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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.18 no.3 Uberlândia set./dic 2019  Epub 17-Ene-2020

https://doi.org/10.14393/che-v18n3-2019-19 

Resenhas

O espectro da anormalidade ronda os alunos

The spectrum of anormality rounds students

El espectro de la anormalidad rodea los estudiantes

1Universidade São Judas Tadeu; Universidade de São Paulo (Brasil) juliacatani@usp.br

LIMA, Ana Laura Godinho. A "'criança-problema" na escola brasileira - uma análise do discurso pedagógico. Curitiba: Appris, 2018. 211pp.


Em A "'criança-problema" na escola brasileira - uma análise do discurso pedagógico,Ana Laura Godinho Lima examina de forma detalhada o que seria este modo de nomeação e suas possíveis repercussões no campo educacional brasileiro. O material analisado na obra que é fruto da tese de doutoramento mostra a necessidade de se remontar à origem dos termos, dos nomes e dos recursos verbais empregados no cotidiano escolar. A pesquisadora desenvolve uma extensa investigação a respeito dos elementos envolvidos na classificação de “criança-problema”. Aos leitores apressados, desejosos de rápido esclarecimento do que envolve o cenário do uso dos termos, recomendo paciência, pois a atenção detida ao modo de organização do trabalho de análise nos permite apreciar, como num roteiro de viagem, cada escolha feita pela autora e o modo de construção da crítica a cada um dos problemas identificados. Ou seja, o leitor é recompensado pelas informações contidas em cada página, informações estas que se estendem para muito além do volume de dados e ensejam reflexões e questionamentos férteis para a compreensão das práticas educacionais e também para os campos do conhecimento pedagógico e do cuidado em geral. Já dizia Freud: quanto mais se souber do passado, melhor serão as possibilidades de futuro. Conhecer a história que levou à identificação e nomeação da criança-problema permite entender fatores sociais, escolares, religiosas e familiares envolvidos na situação e nos alerta para o que pode não ser evidente ou até mesmo ser desconhecido por nós.

O leitor, que possua alguma familiaridade com o pai da psicanálise, pode vir a recordar-se de sua comparação entre o psicanalista e o arqueólogo1, na qual recomenda que estes deverão em meio às dificuldades e ausência de informações reconstruir e formular análises lacunares. Tais análises podem permitir compreender o que se passou ao longo do tempo e os seus efeitos nos dias atuais. Isto é, trata-se de um trabalho que não é o mesmo que o de um escultor, no qual o artista já está de posse do seu instrumento e material e precisa moldar e aprimorar o que tem mãos para obter resultados finais. De que modo isso pode ser associado ao estudo de Ana Laura Lima realizado no contexto das elaborações pedagógicas? Tal como o arqueólogo e o psicanalista, a autora reúne materiais que mesmo permitindo explicações que comportam lacunas nos faz constatar o entrelaçamento dos elementos pedagógicos, comportamentais e psicológicos que se condensam nas classificações utilizadas para compreender e nomear as crianças. Nem sempre os próprios profissionais se dão conta de tais implicações e nesse sentido os estudos históricos sobre as classificações (nomeações) auxiliam o entendimento até mesmo do seu impacto e das sobrevivências que impregnam as práticas atuais.

A escrita do livro organiza-se por capítulos que constroem uma caracterização sócio histórica das classificações psicológicas, dentre elas a da criança-problema. Examina cuidadosamente a situação brasileira que no início do século XX vê surgir a problemática da gestão dos comportamentos das crianças na vida da nova escola de massas. Um capítulo especial é dedicado ao exame das questões relativas aos testes e às tecnologias de governo dos alunos mostrando o que se considerava como potencialidades de tais instrumentos para o diagnóstico e tratamento da criança-problema. Também dedica parte do estudo à consideração do modo como se apresenta esta criança e sua educação na família e, exemplarmente, na obra de Arthur Ramos, em perspectiva psicanalítica. Em termos muito estimulantes para a reflexão, o item relativo à conclusão vai ao cerne do tema ao indicar a referência à criança-problema como “uma ‘anormal’ cotidiana, uma ‘anormal’ banalizada”.

