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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.18 no.3 Uberlândia set./dic 2019  Epub 17-Ene-2020

https://doi.org/10.14393/che-v18n3-2019-17 

Resenhas

Uma aula sobre a gênese da escola ocidental moderna

Una lección sobre la génesis de la escuela occidental moderna

A lecture on the genesis of the modern western school

Christiane Coutheux Trindade1 
http://orcid.org/0000-0003-3763-8385; lattes: 9466630382782147

1Escola Superior de Propaganda e Marketing (Brasil) chriscoutheux@gmail.com

BOTO, Carlota. A liturgia escolar na Idade Moderna. Campinas/SP: Papirus, 2017. 320pp.


Em mais de trinta anos de docência, não foram poucos os estudantes que tiveram o privilégio de aprender com Carlota Boto. A obra A Liturgia Escolar na Idade Moderna surge como uma generosa extensão dessa oportunidade a todos que se enredarem por suas linhas. Trata-se efetivamente de uma aula sobre a edificação da escola moderna por artífices daquele tempo: autores e atores que discursaram e agiram para desenhar os contornos de um novo modelo de escola, alinhado ao projeto civilizatório e às demandas de sua época. Entendo este livro como um feliz esforço narrativo, em que a autora atribui sentido não só ao fenômeno que se propõe estudar, mas também a seu percurso pessoal como professora que magistralmente inventa aulas desenhando teses. Como uma das pessoas que se sentaram em carteiras para ouvi-la, reconheço com alegria os itinerários de algumas de suas disciplinas, agora sistematizados de modo a nos permitir conhecê-los com uma profundidade e um rigor inacessíveis às nossas anotações de caderno. Para seus alunos, a leitura representa a nostalgia de uma conversa, com a possibilidade ímpar de voltar com mais maturidade para aquelas discussões, descortinando elementos antes despercebidos. Para novos leitores, constitui a chance de se apropriar de parte do abrangente e sofisticado repertório da autora. Para ambos, é um exercício de conhecer a escola por meio de condições históricas de sua existência, sob a lente de seu recorte.

O estudo se situa no campo da história cultural, que, como classicamente estabelece Chartier (2002, p.17), “tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler”. Assim, acertadamente a autora articula representações sobre a escola a partir de uma história dos discursos e uma história das práticas, em que ações e rituais revelam um cotidiano estruturante da escola e da cultura escolar. O esquema intelectual que nos empresta propõe que a cultura letrada impressa exigiu da escola moderna alinhamento a certos princípios, práticas e métodos que favorecessem a formação e disseminação do sujeito de um mundo cada vez mais letrado. Boto se volta aos séculos XVI e XVII, localizando a Renascença, o Humanismo e a Reforma Protestante na base dessa representação discursiva1; e sublinhando o fundamento material da escola nas práticas mercantis, religiosas e, claro, pedagógicas. O resultado desse jogo de disputas pelos significados e pela atuação da escola moderna é a estruturação de uma liturgia escolar, que ainda hoje se faz sentir porque compõe o “imaginário social que marcou boa parte do repertório educacional da modernidade” (Boto, 2017, p.22).

Penso que a obra completa outros estudos da autora, particularmente aquele exposto em A escola do homem novo2, dedicado a um período posterior ao aqui trabalhado. Nele, Boto (1996) demonstra como o Iluminismo e a Revolução Francesa do século XVIII vão pleitear a formação de um novo sujeito para habitar a ordem instaurada, a partir dos princípios de uma escola pública, laica, gratuita e universal, estabelecendo a função educativa do Estado ante um projeto de nação. No livro mais recente, ela visita os séculos XVI e XVII se dirigindo à modernidade ainda embrionária. A autora sintetiza esse diálogo temporal:

Se com o Iluminismo e a Revolução, o ideário de escolarização passou a integrar um projeto de nação, no período anterior, já podem ser assinalados, nas práticas de sala de aula, alguns dos principais traços constitutivos da “gramática” da escolarização moderna. Naquele primeiro período, teriam sido gestados e engendrados, em alguma prática e em múltiplas representações sociais, rituais muito específicos que configurariam minuciosamente o dia a dia da vida escolar moderna (Boto, 2017, p.72).

