SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.19 número3Nuevas performances públicas. Los clubes Atléticos y la educación del cuerpo (Rio de Janeiro, 1884-1889)Reglamentación de la Instrucción Pública y Particular en el Municipio de Monte Carmelo, Minas Gerais, Brasil (1892) índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.19 no.3 Uberlândia set./dic 2020  Epub 26-Oct-2020

https://doi.org/10.14393/che-v19n3-2020-24 

ARTIGOS

O Canto Orfeônico na escola republicana brasileira e suas influências europeias (1890-1931)

El Canto Orpheonic en la escuela republicana brasileña y sus influencias europeas (1890-1931)

1Instituto Federal do Paraná (Brasil) juniorlem@gmail.com


Resumo

Este artigo tem por objetivo discorrer sobre o ensino do Canto Orfeônico na legislação brasileira entre 1890 e 1931 e sua relação com o ensino de Canto Orfeônico surgido na Europa ainda no século XVIII. Utiliza-se como fontes, as legislações escolares como as reformas de ensino de Benjamin Constant (1890) e de Francisco Campos (1931), assim como alguns artigos publicados por educadores como Veríssimo de Souza (1907; 1910) e Chasteau (1899). Somam-se às fontes, pesquisas de autores como Contier (1998), Souza (2000), Jardim (2003; 2006; 2009) e Gilioli (2008). O artigo está dividido em duas partes. A primeira parte investiga as relações entre a prática orfeônica brasileira e a europeia. A segunda aborda as características do Canto Orfeônico. A influência do orfeonismo praticado na Europa tornou-se definitiva para a realidade brasileira.

Palavras-chave: História da educação; Educação musical; Arte educação

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir la enseñanza del Canto Orpheonic en el derecho brasileño entre 1890 y 1931 y su relación con la enseñanza del Canto Orpheonic surgido en Europa todavía en el siglo XVIII. Se utiliza como fuentes, la legislación escolar como Benjamin Constant reformas de la educación (1890) y Francisco Campos (1931), así como algunos artículos publicados por educadores como Veríssimo de Souza (1907; 1910) y Chasteau (1899). Añadido a las fuentes, los autores de la investigación como Contier (1998), Souza (2000), Jardim (2003; 2006; 2009) y Gilioli (2008). El artículo se divide en dos partes. La primera parte investiga la relación entre la práctica orfeónica brasileña y europea. El segundo aborda las características del Canto Orpheonic. La influencia del Canto Orpheonic practicado en Europa se convirtió en definitiva a la realidad brasileña.

Palabras clave: Historia de la educación; Educación musical; Educación artística

Abstract

This article aims to discuss the teaching of Orpheonic Singing in Brazilian legislation between 1890 and 1931 and its relation to the teaching of Orpheonic Singing that emerged in Europe in the 18th century. School legislations such as the educational reforms of Benjamin Constant (1890) and Francisco Campos (1931) are used as sources, as well as articles published by educators like Veríssimo de Souza (1907; 1910) and Chasteau (1899). Researches of authors such as Contier (1998), Souza (2000), Jardim (2003; 2006; 2009), and Gilioli (2008) are also used. The article is divided into two parts. The first part investigates the relationship between Brazilian and European Orpheonic practices. The second investigates the characteristics of Orpheonic Singing. The influence of the Orpheonic Singing practiced in Europe became definitive for Brazilian culture.

Keywords: History of education; Music education; Artistic education

Introdução

O ensino de Música e Canto Orfeônico esteve presente na legislação educacional brasileira desde o início do período republicano, porém, seu desenvolvimento na escola ocorreu principalmente após a década de 1930, quando o maestro, músico e compositor Heitor Villa-Lobos apresentou seu projeto de inclusão do ensino de canto orfeônico nas escolas brasileiras para o então presidente Getúlio Vargas.

