Introdução
A prof.ª Marinete Gomes Bezerra (batizada com o nome Maria Nazaré Gomes) nasceu em 9 de janeiro de 1921, na cidade de Macaíba (Rio Grande do Norte), onde viveu a infância com alegria inerente a essa fase da vida. Foi a segunda filha (entre cinco irmãos, sendo três mulheres e dois homens) de Raimundo Ferreira Gomes (motorista, minimamente alfabetizado) e de Anália Martins Gomes (responsável pelos afazeres domésticos e incumbida de educar os filhos, também minimamente alfabetizada). Seu nascimento dá-se numa década de expansão das escolas primárias nas cidades, vilas, povoados, pequenos lugarejos e sítios.
Essa expansão das escolas primárias foi determinante para a ampliação das oportunidades educacionais, especialmente para a população pobre de 6 a 14 anos de idade. E isso ocorreu simultaneamente com os serviços de assistência escolar à saúde pública (assistência médica e dentária do escolar), que fizeram parte do programa de reformas socioeducativas dos governos estaduais (1908-1930), incluindo a criação da Escola Normal de Natal (Decreto n° 178, de 29 de abril de 1908). Centros de poder político, as cidades sede dos trinta e sete municípios existentes à época foram beneficiadas, em sua maioria, com a institucionalização da modalidade grupo escolar.
Foi bem na continuidade daquele programa de reformas socioeducativas dos governos do Rio Grande do Norte que a prof.ª Marinete foi matriculada, por seus pais, no Grupo Escolar “Auta de Souza”, da sua cidade natal (Macaíba), criado no governo de Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão (Decreto n° 255, de 19 de outubro de 1911) e ampliado no governo de José Augusto Bezerra de Medeiros, com o curso complementar (Decreto n° 223, de 28 de janeiro de 1924).
Em seu livro de reminiscências - Um grande amor - escrito de forma romanceada, publicado no ano em que completou oitenta e quatro anos, a prof.ª Marinete Bezerra (2005, p. 10) relata que a sua educação primária foi efetivada “[...] com seis anos de estudos profundos, tendo provas escritas e orais”. A professora Ermínia é lembrada por sua rigidez na docência; a professora Yayá, que a ensinou a ler e a escrever, é recordada por suas atitudes de carinho e de dedicação, além da visível habilidade para lidar com crianças.
A educação infantil (dois anos), a educação primária elementar (dois anos) e o curso complementar (dois anos) efetivaram-se no período de 1928 (quando ingressou na escola mista infantil, com oito anos de idade) a 1936 (quando da conclusão do curso complementar com quatorze anos de idade). Segundo ela, ter sido aprovada com distinção garantiu-lhe a matrícula na Escola Normal de Natal, sem precisar fazer provas.
Este trabalho, como um dos produtos de um projeto de pesquisa em desenvolvimento - A educação de mulheres no Brasil e em Portugal (séculos XIX e XX) -, proporcionado por um corpus documental, objetiva elucidar a dimensão teórica e a dimensão prática da formação pedagógica na Escola Normal de Natal (1936-1940) e da docência profissional da prof.ª Marinete, de modo especial, na Escola Isolada da vila de Campo Redondo (1941-1942), na Escola da Fazenda São Romão (1942-1943), no Jardim de Infância da Ilha de Fernando de Noronha (1953-1955) e no Jardim de Infância de Caicó (1960-1969).
Como contempla as dimensões teóricas e práticas da formação pedagógica e da docência profissional, tornou-se pertinente o entendimento metodológico definido por Catani (2000), para que se procedesse a uma análise simultânea das dimensões teóricas e práticas - formação e docência - nas instituições de estudo e de trabalho, e para além dos saberes disciplinares. Para Catani (2000, p. 596), de algum modo, “[...] a história da profissionalização dos professores integra a história das ciências da educação, dos saberes especializados e, consequentemente, dos veículos de divulgação”.
Formação pedagógica na Escola Normal de Natal
Terminei o curso (primário) em 1935, com quatorze anos. Pedi a papai para continuar meus estudos, pois só queria fazer o Curso Normal, uma vez que sentia verdadeira adoração por crianças [...]. O certo era que eu não queria parar de estudar, pois esse meu desejo de ser professora começou ainda bem criança, quando brincava com minhas bonecas (BEZERRA, 2005).
