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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.20  Uberlândia  2021  Epub 29-Ene-2022

https://doi.org/10.14393/che-v20-2021-35 

Artigos

A saúde do corpo e da alma como missão escolar: higienismo, ultramontanismo e o ensino das meninas e moças no Brasil, a partir do Serro, Minas Gerais (1904-1921)

Salud del cuerpo y el alma como misión escolar: higienismo, ultramontanismo y la enseñanza de niñas y chicas en Brasil, de Serro, Minas Gerais (1904-1921)

Danilo Arnaldo Briskievicz1 
http://orcid.org/0000-0002-7652-1959; lattes: 6628809867630366

1Instituto Federal de Minas Gerais (Brasil). doserro@hotmail.com


Resumo

Analisamos as relações entre a instrução escolar, o higienismo “pedagógico” e ultramontanismo católico no contexto de criação do Colégio Nossa Senhora da Conceição na cidade do Serro/MG, para o atendimento de meninas e moças, em seu orfanato, internato e externato. Investigamos três instituições que operaram em perfeita sincronia no projeto higienista serrano: a Irmandade de Santa Tereza, a Câmara Municipal e a Igreja Católica. Discutimos como o higienismo interferiu na instrução escolar serrana e em suas práticas de ensino no contexto de moralização das crianças órfãs e das meninas e moças. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica para mapeamento, coleta e interpretação de documentos dos arquivos públicos e privados, e para a consulta dos autores especialistas no tema. O resultado obtido é o alargamento da compreensão sobre a forma de atuação da Igreja Católica na moralização popular através de seus colégios confessionais.

Palavras-chaves: História da educação; Higienismo; Ultramontanismo

Resumen

Analizamos la relación entre la instrucción escolar, el higienismo "pedagógico" y el ultramontanismo católico en el contexto de la creación del Colegio Nossa Senhora da Conceição en la ciudad de Serro/MG, para el cuidado de niñas y chicas en su orfanato, internado y externado. Investigamos tres instituciones que operaban en perfecta sincronización con el proyecto higienista serrano: la Hermandad de Santa Tereza, el Ayuntamiento y la Iglesia Católica. Discutimos cómo el higienismo interfirió en la educación secundaria y sus prácticas de enseñanza en el contexto de la moralización de los niños y niñas huérfanos. La metodología utilizada fue la investigación bibliográfica para mapeo, recopilación e interpretación de documentos de archivos públicos y privados, y para la consulta de autores especializados en el tema. El resultado es una ampliación de la comprensión de la forma en que la Iglesia Católica actúa en la moralización popular a través de sus colegios confesionales.

Palabras clave: Historia de la educación; Higienismo; Ultramontanismo

Abstract

We analyzed the relationship between school instruction, “pedagogical” hygienism and catholic ultramontanism in the context of the creation of Colégio Nossa Senhora da Conceição (Our Lady of Conception School) in the city of Serro, Minas Gerais, Brazil, for the care of children, adolescent girls and young women in their orphanage, boarding school, and normal school. We investigated three institutions that operated in perfect sync with the hygienist project of Serro: Irmandade de Santa Tereza, the City Council and the catholic church. We discuss how hygienism interfered with the school education and its teaching practices in the context of the moralization of orphaned children, adolescent girls, and young women. The methodology used was bibliographic research for mapping, collection, and interpretation of documents from public and private archives, and for the consultation of authors specializing in the subject. The result is a broadening of understanding of the way the catholic church acts in popular moralization through its confessional colleges.

Keywords: History of education; Hygienism; Ultramontanism

A irmã de Caridade!

Moça que, em troca dos inebriantes perfumes criados pela indústria humana,

tem o estonteante mau perfume do hospital e dos doentes.

Moça que assiste ao moribundo anônimo, do qual foge, com horror,

a outra moça, a moça do século, a moça dos salões.

Alcebíades Nunes de Ávila e Silva, Dos meus escriptos, 1931.

Higiene do corpo. Higiene da alma. Dois princípios básicos para uma convivência social civilizada, pacífica, progressista e moderna. Dois princípios adotados pelas instituições sociais do governo público na cidade do Serro/MG desde a segunda metade do século XIX.

Fonte: Raphael Lorenzeto de Abreu.

Figura 1 Mapa da localização do Serro no estado de Minas Gerais e Brasil 

De um lado, os civilizados, os limpos. Do outro, os indesejáveis, os sujos. Esta tensão entre limpeza e sujeira, entre o certo e o errado, entre o educado e o ignorante, entre os que mandam e os que obedecem, entre os bons e os maus, marcou a sociedade serrana, cujas elites necessitavam se diferenciar das pessoas escravizadas, dos egressos da escravidão, dos índios, dos estrangeiros, dos doentes, dos impuros, dos pecadores. O higienismo de corpo e de alma operou no interior da sociedade serrana, numa tensão constante entre pobres e ricos, entre cristãos e não cristãos. Por isso, a explicação de Chalhoub (2006, p. 29) amplia esse cenário em que:

As classes pobres não passaram a ser vistas como classes perigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a organização do trabalho e a manutenção da ordem pública. Os pobres ofereciam também perigo de contágio. Por um lado, o próprio perigo social representado pelos pobres aparecia no imaginário político brasileiro de fins do século XIX através da metáfora da doença contagiosa: as classes perigosas con-tinuaram a se reproduzir enquanto as crianças pobres perma-necessem expostas aos vícios de seus pais. Assim, na própria discussão sobre a repressão à ociosidade, que temos citado, a estratégia de combate ao problema é geralmente apresen-tada como consistindo em duas etapas: mais imediatamente, cabia reprimir os supostos hábitos de não-trabalho dos adul-tos; a mais longo prazo, era necessário cuidar da educação dos menores.

O primeiro procedimento público para a higiene do corpo foi a criação do Hospital Santa Tereza, inaugurado em 08 de abril de 1863. Criado pela Irmandade de Santa Tereza, o lugar público de controle e cura das doenças funcionou primeiramente no antigo edifício da Real Casa da Fundição do Ouro. Demolido o velho prédio, construiu-se outro, moderno, adequado aos padrões sanitaristas da época1. No centro do hospital, a pequena Capela de Santa Tereza com torre única, convida à higiene da alma, através dos dispositivos religiosos do cristianismo.