Pela lógica do processo civilizador de Norbert Elias, Boto propõe que as funções sociais da escola contribuem ativamente para a internalização de hábitos de conduta e para a formação do autocontrole, somando ao instruir os modos de se comportar e de agir daqueles a quem atende. Assim, o primeiro capítulo, O livro impresso: entre a infância e a escola, tem o desafio de identificar a fundação da escola moderna no seio dos processos históricos, sociais e culturais do advento daquele tempo. Para compreendê-la, é preciso reconhecer a exigência e o prestígio gradual da cultura letrada impressa, um fenômeno multifacetado pela complexa dinâmica entre as esferas mercantil, religiosa, política, artística, cultural, científica e técnica. Os célebres sustentáculos do que entendemos por Modernidade - a racionalização, a secularização, a urbanização, o antropocentrismo, a institucionalização, a padronização, o individualismo e a civilização dos costumes - são tramados para contextualizar essa reivindicação pela escola e o modo como ela passa a ser pensada e praticada. A autora passeia, ancorada em autores e fontes documentais diversos, pela Renascença e por sua expressão intelectual no Humanismo, fazendo notar seu intuito pedagógico: a “formação de um gosto refinado, capaz de conviver com hábitos e condutas prescritos pelos códigos das elites” (Boto, 2017, p.37). É um tempo em que a cultura artística e a letrada são valorizadas pelas elites intelectuais e, concomitantemente, em que o ler, escrever e contar são recursos para o crescente capitalismo mercantil. Logo, prestígio e utilidade se veem em concordância, fertilizando o terreno para a multiplicação das escolas, inclusive pagas pelas famílias para a formação de comerciantes, cuja “preparação é ‘pelas’ letras, mas ‘para’ a profissão” (Boto,2017, p.48). Ao mesmo tempo, a pedagogia humanista representa o elogio do desinteresse, buscando “o ornamento da vida pela cultura geral” (Boto,2017, p.40). Assim, o repertório cultural surge como um mecanismo de distinção do homem da corte, cujo bem falar coincide com o bem agir. Não à toa, o Humanismo postula uma educação doméstica por preceptoria, ou seja, aristocrática, enaltecendo o campo da retórica, que permite um refinamento pela sedução da palavra. Como vimos há pouco, será preciso esperar o século XVIII para expandir radicalmente a reivindicação da escola a camadas menos favorecidas. Ao mobilizar Erasmo, a autora nos recorda como o discurso renascentista sobre a plasticidade da criança pressiona adultos abastados a atentar para o valor da educação, porque a distancia de uma dimensão animal. Ademais, a educação testemunha nesse período um novo personagem a se colocar entre mestre e discípulos, o livro, que altera não só o formato do conhecimento, mas sua forma e conteúdo. Ainda que prevaleça um ensino baseado na tradição medieval da transmissão oral, a cultura impressa insere a tradição escrita na escola: “O ensino escolar situa-se na zona fronteiriça entre duas tradições: a oralidade e a escrita” (Boto, 2017, p.43). Também favorece a separação da criança do mundo adulto, sendo agora preciso um conjunto de práticas que a introduzam no universo simbólico da escrita e da leitura.