O relato da prof.ª Marinete, em seu livro de reminiscências, exibe o porquê de sua vontade de ingressar na Escola Normal de Natal, com a conclusão da sua primeira educação escolar: a sua adoração por crianças. Entretanto, o Regulamento da Escola Normal de Natal, vigente em 1922, previa que, no ato da matrícula (mês de janeiro), o candidato deveria ter entre 15 e 25 anos de idade. Por não se incluir nessa faixa etária e devido à possibilidade de passar o ano de 1937 sem estudar, conforme a prof.ª Marinete Bezerra (2005, p. 13), seu pai resolveu esse problema da seguinte maneira: “[...] tirou meu registro de nascimento como se eu tivesse nascido no dia nove de janeiro, pois nessa data eu já teria quinze anos e fui matriculada imediatamente”. Na sua mudança para Natal, trouxe consigo a farda da Escola Normal (costurada por sua mãe), assim descrita: “A saia azul marinho toda plissada, a blusa branca com um laço fino da mesma cor da saia, meias compridas pretas e sapatos pretos baixos.”
Entre o ano de seu ingresso (1937) e o de conclusão (1940) dos estudos, voltados à formação pedagógica para o magistério público primário, o Curso Normal de Natal estava regido pelos seguintes estatutos legais: Código de Ensino (aprovado pelo Decreto n° 261, de 28 de dezembro de 1911), Lei Orgânica do Ensino (aprovada pela Lei n° 405, de 29 de novembro de 1916) e o Regulamento da Escola Normal de Natal (aprovado pelo Decreto n° 161, de 7 de janeiro de 1922). Conforme o Código de Ensino (1916), esse curso visava formar o mestre do ponto de vista da inteligência, do coração e do caráter, com a necessária orientação técnica e profissional.
Naqueles anos (1937-1940), as finalidades da formação pedagógica dos normalistas para ensinar no magistério primário seriam, de maneira geral, alcançadas pela convergência da dimensão teórica e da dimensão prática dos programas de estudo, além das atividades instrutivas. Para conferir solidez teórica e prática à formação dos normalistas, os professores haviam de empregar os ideários da Pedagogia Nova, procedimentos e método do ensino intuitivo, observando as suas gradações e deduções semelhantes ao do ensino primário. Uma atividade instrutiva para benefício da saúde corporal e da educação dos movimentos teria sido o esporte vôlei, praticado pela prof.ª Marinete, integrante da equipe da Escola Normal de Natal e capitã do time.
Como estudante da Escola Normal de Natal, progressivamente, foi-se formando para ensinar no magistério primário, mediante a pertinência da contiguidade dos saberes específicos das disciplinas da dimensão teórica, da dimensão prática (estágios de aprender a ensinar, por exemplo) e das atividades instrutivas, assumindo a obrigatoriedade de cursar as seguintes matérias de estudo: Português, Francês, Canto Orfeônico, Matemática, Desenho, Geografia Geral e Particular do Brasil, História Geral e Particular do Brasil, Trabalhos Manuais, Economia Doméstica, Educação Física, além de História Natural, Física e Quimica, Ciências Físicas e Naturais, Pedagogia, Pedologia, Higiene Escolar e Práticas Pedagógicas. No período de 1937 a 1940, a Escola Normal de Natal foi dirigida pelos professores Antonio Gomes da Rocha Fagundes e Clementino Hermógenes da Silva Câmara.