O segundo procedimento do governo serrano foi higienizar as igrejas e capelas construídas no século XVIII impedindo o sepultamento dos cadáveres nas suas campas, renovando o hábito de enterrar em lugar aberto e distante do povoado. Foi construído o Cemitério Municipal no alto da cidade, com altos muros de pedra-sabão. A inauguração foi em 18842, depois de uma longa mobilização da comunidade contra as epidemias incuráveis, da Câmara Municipal preocupada em proteger a coisa pública, dos vigários paroquiais em disciplinar os sepultamentos e do governo provincial interessado em controlar as doenças em território nacional. Todos se mobilizaram a fim de levantar o capital necessário para a grande obra de saneamento público, para o bem de todos. Na frente do Cemitério Municipal a Capela de São Miguel e Almas com torre única, é o lugar por onde os vivos passam para sepultar seus mortos, de maneira correta e cientificamente ensinada. Explica Oliveira Sobrinho (2013, p. 213) que na mentalidade sanitarista:

O engenheiro e o médico, em especial o médico-sanitarista, aparecem como personagens de uma elite que propiciará as intervenções necessárias ao estabelecimento da nova ordem higienista; ações sanitárias serão desenvolvidas com vistas a combater epidemias, um ideal de limpeza e, ao mesmo tempo, desejo utópico do progresso.

O terceiro passo para a garantia da higiene corporal da comunidade serrana foi a criação constante de escolas para crianças e jovens. Assim, para controlar os problemas que poderiam ser gerados com a publicação da Lei do Ventre em 1871, foi criado o Liceu de Artes e Ofícios (1880-1883) para disciplinar os ingênuos, os filhos livres de escravas em cativeiro, alforriados na pia batismal. Em 1895, foi inaugurada a Escola Normal Municipal do Serro (1895-1903) para ofertar professores habilitados para as escolas primárias do município, a fim de dinamizar e modernizar a sociedade serrana, purificando-a da ignorância e da ociosidade. Tanto no Liceu quanto na Escola Normal a preocupação era a formação de mão-de-obra para o mercado de trabalho, treinando os jovens para exercerem civilizadamente seus papéis sociais. Por isso, segundo Arriada et al. (2012, p. 41), em contexto de análise realizada em nosso tempo atual:

Um dos papéis desempenhados pelas instituições escolares é normatizar e regular o processo educativo. Com base nisso, se estabeleciam os ritmos da escola. Essas novas instituições representam uma relação permeada de controle, distribuição do tempo e usos diferenciados dos espaços escolares, onde se executam as atividades com regularidade assustadora e em etapas bem-delimitadas. Por exemplo: horário para ingresso, horário para sair, tempo marcado de cada aula, intervalos regulados entre uma aula e outra, tempo para recreio, etc. O ensino e a aprendizagem do controle do tempo estão intimamente vinculados à construção das idades sociais, em especial, das crianças e dos jovens. As representações e as práticas dos jovens se prendem a uma raiz histórica - a modernidade - que se expressa na justificação e legitimidade da vigilância e na supervisão dos tempos e dos ritmos.

Hospital, cemitério e escolas são dispositivos sociais de controle da higiene dos corpos e das almas. Para que alguém aprenda a cuidar do próprio corpo é preciso que outra pessoa lhe ensine sobre o próprio corpo, sobre o que é o seu corpo. Para isso é necessária uma rede de dispositivos sociais eficientes para disciplinar a alma, ou seja, o espaço do sujeito em que se opera a liberdade de ser o que se é, o lugar onde acontece a vida interior do indivíduo. Os dispositivos sociais higienistas pretendiam, assim, regular, para o bem de todos, o pensamento, o juízo e a vontade de cada um. Por isso, o jeito barroco serrano de ser - estrutura ontológica constitutiva do modo de pensar e agir no mundo comum em constante processo de conflito entre o bem e o mal, entre o puro e o impuro, entre o belo e o feio, etc formado basicamente no século XVIII como identidade local - incorporou na segunda metade do século XIX as lições de como preservar o corpo social como se fosse o seu próprio corpo. Para isso, criou o hospital, modernizou os sepultamentos, investiu na modernização da instrução pública.

Quando, em 1904, a Irmãs da Congregação das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo chegaram ao Serro para administrar o hospital e abrir seu colégio, aprimoraram, ainda mais, o jeito barroco serrano de ser3 com estratégias higienistas. É por isso que o nosso pressuposto metodológico para compreender a instalação do Colégio Nossa Senhora da Conceição na cidade do Serro é que o higienismo dessas instituições acabou por reforçar o controle social sobre os órfãos, alunos do internato, os meninos pobres do Liceu Casa dos Ottoni e, especialmente, tornou-se um importante dispositivo de controle social das elites serranas. Nesse sentido, nossa metodologia procura em Michel Foucault a resposta para os mecanismos do poder disciplinar e das técnicas de poder na modernidade, em especial, a noção de poder disciplinar e biopoder próprios da governamentalidade no fim da era moderna, com profunda influência no nosso mundo contemporâneo. E assim partimos da ideia geral de que:

Em vez de perguntar a sujeitos ideais o que puderam ceder de si mesmos ou de seus poderes para deixar-se sujeitar, deve-se investigar como as relações de sujeição podem fabricar sujeitos. Assim também, em vez de buscar a forma única, o ponto central do qual derivariam todas as formas de poder por consequência ou desenvolvimento, deve-se primeiro deixá-las valer em sua multiplicidade, em suas diferenças, em sua especificidade, em sua reversibilidade: estudá-las, pois, como relações de forças que se entrecruzam, remetem umas às outas, convergem ou, ao contrário, se opõem e tendem a anular-se. Enfim, em vez de conceder um privilégio à lei como manifestação de poder, é preferível tentar localizar as diferentes técnicas de coerção por ele empregadas (FOUCAULT, 2005, p. 319-320).

As irmãs do Hospital e do Colégio tornaram-se modelos vivos de moralidade apresentados pelas elites serranas como uma conquista para a cidade do Serro. Segundo Sant’Anna (2003, p. 1-2), em contexto de análise realizada em nosso tempo atual, “as práticas sociais, discursivas e não-discursivas, atravessando a materialidade da realidade e constituindo-a, revelavam o esforço institucional em controlar e vigiar a ‘natureza frágil’ das mulheres”; por isso, “diante da orientação que buscava viabilizar um projeto rumo à modernização do Brasil (...) os problemas relacionados à educação, como a existência de uma população majoritariamente “ignorante e irracional”, teriam que ser sanados no mais curto espaço de tempo.” Nesse sentido, o processo civilizador “não combinava com a ausência de instrução” pois “a proposta de educação também passava por finalidades como a formação de uma ‘identidade’ e da opinião pública, levando o país a um desenvolvimento cultural, nacional e material.” Dessa forma, “propunha-se a disseminação da alfabetização para controlar e homogeneizar” pois a instrução pública da escola como instituição disciplinar” teria como finalidade a observação, a classificação, o adestramento, o esquadrinhamento e a normalização dos seus sujeitos. Por fim, a escola e hospital apresentavam as irmãs como modelos sociais de higiene do corpo e da alma, o que pode ser considerado uma refinada técnica e estratégia de homogeneização dos comportamentos sociais com a finalidade de “produzirem efeitos nos corpos” inserindo “os indivíduos nas redes de poder.”