O capítulo dois, O processo civilizador de uma cultura por escolas, expande a argumentação anterior. Tanto a velha aristocracia, cuja nobreza vem do sangue, quanto a recém endinheirada, que emerge do crescimento dos comércios, associam a cultura letrada e o bem portar-se a um mecanismo de diferenciação. Portanto, a própria disputa societária dessas camadas por poder e prestígio favorecem a atenção à reflexão e à prática pedagógica. Montaigne surge então como mais uma referência intelectual do século XVI, preocupado em aproveitar a infância para dar forma ao homem. A originalidade de seu olhar multicultural e o elogio à autonomia do pensamento compõem sua crítica ao saber pedante do acúmulo pela memória, desprovida de um sentido pessoal e, no limite, solitariamente ideado: não à toa, Montaigne inaugura a escrita ensaística. Para evitar o vício de um saber emprestado, escutar o discípulo é fundamental. Evidentemente, não será possível a qualquer um se incumbir da educação, pois “requer domínio de uma arte, de uma técnica, de uma especialidade - entre o conhecimento e a virtude” (Boto, 2017, p.81). Já Erasmo se destaca pela originalidade ao se dirigir diretamente à criança em A civilidade pueril, além da aceitação massificada da obra, influente por escolas daquele e dos próximos tempos. Penso que a própria disseminação desse texto é um testemunho do vínculo entre a educação moderna e a cultura impressa: as tecnologias da informação se vinculam visceralmente às práticas de formação humana. De todo modo, se o homem nobre resulta de um processo de ordenação intencional de uma segunda natureza humana - e não mais de mera herança sanguínea -, tem-se um forte argumento segundo o qual a plasticidade infantil assegura, em certa medida, a flexibilidade da hierarquia social. Para que a nobreza se constitua feito uma segunda pele, em que impulsos são domados em favor do comportamento civilizado, normas devem ser interiorizadas em grande parte graças a esforços educativos. Regrar o corpo é lapidar a alma: “A gramática corporal, no limite, revelaria a alma” (Boto, 2017, p.92). Ainda, a normalização corporal e o cultivo da mente fazem parte do percurso de consolidação do Estado Absolutista, que necessitava de homogeneização interna para caminhar à condição pacificada. Mecanismos sociais de controle e vigilância se transmutam em um aparato psicológico de autorregulação, em que o olhar do outro passa a guiar nossas preocupações e a exigir o uso de máscaras sociais. O processo civilizatório é apresentado como uma racionalização e padronização de comportamentos individuais de modo a prever e dirigir o portar-se coletivo: os colégios são fonte de irradiação desses modos. Igualmente, o papel da Reforma é matricial, “já que ali foi desenhado um prospecto de ensino universal” (Boto,2017, p.99). A autora mostra como a reivindicação política de Lutero por escolas municipais é estratégica para que a nova acepção religiosa se viabilize. É preciso retirar do clero o poder ilegítimo de intermediário de Deus e, para tanto, o fiel tem de aprender a ler as escrituras. Defensor do ensino secular, ele reconhece que a escola precisa abarcar necessidades comuns e preparar os homens para a vida das cidades e as mulheres para a gestão doméstica. As ações humanas respondem à vocação divina e, por isso, a educação é um caminho para bem atender ao chamado de Deus. Essa vocação também é clara para Calvino, que traz a salvação moral do modelo de vida da burguesia no capitalismo crescente ao enxergar no lucro sinais da predestinação divina. A ética protestante postula “uma vida ascética, disciplinada, competitiva, mas que, ao desenvolver plenamente as potencialidades individuais, contribuirá para aprimorar a convivência coletiva” (Boto, 2017, p.122). A autora atesta o lugar dessa ética protestante e burguesa na proliferação das escolas e da própria educação. Lutero perceberá mais à frente que deixar a interpretação completamente aberta terá seus riscos e, por isso, fundará o ensino catequético:

Lutero traduziu as Fábulas de Esopo e redigiu, entre 1528 e 1529, o Pequeno catecismo e o Catecismo maior. Seu uso nas escolas possibilitou o controle exegético, de interpretação do texto. Talvez assim tenha surgido a crença no questionário como estratégia de verificação da aprendizagem escolar. [...] do ponto de vista estritamente escolar, para cada pergunta que a vida nos coloca, existirá sempre apenas uma resposta certa e todas as outras serão consideradas erradas. Paradoxalmente, há um árbitro para a leitura do texto: é o professor [...] (Boto, 2017, p.113).

Calvino e o português João de Barros são lembrados pela autora nesse entusiasmo com a catequese, cuja intencionalidade formativa transparece seu caráter pedagógico. Com Calvino e seus seguidores, a escola vai adensar métodos pedagógicos na condução regrada de seu cotidiano, propondo uma regulação seriada e sequencial do currículo e inovando com o ensino dirigido simultâneo e a consequente classe organizada por nível dos alunos. Tanto em Lutero quanto em Calvino, o protestantismo expressa os anseios da época e colabora particularmente com a valorização da educação e da cultura letrada impressa, participando, pelo discurso e pela condução de práticas pedagógicas, do erigir da escola moderna.