A observação da criança no ambiente de sociabilidade escolar seria procedimento fundamental às normalistas, com o intuito de perceberem algumas de suas prontidões para os aprendizados, conjugadas com o desenvolvimento físico, estético, intelectual, moral e dos sentidos. Para a efetivação de uma educação integral da criança, o programa de Pedagogia para o terceiro e o quarto anos do Curso Normal, condensava, em grande medida, a sistematização de conhecimentos pedagógicos (e os saberes que deles emanavam em relação às metodologias e às didáticas de ensino) visando à formação completa dos normalistas para ensinar às crianças com uniformidade. A Pedagogia - diga-se, seus saberes disciplinares e seus repertórios - parecia ter como finalidade última a eficácia teórica das práticas frequentes em sala de aula. O Programa de Pedagogia projetava a formação completa do educador da criança pelo ordenamento dos seguintes estudos:
Programa de Pedagogia. 3° ANO - Pedagogia Geral. 1°) Pedagogia e ciências conexas. 2°) Educação, conceito, fins, classificação, agentes, sujeitos. 3°) Educação dos sentidos. 4°) Teorias de Pestalozzi e Spencer. 1°) Métodos de Ensino em Geral. 2°) Metodologia da Leitura. 3°) Metodologia da Escrita. 4°) Metodologia da Aritmética e da Geometria. 5°) Metodologia do Desenho. 6°) Metodologia da Língua Materna. 7°) Metodologia de Lições de Coisas. 8°) Metodologia da Geografia. 9°) Metodologia da História. 4° ANO - Didática. 1°) Instruções pré-escolares. Jardim de Infância. 1°) A educação na antiguidade ocidental. 2°) A educação nos primeiros séculos do cristianismo 3°) O renascimento e a educação do século XVIII. Rousseau. 4°) A educação do século XIX. Pestalozzi, Froebel e Herbert 5°) A educação na idade contemporânea: Europa e América. 6°) O ensino no Brasil com a República. 9°) O ensino no Rio Grande do Norte (PROGRAMA DE PEDAGOGIA, 1931-1941, p. 12-14).
Em princípio, dentre as referências teóricas para fundamentar a dimensão prática da educação da criança, reconheciam-se os ideários pedagógicos de Jean-Jacques Rousseau, Herbart Spencer, Friedrich Froebel, Johann Heinrich Pestalozzi e do padre Giord.
Por sua vez, o entusiasmo crescente pelos estudos dos saberes disciplinares mutuamente integradores da dimensão teórica e da dimensão prática, e a vontade de vencer, de crescer e de preparar o futuro profissional concorreram para que a prof.ª Marinete concluísse o Curso Normal com êxito e entusiasmo.
No Livro de registro das turmas diplomadas pela Escola Normal de Natal (1938-1944), no dia 21 de dezembro de 1940, consta que a prof.ª Maria Nazaré Gomes e mais 80 colegas normalistas (70 mulheres e 10 homens), em solenidade de colação de grau, foram diplomados no Teatro Carlos Gomes (hoje Alberto Maranhão), paraninfados pelo professor de Pedagogia, Dr. Manoel Varela de Albuquerque.
No dia 10 de janeiro de 1941, o Diretor da Escola Normal de Natal expediu o registro do Diploma da professora Maria Nazaré Gomes em vista das médias de aprovações nos quatro anos do Curso Normal (1° ano 8,8; 2° ano 8,61; 3° ano 8,90; 4° ano 9,18 e nota de aptidão pedagógica 9,0), com os direitos e prerrogativas a ele inerentes.
Iniciação ao magistério e a profissão docente
Os estudos universitários em outra cidade foram obstaculizados pelo pai, justificando dificuldades financeiras. No dia 2 de fevereiro de 1941, a prof.ª Marinete encontrava-se na vila de Campo Redondo, na condição de professora primária, concursada e aprovada, em segundo lugar, nomeada pelo sexto Interventor Federal do Rio Grande do Norte, Rafael Fernandes Gurjão, que governou o Estado por cinco anos (24 nov. 1937 a 3 jul. 1943), levando adiante o plano de expansão da educação primária para crianças, jovens e adultos no cumprimento da ampliação das oportunidades escolares.
A nomeação da prof.ª Marinete para ensinar na Escola Isolada da vila de Campo Redondo (Município de Santa Cruz) - por seu relato - trazia alegria e entusiasmo aos pais e às próprias crianças, que já queriam saber o dia da matrícula. Em dois dias, 100 crianças foram matriculadas para estudar em dois turnos. No dia 8 de fevereiro de 1941 - “com a cabeça cheia de teoria, mas sem nenhuma prática de ensino” -, junto com uma auxiliar, estreou a docência numa sala de aula com 50 crianças (no turno da manhã) e, igualmente, 50 crianças (no turno da tarde), com apenas uma mesa que servia de birô e uma única cadeira; não havia carteiras para as crianças. Elas traziam de casa tamboretes, caixões, latas de querosene vazias, que serviam de assento. O importante, para elas, era o aprendizado da leitura e da escrita, independentemente de suas carências materiais. Paulatinamente, a sala de aula da Escola foi-se aprimorando com a ajuda do povo da cidade.
