matrículas, atas da direção, atas do conselho escolar, relatórios, estatísticas do INE - Instituto Nacional de Estatística, etc.), o elevado grau de desistências e reprovações e a dificuldade em encontrar dados convergentes nos diferentes documentos.

Logo em 1906 as atas da direção informam que a lotação passa para 24 alunos; em março de 1907 para 35 e em 1910 iniciam o ano 72 alunos. Mas a sua frequência é irregular e é causa de uma das grandes preocupações da direção, que os documentos internos expressam, nomeadamente no Relatório do Conselho Escolar (1910, p. 3 a 5).

Os anos entre 1913 e 1940 são marcados pelo regime de coeducação e os números de alunos inscritos são bastante variáveis. Registou-se o menor número de inscrições no ano de 1914, de apenas 18 alunos, 5 do sexo feminino e 13 do sexo masculino; e o maior no ano seguinte, em 1915, com 85 inscrições, 18 do sexo feminino e 67 do sexo masculino.

Uma sequência de três fotos permite-nos visualizar os alunos da Escola Oficina n.o 1 e os grupos que frequentaram a instituição: em outubro de 1905, 7 alunos fizeram o exame de aproveitamento; entre 1906 e 1912, o grupo de alunos aproximava-se da meia centena; depois de 1912, surgem fotos com mais de cem alunos e alunas, pois a coeducação passa a existir a partir de 1913. Na análise destas imagens, ressalta a cor das batas, que no início eram mais escuras e foram ficando mais claras, principalmente com o regime de coeducação.

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 15 O primeiro grupo de alunos da Escola Oficina n.º 1, 1905 

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 16 Grupo de alunos da Escola Oficina n.º 1, entre 1906 e 1912 

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 17 Grupo de alunos da Escola Oficina n.º 1, após 1912 

Os uniformes, ou batas/blusas de trabalho, que todos os alunos usavam, assumem um valor simbólico importante. Eles consagravam a uniformidade e a igualdade entre os diferentes elementos e faziam dos alunos membros de uma comunidade de iguais entre si, abolindo as diferenças sociais pelo vestuário usado na escola. Estas fardas também protegiam os fatos de cada um durante as atividades de trabalho. Inicialmente escuros, os uniformes tornaram-se mais claros a partir de 1913, deixando de apresentar o ar inicial de verdadeiros “sacos”. Eles ganharam forma e elegância; no caso das meninas, adquiriram a forma de vestidos cintados e com golas de renda. Os alunos, em decisões mediadas pela “A Solidária”, definiram o que queriam vestir, escolhendo também os uniformes de saída, mais elegantes (brancos e cinzentos) e com chapéu de abas. Através dos uniformes, definia-se também o género, distinguindo-se por peças específicas as alunas dos alunos e também dos professores.

As batas eram a afirmação de uma imagem escolhida pela instituição, pela vontade expressa dos alunos, que agregavam os corpos e as almas que se espelhavam nessa forma específica de vestir, esbatendo diferenças sociais e pessoais e ocultando outros símbolos que marcassem diferenças. Pretendia-se assim agregar todos os atores educativos numa imagem institucional que os uniformes transmitiam.

A importância atribuída ao exercício físico expressa o controle dos corpos que se queria promover através daquele tipo de exercícios e que é visível nas fotos tiradas no Ginásio Exterior. As fotos da visita do Presidente da República, Manuel de Arriaga, ocorrida após 1913, mostram os alunos perfilados para receber o visitante, surgindo as alunas com a saia do uniforme de treino, numa evidência da situação de co-educação que já se vivia (Mogarro e Namora, 2019).

No início dos anos 40, o governo salazarista impõe à escola a opção por um dos géneros, por Decreto-Lei Nº 31.433 de 29 de julho de 1941, tendo esta optado por ser uma instituição feminina. Deste modo a Escola Oficina n.º 1 passa a ministrar um ensino exclusivamente feminino, situação que se mantém até ao ano da revolução dos cravos, em 1974.

Glicínia Quartim (1924-2006), antiga aluna, frequentou a escola Oficina n.º 1 nesse período e recorda, em entrevista dada à revista Noesis, a importânia da co-educação. Na sua perspetiva, foi “uma revolução no sistema educativo na altura” e acrescenta que nesta escola “não havia carpintaria para os meninos e lavores para as meninas … Era uma escola privada, que em todo o seu funcionamento procurava que a criança se sentisse livre e, ao mesmo tempo, responsável. As aulas eram dadas em volta de uma mesa grande onde, nós e o professor, nos sentávamos. Havia a integração das disciplinas curriculares, normais do ensino primário, ao mesmo tempo que havia oficinas e actividades de carácter artístico” (1999).