A resposta católica são os colégios jesuítas e de outras ordens fundadas a partir do Concílio de Trento. No entanto, mesmo após a Contrarreforma, a Igreja Católica mantém receio da leitura, inclusive desencorajando o contato com diversas obras, o que vai explicar o rigor e o controle de seus colégios e da própria instituição do Tribunal da Inquisição e seu Index de livros proibidos. Realço o capítulo 3, Conhecimento, conteúdo e métodos de ensino na Idade Moderna: testemunhos, porque direciona particularmente o olhar para o legado de Juan-Luis Vives. Como observam Bernardo e Toledo (2007), o autor segue pouco reconhecido no Brasil, ainda que sua relevância seja sem-par. Para Boto (2017, p.129), trata-se de “um raro representante do movimento humanista que atentará para a formação dos comportamentos e da instrução pensados pela perspectiva do ensino coletivo”. Sua obra tem, além de evidente valor pelas ideias pedagógicas, serventia como rica fonte documental, quando Vives descreve as práticas escolares de sua época para poder criticá-las e aprimorá-las - esforço que a autora apresenta diligentemente. Vives vai surgir de modo incomparável na estruturação de um pensamento pedagógico que se volta a princípios sobre o aprender e o ensinar sem se esquecer de dimensões práticas. Defende a primazia da memória3 como recurso do indivíduo para se apropriar da herança cultural, propondo a anotação escrita como uma técnica de amparo ao cultivo dessa capacidade. Também trata da arquitetura da escola, principiando esse traço tão característico da modernidade que é o edifício especificamente construído para o ensino, isolado do restante da vida social para favorecer a concentração das atividades que ali correm. Pensar a educação na coletividade não o dessensibiliza para as demandas individuais, atribuindo ao professor a tarefa de interpretar e compreender “o engenho próprio de cada estudante” (Boto, 2017, p.140) para melhor tirar proveito de seus dons. Cabe ao professor o duplo esforço de conhecer os objetos do conhecimento que leciona e seu alunado, o que entendo que resume bem o desafio contínuo da pedagogia de articular matéria e método. Ao mesmo tempo, Vives censura toda tentativa de “transformação do ensino em espetáculo” (Boto, 2017, p.138), indicando o valor da gravidade, da seriedade e da prudência com que o ofício do professor deve ser conduzido. Vejo, portanto, a passagem em que a autora se dedica a localizar Vives na História da Educação como especialmente contributiva, escapando de lugares-comuns e mostrando a complexidade dos escritos moralistas daqueles tempos. Quando esmiúça seus diálogos, deixa facilmente à mão uma rica seleção do testemunho das práticas e reflexões pedagógicas da escola moderna.

O quarto capítulo se intitula Rumos da tradição: o pensamento pedagógico do século XVII. Boto trata primeiro de Ratke e então de seu sucessor, Comenius, mais frequentemente reconhecido pelo pioneirismo. Resgatar o lugar pioneiro de Ratke na produção dos discursos pedagógicos enriquece o olhar do leitor, por encontrar nele a minuciosa ocupação com os temas da rotina escolar e seus rituais. Quando narra, por exemplo, a sequência da aula de latim proposta pelo pensador, Boto (2017, p.171) desvela seu caráter litúrgico, que nomeia o livro e o objeto de sua pesquisa. Um discurso sobre o método, sempre tão atrelado a Comenius, já pode ser visto nesses primeiros momentos do século XVII. Esse movimento argumentativo é, pois, um ensejo para compreendermos tanto permanências quanto afastamentos da cultura escolar ao longo do tempo. Revela o quanto o zelo pela rotina diária das lições faz parte do ofício pedagógico há muito, mesmo que os tempos testemunhem a gradual metamorfose nas próprias rotinas escolares. A alegria na escola defendida por Ratke, o cuidado com um ensino que se adeque à natureza e à capacidade da criança, ou seu debate sobre as causas do abandono escolar indicam a clara articulação com temas ainda não superados pela escola de hoje. Comenius, por seu turno, é reconhecido em sua posição inaugural da pedagogia moderna com a Didática Magna, mas Boto o coloca em movimento dialogado não apenas com seu contemporâneo Descartes, mas com aqueles que o antecedem, seja Vives, Ratke ou mesmo a reflexão protestante sobre a educação. Com isso, ela escapa da fórmula simplificadora de compreensão de autores e obras tidos como marcos. Compreende o esforço metodológico de Comenius como resultado das próprias teorias do conhecimento que fazem nascer a ciência moderna, indicando o reconhecimento já no século XVII do clássico vínculo entre epistemologia e pedagogia. A empreitada do pensador é lembrada como uma ambição metodológica da didática, que aposta de modo irrestrito na potencialidade humana.