No mês de maio, a Escola Isolada recebeu a visita de um Inspetor de Ensino, para observar os métodos e os processos de ensino adotados pelas professoras em sala de aula. A prof.ª Marinete Bezerra (2005, p. 18) assim ilustrou a visita protocolar de um inspetor de ensino: “Recebi a visita do Inspetor de Ensino o qual achou tudo em perfeita ordem e me deu os parabéns e elogios por se tratar de uma pessoa recém-formada. Fiquei feliz e esse elogio foi para o Departamento de Educação.”
À época, havia a exigência de ensinar as crianças a aprender pelo método de ensino intuitivo, preconizado pela Pedagogia Nova; mas também era necessário educá-las pela interação com a comunidade local da pequena vila de Campo Redondo, por meio da socialização das festas escolares. No final do ano letivo de 1941, a prof.ª Marinete planejou uma festa escolar para socializar os aprendizados artísticos e escolares das crianças, seus alunos. Aliás, essa era uma das responsabilidades pedagógicas da professora primária.
Em junho do ano seguinte (1942), por designação do Diretor do Departamento de Educação (prof. Antonio Fagundes), ela foi removida da Escola Isolada da vila de Campo Redondo para a Escola da Fazenda São Romão (pertencente ao município de Angicos), propriedade de um inglês, e localizada na sua própria residência, onde ela passou a residir junto à família (mister Kinkler e a senhora Juraci) e uma colega professora de nome Creuza. Ela seria a diretora e a professora da 3ª e 4ª séries primárias, enquanto Creuza seria a professora da 1ª e 2ª séries primárias.
No cumprimento de seus deveres de diretora e de professora da Escola da Fazenda São Romão, imediatamente, inspecionou os dois salões da residência, designados para sala de aula, a fim de observar se era bem arejada e confortante, satisfazendo aos requisitos pedagógicos preceituados pela Pedagogia Nova. No dia seguinte, após um comunicado para as mães das crianças da Fazenda, procedeu à matrícula e à elaboração do plano de aula semanal. O início das aulas ocorreu sem nenhuma dificuldade. Em sua percepção, estava tudo em ordem.
O mobiliário era todo novo e não faltava nada. Encontramos mapas do Brasil, do Rio Grande do Norte, globos, figuras geométricas, tímpano, escrivaninhas, quadros-negros, réguas, enfim tudo na mais perfeita ordem. Ficamos sensibilizadas com tanta organização, ficamos radiantes (BEZERRA, 2005, p. 75).
No ano de 1947, por quase dois anos de licença (casamento, nascimento da primeira filha) reassumiu a docência no Grupo Escolar “Frei Miguelinho”, da cidade de Natal, substituindo uma professora do segundo ano primário, que havia solicitado licença, para depois entrar em licenças especiais, pelo nascimento sucessivo de três filhas e um filho e devido à sua mudança para o Rio de Janeiro. No retorno para Natal (1952), foi designada pelo Diretor do Departamento de Educação para trabalhar no Jardim de Infância Modelo, localizado na Av. Rio Branco, onde ficou por pouco tempo devido ao nascimento de mais uma filha.
Em novembro de 1952, devido à transferência do esposo (Sargento Arnaldo para o 30° Batalhão do Exército da Ilha de Fernando de Noronha), solicitou ao governador (por meio de sua esposa) a criação de um Jardim de Infância para exercer a sua docência, haja vista o fato de ser especialista em educação infantil. Um salão vizinho ao Grupo Escolar foi reformado e destinado ao primeiro Jardim de Infância da Ilha de Fernando de Noronha.
No salão do Jardim de Infância, bem arejado - segundo seu relato, foram instalados banheiros, sanitários e pias (baixinhas), além de mesinhas com cadeirinhas e prateleiras. Em janeiro (1953), teve início a matrícula, na sua própria residência, totalizando 48 crianças de 4 e 5 anos, que iriam frequentar no turno da manhã e da tarde, recebendo, inclusive, gratuitamente, fardas, sapatos e meias. Na quarta-feira de cinzas, desse mesmo ano, houve a inauguração solene do Jardim de Infância, com a presença das crianças matriculadas e seus respectivos pais; o governador e a esposa; além das professoras do Grupo Escolar e convidados.