Este artigo tem por objetivo discorrer sobre o ensino do Canto Orfeônico na legislação brasileira entre 1890 e 1931 e sua relação com o Canto Orfeônico surgido na Europa ainda no século XVIII. Utilizam-se como fontes, as legislações escolares como as reformas de ensino de Benjamin Constant (1890) e de Francisco Campos (1931), assim como alguns artigos publicados por educadores como Veríssimo de Souza (1907; 1910) e Chasteau (1899). Somam-se às fontes, pesquisas de autores como Contier (1998), Souza1 (2000), Jardim (2003; 2006; 2009) e Gilioli (2008). O artigo está dividido em duas partes. A primeira parte investiga as relações entre a prática orfeônica brasileira e a europeia. A segunda aborda as características do Canto Orfeônico.

O Canto Orfeônico na Escola Republicana Brasileira

Foi no ano de 1854 que se instituiu oficialmente o ensino de Música nas escolas públicas brasileiras, e apenas em 1890, por meio do Decreto n.º 981 de 8/11/1890, conhecido como Reforma de Benjamin Constant, é que se passou a exigir legalmente a formação específica para o professor de Música. A legislação previa que músicos preparados em conservatórios pudessem lecionar, uma vez que não haviam cursos específicos para a formação de professores de Música.

A Reforma de Benjamin Constant foi formulada sobre os ideais da recém-formada República, e foi nela que surgiu pela primeira vez o termo “ensino moderno” na legislação educacional brasileira (JARDIM, 2003). Surgiu também a inclusão do ensino de Música em todos os níveis de ensino. A relação entre o período republicano e a educação musical não era uma coincidência, uma vez que o Brasil importava algumas ideias do ensino de Canto Orfeônico, que já se encontrava bem desenvolvido em vários países europeus desde o início do século XIX. A ideia da criação de orfeões teve sua origem na França no período da Revolução Francesa. Segundo Teo (2014, p.185):

Inspirados em Rousseau - para qual a música, linguagem das paixões, era símbolo de uma ordem coletiva utópica estabelecida pela emoção coletiva -, os homens da Revolução Francesa fizeram dos hinos e do canto coletivo elementos essenciais das celebrações republicanas.

Apesar de o Canto Orfeônico estar presente desde o tempo da revolução francesa, o termo orphéon surgiu apenas em 1831, quando Louis Bocquillon-Wilhem criou sob sua direção, um grupo coral sem acompanhamento instrumental na cidade de Paris. Após seu aparecimento institucional na década de 1830, o Canto Orfeônico apresentou uma tendência contínua de expansão na França durante as décadas seguintes. Na década de 1840, os métodos didáticos de canto ganharam espaço e importância no âmbito educacional. Após o golpe de estado de 1851, e como consequência o início do Reinado de Napoleão III, houve uma expansão do orfeonismo, acrescentando a ele, um acentuado caráter político-monumental. Deve-se levar em conta que o caráter político e propagandístico da música e especialmente do canto, já havia se tornado notório desde a Revolução Francesa (GILIOLI, 2008).

Os orfeões surgiram com outras denominações, por quase toda a Europa e EUA. Na Alemanha, foi criada em Berlim no ano de 1809, a primeira Liedertafel, correspondente alemã dos orfeões franceses. No ano de 1815, surgiram grupos em Leipzig e Frankfurt. Na Espanha, o primeiro orfeão formado por operários, foi criado em 1851 pelo músico catalão José Anselmo Clavé (1824-1874). Na Inglaterra, formaram-se os Glee. Nos Estados Unidos, foram criados os Apollo Clubs, a partir da década de 1870. Existiram orfeões na Prússia, Hungria, Portugal, Canadá, entre outros (GILIOLI, 2008).

Após a Proclamação da República, o governo brasileiro procurou se aproximar da realidade de outros países republicanos europeus. Sendo assim, o ensino de Música foi incluído na primeira reforma educacional pós-república realizada no país. Porém, apesar da reforma prever o ensino de Música em todos os níveis de ensino, nota-se que as primeiras investidas na educação musical estavam quase sempre relacionadas à escola primária. Defendia-se o ensino de Música, amparado pela prática importada do canto coletivo, considerado como um elemento socializador e civilizador por natureza, uma vez que o resultado da execução dependia do ato do coletivo, o que mantinha sincronismo com os ideais de construção da nação republicana. A inclusão da Música na escola primária foi encontrada de maneira efetiva no estado de São Paulo, desde a promulgação do Decreto n.º 27 de 12/3/1890, da Reforma Caetano de Campos, o que fez com que este estado se tornasse um dos pioneiros no ensino de Música no Brasil. Destaca-se nesse cenário que:

A escola primária republicana instaurou ritos, espetáculos, celebrações. Em nenhuma outra época, a escola primária, no Brasil, mostrara-se tão francamente como expressão de um regime político. De fato, ela passou a celebrar a liturgia política da República; além de divulgar a ação republicana, corporificou os símbolos, os valores e a pedagogia moral e cívica que lhe era própria. Festas, exposições escolares, desfiles dos batalhões infantis, exames e comemorações cívicas constituíram momentos especiais na vida da escola pelos quais ela ganhava ainda maior visibilidade social e reforçava sentidos culturais compartilhados. Eles podem ser vistos como práticas simbólicas que, no universo escolar, tornaram-se uma expressão do imaginário sociopolítico da República (SOUZA, 1998, p. 241).

Inspirado na legislação nacional e na realidade paulista na qual as escolas primárias destacavam-se na propagação dos ideais da República, foi encontrada no Paraná uma defesa pela inclusão do ensino de Música nas escolas primárias por meio de um texto publicado na revista A Escola, no ano de 1907, escrito pelo professor de História, Veríssimo de Souza. O educador destacava que a inclusão da música ocasionaria na escola primária, a vantagem de: “[...] suavizar as agruras do trabalho mental a que se entregam quotidianamente as crianças, durante cinco horas, esforço que debilita as suas energias, ainda embrionárias” (V. SOUZA, 1907).

Para Veríssimo de Souza, a Música, representada pelo canto, era capaz de equilibrar as atividades na escola, pois seu caráter lúdico fazia um contrabalanço ao trabalho intelectual. Veríssimo de Souza introduzia a defesa da educação musical como forma de “descanso” nas escolas primárias do Paraná, o que não era uma novidade para época, conforme relata Rosa Fátima de Souza em seu estudo sobre a implantação da escola primária graduada paulista, no período de 1890 a 1910:

Para manter-se um equilíbrio entre a atividade e a atenção que as crianças têm de manter, os exercícios eram geralmente intercalados de marchas entre bancos, de canto ou de ginástica, que constituem verdadeiros períodos de recreio, em que as crianças descansam o espírito, predispondo-se para novos exercícios (SOUZA, 1998, p. 58).

A relação do ensino de Música com a função de “descanso do espírito” mostra como a escola era pensada enquanto importante veículo de formação harmônica entre o intelectual e o físico. Porém, havia uma função moral relacionada ao ensino de Música. Isso é percebido, por exemplo, na obra intitulada Lições de Pedagogia, do pedagogo francês Chasteau (1899, p.370), publicada no ano de 1899:

sob o ponto de vista moral, a música apresenta, para a juventude, uma poderosa couraça contra os perigos doutros prazeres, e isto pelo sentimento puro e elevado que ela cultiva. Finalmente sob o ponto de vista disciplinar, o canto que acompanha as marchas, os exercícios, as saídas e as entradas dos alunos, impede a desordem e o tumulto, ao mesmo tempo que ministra um alimento salutar à actividade nativa dos alunos, distraindo-os, alegrando-os, facilitando-lhes poderosamente o seu trabalho. É por isso que até o ensino de gimnástica costuma ser acompanhado dum canto bem ritmada.

A semelhança entre os relatos de Chasteau e Veríssimo de Souza na questão do canto ritmado, das marchas, da ginástica não se dá ao acaso. Os pedagogos europeus tornavam-se referências. A Música assume abertamente uma função de controle tanto no discurso de Chasteau, quanto no discurso de Veríssimo de Souza, pois poderia oferecer a elevação espiritual por meio de um ensino recreativo, capaz de distrair e alegrar os estudantes, contendo a energia dos mesmos.

Assim como os demais pontos de semelhança, essa relação do canto como forma de controle de comportamento, também tinha sua origem no início do século XIX no continente europeu. Segundo Gilioli (2008), o famoso ditado “quem canta seus males espanta” era originário de um resumo do texto do compositor francês Halévy, no qual afirmava que o canto era capaz de espantar os males, ou seja, comportamentos considerados impróprios para a sociedade, tais como o ócio, a revolta contra a exploração, a percepção da divisão de classes, a desobediência, a crítica em relação às forças militares, a descrença em Deus e até mesmo, as enfermidades. Halévy aconselhava praticar o canto coletivo amador como forma de suavizar as pressões do ambiente social e cotidiano das fábricas, das Forças Armadas e da vida religiosa (GILIOLI, 2008).