No capítulo seguinte, A civilização escolar tem a forma de colégio, Boto visita a universidade medieval para colocá-la como matriz e fonte de apropriação dos colégios dos séculos XVI e XVII, ainda que ambas as instituições guardem relações de concorrência4. As lições e disputas promovidas pela Universidade de Paris são a base do método de ensino dos jesuítas, mesmo que depois das lições siga-se direto para a escrita. Se as escolas protestantes foram trabalhadas no capítulo dois, o quinto se detém sobre os colégios católicos, em especial aqueles sob comando da Companhia de Jesus. Estes, como amplamente se reconhece na historiografia da educação, contribuíram para a arquitetura da escola moderna pela organização do tempo e do espaço escolar. Mais uma vez, a metáfora da liturgia de Carlota Boto é oportuna para mostrar que a condução da vida escolar segue ritos próprios, ditando ritmo a corpos e almas que coletivamente se encontram para aprender conhecimentos e condutas. O Concílio de Trento é posto aqui claramente como uma resposta não só à Reforma, mas ao próprio negócio inventado pela prensa tipográfica; a imprensa irradiada, que edita e dissemina as letras, é uma ameaça à Igreja centralizadora. A Companhia de Jesus, uma das deliberações do Concílio, assumirá um papel catequético na tentativa de fazer permanecer uma instituição em risco pelas novas práticas e ideais da modernidade: fundar escolas e seminários para perpetuar não só a fé, mas o poder (ameaçado) da Igreja. A vida mundana e material é apartada dos muros da escola, promovendo a proteção que preconizava o sentimento moderno de infância: “essa divisão entre a vida escolar e a vida familiar, tantas vezes atribuídas aos dias de hoje, é tão antiga quanto a própria gênese da escolarização em sua versão moderna” (Boto, 2017, p.246). Vale ainda o apontamento da autora sobre o fundamento dos colégios na razão: “Ratio Studiorum - literalmente ensino pela razão -, tratava-se, para os jesuítas do século XVI, de estruturar um sistema de ensino que levasse cautelosamente os estudos clássicos para o aprendizado em classes, por escrito” (Boto, 2017, p.223). Dupla era a missão da Companhia: instruir racionalmente nos saberes do mundo e dirigir a alma segundo a fé cristã católica. Penso, como muitos, que o caráter regulatório das práticas pedagógicas, condensado no documento da Ratio, tem tamanha força que marca o cotidiano e a cultura escolar ainda hoje. A autora percebe sua importância como “código educativo” e descreve um vasto conjunto de métodos e técnicas que ali estipulam esse memorável programa escolar.

Rastros e frestas da civilização escolar intitula o sexto capítulo. Partindo de La Salle, Boto indica os alicerces da educação popular nas escolas de caridade. Ocupadas com os mais desfavorecidos, uma importante diferença das escolas lassalianas para os colégios jesuítas era justamente cuidar de “finalidades práticas de uma cultura letrada que não seria maior do que a escolarização de conhecimentos elementares: ler, escrever, contar, catecismo e boas maneiras, nada muito além disso” (Boto, 2017, p.251). Havia um princípio original norteando La Salle: a aposta de que se pode oferecer escola gratuita, sem distinção por classes. Logo, há singularidade em sua contribuição, mesmo que as tentativas de sistematização dos métodos de ensino e da regulação do cotidiano escolar sejam comuns aos discursos e práticas daquela época. Jesuítas e lassalianos são seminais também pela progressão continuada e seriada dos conteúdos, sem os quais sabemos que a pedagogia não mais operará. Discurso e práticas da escola tradicional ganham contornos mais definidos: a civilização escolar está desenhada. O último movimento argumentativo do capítulo abre o diálogo da autora com várias referências mais contemporâneas, como António Nóvoa, Michel de Certeau e José Mario Pires Azanha. É um momento rico de entrelaçamento, em que se evidencia que a compreensão da história cultural da escola é um itinerário de pesquisa coletivo e inesgotável.

O livro tece ainda considerações finais, cujo poder de síntese chama atenção, fechando didaticamente o sentido da tese trazida. Pontuo o parágrafo inicial dessa parte, em que o caráter altamente simbólico da vida escolar explica a função social assumida ante o projeto civilizador ocidental.

***

Iniciei esta resenha propondo a compreensão do texto pela metáfora de uma aula. Ao longo da obra, temas se repetem. No ofício do professor, retomar o que foi dito anteriormente tem o intuito de criar os vínculos entre os momentos argumentativos da exposição, clareando e revigorando a memória de quem aprende. Carlota Boto reforça sua tese para o leitor tanto pelo retorno constante ao eixo central de suas discussões - o nascimento da escola moderna diante da cultura letrada impressa e das exigências do processo civilizador -, quanto por expandir suas reflexões, trazendo às vistas mais atentas novos dados e análises. Assim, ao final da obra, percebo uma coesão construída lentamente, que vai crescendo a cada tópico tratado.