No seu discurso, a prof.ª Marinete demonstrou o entendimento conceitual da dimensão teórica e da dimensão prática de ensinar a criança a aprender na educação pré-primária, fazendo menção, segundo Fernandes (2018), aos ideários das pedagogias ativas formuladas por Friedrich Froebel, Maria Montessori, John Dewey e Jean-Óvide Decroly, de cujas concepções decorreram os saberes especializados difundidos por meio dos manuais pedagógicos das professoras, formadoras de educadores da infância, Heloísa Marinho e Nazira Féres Abi-Sáber.
Ao destacar, em seu livro de reminiscências, citações da obra O que é jardim de infância, de autoria Nazira Abi-Sáber (1965), a prof.ª Marinete Bezerra evidencia, tal como fez em seu discurso, que a convergência da dimensão teórica e da dimensão prática de ensinar com os saberes formativos da Pedagogia Nova e do método do ensino intuitivo decorreria, fundamentalmente, do trabalho pedagógico eficiente das professoras, numa alusão à própria Abir-Saber como visto a seguir:
Convém lembrar às professoras três deveres fundamentais: 1 - Tornar felizes todas as crianças levando-as a viver e conviver com as pessoas que as rodeiam dentro das normas e princípios cristãos de cooperação e compreensão. 2 - Reconhecer que um programa de Jardim de Infância só poderá ser completo se incluir muitas atividades preparatórias que facilitem o trabalho da criança na sua aprendizagem futura. É evidente que o programa de Jardim, quando rico de experiências e de boas situações de aprendizagem, é um excelente meio de preparar a criança para aprender [...]. 3 - Dar ensejo à atividade criadora e espontânea através da expressão artística (ABI-SÁBER, 1965, p. 27).
À época, na educação pré-primária, ministrada em Jardim de Infância, orientada, entre outros, pelos saberes da Pedagogia Nova sistematizados por John Dewey, a criança seria o ponto de partida, o centro e o fim do processo educativo de interação e reconstrução das experiências individuais e sociais. Em referância no universo infantil, entendia que, por um lado, devia de cercar-se de alegria, de interesse, de imaginação e de espontaneidade. Por outro lado, devia contar com as experiências formativas das professoras para conduzir as atividades de ensino, combinadas com as situações de aprendizagens em contato com brinquedos, jogos e com ocupações variadas, segundo a unidade da vida da criança e dos laços afetivos, emocionais e práticos como um todo. A finalidade de aprender e a aquisição dos aprendizados escolares seriam, então, determinadas pela criança, posto que, para Dewey,
a quantidade e a qualidade do ensino, a criança é que as determina e não a disciplina a estudar. Nenhum método tem valor a não ser o método que dirige o espírito para sua crescente evolução e progressivo enriquecimento. A matéria em estudo nada mais é do que o alimento espiritual (DEWEY, 1978, p. 46).
No plano da dimensão teórica e da dimensão prática de ensinar a criança a aprender na educação pré-primária, mediante os saberes formativos da Pedagogia Nova e de seu método do ensino intuitivo, é possível afirmar que as professoras do primeiro Jardim de Infância da Ilha de Fernando de Noronha possuíam esse capital cultural? Do ponto de vista da difusão da Pedagogia Nova no Brasil, estava-se num período de aceitação estável.
Se os saberes formativos da Pedagogia Nova e de seu método do ensino intuitivo propiciavam repertórios, preceitos, procedimentos e roteiros, visando conduzir a educação pré-primária da criança de 4 e 5 anos, a prof.ª Marinete, seja nas reuniões com as professoras para planejamento das aulas semanais, seja nos encontros de treinamentos, decerto, estava formando as professoras daquele primeiro Jardim de Infância de Fernando de Noronha, mediante a lógica instrutiva da dimensão teórica da educação pré-primária. Para o êxito das atividades de ensino, combinadas com as situações de aprendizagens, pedia atenção e elegia, mais uma vez, as teorizações de Abi-Sáber:
Às professoras do Jardim de Infância cabia conhecer a capacidade de cada criança, seus desejos e interesses, e, baseadas nisso, organizar um programa que satisfaça às reais exigências infantis, dando aos alunos a possibilidade de adquirir as habilidades, os hábitos e principalmente, as atitudes indispensáveis a um completo e harmonioso ajustamento emocional e social (ABI-SÁBER, 1965, p. 27).