Para isso, a prática do canto deveria ser prazerosa. Por esse motivo, o professor Veríssimo de Souza defendia o canto na escola por esse viés, uma vez que acreditava que, para um melhor desenvolvimento do aluno em sala de aula, era necessário que a escola primária oferecesse disciplinas que trabalhassem com o lúdico, além daquelas de caráter científico:

Sou pelo ensino da musica em as escolas primarias, não pelo ensino completo da arte, e menos ainda pelos péssimos compêndios que conheço, em que já na 2.ª lição se ensinam os modos maior e menor, quando um aprendiz nem faz idéia do que é um fá sustenido [...] ensinada de modo recreativo nos intervalos de outras lições, não só é de mui fácil aprendizagem como também é atraente. [...] Os cânticos, principalmente marciais, devem ser usados freqüentemente, como exercícios estáticos e como incitamento ao civismo’ (V. SOUZA, 1910).

Veríssimo de Souza solicitava um ensino de Música voltado ao aspecto lúdico, o que não significava abandonar a teoria musical e iniciar um ensino baseado na improvisação. Isso fica claro quando critica os livros didáticos ao afirmar “[...] que já na 2.ª lição se ensinam os modos maior e menor, quando um aprendiz nem faz idéia do que é um fá sustenido” (V SOUZA, 1910). A crítica vai contra a forma, a velocidade e a frieza dos métodos contidos nos livros didáticos, que não levavam em consideração a idade e a realidade dos estudantes brasileiros. O autor defendia métodos adequados aos pequenos e à realidade da escola pública. Veríssimo de Souza demonstrava estar familiarizado com o método intuitivo2 para o ensino de Música desenvolvido em São Paulo, que por sua vez, fundamentava-se em teorias de ensino importadas da Europa e Estados Unidos. De acordo com Jardim (2003, p. 6), o método de ensino musical desenvolvido por João Gomes Junior no início do século XX, por exemplo, mantinha estreitas relações com os princípios aplicados por Pestalozzi:

A aplicação dos princípios de Pestalozzi nos métodos de ensino para a música torna-se evidente durante todo o período. Os métodos encontrados, nesta pesquisa, formam um conjunto coeso, pois evidenciam grande proximidade de pressupostos metodológicos, apresentando-se como desdobramentos ou complementos, uns dos outros, além de terem sido elaborados e organizados por, praticamente, um único autor - João Gomes Jr., cuja obra deixa clara a sua posição de destaque como representante do movimento do ensino musical, em São Paulo.

Os ideais republicanos perpetuavam-se nos posicionamentos de Veríssimo de Souza, que aliava o ensino de Música aos ideais cívicos, enaltecendo os cantos marciais que também assumiam, na opinião do autor, uma função estética.

Um aspecto interessante a destacar, vem a ser o fato de Veríssimo de Souza ser professor de História, o que demonstra o reconhecimento da importância do ensino de Música para além da área musical. Porém, ressalta-se que o ensino de Música não era uma exclusividade da área, pelo contrário, na França os autores das primeiras canções orfeônicas:

Béranger (que escrevia as letras) e Gallin não eram compositores ou educadores musicais, mas professores de primeiras letras e de matemática, respectivamente os dois principais códigos escritos que a instrução pública do século XIX queria ensinar aos alunos (‘ler, escrever e contar’). A essa tríade, acrescentava-se o ‘ler partitura’, intimamente ligado aos demais. [...] Entre os primeiros educadores musicais franceses, apenas Wilhem era músico de formação [...] (GILIOLI, 2008, p. 55).

O interesse de professores de diversas áreas pela educação musical foi notável. Muitos dos compositores do Canto Orfeônico não eram músicos de ofício e a defesa desse ensino ecoou nos defensores de uma “pedagogia moderna”. A inclusão de disciplinas como Desenho, Música e Educação Física nos currículos escolares brasileiros, fizeram com que essas disciplinas simbolizassem aquilo que havia de mais moderno na educação, já que na Europa, segundo Kamens & Cha (1992) o ensino de Arte e Educação Física passaram a fazer parte do “currículo moderno” desde o início da década de 1870.