Esta construção de um modelo-projeto não foi casual, mas pensado no interior das discussões sobre a moralidade higienista serrana nas sessões da Irmandade de Santa Tereza. Contar a história da educação que se passou nos corredores do Colégio Nossa Senhora da Conceição - iniciado como um orfanato para meninas e moças abandonadas/marginalizadas - é revisitar as relações entre a instrução escolar e o seu ideal de modernização da sociedade pela higiene do corpo e da alma.

A Irmandade de Santa Tereza

A Irmandade de Santa Tereza surgiu em 26 de outubro de 1855 quando os 45 irmãos (homens e mulheres) se reuniram para escrever e aprovar seus estatutos, com o objetivo de reger o futuro hospital da cidade. Assinaram os estatutos iniciais o Barão de Diamantina - Francisco José de Vasconcelos Lessa, o padre José Jacinto Nunes e o médico Claudionor Antônio Azevedo Coutinho. Em 09 de março de 1858, o bispo de Mariana, Dom Viçoso, aprovou os estatutos e, no dia 11 de julho do mesmo ano, foram aclamados o presidente da irmandade o Barão de Diamantina, o secretário Manoel do Nascimento Moura e o relator Simão da Silva Pereira Lins. O Hospital passou a ter uma Mesa Administrativa com um provedor, o próprio Barão de Diamantina, um escrivão Dario Clementino da Silva, um tesoureiro o padre José Jacinto Nunes e um procurador Francisco Cornélio Ribeiro. Na prática, a Irmandade dirigia o Hospital com alguns de seus irmãos, escolhidos para formar a Mesa Administrativa. O Hospital Santa Tereza foi aberto oficialmente no dia 08 de abril de 1863 (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 3, n.p.).

A decisão para convidar as Filhas da Caridade para assumirem a administração do Hospital e para fundarem seu colégio no início do século XX foi articulada pelo padre João Moreira de Carvalho, provedor do mesmo hospital em vários mandatos. Contou com a ajuda do ex-diretor da Escola Normal Municipal do Serro, Alcebíades Nunes de Ávila e Silva (escrivão da irmandade em todos os mandatos do provedor padre João Moreira). Ao que tudo indica, um apoio fundamental foi o da mestra Cristina Amélia de Queirós Queiroga, que abriu sua casa para receber as primeiras irmãs, enquanto o hospital se adaptava para hospedá-las.

O padre serrano João Moreira da Silva (1873-1947) fez seus estudos primários com a mestra Cristina Amélia de Queirós Queiroga “que se tornou sua protetora e grande amiga”, segundo Souza (1999, p. 256). Foi vigário da paróquia de Nossa Senhora da Conceição e presidente da Câmara Municipal. O professor serrano Alcebíades Nunes de Ávila e Silva (1870-1942) foi um dos fundadores da Escola Normal Municipal do Serro e, segundo Pires (2015, p. 17), “em tudo manifestava seu espírito católico.” A mestra Cristina Amélia de Queirós Queiroga (c.1837-1920) era filha de Bernardino José de Queiroga Júnior (1800-1866) que foi advogado, vereador, deputado provincial e presidente da província de Minas Gerais, em 1848. Ele casou-se com Maria Salomé de Queirós Queiroga. Maria Salomé de Queirós Queiroga morou na Casa da Arca, antiga casa-abrigo para orfãos. A mestra Cristina formou-se normalista em Ouro Preto e retornou ao Serro em 1870, fundando sua própria escola particular. Quando morreu, em 1920, sua antiga residência foi doada para o funcionamento do Colégio Nossa Senhora da Conceição. Os três articuladores para a chegada das Filhas da Caridade ao Serro eram profundamente ligados ao catolicismo ultramontano4, representado em Minas Gerais pelo bispo de Mariana Dom Antônio Ferreira Viçoso e pelo bispo de Diamantina Dom José Antônio dos Santos. A moralização das crianças e jovens pela educação de qualidade - normalmente ligada ao ensino da moral e cívica e do ensino religioso - foi uma das bandeiras mais conhecidas dos combatentes ultramontanos.

Dessa forma, a ideia de introduzir as Filhas da Caridade no Serro para melhorar a administração do Hospital e a saúde pública e a instrução pública serrana - com um orfanato para as meninas pobres e um internato para as meninas abastadas - apareceu pela primeira vez no Livro de Atas da Irmandade de Santa Tereza, em reunião do dia 19 de outubro de 1902. Segundo o registro da ata, nesse dia fez-se uma nova eleição que renovou ao padre João Moreira da Silva o cargo de provedor e o de escrivão a Alcebíades Nunes de Ávila e Silva. O padre, tomando a palavra disse que, por causa da insistência com que a digna administradora Dona Ana Brandão Nunes, falava em deixar a administração do Hospital, insistência devida a incômodos de saúde, providenciou para ver se seria possível a vinda das Irmãs de São Vicente de Paulo “que se incumbissem da administração dando-se a saída da atual digna administradora que merece louvor pelo modo dedicado com que há desempenhado os seus deveres” (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 32, n.p.). O provedor afirmou que comunicaria à Casa o que conseguisse naquele sentido, depois de aprovada pela Mesa a entrega do Hospital às Irmãs de Caridade. Ele não explicou a estratégia utilizada, mas tudo indica que o pedido foi feito ao bispo de Diamantina, Dom José Antônio dos Santos (1863-1905) que deve ter encaminhado a solicitação ao superior das mesmas irmãs, padre Lacoste, que aceitou o convite. As Filhas da Caridade já atuavam em Diamantina/MG desde 1866, quando o mesmo bispo havia fundado o Colégio Nossa Senhora das Dores, passando a administração para as vicentinas.

Na sessão de 21 de julho de 1903, o provedor deu ciência à Casa de que a vinda das Irmãs de Caridade para assumirem a administração interna da casa julgada até agora impossível, agora parecia se tornar uma realidade, estando as mesmas prontas a virem. Tudo foi combinado com a protetora do padre João Moreira, Dona Cristina Queiroga, que ofereceu excelentes acomodações em sua casa até que o mesmo hospital as tivesse construído. Isso é confirmado pelo relato de Maria Salomé Nunes, a Zinha, em registro de Maria Eremita de Souza. Segundo a entrevistada,

Em 1904, vieram 4 irmãs de Caridade para a Santa Casa: Irmã Vicência Benevides, Irmã Maria Carvalho, Irmã Biard e Irmã Luiza Guedes. Irmã Biard veio como superiora. Começaram a ensinar costura, flor, bordado, na casa dos Queiroga, esta, a Irmã Luiza Guedes. Depois vieram para a casa de mestra Cristina... esta ofereceu. Lecionava Irmã Vivência Benevides e Irmã Luiz Guedes. Funcionava neste tempo onde era o ginásio, a Escola Normal. A Irmã Benevides dava Português e outras matérias, não tinha matéria separada. O professor Miguel Cardoso contribuiu muito para transformar o então externato como eram chamadas as aulas da Irmã Benevides em equiparada [1913]. Zinha [Maria Salomé Nunes] formou-se normalista na Escola Normal do Serro em 1907 e foi nomeada em 1908 a 12 de junho de 1908 e o Colégio ainda não era equiparado (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 3, n.p.).