A dimensão prática (orientada pelo procedimento do método do ensino intuitivo), as atividades de ensino, combinadas com as situações de aprendizagens, por um lado, satisfariam os desejos, os interesses e as curiosidades do universo infantil; por outro lado, propiciariam habilidades, hábitos e atitudes indispensáveis a um completo e harmonioso ajustamento emocional e social. A par dessa dimensão prática, a prof.ª Marinete continuava refletindo com base naquela literatura de autoria de Abi-Sáber, que assim concebia as partilhas em sala de aula:
Experiências de respeitar os direitos e opiniões de seus semelhantes e desenvolver o interesse pelo bem-estar de todos [...]; exercitarem oportunidades variadas de expressão espontânea, livre, fácil e clara (através da linguagem da pintura, desenho, atividades manuais, música, canto, movimentos rítmicos, dança, etc.); oportunidades de aceitar responsabilidades e conquistar independência. Tornar assim felizes todas as crianças, levando-as a viver e conviver com as pessoas que as rodeiam (ABI-SÁBER, 1965, p. 26-27).
Entre dezembro de 1955 (quando foi residir com a família em João Pessoa) e julho de 1959 (quando o tenente Arnaldo foi transferido para o 1° Batalhão de Engenharia de Construção de Caicó), ela permaneceu de licença das atividades docentes em razão do nascimento do sexto filho (1958). Além disso, foi designada, mediante Portaria do Secretário de Estado de Educação e Cultura, prof. Grimaldi Ribeiro de Paiva, para ensinar no Grupo Escolar “Senador Guerra”, de Caicó.
Na cidade de Caicó (agosto de 1959), ao ser apresentada ao diretor do Grupo Escolar “Senador Guerra”, prof. Raimundo Guerra, assim se pronunciou: “A minha especialidade é Jardim de Infância; faz muito tempo que trabalho com crianças de quatro, cinco e seis anos.” O prof. Raimundo Guerra respondeu-lhe: “Mas aqui não existe Jardim de Infância mantido pelo Estado. Só existe um Jardim particular, que funciona no Colégio Santa Terezinha.” E completou: “A senhora vai lecionar numa classe do 2º ano, com alunos de 12 e 13 anos, que, aliás, estão precisando de professora.” Em seu livro de reminiscências, anotou o seu primeiro dia de aula no Grupo Escolar “Senador Guerra”:
Jamais vou esquecer o meu primeiro dia de aula com os alunos do 2º ano. Quando entrei na classe com 30 alunos, vi quase todos gritando: ‘Bom dia, professora’, batendo nas carteiras, falando alto. Eu fiquei minutos parada, olhando, observando cada um, sem poder falar de tanta emoção diferente [...]. Sei que os alunos notaram a minha perturbação, a minha angústia por mais que eu me esforçasse para ficar alegre e feliz (BEZERRA, 2005, p. 543).
Em 4 de abril de 1960, o governador Dinarte de Medeiros Mariz fez a abertura oficial do Centro de Formação do Magistério Primário de Caicó (onde iria funcionar o Jardim de Infância), que tinha a seguinte composição, de conformidade com a Lei n° 2.639, de 28 de janeiro de 1960: Jardim de Infância; Escola de Aplicação e Artesanato; Colégio Estadual e Curso Pedagógico.
O Jardim de Infância, um dos níveis de ensino do Centro Educacional de Formação do Magistério Primário de Caicó (posteriormente, Instituto de Educação), consoante a Reforma da Educação Elementar e Normal, era ordenado pela Lei nº 2.171, de 6 de dezembro de 1957, que organizou e fixou as bases da Educação Elementar e da Formação do Magistério Primário. Orientadas pelo Regulamento do Ensino Primário e Normal do Rio Grande do Norte, de 1º de fevereiro de 1960, as atividades dessa Escola Infantil visavam despertar e desenvolver, livremente, as aptidões da criança.
Como não poderia ser diferente, a prof.ª Marinete foi designada por Portaria do Secretário de Estado de Educação e Cultura, como a primeira diretora do Jardim de Infância do Centro de Formação do Magistério Primário de Caicó, cargo que ocupou até ano de 1969, sendo imediatamente convocada pelo então diretor do Instituto de Educação, Cônego José Celestino Galvão, “para entregar um relatório de tudo o que precisava” nessa Escola Infantil.