Pelo pioneirismo no Brasil, o estado de São Paulo era responsável pela publicação de obras didáticas pautadas no método intuitivo de Música desde o início do século XX, conforme relata Jardim (2003, p. 5):

As primeiras tentativas de adequação do ensino da música a uma vinculação ao método intuitivo foram identificadas a partir de 1902/1903 (Curso Theorico e Prático de Música Elementar, de J. Gomes Jr. e Miguel Carneiro Jr.) e analisadas nas publicações que se seguiram, localizadas durante a pesquisa: O ensino da música pelo Methodo Analytico (1912, 1914, 1919, João Gomes Jr. e A. Gomes Cardim); Aulas de Música (1921, João Gomes Jr.); Solfejo Escolar (1928, João Gomes Jr.); Aulas de mano-solfa (1929, João Gomes Jr.).

Muitas dessas obras foram utilizadas nas escolas normais brasileiras, pois continham métodos considerados adequados para a realidade da escola primária republicana. Deve-se destacar, portanto, que todo o esforço em prol da formação do professor de Música ocorria especificamente na escola normal. Sendo assim, quanto mais o ensino de Música conquistava espaço na escola primária, mais espaço necessitava para sua formação dentro da Escola Normal.

João Gomes Júnior e Fabiano Lozano realizaram experiências bem sucedidas com grupos orfeônicos. Fabiano Lozano, por exemplo, organizou um conjunto coral com a Escola Normal de Piracicaba do qual era professor, formado de quatro vozes sem acompanhamento instrumental no ano de 1915. Depois formou um orfeão composto por 48 cantores. Na década de 1920, fundou o Orfeão Piracicabano que se apresentou no Teatro Municipal em 1928 e no Rio de Janeiro em 1929, recebendo críticas entusiasmadas de Mário de Andrade. Além deles, trabalharam com o tema Lázaro Rodrigues Lozano, professor na Escola Complementar e Normal de Piracicaba e João Baptista Julião, colaborador de João Gomes Junior (CONTIER, 1998).

Até 1930, o ensino de Música estava previsto na legislação educacional, porém com imensa dificuldade de expansão em nível nacional. Após a década de 1930, o Canto Orfeônico mostrou-se uma poderosa ferramenta educacional durante o governo de Getúlio Vargas:

A música, na forma do canto orfeônico, de caráter coletivo, cívico e moralizador, praticado nas escolas públicas de São Paulo, e já apresentando um conteúdo cívico-nacionalista, mostrou-se como possível instrumento de promoção da ordem social para os propósitos das mudanças políticas do momento (JARDIM, 2009, p. 19).

No início da década de 1930, o Canto Orfeônico passou a ser inserido nas leis e decretos federais para o ensino secundário. Após as reformas de ensino de Francisco Campos, em 1931, o governo federal presidido por Getúlio Vargas procurou expandir e tornar o ensino do Canto Orfeônico obrigatório também na escola secundária. Porém, pode-se afirmar que a figura mais emblemática na defesa do ensino do Canto Orfeônico entre as décadas de 1930 a 1950 foi Heitor Villa-Lobos. Apesar do sucesso como músico, instrumen tista e compositor, o maestro manteve um forte interesse pela educação, sendo decisivo no projeto de implantação e divulgação do Canto Orfeônico nas escolas brasileiras após a década de 1930.

Desde a década de 1920, Villa-Lobos tinha a ideia de criar coros populares nacionais. O ensino de elementos do folclore, no resgate de uma identidade nacional, mostrava-se como preocupação principal. Após a Semana de Arte Moderna, o maestro Villa-Lobos obte ve certa receptividade do público e da crítica paulistana, o que lhe rendeu uma bolsa para estudar na França. Quando voltou ao Brasil, no ano de 1930, o composi tor deparou-se com uma realidade musical bem diferente daquela que ha via vivenciado na Europa. Se por um lado, notava um público numeroso para a música, por outro, percebia que esse público não se interessava pela música erudita. Isso levou Villa-Lobos a apresentar por escrito à Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, um plano de educação musical semelhante ao apresentado e ignorado anteriormente a Júlio Prestes, na época presidente do estado de São Paulo e candidato à presidência da República.