Alguns meses depois, o escrivão Alcebíades Nunes de Ávila e Silva escreveu:

Aos 7 dias do mês de fevereiro do ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1904 na sala das sessões da irmandade de Santa Tereza de Jesus desta cidade do Serro, presentes os irmãos que compõem a mesa administrativa o Sr. Provedor abriu a sessão extraordinária especialmente convocada para dar-se a posse à Exma. Irmã Superiora Tereza, Irmã Maria, Irmã Vicência e Irmã Luiza que por deliberação da irmandade assumem a administração do Hospital sendo de fato empossadas. Para constar lavra-se o presente que vai devidamente assinado: provedor Padre João Moreira da Silva, escrivão Alcebíades Nunes de Ávila e Silva, tesoureiro Francisco Caetano Xavier, Francisco Roberto Brandão da Fonseca, Cônego Epaminondas Nunes de Ávila e Silva, Henrique Carlos de Vasconcelos Lessa, Irmã Tereza, Irmã maria, Irmã Vicência, Irmã Luiza (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 32, n.p.).

Na sessão do dia 24 de fevereiro de 1904, o assunto dominante foi o programa de externato apresentado à Mesa pelas Filhas de São Vicente de Paulo que já estavam de posse da administração do Hospital. O escrivão registou que brevemente seria inaugurado o externato para meninos e moças devendo o mesmo funcionar em salões da casa de Dona Cristina Amélia de Queirós Queiroga que os cedeu para o dito fim gratuitamente. Expos ainda o reverendo provedor que sobre a necessidade de um empréstimo no valor de 8:000$000 para o término das obras do mesmo hospital. Nas sessões seguintes, as irmãs comunicaram a aquisição de um harmônio através de arrecadação de esmolas e quermesse e expuseram a sua facilidade em negociar com o governo brasileiro o transporte de equipamentos pela Estrada de Ferro Central do Brasil (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 32, n.p.). Com a chegada das Irmãs a Irmandade recebeu sucessivas doações - o que era comum desde sua fundação.

No dia 03 de dezembro de 1905, Teófilo Pinheiro entregou uma doação de 1:000$000 (um conto de réis) em nome de Dona Idalécia Augusta Brandão e mais 500$000 (quinhentos mil réis) com a condição de ser admitida uma menina para ser educada no futuro internato. Alguns meses depois, o mesmo Teófilo Brandão doou 3:000$000 (três contos de réis) para o aumento do patrimônio da Irmandade e especialmente para o auxílio para a manutenção de um colégio para meninas pela Irmandade.

Portanto, foi durante as reuniões da Irmandade Santa Tereza que se decidiu pela introdução das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo na educação e saúde pública serranas.

As obras sociais das Filhas da Caridade

A história da Congregação das Filhas da Caridade em Minas Gerais começou em Mariana, assumindo o Colégio Providência, fundado por Dom Viçoso em 1850 (MUNIZ, 1999). Segundo Lage (2011, p. 22), em contexto de análise realizada em nosso tempo atual,

A instalação e o fortalecimento das atividades empreendidas pelas Filhas de Caridade em Mariana a partir de 1849 aconteceram devido à atuação do bispo D. Antônio Ferreira Viçoso, responsável pelo fortalecimento do catolicismo romanizado em terras mineiras. [...] A utilização das vicentinas no projeto de romanização e universalização do catolicismo no século XIX deveu-se à sua longa história e às suas especificidades organizacionais. A Congregação das Filhas de Caridade foi fundada na França em 1633 por Vicente de Paulo e Luísa de Marillac. Já havia uma vertente masculina, a Congregação da Missão (ou Lazaristas). A intencionalidade da fundação da vertente feminina estava diretamente ligada à questão da expansão da ideia de caridade, e as vicentinas seriam responsáveis por diversas atividades: o cuidado com os doentes nos hospitais, a assistência em asilos de incapazes e idosos, a criação da infância abandonada e órfã, o auxílio em maternidades, prisões, etc.

No Serro, as primeiras irmãs de caridade chegaram em 03 de fevereiro de 1904. Um grupo de quatro missionárias organizadas em torno de uma superiora da comunidade, a Irmã Teresa Biard, natural da França. As outras irmãs que formavam o primeiro grupo serrano foram a Ir. Vicência Benevides, Ir. Luísa Guedes e Ir. Maria Monteiro Carvalho, de origem portuguesa.

Por volta de 1º de maio de 1904, o grupo de missionárias fundou um externato de crianças em uma das salas da mestra Cristina, em sua residência, onde as primeiras irmãs ficaram hospedadas provisoriamente.

Em 1906, seguindo a lógica da catequização infantil e da juventude, a Irmã Teresa Biard fundou o grupo da Associação das Filhas de Maria. Na ausência de estudos sobre as Filhas de maria no Serro, é possível, por comparação, entender como era organizada, por exemplo, em Diamantina, no Colégio Nossa Senhora das Dores. Segundo Dias (2015, n.p.), “a Associação das Filhas de Maria do Colégio Nossa Senhora das Dores, foi instituição religiosa criada em 1875 na cidade de Diamantina e que, até o ano de 1948, expandiu-se consideravelmente, chegou a contar com 117 associadas e 11.623 associadas em todo o Brasil.” As prescrições religiosas para os comportamentos a serem praticados por uma filha de Maria possibilitaram “observar que as mulheres apenas eram aceitas e legitimadas pela sociedade a partir do momento em que se anulavam em prol do marido, dos filhos ou do Esposo Divino, independente do estado escolhido.” Assim, “era, em suma, um ser que vivia para os outros, que não tinha existência em si” e as filhas de Maria admitidas na Associação, “tanto órfãs como internas menores recebiam uma fita cor de rosa, que representava o menino Jesus; logo após, dependendo de seus gestos e comportamentos, recebiam fitas roxas e verdes que eram a preparação; por fim recebiam a fita azul das Filhas de Maria”. Explica a autora que “para a obtenção desta última, a jovem deveria imitar as virtudes de Nossa Senhora, mostrar-se humilde e obediente” e “considerava-se a maior honra alcançar essa condição, sendo que muitas das alunas não conseguiam tal privilégio” sendo que “as fitas eram usadas para frequentar a missa, participar de festas, procissões e reuniões com a madre superiora.”

Nesse mesmo ano, no dia 25 de setembro, a Casa de Caridade Santa Tereza recebeu a visita em sessão magna do presidente do estado de Minas Gerais, o serrano João Pinheiro da Silva, que foi inaugurar o prédio reformado. Na oportunidade - e isso é um dos únicos registros das meninas asiladas no orfanato - a menina Amélia Nunes de Moura e Silva saudou o presidente em nome das asiladas de Nossa Senhora da Conceição, seguindo-se de diversas execuções musicais e um diálogo pelas meninas Eponina e Otonina. A sessão terminou com um discurso de João Pinheiro (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 3, n.p.).