Julgo ainda oportuno salientar que a autora também conta a história da escola moderna pelos objetos que a habitam. Essa história da cultura material é vista como um rastro da edificação da instituição: o quadro negro que economiza recursos ao mesmo tempo que exige empenho em anotar e memorar; a disposição arquitetônica dos primeiros prédios erguidos para serem escola; os cadernos que surgem para regrar o ritual de anotação escolar; a campainha que dita o relógio e a temporalidade única da escola. Estes, entre tantos outros personagens-coisas, moldaram o jeito de se fazer escola: essa liturgia que se faz ainda sentir.

Por fim, quero destacar o que de um modo muito particular corresponde a um dos aspectos que mais valorizo no material de Liturgia Escolar na Idade Moderna. Boto se ocupa, ao longo do exame das representações discursivas e práticas educativas dos séculos XVI e XVII, em identificar algumas das sementes da luta pela democratização da educação. Isso aparece diversas vezes, como vimos, na demanda de Lutero pelas escolas municipais, ou na pansofia e pampaedia de Comenius, que enxerga em sua arte de ensinar tudo a todos a possibilidade de universalizar o cultivo da humanidade no próprio homem. As escolas lassalianas, ao final do livro, provocam especialmente esse debate, pois assumem responsabilidade pela educação das crianças pobres, apostando nela como forma de auxiliá-las a deter “um capital cultural que as levaria para além de suas famílias” (Boto, 2017, p.256). Para aqueles que, como eu, se ocupam das relações entre democracia e educação, olhar essa longínqua origem de lutas que seguem atuais no território da educação explica seu lugar histórico como morada da esperança de uma sociedade mais justa, ao mesmo tempo em que denuncia o imenso desafio que é conseguir pelas práticas sociais alguma aproximação desse ideário utópico. Os desenhos contemporâneos de intolerância, perda de direitos e profundas e graves crises socioambientais tornam ainda mais urgente o reconhecimento histórico, sociológico e filosófico dos limites e possibilidades do campo pedagógico, que em sua liturgia pode rezar o credo da opressão ou da emancipação:

Na escola de hoje, como na de tempos atrás, há rituais, saberes, valores e modos de agir que constituem maneiras de ser interiores à experiência escolar. Deverão ser revistos. É necessário, no interior da escola, que sejam colocadas questões para problematizar aquilo que costuma ser visto como natural. É preciso mudar o que estiver obsoleto. É preciso preservar o que se considerar valoroso. É fundamental haver o fortalecimento de projetos político-pedagógicos democráticos (Boto, 2017, p.293).

Referências

BERNARDO, Débora Giselli; TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de. Educação e humanismo no pensamento de Juan Luís Vives (1492-1540). Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n.25, p.13-32, mar. 2007. Disponível em: <http://www.histedbr.fe.unicamp.br/revista/edicoes/25/art 02_25.pdf>. [ Links ]

BOTO, Carlota. A liturgia escolar na Idade Moderna. Campinas: Papirus, 2017. [ Links ]

BOTO, Carlota. Instrução pública e projeto civilizador. São Paulo: Editora Unesp, 2017b. [ Links ]

BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo: Editora Unesp, 1996. [ Links ]

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Algés (Portugal): Difel, 2002. [ Links ]

1Chartier (2002) alerta que representações não são neutras: expressam um campo de concorrências entre grupos por poder e dominação. Não é em vão, portanto, que Carlota Boto traz esses agentes de discurso e práticas, cujo resultado da competição forja a escola moderna.

2Outra interseção pertinente é o livro Instrução pública e projeto civilizador, em que a autora trata especificamente da instrução pública no século XVIII como engrenagem do processo civilizador a partir de Rousseau, Condorcet e Marques de Pombal (Boto, 2017b).

3Aqui se vê que Vives não rejeita a escolástica como outros humanistas, dedicando-se inclusive às disputas, vindas da universidade medieval, ainda que critique o pedantismo e a rivalidade, vistos por vezes nessas práticas (Boto,2017).

4Como indica a autora, as idades atendidas pelos colégios da Companhia de Jesus, cujo ingresso se dava aos 12 anos, e das universidades, aos 14, eram praticamente as mesmas, havendo uma disputa pelo alunado. Os colégios não eram uma preparação para a universidade, que se vê naquele tempo em desprestígio (Boto,2017).

Recebido: 01 de Maio de 2019; Aceito: 01 de Junho de 2019

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