A princípio, segundo Fernandes (2018), o Jardim de Infância fundamentar-se-ia em uma concepção de criança e de atividade infantil consoante às tendências naturais e espontâneas da primeira infância para que agisse ativa e inteligentemente no ambiente do convívio social comunitário, conforme almejou Friedrich Froebel (1897) ao sistematizar os modos de ensinar e educar de seu Kindergarten, assim como o fez John Dewey (2002) no Jardim infantil de sua Escola Laboratório.
No edifício do Instituto de Educação, construído no bairro Penedo, cada nível de ensino correspondeu a um ambiente próprio nomeado “Bloco”. O Jardim de Infância localizava-se no “Bloco IV”, propício às atividades das crianças, com uma grande área externa, dotada de parque infantil e, no interior, o pavilhão destinado às turmas de 4°, 5° e 6° anos, com instalações sanitárias apropriadas às idades das crianças alunas. Tudo voltado à satisfação da criança. Bem em sintonia com o que preconizava Anísio Teixeira (1978, p. 53): “A criança é a origem e o centro de toda atividade escolar [...]”. O Jardim de Infância de Caicó, desde a matrícula das crianças, ordenou-se como uma escola da e para a infância.
O Programa de Atividades do Jardim de Infância em sua dimensão teórica - pela pesquisa de Fernandes (2018) -, valorizando as finalidades sociais atribuídas à escola infantil por John Dewey e Anísio Teixeira, e os saberes escolares, de acordo com os centros de interesse por Jean-Ovide Decroly, privilegiou os saberes das Ciências Naturais e dos Estudos Sociais para ensinar às crianças, atividades formativas (hábitos e atitudes de higiene pessoal e boas maneiras, integração e convivência social); Linguagem (oralidade, leitura, composição criadora, coordenação viso-motora, e expressão escrita); Matemática (formas geométricas, conjuntos, estudo do número e numerais); Ciências Naturais (noções relativas ao corpo da criança, ao tempo, à observação e à experimentação do meio natural) e Estudos Sociais (noções sobre a vida da criança na escola e na família, lateralidade, civismo e datas comemorativas).
Ademais, privilegiou atividades com jogos e recreação (jogos de movimento, imaginação e instrução); atividades manuais e artísticas (estudo das cores, desenho livre e dirigido, picotagem, recorte e colagem, pintura a dedo e a pincel, dobradura, mosaico de cores e colagem de sementes) e atividades festivas (momento de apresentação de poemas, cantos e dramatizações de histórias infantis). A Festa da Formatura do ABC, com a presença de familiares, além de autoridades políticas, religiosas, educacionais reafirmava o Jardim de Infância como uma escola da e para infância.
No plano da dimensão prática, mais propriamente, a prof.ª Marinete, em conjunto com as primeiras educadoras dessa Escola Infantil (Maria Dulcinete da Silva, Ivanice dos Santos, Elita de Araújo, Vera Lúcia Medeiros Vale, Maria Damiana de Jesus, Terezinha Medeiros, Maria Odete Diniz, Nilza de Oliveira, Josefa Maria da Soledade, Crezinha Medeiros, Estelita Dantas, e Maria do Socorro Bezerra), planejou um horário escolar com cinco etapas constitutivas: i) 7h30-8h30 (atividades de rotina: formação de fila, oração, canto, leitura do tempo, estudo do calendário e chamada); ii) 8h30-9h10 (trabalhos formais e artísticos: hora das comunicações e atividades relacionadas); iii) 9h10-10h40 (merenda, higiene dentária, recreio e repouso); iv) 10h40h-11h20 (trabalhos formais e artísticos: hora das comunicações e atividades relacionadas) e v) 11h20- 11h30 (preparação para a saída).
A partir do Programa de Atividades, a prof.ª Marinete e as primeiras educadoras, por um lado, trabalhavam com o entendimento de Maria Montessori (1965, p. 183-184, grifos da autora), de que a criança, para escrever, necessitava “[...] realizar duas espécies diferentes de movimentos: aquele que reproduz a forma, e aquele pelo qual se maneja o instrumento”. Por outro lado, trabalhavam com o “ABC das coisas”, sistematizado por Froebel (1897; 1902), que “ensina e educa desenvolvendo”, mediante a observação do material, a discriminação de propriedades, a síntese e a expressão em formas de vida, beleza e conhecimento.