Em 11 de setembro de 1908, após a aquisição da antiga casa do Barão de Diamantina da mão de seus herdeiros pela Irmandade Santa Tereza, fundou-se o Asylo e Colégio Nossa Senhora da Conceição. Isso quer dizer que o prédio era uma residência-orfanato para moças órfãs e um colégio para alunas externas.

No dia 15 de outubro de 1909, o visitador da Congregação da Missão autorizou mais uma irmã para docente do Colégio Nossa Senhora da Conceição com a condição de que as duas irmãs do colégio deveriam fazer as refeições em comum com as do hospital. Por ter o colégio sua economia distinta em nada onerando a irmandade de Santa Tereza, a permissão foi concedida em reunião da Irmandade de Santa Tereza, “sendo insignificante o aumento de despesa para a casa em vista do grande benefício para a nossa população advém da existência do colégio, confiado às dignas beneméritas filhas de São Vicente de Paulo” (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 3, n.p.).

No ano de 1910, a superiora Irmã Teresa Biard5 foi transferida da comunidade, assumindo em seu lugar a nova superiora Ir. Maria Monteiro Carvalho. Em 1912, instalou-se a primeira iluminação elétrica particular na Santa Casa e no Asylo e Colégio, sendo que a geradora estava adaptada ao moinho do quintal do Hospital. Em 1920, a mestra Cristina Amélia de Queirós Queiroga faleceu deixando tudo o que lhe pertencia para o colégio e orfanato. Herdando a residência da mestra Cristina em testamento, a Irmandade de Santa Tereza transferiu o colégio e o orfanato do prédio da Rua Barão de Diamantina para a casa onde a história das irmãs na cidade começara, na antiga escola da mestra Cristina. A antiga casa do Barão de Diamantina não foi desativada totalmente, uma vez que foi cedida para o funcionamento do Patronato dos Ottoni, que funcionou de 1921 a 1930, usando também para suas oficinas a Casa dos Ottoni e a Fazenda do Patronato, no canto da Praia6 (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 3, n.p.). A casa do antigo patronato só foi vendida pela Irmandade de Santa Tereza em 1946, pelo valor de 100:000$000 (cem contos de réis).

O que era ensinado no Colégio das Irmãs?

O Colégio Nossa Senhora da Conceição tinha por objetivo inicial - quando foi criado como Asylo Nossa Senhora da Conceição em 1907 - atender às meninas desvalidas, pobres e abandonadas à orfandade. No Álbum do Bicentenário de 1914, uma fotografia chama a atenção por se tratar “das primeiras órfãs com que, há 6 anos, se iniciou o Asylo de Nossa Senhora da Conceição, hoje Escola Normal equiparada” (SILVA, 1914, n.p.). Nela surgem 22 moças, meninas e crianças de várias idades, algumas talvez com dois anos de idade, todas com as fitas da Associação das Filhas de Maria ao pescoço. Estão ladeadas pelo padre João Moreira da Silva que leva sua mão ao peito, com três irmãs de caridade distribuídas proporcionalmente atrás das órfãs e, ao centro, na porta, o estandarte da Associação das Filhas de Maria. São vinte e duas crianças que foram abandonadas pelas mais diferentes situações: morte da mãe, abandono no espaço público como enjeitadas desde o nascimento, extrema pobreza dos pais que optavam por colocá-las numa escola onde poderiam ter o que comer, o que vestir, o que aprender. A fotografia não revela o cotidiano do orfanato, os seus horários, a rigorosa disciplina, o ensino católico obrigatório com suas preces e liturgias. A rotina do orfanato fica subentendida. Contudo, o ideal higienista fica evidente na limpeza das roupas, do estandarte, na perfeita ordem das crianças em postura ereta. Há um ideal de pureza que parece se realizar em todos os presentes na fotografia - crianças, padre e irmãs de caridade.

Fonte: Álbum do Bicentenário do Serro, 1914

Fotografia 1 As órfãs do Asylo Nossa Senhora da Conceição - 1913 

No orfanato, o abrigo garantiria às crianças, meninas e moças o afastamento radical dos males do mundo e garantiria, através da educação, um futuro melhor a cada uma delas. As meninas da fotografia são mostradas como o resultado da educação de qualidade serrana, como uma obra de caridade que efetivamente mostrava a sua razão de ser, melhorando a cidade, moralizando e civilizando os abandonados da sociedade.

É que o Asylo Nossa Senhora da Conceição foi criado para acabar (parcialmente, pois o atendimento era apenas para as meninas e moças) com um problema crônico serrano desde o século XVIII e que perpetuou durante o século XIX: os enjeitados, os desvalidos e os indesejados órfãos eram criados por famílias tutelares com auxílio dos cofres públicos. Agora, com a irmãs de caridade, a cidade se modernizara, com um edifício próprio para acolher as órfãs, com atendimento especializado. Esta ideia era o principal argumento para ceder a educação das órfãs para as irmãs, como aconteceu, inclusive, em Lisboa, conforme nos conta Lage (2011, p. 128):

A constituição e as iniciativas da Sociedade demonstram o caráter caritativo e religioso do mundo feminino português. Dentro do princípio de caridade da nobreza feminina, tais mulheres tentaram solucionar o problema do grande número de crianças órfãs em consequência das epidemias, que já lotavam os orfanatos existentes ou viviam em condições precárias junto aos seus familiares. Percebe-se ainda a preocupação com a necessidade de cooptar pessoas que soubessem lidar especificamente com as crianças pobres e órfãs, com métodos diferenciados daqueles utilizados na Casa Pia, além de resolver o problema da falta de professores com disponibilidade integral de tempo e capazes de tornar os órfãos bons cidadãos, bons pais, boas mães e ainda, bons cristãos. Na opinião da Sociedade Protetora, as Filhas de Caridade de São Vicente de Paulo tinham larga experiência e seriam mais adequadas nesta tarefa.

Qual seria a intenção educativa desenvolvida pedagogicamente no acolhimento das meninas e moças no Asylo Nossa Senhora da Conceição? Instruir as meninas para se tornarem donas de casa virtuosas - casadas ou celibatárias7 - a serviço de um lar feliz. É o que informava, por exemplo, o manual de economia doméstica intitulado O lar feliz, publicado em 1916 (apud MALUF, MOTT, 1999, p. 374). Nesse se lê que “à mulher incumbe sempre do lar - modestíssimo que seja ele - um templo que se cultua a Felicidade”; à mulher competiria, então, “encaminhar para casa o raio de luz que dissipa o tédio, assim como os raios de sol dão cabo dos maus micróbios” e, por isso, “ se o lar tem por administrador uma mulher, mulher dedicada e com amor à ordem, isso então é a saúde para todos, é q união dos corações, a felicidade perfeita no pequeno estado, cujo ministro da Fazenda é o pai, cabendo à companheira de sua vida a pasta política, os negócios do Interior.”