Após o apoio de Getúlio Vargas ao projeto de Villa-Lobos, o ensino de Canto Orfeônico passou a vigorar nas reformas de Francisco Campos e Gustavo Capanema. A Reforma de Francisco Campos, por meio do Decreto n.º 19.890, de 18 de abril de 1931 (BRASIL,1931), tratou de oficializar a ênfase na função nacionalista desse ensino. O recém-implantado programa de Música e Canto continha em suas finalidades uma ênfase na organização dos orfeões nos colégios, “que participassem dos recitais de arte e festas escolares” e que interpretassem os hinos e as canções patrióticas. No programa, também surgiam ressalvas sobre a importância da utilização de canções patrióticas, que deveriam “inspirar o amor e o orgulho pelo Brasil, forte e pacífico, e inculcar o desejo pela ação energética e constante em prol do engrandecimento nacional” (BRASIL, 1931). Nota-se, nesta passagem do programa, uma das finalidades declaradas do ensino do Canto Orfeônico na escola, a de estimular o sentimento nacional nos alunos.

O Canto Orfeônico acabou extinto no Brasil, em parte, devido às críticas feitas durante as décadas de 1940 e 1950 que associavam este ensino com governos totalitaristas, já que a prática orfeônica acabou sendo amplamente adotada na Alemanha nazista de Adolf Hitler e na Itália fascista de Mussolini. No Brasil, o Canto Orfeônico havia servido como uma ferramenta propagandística para o governo de Getúlio Vargas, especialmente durante o período do Estado Novo (1937-1945). Sendo assim, a LDB 4.024/1961 excluiu o Canto Orfeônico dos conteúdos obrigatórios, apresentando a Música entre as disciplinas optativas. Com a promulgação da Lei 5692/1971, as disciplinas artísticas são substituídas pela Educação Artística, de caráter polivalente, ou seja, que deveria contemplar as diferentes linguagens artísticas: Música, Artes Plásticas, Artes Cênicas e Desenho.

Características do Canto Orfeônico

Para aprofundar a interpretação sobre as características de Canto Orfeônico, vale destacar que, segundo Gilioli (2008, p.41):

O canto orfeônico caracteriza-se por ser uma prática musical de amadores de diversos setores sociais, executando um repertório menos difícil tecnicamente do que o destinado a músicos profissionais (daí a tradição de se fazer arranjos e adaptações) e realizando apresentações públicas regulares de cunho cívico e moralizador. Se o início do orfeonismo foi destinado a trabalhadores e escolares, as sociedades orfeônicas proliferaram-se posteriormente, passando a abrigar outros setores sociais.

O Canto Orfeônico teve sua nomenclatura inspirada em Orfeu, personagem mitológico dos gregos. Sobre essa relação, Gilioli (2008, p. 47) relata que:

Enquanto Orfeu era considerado o personagem associado à origem mítica da música, o canto orfeônico objetivava introduzir seus participantes - especialmente as crianças - na linguagem musical, o que remete à idéia de que o orfeonismo deveria ser a ‘origem’ e o início da música na infância, em contraposição ao aprendizado informal. Os mentores franceses do movimento coral imaginavam-se responsáveis por cultivar a música em setores amplos da sociedade, sendo a escola uma das mais importantes instituições para realizar esse projeto ‘civilizador’ (GILIOLI, 2008, 47).

Orfeu simbolizava a união entre a poesia e a música. Isso significava a intenção de inserir os orfeonistas no código escrito erudito da música ocidental, ou seja, nas tradicionais partituras. Para se cantar corretamente uma melodia seria necessário simultaneamente ler a partitura, ser afinado, impostar corretamente a voz e ter algum domínio do idioma. Por esse motivo, o ensino do canto e o da linguagem escrita estiveram intimamente ligados. Ainda sobre a relação entre Canto Orfeônico e o mito de Orfeu, Gilioli (2008, p.49) complementa que:

A lenda também diz que Orfeu foi o responsável por ter conduzido os trácios da selvageria à civilização. Não é de se estranhar que o canto orfeônico fosse compreendido como um instrumento de ‘civilização’ do povo. A referência sugere que as sociedades orfeônicas teriam a função de, metaforicamente, ‘descer ao inferno’, atingindo as classes populares e ‘amansando-as’ [...] através da prática do canto, para resgatá-las a um estado idealizado de harmonia social. Este é o sentido original do orfeonismo, acrescido ao ideal de glorificação da nação.