Peço licença para apresentar a obra de dois modos: sobre o que configura as virtudes da pesquisa e o valor da análise feita sobre as fontes. A habilidade e o exame apurado de Lima tornam o trabalho forte e fundamental. A leitura evidencia a atualidade de suas ponderações. A obra faz uma investigação a respeito das transformações históricas no âmbito educacional e para além dele. Observa-se a atenção para com campos e fronteiras que abrangem a psicologia, a educação, a perspectiva sócio histórica, a psiquiatria, que tornam a publicação relevante para todos os que enfrentam os desafios de ensino e das práticas de cuidado. Não somente para profissionais, mas também para pais que hoje se perguntam de que modo os comportamentos de seus filhos podem ou não configurarem um problema a ser tratado. Embora não tenha a pretensão de ser um manual e tampouco a de ser guia de orientação, a análise pode auxiliar pais e professores em sua tarefa de educar. A qualidade favorece sua leitura por muitos e em diversos contextos. Há por parte da autora uma preocupação crítica em identificar os impasses que o meio educacional enfrenta com as crianças que desafiam os professores e a verticalidade da relação professor-aluno, Lima apresenta também possíveis soluções para os problemas que se tornam cada vez mais complexos no que diz respeito à temática “criança-problema”. Cabe questionar que criança problema e qual inconveniente ou obstáculo ela representa: para quem? Por quê? Como? O que fazer? Estas são indagações que a autora tece ao longo de sua escrita e aponta caminhos para seu entendimento.

Desde a criação dos manuais psiquiátricos e sistemas de classificação que datam de décadas, no caso da Classificação Internacional de Doenças (CID,1900)2 e do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM,1952)3 muito discute-se acerca do que poderia ser considerado normal e patológico para um paciente, sobretudo do ponto de vista das doenças psíquicas. No campo da psiquiatria, o diagnóstico por definição compreende o conhecimento das características de uma doença e a descrição de seus sintomas. Estes sistemas hoje já bastante difundidos, como no caso da CID e do DSM, buscam identificar o que ocorre com os sujeitos a partir da reunião de observações sobre comportamentos e sintomas e estabelecer propostas terapêuticas para a solução destas condições que, na maioria dos casos, promovem sofrimento para os sujeitos e seus familiares. Já se disse que toda classificação é preferível ao caos. Sabemos que em meio a uma possível confusão e desordem é difícil operar. Na tentativa de evitar tais riscos a Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1945 estabeleceu que é preciso garantir um exame psíquico e mental que leve em conta e vise restabelecer o bem-estar em diversas áreas da vida, ou seja, uma satisfação biopsicossocial. Cabe lembrar que a maneira pela qual as classificações foram sendo popularizadas e passaram a ser utilizadas intensivamente apresa, em muitos casos, diagnósticos previamente feitos e desejados pelos pacientes. A tal ponto que se torna pertinente questionar se estes manuais que são constantemente atualizados configurariam um: acúmulo de conhecimento frutífero para o cuidado e atenção aos sujeitos ou um aprisionamento que faz com que pouco a pouco tenhamos dificuldades em pensar para além destes limites já pré-estabelecidos. Embora a autora não faça tal digressão em seu texto, as suas informações levam a problematizações semelhantes e conduziram-me a esta ponderação. Trata-se de um texto de qualidade, que para além de ofertar diversas informações e explicações, permite a elaboração de um pensamento crítico acerca da questão ao nos conduzir à compreensão sobre como a criança-problema vai sendo objeto de diagnósticos e submetendo-se a práticas específicas na vida escolar.

O livro consubstancia também uma extensa pesquisa bibliográfica e o mapeamento das produções já existentes o que por si só constitui uma contribuição frutífera, mas obviamente seu mérito ultrapassa estes aspectos e a preocupação crítica demonstra a consideração dos aspectos históricos que moldaram a questão. Nota-se também a intenção de promover reflexões e envolvimento dos pais, professores, médicos, psicólogos etc. Igualmente é possível reconhecer uma densa análise do campo educacional brasileiro (nacional), além da consideração de aspectos internacionais, de modo a discutir as repercussões dos elementos mundiais no nível educacional local. A atenção aos níveis nacionais e internacionais pode ser constatada pela mobilização dos autores eleitos e a articulação da tese e ao seu desenvolvimento do estágio sanduíche realizado nos Estados Unidos. A delimitação temporal na qual se opera a análise inclui as décadas de 1930 e 1940 marcadas no cenário nacional pelas transformações da Era Vargas e a criação do Estado Novo. As reformas também ocorrem nas relações intraescolares: a nova pedagogia desloca a ênfase sobre a figura do professor para a do aluno. Novas apostas são feitas na futura geração e seu potencial produtivo para o país4. Estas mudanças são descritas no estudo e permitem situar ainda as questões fundamentais do como ensinar e como apreender. Proteger e prevenir aparecem como premissas frequentemente invocadas para referir-se à infância, mas na tentativa de facilitar o ensino e a aprendizagem instaura-se nas proposições pedagógicas a lógica que propõe a seleção dos mais aptos ao mercado de trabalho e a da correção dos que apresentam dificuldades. Nestas décadas e nas subsequentes notam-se mudanças importantes no âmbito educacional e muitas reformas são propostas. De modo delicado e sem perder o senso crítico a autora vai à raiz da questão para refletir e propor ao leitor: pode-se afirmar que neste sentido tais proposições sugerem uma espécie eugenia escolar? Em análise apurada ela identifica características das novas propostas educacionais e médicas nas quais a preocupação reside em identificar a origem do mal estar dos que tem dificuldade para aprender cabendo aos profissionais diagnosticar e tratar os conflitos.