De uma forma global podemos ainda constatar que o maior número de matrículas de sexo feminino é realizado no ano letivo de 1968-1969, que atinge as 117; o maior número de matrículas do sexo masculino é feito no ano de 1915 com um número de 67. Após 1974, no que poderá ser chamado de segundo momento do ensino em coeducação nesta escola, a sua frequência é maioritariamente feminina.

A Escola Oficina n.º 1 conheceu também uma outra forma de associativismo estudantil, em moldes inovadores para a época e no seu apogeu pedagógico. “A Solidária” foi a Associação Escolar de Alunos da Escola Oficina n.º 1 e teve um funcionamento particularmente regular e importante entre 1909 e 1920. N’ “A Solidária” os alunos geriam as atividades desenvolvidas e organizavam-se em diversas secções. Representou uma das formas de autonomia mais interessantes dos alunos, elegendo os seus dirigentes, gerindo o seu dinheiro, participando na administração da justiça (a direção emitia opinião sobre os castigos a aplicar aos alunos que erravam), promovendo atividades de apoio aos estudantes carenciados (como os lanches e almoços) e regulando valores, comportamentos e atitudes entre os próprios alunos. As secções mais importantes da associação foram: Lanche Escolar / Almoço, Desportiva, Dramática, Capoeiras e Pombal. Existiram ainda outras, mais efémeras, como as secções de Dança, Ciclismo, Natação e Excursões (também chamada “Um Mês no Campo”).

As atividades em que os alunos se empenhavam no âmbito de “A Solidária” revelam a importância atribuída a uma boa alimentação (especialmente dos alunos desfavorecidos, que encontravam na escola a comida que rareava em suas casas), ao exercício físico e prática do desporto (nomeadamente, a ginástica), representação de peças dramáticas (muitas destas peças eram da autoria dos professores, como Adolfo Lima ou César Porto) e educação do gosto artístico, cuidados com os animais domésticos e gestão de recursos (para a cantina) e o contacto direto com a natureza, através de excursões. Algumas fotos realçam o papel de “A Solidária”, quando retratam a sua Comissão Diretiva para o ano de 1916, destacando entre os seus elementos a aluna Fernanda Mata, uma das líderes mais marcantes da Associação, ou quando apresentam o seu grupo de natação.

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Fig. 18 A Comissão Diretiva de «A Solidária» para o ano de 1916 

Fonte: António Candeias, Educar de outra forma

Fig. 19 Grupo de natação de «A Solidária» 

Apesar da recorrente afirmação (nas atas) da autonomia dos alunos, o seu self government, relativamente à gestão da associação e nas tomadas de decisão, os professores estão subliminarmente por trás, sugerindo o que deve ser feito. O seu nome nunca aparece até 1920, mas sabe-se que estavam presentes nas assembleias (assinavam a presença, embora não sejam referidos nas atas e provavelmente não intervinham) e Adolfo Lima assume a sua orientação “oculta” em artigos publicados mais tarde (A autonomia dos educandos, in Educação Social, 1925).

A origem social dos alunos também sofreu mutações assinaláveis. Inicialmente destinada aos filhos pobres dos operários do Bairro da Graça, a implementação de um ensino profissional enquadrado por um projeto inovador e moderno conferiu um prestígio crescente à Escola Oficina n.o 1, nos meios culturais e educativos e nos grupos sociais informados e esclarecidos, entre republicanos, maçónicos e anarquistas. Este prestígio alterou a composição social dos alunos, que passaram a ter uma percentagem significativa oriunda daqueles grupos sociais mais privilegiados.

Nos últimos anos de existência da Escola Oficina n.º 1 apenas funcionaram a educação pré-escolar e o ensino da 1ª e 2ª classes da escolaridade obrigatória, tendo encerrado definitivamente as portas no final do ano letivo de 1987-1988.

Numa instituição onde as punições físicas estavam proibidas (como castigos recorria-se a repreensões, suspensões e, nos casos mais graves, a expulsões), as noções de higiene faziam parte das matérias a estudar, mas eram também uma exigência da escola, que estabeleceu que os alunos deveriam apresentar-se limpos e de cabelo cortado. A palavra “sujo” surge de forma recorrente nos documentos internos da escola (como, por exemplo, nos relatórios e nas atas dos conselhos escolares) e nas suas publicações, associadas a outras expressões que caracterizam as péssimas condições de saúde em que viviam as famílias dos alunos. Assumida pela escola a impossibilidade de obrigar as famílias a enviarem os seus filhos limpos, instituíram-se os banhos na própria escola para os alunos que não apresentassem cuidados de higiene, como forma de os educar nos preceitos higiénicos necessários e defendidos por professores e médicos, na época.