Dessa forma, a capacidade técnica de formação de meninas e moças das Filhas da Caridade reconhecida como a modernização dos costumes serranos amalgamou-se aos interesses progressistas das elites locais, preocupadas em moralizar as órfãs, contribuindo para a perpetuação da tradicional família serrana. Assim, explicam Maluf e Mott (1999, p. 373-374):

Baseado na crença de uma natureza feminina, que dotaria a mulher biologicamente para desempenhar as funções da vida privada, o discurso é bastante conhecido: o lugar da mulher é o lar, e sua função consiste em casar, gerar filhos para a pátria e plasmar o caráter dos cidadãos de amanhã. Dentro dessa ótica, não existiria realização possível para as mulheres fora do lar. [...] A imagem da mãe-esposa-dona de casa como a principal e mais importante função da mulher correspondia àquilo que era pregado pela Igreja, ensinado por médicos e juristas, legitimado pelo Estado e divulgado pela imprensa.

O Colégio Nossa Senhora da Conceição funcionou, também, como escola primária. Contudo, sua fama que se espalhou pelo interior de Minas Gerais no século XX deveu-se à qualidade de seu ensino normal em sistema de internato e externato. Antes mesmo de ter seu curso normal equiparado às escolas normais do estado de Minas Gerais pela Lei 4.040, de 30 de outubro de 1913, anunciou da seguinte forma no número 57 do jornal A voz do Serro, de 30 de julho de 1913:

Este colégio acha-se instalado em vasto e arejado prédio, que obedece às mais rigorosas prescrições de higiene. Sob a direção competente e carinhosa das digníssimas Filhas de São Vicente de Paulo, ali o ensino compreende o curso primário completo e quase todo o normal, inglês, música vocal, piano, bandolim, pintura e trabalhos de agulha. A pensão é apenas de 80$000 por trimestre, compreendendo lavagem de roupa. Pagam-se mais 26$000 de joia de entrada. É facultativo o ensino de música de piano, bandolim, inglês e pintura, pagando-se separadamente a 10$000 mensais. A matrícula se abre a 1º de outubro e o ano letivo se encerra a 31 de julho. Recebem-se alunas de qualquer idade (ARQUIVO IPHAN SERRO. Jornais. A voz do Serro, 30/07/1913)

De fato, o regulamento do curso normal oferecido pelo Colégio Nossa Senhora da Conceição do Serro havia sido estabelecido pelo Decreto nº. 1.960, de 16 de dezembro de 1906, que previa como deveria ser o funcionamento oficial da Instrução pública primária e no Ensino Normal. A mesma lei dos grupos escolares era também a lei das escolas normais estaduais. Quais seriam as cadeiras ou disciplinas que compunham a estrutura curricular do curso normal do Colégio Nossa Senhora da Conceição?

A resposta está no regulamento de 1906 no seu artigo 146, que confirma o anuncio do jornal A voz do Serro transcrito acima. O regulamento oficial menciona as matérias de ensino nas escolas normais, distribuídas por cadeiras: 1ª português e francês; 2ª aritmética, geometria e escrituração mercantil; 3ª geografia, história, educação moral e cívica; 4ª noções gerais de física, química, história natural e higiene; 5ª música; 6ª desenho. Cada uma das disciplinas deveria ser regida apenas por um professor e os trabalhos de agulha deveriam ser confiados, obrigatoriamente, a uma senhora (MINAS GERAIS, 1906, p. 177).

O Jornal A Voz do Serro relatou que no dia 1º de dezembro de 1913 foi realizada “a instalação solene do curso normal no Colégio N. S. da Conceição, “dirigido pelas abnegadas Filhas de S. Vicente de Paulo.” O jornal conta que “a sessão inaugural presidida pelo Sr. Dr. Félix Generoso, juiz de direito da Comarca a convite do Sr. Henrique Rosa da Silva, inspetor escolar municipal, foi aberta com os hinos a Nossa Senhora e à Bandeira, cantados por algumas alunas do estabelecimento com acopanhamento de piano.” Depois, o Monsenhor João Moreira da Silva, “em longo e brilhante discurso expôs as vantagens resultantes da equiparação do Colégio para todas as jovens que o procurarem, preparando-as para melhor cumprirem os seus elevados destinose conferindo-lhes um diploma que será a garantia da sua tranquiliade no futuro.” Falaram depois o Dr. Nicodemos de Araújo e de improviso o Dr. Félix Generoso que “rememorou os primórdios do Colégio em 1907, e sem casa e sem pão, ufanando-se do que ele é hoje - um estabelecimento que realçaria entre as mais apuradas civilizações do mundo.” Por fim, acrescentou que “atinge 57 o número de alunas matriculadas no curso normal.”

Importante relato nos deixou a professora serrana Zenaide Generoso Guerra sobre o Colégio e seu curso normal. Dona Zenaide em seu livro de memórias reproduz os eventos do ano de 1921, ou seja, sua entrada no curso normal do colégio foi na turma que pela primeira vez usou o edifício herdado da mestra Cristina Amélia de Queirós Queiroga, em 1920. Este é o prédio mais conhecido do colégio no Serro por conta de seu passadiço, uma passagem aérea entre o colégio e o coro de sua capela, passadiço esse alçado sobre a Ladeira da Matriz.

Segundo Guerra (1988, p. 17-19), “em 1921 prestei o exame de admissão e fui matriculada no Colégio Nossa Senhora da Conceição, equiparado á Escola Normal de Belo Horizonte”; ela continua: “na época, o Curso Normal era de 4 anos e, no final de 1924, formei-me. No quarto ano eram minhas colegas externas: Mirtes Mórtimer, Zulmira Clementino, Edir Tolentino, Ignez Geneoroso da Fonseca e Ambrosina Cunha Pereira”; sua memória recordou-se das alunas internas que eram “umas 25 colegas, salvo engano”; entre outras colegas perdi uma matéria, o Português, tendo que prestar novo exame no ano seguinte, em segunda época, e, aprovada aos 5 de março de 1925, recebi meu diploma, ficando apta para exercer a função de professora primária”; além disso, a ex-aluna se recorda que a insituição foi sempre muito boa, “pois não só instruía, como educava as alunas, física e religiosamente” e “além das aulas didáticas, havia aulas de Instrução Moral e Cívica e o Catecismo, todas as segundas-feiras, pelo Reverendo Monsenhor João Moreira”; em relação às matrículas, ela afirma que cresciam a cada ano e que “muitas alunas, depois de formadas, continuavam no Colégio como postulantes a futuras Irmãs de Caridade consagradas a São Vicente de Paulo”; a disciplina “era muito rigorosa” e as alunas do internato “não tinham nenhum contato com as externas” e isso obrigava que as alunas internas quando precisavam sair para ir á missa, por exemplo, deviam manter a cabeça baixa e sem olhar para os lados, caso contrário, “no fim do mês, a nota da alunas externas” era reduzida por mal procedimento; para finalizar, a ex-aluna explica que o monsenhor Moreira “guardava as alunas do Colégio como os pais guardaveam suas filhas” e que ele “pregava muita moral para o povo serrano, que era muito católico e o respeitava muito, quando tomava conhecimento de algo errado na cidade, ia para o púlpito, falava e protestava e o povo atendia e seguia seus conselhos.”