A identificação da criança-problema desde esse período passa a ser uma questão de diagnóstico que chega a mobilizar educadores, psicólogos e familiares com vistas a encontrar maneiras de corrigir a situação. Com novas configurações, a questão se prolonga e hoje observa-se a pressa de identificar tais crianças agora também nas escolas do setor privado. Se antes a preocupação era mais frequente nas escolas públicas e a atenção e a avaliação psicométrica voltava-se para as pessoas / crianças de classes desfavorecidas que sendo entendidas como problemas acabavam por serem consideradas potencialmente perigosas, atualmente coincidindo com o reconhecimento dessas presenças noutras classes sociais não se fala em riscos e perigo, mas em cuidados e intervenções precoces. Apoiando-se em Foucault, a análise da autora mostra que com tais preocupações, muitas vezes excessivas, cria-se um estado de hipervigilância cujas consequências nem sempre são frutíferas. A aproximação do campo educacional com a Psicologia, historicamente observável entre nós desde finais do século XIX e intensificada nos anos descritos no livro, pode ser entendida pela vontade de superar faltas e gerir excessos que se fazem presentes na vida escolar e repercutem sobre a aprendizagem. Mas é possível perguntar-se sobre as implicações para a Psicologia de suas relações com o campo educacional. Muitos elementos contidos no estudo sobre a criança-problema potencializam as reflexões sobre tal problemática e fazem com que se ignore, muitas vezes, características e singularidades do sujeito/paciente/ aluno conforme sublinha a autora. Além disso, mesmo quando o diagnóstico e a identificação da questão se fazem de modo adequado, nota-se que isto não significa que os professores, coordenadores e agentes de ensino estejam preparados para prosseguirem a partir daí. Assim, produz-se um conhecimento ou uma informação, com relação aos quais muitas vezes não se tem uma compreensão precisa. Continua-se a não saber como agir e pode-se criar um estigma no ambiente relativamente àquela criança. Não seria o caso de responsabilizar estes profissionais (professores e funcionários) uma vez que nem sempre possuem em sua formação os requisitos para desenvolver práticas adequadas ao cuidado dessas crianças. Porém, como proceder é uma questão que permanece.

Se uma das consequências das medidas de hipervigilância é conferir, progressivamente aos sujeitos, a possibilidade de auto-observação e cuidado de si, não é certo que como medida e finalidade da educação se possa tomar o partido da observação irrestrita e panóptica. Sabemos, inclusive, o quanto uma tal educação pode acarretar de contenção e eliminação da criatividade, como se em nome da autonomia e da responsabilização individuais se sacrificasse a proliferação dos atributos inventivos mais pessoais. A reflexão proposta pelo estudo da nomeação “criança-problema” promove, de maneira potente, a articulação entre os campos educacional, histórico, psicológico, psiquiátrico e psicanalítico. E esta propriedade é a que torna a análise ainda extensiva a questões de nossa atualidade e a leitura recomendável a todos os que se interessam pela educação e pelas práticas de cuidado.

REFERÊNCIAS

LIMA, Ana Laura Godinho. A "'criança-problema" na escola brasileira - uma análise do discurso pedagógico. Curitiba: Appris, 2018. 211p. [ Links ]

1FREUD, S. Construções em análise. In: Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Moisés e o monoteísmo, esboço de psicanálise e outros trabalhos. Trad. J. Salomão. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, v.XXIII, p.289-304, [1937b], 1969, 362p.

2ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições, Clínicas e Diretrizes Diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, 352p.

3ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-V. 5ª ed. Porto Alegre: Artemed; 2013, 993p.

4LOURENÇO FILHO, M. B. Introdução ao estado da Escola Nova . São Paulo: Melhoramentos, 1978, 133p.

Recebido: 01 de Julho de 2019; Aceito: 01 de Agosto de 2019

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