No plano da dimensão teórica e da dimensão prática, ganhariam relevância as orientações de Abi-Sáber (1963) para o desenvolvimento das atividades de prontidão (o desenho e o contorno de figuras geométricas, numerais, letras do alfabeto), aprendidas pelas crianças no chão, no quadro e nos cadernos de atividades.
A prof.ª Marinete e as primeiras educadoras dessa Escola Infantil, para ensinar a criança a aprender buscavam selecionar um material didático estritamente em consonância com a concepção de criança e de atividade infantil e segundo a literatura pedagógica orientadora. Nesse sentido, as crianças faziam uso da cartilha do ABC; do lápis comum com borracha; da coleção de lápis colorido; do caderno de desenho, do caderno de desenho que utilizava pincel e água para pintar a figura; caderno de cobrir letras, números, linhas e círculos. A criança-aluna deveria possuir uma “mochila de pano” de cor branca, em combinação ao uniforme escolar, que correspondia a uma camisa branca, bermuda azul, meias brancas e sapatos pretos - para os meninos; e a um vestido “tipo bata”, em tecido quadriculado de azul, com bolso grande frontal, contornado com bico e cambraia bordada, para as meninas.
No término da década de 1960, a família veio morar em Natal devido à continuidade dos estudos dos filhos. No início do ano de 1970, foi designada a dirigir o Jardim de Infância Anfilóquio Câmara, do Instituto Padre Miguelinho, localizado no bairro Alecrim. No ano de 1971, aposenta-se, após 30 anos no exercício da docência. Sentia-se feliz por haver cumprido o seu dever, em favor de uma causa tão nobre: a Educação. Essa história já fazia parte de sua vida docente profissional. Aliás, da dimensão teórica e da dimensão prática, da sua formação pedagógica e da docência profissional de educadora de criança.
Conclusão
Os professores da Universidade de Genebra, da Equipe de Pesquisa da História Social da Educação, Rita Hofstetter e Bernard Schneuwly (2017), considerando o objeto - educação, formação e ensino nas suas pesquisas empíricas relativas às ciências da educação e às didáticas das disciplinas - observaram que, devido à consolidação dos sistemas educativos em cada nação, a formação dos profissionais da educação, que se multiplicavam e se especializavam, produziria, portanto, uma incessante (re)organização disciplinar (diga-se dos saberes escolares por meio dos programas de ensino) e, igualmente, das didáticas das disciplinas dirigidas para o savoir-faire, além da teorização desse savoir-faire.
Doravante, a dimensão teórica e a dimensão prática da formação pedagógica e da docência profissional encontram-se consubstancialmente interligadas, mediante a pertinência dos domínios das ciências da educação e das finalidades pedagógicas de cada instituição escolar, orientadas pelas demandas socioprofissionais, que se renovam incessantemente. Pelas análises de Hofstetter e de Schneuwly (2017, p. 118), nessa infraestrutura institucional, reside a intenção de disciplinar e de socializar modos de pensar, de fazer e de agir, “[...] que constituem os alicerces culturais da sociedade”.
Guardadas as particularidades do aparato institucional do sistema escolar de formação de professores para a educação da criança, o estatuto dos saberes disciplinares (os saberes formativos e os saberes didáticos para ensinar com método), estar-se-ia no centro da dimensão teórica e da dimensão prática da formação pedagógica e da docência profissional. Do ponto de vista de uma e outra dimensão, é possível dizer que o conhecimento das ciências da educação interfere, em larga medida, por meio de uma literatura pedagógica, no ato de educar, de ensinar, de socializar e de formar. Enfim, por empréstimo de Boto (2004, p. 59), pode-se dizer que essa literatura é portadora de um discurso científico que vai se deslocando em direção aos “[...] rituais e aos procedimentos internos da escola: em sua rotina, em seus fazeres, em seus saberes”.
Nesse sentido, a dimensão teórica e a dimensão prática da formação pedagógica e da docência profissional da prof.ª Marinete efetuaram-se pela interlocução com uma literatura institucionalizada das ciências da educação. Por conseguinte, a formação pedagógica e a docência profissional da prof.ª Marinete Gomes Bezerra culminaram na complexidade de uma formação relativamente completa para efetivar a educação integral da criança-aluna da escola pública.