Em relação às diferenças, teóricas e metodológicas entre o tradicional canto coral e o orfeônico, o que sobressai é justamente o aprofundamento musical em cada uma das práticas:

o canto coral é de caracter erudito, seus componentes devem ser músicos, pelo que o numero de cantores é mais ou menos reduzido; o orpheão é de índole popular, seus membros não precisam saber musica, pelo que é representado por immensas massas de vozes, contando-se, não raro, por milhares (VALLE, 1936, p. 164).

O termo orfeão ajusta-se à ideia de multidões, não sendo necessário aos seus integrantes, conhecimentos profundos de técnica e teoria musical. Foi baseado nesta premissa, que o Canto Orfeônico foi adotado como uma possibilidade plausível de aplicação nas escolas brasileiras. Essa ideia foi comum ao ensino de Música tanto na Europa, quanto no Brasil republicano e por fim, ocasionou posteriormente entre as décadas de 1930 a 1950, o ápice do ensino do Canto Orfeônico no Brasil. Freitas e Teitel, em 1941, no livro didático de 1.ª série ginasial “Noções de Música e Canto Orfeônico”, apresentavam algumas questões sobre o termo “orfeão” na apresentação da obra:

Duas denominações podemos dar aos CÓROS ORFEÔNICOS: Popular ou Coral. São populares quando, formados por vozes brancas, isto é, sem estudo especial de canto, mas que bem controladas conseguem, em perfeita disciplina, uma das características mais importantes dos CÓROS ORFEÔNICOS POPULARES, entoar canções populares e hinos patrióticos. - A este grupo pertencem os ORFEÕES ESCOLARES. São corais, quando, formados por vozes mais ou menos educadas, executam músicas clássicas (ORFEÕES ARTÍSTICOS) (FREITAS e TEITEL, 1941, p. 15).

Essa preocupação demonstrava uma intenção de aproximar os orfeões da realidade escolar, já que seria impossível realizar certos exercícios e técnicas musicais em turmas tão grandes e heterogêneas. O orfeão mantinha como objetivo traçar uma ligação entre a arte popular e a arte considerada “elevada”.

Considerações finais

Após a Proclamação da República, o governo brasileiro procurou se aproximar da realidade de outros países republicanos. Com isso, o ensino de Música prosperou, sendo incluído na primeira reforma educacional pós-república realizada no país, a Reforma de Benjamin Constant. Porém, apesar da reforma prever o ensino de Música em todos os níveis de ensino, a prática prosperou nas escolas primárias e, consequente, na Escola Normal. Defendia-se a prática do canto coletivo, considerado como um elemento socializador e civilizador por natureza, o que estava de acordo com os ideais da nação republicana.

Após o apoio de Getúlio Vargas ao projeto de Villa-Lobos no início da década de 1930, o ensino de Canto Orfeônico passou a vigorar nas reformas de Francisco Campos e Gustavo Capanema. A Reforma de Francisco Campos oficializou a ênfase na função nacionalista desse ensino, promovendo a interpretação de hinos e as canções patrióticas, em prol de estimular o sentimento nacional nos alunos.

No período do pós-guerra, o Canto Orfeônico, criado em pleno movimento republicano, acabou recebendo inúmeras críticas devido a sua relação com governos totalitaristas, como na Alemanha nazista, na Itália fascista e também no Brasil, que durante o governo getulista, havia utilizado o Canto Orfeônico como uma ferramenta propagandística, principalmente no período do Estado Novo (1937-1945). Em 1961, por meio da LDB 4.024/1961, o Canto Orfeônico foi excluído do rol de disciplinas obrigatórias e com a promulgação da Lei 5692/1971, surgiu a Educação Artística, de caráter polivalente, contemplando quatro diferentes linguagens artísticas em uma só disciplina: Música, Artes Plásticas, Artes Cênicas e Desenho.