A necessidade de os alunos manterem a cabeça limpa e desparasitada é um dos temas de saúde mais comentados, face aos inúmeros casos problemáticos que se apresentavam e que requeriam a intervenção dos professores e da direção. Estes reconheciam a impossibilidade de conseguir que no meio familiar seguissem as normas de higiene e mantivessem as diferentes partes do corpo limpas. Por isso, a direção estabeleceu, como normas, o cabelo curto e a regularidade no seu corte (uma vez mensalmente, na primeira segunda feira de cada mês), num esforço de implementação de normas de higiene, mas também de imposição de hábitos de regularidade e de disciplina nos/as alunos/as, que também estavam subjacentes nas regras de pontualidade e de comportamento.

Estas medidas tomadas pelos dirigentes da Escola Oficina n.º 1 refletem o forte discurso higienista que marcava o campo educativo na primeira metade do século XX e que eles claramente defendiam e pelo qual lutavam de forma militante, instituindo as práticas de higiene que consideravam imprescindíveis.

Conclusão

O projeto pedagógico da Escola Oficina n.º 1 teve uma natureza inovadora e alternativa, que conciliou vários contributos, nomeadamente o ideário libertário e anarquista dos professores que protagonizaram esse projeto e os princípios da Educação Nova que eles assumiam como a sua pedagogia e que levavam à prática na sua atividade profissional. A Escola promoveu, assim, a educação e autonomia dos seus alunos, oriundos, em grande parte, de estratos socioeconómicos operários e desfavorecidos, no sentido de promover a sua educação integral, a par de um forte sentido de formação profissional que os preparava para o mundo do trabalho. A geração de professores que construiu este projeto, nas primeiras décadas do século XX, contava com alguns dos nomes mais significativos da pedagogia moderna da Educação Nova e eles plasmaram nos planos de estudos e na organização da vida escolar os princípios dessa pedagogia. Deste modo, as estratégias que desenvolveram visavam promover as aprendizagens formais, mas também moldar os corpos e as almas segundo regras de autonomia, disciplina e controlo. Nesta perspetiva, foram implementadas normas de higiene, limpeza e saúde, formas de convivência social e o desenvolvimento de modalidades de autogoverno por parte dos alunos, na sua associação escolar “A Solidária”, que espelham a inovação e exemplaridade deste projeto no seu tempo.

A natureza inovadora do projeto da Escola Oficina n.º 1 teve implicações no espaço e no tempo escolares. O espaço do edifício do Largo da Graça transfigura-se e conhece novas cenografias pedagógicas, que acomodam as práticas inovadoras - as transformações nas salas de aula, na sala de desenho, no museu laboratório, nas oficinas exemplificam essa transformação do espaço, da sua ocupação, dos novos equipamentos e materiais didáticos que o habitam, das práticas e rotinas diferentes de conviência, trabalho e rituais que nele se desenvolvem e se estendem para o quintal, para o trabalho com a natureza e os animais. Por seu lado, o tempo escolar ganha uma nova plasticidade, não se limitando ao cumprimento do currículo estabelecido, mas estendendo-se para as atividades extracurriculares, as excursões e visitas, as formas de avaliação e de autogestão da associação de estudantes, as atividades diversificadas a que se dedicavam nas suas diferentes secções. Tempo e espaço ganham novos sentidos, na prossecussão da educação integral dos alunos.

O projeto da Escola Oficina n.º1 constitui um património de elevado valor, não só pelo significado simbólico da experiência, como pelo espólio que nos legou. Hoje, reconhecemos essa herança no próprio edifício, mas também na riqueza dos seus arquivos dispersos, assim como no universo material que deu suporte a este projeto inovador e ilustra a modernidade do ensino praticado na Escola. A Escola Oficina n.º1 teve um papel precursor para outras experiências pedagógicas que se desenvolveram no século XX e construiu uma imagem de forte crença nas potencialidades regeneradoras da instituição escolar, numa afirmação clara das possibilidades de transformação da sociedade através da educação.

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1Agradece-se a colaboração de Alda Namora e Filomena Bandeira, cujas informações foram importantes para a elaboração deste artigo.

Recebido: 01 de Fevereiro de 2019; Aceito: 01 de Maio de 2019

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