Portanto, até 1921, o Colégio Nossa Senhora da Conceição permaneceu como uma escola particular de referência no norte de Minas Gerais, em especial por conta de sua moralidade pedagógica e o bem-sucedido projeto higienista da Irmandade de Santa Tereza capitaneado pelo padre João Moreira da Silva, pelo católico conservador Alcebíades Nunes de Ávila e Silva e pela celibatária mestra Cristina Amélia de Queiros Queiroga.

Conclusão

De maneira geral, os projetos de catequização e/ou evangelização da Igreja Católica foram muito bem planejados e implementados rigorosamente no Brasil. Isso começou em 1549 com a chegada dos padres da Companhia de Jesus juntamente com o primeiro governador-geral da colônia, Tomé de Souza. Naquele contexto da contrarreforma católica, aumentar o número de fiéis era muito importante, especialmente fora da Europa, onde a onda protestante promovia as conversões em massa. Segundo Raymundo (1998, p. 43), “a Ordem dos Jesuítas é produto de um interesse mútuo entre a Coroa de Portugal e o Papado. Ela é útil à Igreja e ao Estado emergente” uma vez que “os dois pretendem expandir o mundo, defender as novas fronteiras, somar forças, integrar interesses leigos e cristãos, organizar o trabalho no Novo Mundo pela força da unidade lei-rei-fé.” Os jesuítas foram expulsos do Brasil em 1759, no interior da reforma pombalina, que afetou diretamente a educação colonial.

No século XIX, a educação feminina tornou-se um fenômeno novo dentro do desenvolvimento da economia capitalista em constante processo de globalização e massificação a partir da Europa. Com isso, no periodo de 1843 a 1874 aconteceu um intenso movimento missionário das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo em direção ao Brasil e muitos outros países do mundo. Isso fazia parte da proposta da presença católica em todos os espaços possíveis, a fim de manter a sua hegemonia no mundo ocidental. Lage (2011, p. 25) explica que:

Havia três motivos determinantes para o sucesso e também que possibilitaram a expansão das congregações femininas francesas no século XIX: a capacidade de adaptação deste modo de vida religiosa aos lugares de instalação; a eficácia das congregações em dar respostas às necessidades da sociedade; e a possibilidade de articular o mundo urbano com o campo, já que transitavam nessas duas culturas. Em primeiro lugar, as congregações se multiplicavam e prosperavam porque possuíam um modelo de utilização simples: uma forma facilmente controlável da vida religiosa e um instrumento eficaz para agir sobre a sociedade. Essa capacidade de adaptação manifestava-se particularmente na pluralidade dos tipos de implantação geográfica e em como conseguiam adaptar suas modalidades de penetração no exterior.

Por conta do movimento católico ultramontano em Minas Gerais, capitaneado pelo bispo de Mariana Dom Viçoso e o de Diamantina, Dom Santos, incentivou-se a pastoral escolar através da abertura de colégios e de seminários eclesiásticos, administrados por congregações religiosas europeias. Dessa forma, a cidade do Serro foi afetada pela expansão do movimento ultramontano de caracteristicas conservadoras pois ampliou o discurso higienista, no interior dos cuidados necessários para a saúde pública do corpo e da alma, comum refinado programa instrucional ensinado por seus agentes que operaram em seus dispositivos com uma moralidade pedagógico-pastoral reveladora do poder disciplinar e do biopoder. Assim, segundo Louro (2000, p. 458), em contexto de análise realizada em nosso tempo atual:

A escola parecia desenvolver um movimento ambíguo: de um lado, promovia uma espécie de ruptura com o ensino desenvolvido no lar, pois de algum modo se colocava como mais capaz ou com maior legitimidade para ministrar os conhecimentos exigidos para a mulher moderna; de outro, promovia, através de vários meios, sua ligação com a casa, na medida em que cercava a formação docente de referências à maternidade e ao afeto.

Portanto, nosso estudo demonstrou que a missão precípua das escolas confessionais para meninas e moças implantadas no Brasil na segunda metade do século XIX e primeiros anos do século XX estava orientada pelo higienismo “pedagógico” e pelo ultramontanismo moralizador dos corpos e das almas destas alunas. Com esse discurso e práticas pedagógicas, o ideário das escolas confessionais para meninas e moças - orfanato, internato e externato na cidade do Serro - foi considerado peça fundamental para a moralização feminina, para manter o controle sobre seus corpos e almas, enfim, para proporcionar uma higiene social numa sociedade que estava sendo afetada pela modernização política republicana positivista anticlerical e laica e pela crescente modernização do mercado de trabalho por conta da abolição da escravidão, que ainda produzia a desigualdade social e abandono de meninas e moças por seus responsáveis.

Referências

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1Um caso curioso que liga o higienismo com a educação ocorreu com a publicação da Lei nº 116, de 02 de julho de 1911, que autorizou o Agente Executivo Municipal a fazer a aquisição do imóvel denominado Boa Vista ou Chácara do Mestre Santos. Lá já havia sido instalado o Hospital Municipal de Isolamento que já recebera 10 doentes afetados de varíola sob a vigilância e tratamento do delegado de higiene do município comissionado pelo governo do estado para debelar a epidemia (ARQUIVO PESSOAL MARIA EREMITA DE SOUZA, Caderno 139, n.p.). Tempos depois, o mesmo hospital recebeu os portadores de hanseníase, o que acabou por marcar o lugar com o nome de Lazareto, hoje Bairro Bela Vista.

2Segundo Briskievicz (2017, n.p.), em 21 de abril de 1890, “febres afetam os moradores do Bairro Mauriti (antigo Vasa Canudos), sendo nomeada uma comissão para avaliar as causas da doença. O Conselho de Intendência tomou a seguinte decisão de posse do relatório da junta médica: “o Bairro Mauriti (antigo Vasa Canudos) subúrbio desta cidade tem sido ultimamente acometido de febres de mau caráter que continuam grassando naquele lugar; para debelar este mal esta Intendência nomeou uma comissão médica do lugar a qual examinando e estudando as causas ou origem dessas febres acaba de dar o parecer dando como uma das causas primordiais o enterramento de cadáveres no cemitério de Nossa Senhora do Rosário desta cidade. Em face deste parecer que vos será apresentado pelo digno vigário desta paróquia para vosso conhecimento a Intendência resolveu que seja fechado o cemitério aludido e pede ao dito vigário para admitir no cemitério grande os cadáveres dos irmãos do Rosário respeitando assim os direitos adquiridos pela Irmandade . Saúde e fraternidade. À mesa administradora da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário da cidade do Serro. Presidente - Sebastião José Ferreira Rabelo, Secretário Antônio Araújo Costa du Cursage.” A comissão era composta por: Dr. Joaquim Bernardino Pereira de Queirós, Dr. Antônio Pinto da Fonseca e o farmacêutico Peregrino do Nascimento Moura. A decisão gerou grande mal estar na comunidade a ponto de enviarem um protesto ao Arcebispo de Diamantina, “esperando assim levantar talvez nova questão religiosa entre nós”, no dizer do Conselho de Intendência que enviou ofício ao Governador solicitando a administração do cemitério.” O poder público quis acabar com o costume de sepultar os irmãos da Irmandade do Rosário no seu próprio cemitério. Isso explica bem o higienismo: alguns grupos são escolhidos para serem higienizados preferencialmente a outros.

3A cidade do Serro é uma antiga vila do ouro, colonizada em 1702. Chamamos de jeito barroco serrano de ser as formas de ajustamento próprias e singulares, criadoras de estruturas sociais para a expressão do desejo e da vontade dos fundadores da cidade, ou seja, como a povoação inventou seu processo civilizatório (ELIAS, 1993; 1994). Por isso, a elite serrana criou uma complexa visão de mundo na tentativa de formar um costume comum, comunitário, coletivo, moralizante e moralizador, estabilizante e estabilizador em que os moradores se reconheciam construtores de uma visão de mundo própria. A moralidade serrana foi desde o século XVIII pedagogicamente ensinada às novas gerações pelo poder simbólico expresso implícita ou explicitamente pelas edificações, pelas igrejas, pelo pelourinho, pela separação das classes sociais, pela separação entre cativos, forros e homens livres, entre meninos e meninas, entre pobres e ricos. Consolidou-se o paradigma do poder simbólico (BOURDIEU, 2011) em que as relações mantidas pela coercitividade e pela centralidade dos adultos que já fizeram suas escolhas morais antes dos recém-nascidos estava por todos os lugares e espaços sociais e foi vivido e revivido pelas gerações de adultos e ensinado às novas gerações nas minas do Serro do Frio. As formas familiares, eclesiásticas, governamentais e policiais constituintes de uma sociedade são ensinadas e aprendidas cotidianamente. Depreende-se, assim, que são formas de reprodução do poder simbólico. A convivência do indivíduo em grupos é permeada por relações de poder do próprio indivíduo, de outros indivíduos, do seu grupo e de outros grupos. Assim, aprende-se de maneira formal e também de maneira informal na convivência com os outros e com os objetos da sociedade, nesse caso, a própria cidade e suas centralidades culturais, religiosas, econômicas, etc. O jeito barroco serrano de ser é o modo específico de ser, pensar e agir daquela sociedade em relações de poder simbólico reproduzidas pelas insituições sociais, como a escola, por exemplo.

4Ultramontanismo ou a doutrina do catolicismo romano conservador significa que esta veio além das colinas romanas e se espalhou pela Europa e pelo mundo; refere-se à doutrina política católica que buscou em Roma - em seu ideal de irradiação dos valores católicos para o mundo - a sua principal referência. Este movimento surgiu na França (berço da Congregação das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo) na primeira metade do século XIX. Esta doutrina reforça e defende o poder e as prerrogativas do papa em matéria de disciplina e fé. A reforma ultramontana fez surgir bispos preocupados com a orientação pastoral popular e proselitista; pregava a intolerância contra a maçonaria, o protestantismo, as mudanças dos costumes sociais como o divórcio, praticamente tudo o que representasse o moderno fazia da Igreja uma instituição retrógrada, assim vista pelas camadas mais informadas da população (LUSTOSA, 1990).

5No dia 07 de maio de 1908, esta irmã matriculou um rapaz de 15 anos por nome Raymundo Maria Barbosa de nacionalidade brasileira, residente no Serro, no primeiro ano do ciclo, não declarado pobre, na primeira turma que se formou com a inauguração do Grupo Escolar Dr. João Pinheiro. Ir. Teresa Biard se identificou como lazarista e religiosa de profissão, apresentando-se como protetora do aluno que ela matriculava. Consta que o aluno frequentou o primeiro trimestre do ano iniciado em maio e não houve registro se foi aprovado para o ano seguinte (ARQUIVO E. E. DR. JOÃO PINHEIRO DA SILVA, 1908-1909, p. 15). Teria sido ele um órfão criado com as irmãs? Por que a tutela do rapaz estava com a superiora do Colégio e do Hospital? Por que, apesar de 15 anos de idade, o rapaz ingressou apenas na primeira série?

6Segundo Freire (1997, p. 35-36), “instalaram-se seus locais de trabalho em três lugares diferentes: o corpo central administração, salas de aula, residência dos alunos além do ambulatório médico-dentário, enfermaria, sala de música, cozinha e refeitoório, tudo se abrigou no belo sobradão onde funciona hoje o Colégio Estadual Ministro Edmundo Lins. Criaram-se empregos, que foram preenchidos, quase todos, por pessoas do lugar. Creio que de fora vieram poucos: apenas um agrônomo, um mestre-de-música, não sei bem. Na Praia, assentou-se outro ponto de trabalho, no prédio que fica ao lado da Igreja do matozinhos, a Casa dos Otoni, que foi doadda ela tradicional família para tal finalidade. Ali funcionava marcenaria, uma ferraria e uma alfaiataria,e, creio, uma sapataria também. Tudo dirigido por competentes mestres, devotados e eficientes artífices. O outro local - para mim o principal - era o pólo agrícola, que funcionava na Chácara-do-patronato.”

7Segundo Lage (2011, p. 44), “dentro do discurso católico, a educação feminina serviria também como preparação para a função sagrada da mãe e esposa, necessária para valorizar a virgindade feminina. As virgens tornaram-se o exemplo da mulher cristã perfeita desde a antiguidade, já que era aquela que fazia um sacrifício incondicional à sua fé, na qual a sua santidade diferenciava-se da santidade masculina46. Enquanto virgem, a mulher aproximava-se do modelo de santidade a ser seguido, especialmente o modelo de Maria. No século XIX, o modelo mariano tornou-se um forte aliado dos ultramontanos com as diversas aparições de Nossa Senhora, em vários locais em crises políticas e religiosas, além da sua popularidade a partir do estabelecimento do Dogma de Imaculada Conceição.”

Recebido: 18 de Novembro de 2019; Aceito: 17 de Fevereiro de 2021

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English version by Mário Francisco Ianni Viggiano. E-mail: marioviggiano@uol.com.br.

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