Referências

BRASIL. Decreto-lei n.º 9.494, de 22 de julho de 1946. A Lei Orgânica do Ensino de Canto Orfeônico. Diário Oficial da União. 27. jul. 1946 [ Links ]

BRASIL. Decreto-lei n.º 4.993, de 26 de novembro de 1942. Diário Oficial da União. Seção 1, Página 17.353. 28. Nov. 1942. [ Links ]

BRASIL. Decreto-lei n.º 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Leis de Diretrizes e Bases. Diário Oficial da União. 20. dez. 1961. [ Links ]

BRASIL. Decreto-lei n.º 5.692, de 11 de agosto de 1971. Leis de Diretrizes e Bases. Diário Oficial da União. 11. ago. 1971. [ Links ]

BRASIL, Decreto n.º 19890, de 18 de abril de 1931. In: Diário Oficial da União. Página 6.945. 01. mai. 1931. [ Links ]

BRASIL. Decreto n.º 981 de 8 de novembro de 1890. Disponível em: < http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/4_1a_Republica/decreto%20981-1890%20reforma%20benjamin%20constant.htm>. Acesso: 01. mai. 2015. [ Links ]

CHASTEAU. Lições de pedagogia. Porto: Ária Figueirinhas, 1899. [ Links ]

CONTIER, A. D. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. Bauru: EDUSC, 1998. [ Links ]

GILIOLI, R. S. P. Educação musical antes e depois de Villa-Lobos e os registros sonoros de uma época. Programa nacional de apoio à pesquisa. Fundação Biblioteca Nacional. Ministério da Cultura, 2008. [ Links ]

HOBSBAWN, E. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. [ Links ]

HOBSBAWN, E. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. [ Links ]

JARDIM, V. L. G. Educação musical: a concepção escolar para o ensino de música. In: OLIVEIRA, M. A. T. Educação do corpo na escola brasileira. Campinas: Autores Associados, 2006. [ Links ]

JARDIM, V. L. G. Institucionalização da profissão docente: o professor de música e a escola pública. Revista da ABEM, Porto Alegre, v. 21, p. 15-24, mar. 2009. [ Links ]

JARDIM, V. L. G. Os sons da República. 2003. 140 f. Dissertação de mestrado (Programa de Pós Graduação em Educação) - Pontifícia Universidade Católica, 2003. [ Links ]

KAMENS, D. e CHA, Y. K. La legitimación de nuevas asignaturas em la escolarización de masas: orígenes (siglo XIX) y difusión (siglo XX) de la enseñanza del arte y de la educación física. Revista de estudios del currículo. Barcelona, v. 2, n.º 1, jan. 1999. [ Links ]

SOUZA, R. F. de. Templos de civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo: (1890 - 1910). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. [ Links ]

SOUZA, V. O ensino de Musica. A Escola: Revista do Grêmio dos Professores Públicos do Estado do Paraná, Coritiba, ano II, jun./jul. 1907. [ Links ]

SOUZA, V. Educação Esthetica. A Escola: Revista do Grêmio dos Professores Públicos do Estado do Paraná, ano V, Coritiba, abr./jun. 1910. [ Links ]

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. [ Links ]

1Devido ao fato de possuir citações referentes à Veríssimo de Souza e outras referentes à Rosa Fátima de Souza, utilizou-se como padrão, sinalizar as citações de Veríssimo de Souza como V. SOUZA, mantendo as de Rosa Fátima de Souza como SOUZA.

2O método intuitivo foi adotado no estado de São Paulo no início do século XX a partir da sistematização das ideias de Pestalozzi e Fröebel. A adaptação do método para a música trouxe a ideia de que o canto, por ser natural do ser humano, era o mais simples de ser ensinado. O canto coral passou a ser considerado a prática musical mais adequada, por utilizar técnicas de trabalho em conjunto, sem individualizar o ensino (JARDIM, 2003).

Recebido: 04 de Outubro de 2019; Aceito: 26 de Fevereiro de 2020

1

English version by Wilson Lemos Junior. Email: juniorlem@gmail.com. The edit was performed by professional editors at Editage.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons