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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.20  Uberlândia  2021  Epub 29-Ene-2022

https://doi.org/10.14393/che-v20-2021-13 

Artigos

Maio de 68: contribuições para nascer a primeira universidade de tecnologia na França

68 de mayo: contribuciones al nacimiento de la primera universidad tecnológica en Francia

1Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Brasil). mrcechin@utfpr.edu.br

2Universidade Tecnológica Federal do Paraná (Brasil). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. lapilatti@utfpr.edu.br

3Universidade de Tecnologia de Compiègne (França). bruno.ramond@utc.fr


Resumo

No mês de maio de 1968 ocorreram muitas manifestações de estudantes e de trabalhadores por toda a França e também em vários outros países. Paris foi o epicentro e o movimento ficou conhecido como Maio de 68. Entre as reinvindicações dos estudantes estava o desejo por melhores condições físicas e didáticas das universidades e a ampliação do sistema universitário francês. O objetivo deste estudo é apresentar as contribuições do Maio de 68 para a ampliação do sistema universitário na França, sobretudo para a criação da universidade de tecnologia. O estudo é bibliográfico. Os resultados evidenciam que o movimento motivou a aprovação da Lei n° 68-978, de 12/11/1968, que trata da orientação do ensino superior Francês, ampliou o número de universidade no país, criou um novo mapa para as universidades, promoveu a divisão da Universidade de Paris em 13 unidades, a partir de 1971. O Maio de 68 também foi um motivo a mais para criar a primeira universidade de tecnologia da França, a Universidade de Tecnologia de Compiègne, em 1972. Conclui-se que o Maio de 68 foi a oportunidade concreta que faltava para a efetivação de longas reflexões na França para remodelar a estrutura da universidade vinda desde a era de Napoleão Bonaparte.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; Movimentos Sociais e Educação; Criação de universidade; Maio 68; Autonomia universitária; Universidade de tecnologia

Resumen

En mayo de 1968 hubo muchas manifestaciones de estudiantes y trabajadores en toda Francia y también en varios otros países. París fue el epicentro y el movimiento se hizo conocido como mayo de 68. Entre las afirmaciones de los estudiantes estaba el deseo de mejores condiciones físicas y didácticas en las universidades y la expansión del sistema universitario francés. El objetivo de este estudio es presentar las contribuciones de mayo de 68 a la expansión del sistema universitario en Francia, especialmente para la creación de la universidad de tecnología. El estudio es bibliográfico. Los resultados evidencian que el movimiento motivó la aprobación de la Ley n ° 68-978, de 12/11/1968, que trata de la orientación de la enseñanza superior francesa, amplió el número de universidad en el país, creó un nuevo mapa para las universidades, promovió la división de la Universidad de París en 13 unidades a partir de 1971. El mayo de 68 también fue un motivo más para crear la primera universidad de tecnología de Francia, la Universidad de Tecnología de Compiègne, en 1972. Se concluye que Mayo de 68 fue la oportunidad concreta que faltaba para la efectividad de largas reflexiones en Francia para remodelar la estructura de la universidad venida desde la era de Napoleón Bonaparte.

Palabras clave: Movimientos Sociales; Movimientos Sociales y Educación; Creación de la universidad; Mayo 68; Autonomía universitaria; Universidad de tecnología

Abstract

In May 1968, there were many demonstrations by students and workers throughout France and in several other countries. Paris was the epicenter of the movement which is known as May ‘68. The students claimed for better physical and didactic conditions at universities and for the expansion of the French university system. This study aimed to present the contributions of May ‘68 to the expansion of the university system in France, especially to the creation of the university of technology. This is a bibliographical study. The results show that the movement motivated the approval of the law no. 68-978, on November 12, 1968, which addressed the French Orientation Act of Higher Education, expanded the number of universities in the country, created a new map for universities, and divided the University of Paris in 13 units, from 1971. May 1968 was also an additional reason to create the first university of technology of France, the University of Technology of Compiègne, in 1972. It was found that May ‘68 was the concrete opportunity that was lacking for the realization of long reflections in France for it to reshape the structure of its universities, which derived from the era of Napoleon Bonaparte.

Keywords: Social Movements; Social Movements and Education; Creation of university; May ’68; University autonomy; Technology university

Introdução

A instituição universidade surgiu entre os séculos XI e XIV, na Europa. Tinha objetivo de formar os doutores da igreja com conteúdo de Estudos Gerais (Studia Generali), a partir do Trivium e do Quadrivium. No século XVI, o vaticano perdeu autoridade sobre a universidade, mas é no século XVII e XVIII que a universidade, enquanto produtora do saber, entra em crise. O poder papal declinou e os soberanos assumiram o controle político das universidades. O objetivo da instituição passou a ser a formação de gestores para o estado-nação e de quadros profissionais para atender as demandas da burguesia nascente. Nessa época, a vanguarda do pensamento científico acontecia em lugares fora das universidades como em laboratórios particulares, bibliotecas e academias (ALMEIDA FILHO, 2016).

Na França, a solução encontrada para a crise da universidade foi dada pela Revolução Francesa: fechar a maioria das universidades, por elas serem associadas ao antigo regime da aristocracia decadente (BOAVENTURA, 2009). Criaram-se as Grande Écoles, instituições vinculadas ao Estado, para a formação de quadros profissionais e técnicos.

Na metade do século XIX, as universidades foram restauradas gradualmente na França, fruto de reivindicações de grupos políticos e de intelectuais.

No século XX, precisamente no ano de 1968, a universidade foi um dos focos de reivindicações do maior movimento social ocorrido em solo francês naquele século (ROTMAN, 2008), o Maio de 68. Questionava-se o ensino esclerosado e anacrônico praticado nas universidades; questionava-se os conteúdos, classificados como “matérias fragmentadas, ausência de uma visão de síntese, predominância da abstração, utilização de esquemas desvalorizados, não abertura em relação às ideias, teorias e pesquisas novas (SOARES. PERTANELLA, 2009, p.340); questionava-se a utilidade social de um conhecimento abstrato, desvinculado da prática e como a burguesia se apropriava desse saber (THIOLLENT, 1998).

O protesto eclodiu na Universidade de Nanterre, região de Paris. Os estudantes, liderados por Daniel Cohn-Bendit, e a categoria universitária reivindicavam uma nova sociedade, distante do modelo tradicional e autoritário. Com as notícias do movimento em panfletos, cartazes e jornais, além do rádio, os membros das classes trabalhadores também se mobilizaram. Estudantes e classe trabalhadora uniram-se por uma luta ideológica e por questões políticas globais, democratização, defesa das liberdades individuais e/ou coletivas, denúncia contra a guerra, entre outras questões (THIOLLENT, 1998).

O movimento foi marcado por palestras, debates e assembleias gerais, realizadas nas ruas, nas empresas, nas universidades e no governo. A intervenção oral acontecia também nos cursos magistrais, aqueles dos anfiteatros das universidades, em que se questionava os pressupostos dos professores de economia e de ciências sociais desvinculadas das implicações das lutas de classe.

O Maio de 68 passou, os lugares são outros, as pessoas e o contexto mudou. Thiollent (1998, p. 64), ao se referir aos fatos do Maio de 68, afirma que “são acontecimentos que muita gente esqueceu ou quis esquecer, porque põe em risco a manutenção do establisment acadêmico”. Põe em risco porque mostra que a universidade não se mantém com alunos, professores e sociedade expressando, juntos e nas ruas, o que pensam sobre ela. Se de um lado a interpretação de Thiollent (1998) justifica o porquê de o Maio de 68 pretender ser esquecido, por outro, existem materiais resgatando-o e valorizando-o como os escritos que recuperam as discussões de intelectuais no calor dos eventos de 1968 (SOARES; PETARNELLA, 2009), imagens, obtidas na época, revelando falas dos protagonistas e cenas dos acontecimentos em Paris (KLEIN, 2018), reportagens em canais abertos de televisão francesa com depoimentos e entrevistas com personagens que viveram o Maio de 68 na região de Paris (PLENEL; AZZOUZI, 2018a, b) e em outras regiões da França como em Hauts-de-France (DUPIRE, 2018). O resgate das percepções particulares e coletivas dos envolvidos encontram-se em língua portuguesa, focando depoimentos de quem presenciou o Maio de 68 em Paris (NU-SOL, 2008) ou estudou as mobilizações que aconteceram em várias partes do mundo, como o escrito de Carlos Fuentes, contemplando a França, Praga e o México (SANTANA, 2008), os textos da coletânea de artigos alusivos aos 50 anos do evento apresentados por Pradal; Resende (2018) com o foco nos impactos e percepções do Maio de 68 na Europa e na América Latina ou o escrito de Teixeira (2019), entre os textos da coletânea, que trata do contexto que precedeu o mês de maio de 1968 na Alemanha como também evidencia uma juventude articulada com os estudantes franceses e insatisfeitos com a universidade pouco democrática nas manifestações de Maio de 68.

Esses materiais mostram cenas, depoimentos, leituras e mantém a lembrança do Maio de 68, mesmo que após 50 anos ainda se questione se o movimento, na França, foi um mito ou uma revolução ou se foi a soma de uma revolução individual (DUPIRE, 2018). Que contribuições o Maio de 68 trouxe para o sistema universitário na França? Surgiu uma nova universidade?

O objetivo deste texto é apresentar as contribuições do Maio de 68 para a ampliação do sistema universitário na França, sobretudo para a criação da universidade de tecnologia.

O contexto de maio de 68

Maio de 1968 remete ao mês e ao ano que marcou a história contemporânea da França. Pode ser caracterizado por um ‘tempo’, que representa oito semanas, do dia 03 de maio de 1968, data que marca o início dos protestos, até 30 de junho, fim dos protestos. No aspecto sociológico, Maio de 68 foi o epicentro, situado entre o fim da Guerra da Argélia e a primeira crise do petróleo, de uma significativa mudança cultural e social. No aspecto político, é o conhecido período ‘vermelho’, que tem início na primeira bomba que os Estados Unidos da América lançam no Vietnã, em 1965, e fim em 1975, com a queda de Saigon (ROTMAN, 2008).

O Maio de 68 aconteceu de modo imprevisível (ROTMAN, 2008). Havia um contexto, pós II Guerra Mundial, que permitiu entender que há um antes e um depois ao Maio de 68 (HEES, 2008). Um fator que marca o movimento é a juventude, há muitos jovens na década de 1960. Em 1939, ano que começa a II Guerra Mundial, nasceram 612 mil crianças na França, 10 anos depois, em 1949, nasceram 896 mil crianças (VIANA, 2016). Nos anos 60, a França tinha um terço da população jovem, com menos de 20 anos, oito milhões entre 16 e 24 anos, em 1968. Jovens que prolongaram a adolescência, uma vez que antes era comum o ingresso no mercado de trabalho, com o certificado escolar, aos 14 anos (ROTMAN, 2008). A geração jovem dos anos 60 vivia a fase do rock’n’roll, dos Beatles e dos Rolling Stones, que marcaram um novo ritmo na música e agregavam um novo vocabulário à época, ídolos, a jaqueta e o jeans ao cotidiano.

A sociedade do consumo era uma realidade para todos, elementos novos como o refrigerante, a máquina de lavar, o carro e a televisão faziam parte dos desejos coletivos (BAUDRILLARD, 1995). Ruas, imóveis e usinas foram construídos. Havia um avanço científico, médico e tecnológico que fazia as pessoas acreditarem num amanhã melhor do que o dia que viviam. Havia uma crença coletiva de um progresso infalível nos anos 60.

Entretanto há de se considerar que havia as vítimas do êxodo rural francês, sem poder de compra, que trabalhavam em usinas e habitavam os HLM (Habitation à Loyer Modéré). Alienados e explorados, perderam a capacidade de reflexão. Eram 2 milhões de pessoas recebendo apenas o salário mínimo (SMIG - Salaire minimum interprofessionnel garanti), sentindo-se excluídos da propriedade.

O desemprego, que em 1968 atingia 500.000 pessoas, era outra realidade.

Havia desigualdade social em nível regional. Havia regiões extremamente atrasadas, apesar do DATAR (Délegation Interministérielle à l’Aménagement du Territoire) trabalhar para atenuar as desigualdades regionais. A ‘Descolonização da Província’ era questão política, assunto destaque em um Colóquio, da direita modernista, em 1966, em Grenoble (ROTMAN, 2008). A modernização gaulista pensava uma França a partir de uma visão própria e agia de cima para baixo, através do aparelho dirigente do Estado e do governo, isso qualificava o governo como autoritário, de diálogo verticalizado. O movimento de Maio de 68 lutara contra as instituições que estruturam tradicionalmente a sociedade usando do diálogo verticalizado como a igreja, a escola, o poder político e a empresa.

Havia um abismo entre a modernização da França e os costumes rígidos. Um exemplo desse abismo são os debates oriundos da pílula anticonceptiva. O deputado Lucien Neuwirth recebeu apoio do General Charles de Gaulle para propor a lei, que autorizaria a prescrição da pílula, seus colegas deputados desviaram o foco da votação de dezembro de 1967 para as questões morais. A moralidade ditada pelos bons costumes em confronto com a expressão individual dos desejos veio à tona no movimento de Maio de 68. Dentro dos estabelecimentos escolares não havia mistura de meninas e meninos, e as meninas eram obrigadas a usarem o uniforme cursando os liceus. Dentro da universidade, moças eram consideradas menores, mesmo depois dos 21 anos. Era proibida a entrada de rapazes nos alojamentos das meninas, entretanto era permitida a entrada das namoradas dos estudantes nos alojamentos masculinos. Em 1967, no alojamento da Universidade de Nanterre, os rapazes da Liga dos Estudantes Arnarquistas (LEA - Liaison des Étudiants Anarchistes) invadiram o alojamento feminino. A polícia foi chamada para intervir (ARTIÈRES; ZANCARINI-FOUNEL, 2008).

Havia uma superpopulação universitária e uma evidência da inadaptação da estrutura tradicional da universidade, sala de aula e maneira de ensinar, à massa jovem. O movimento contestava

a recusa do caráter classista da universidade; a denúncia da falsa neutralidade e da falsa objetividade do saber; a denúncia da percelização e tecnocratização do saber; a contestação dos cursos ex cathedra; a denúncia dos professores conservadores ligados à política do governo; o questionamento do lugar que, na divisão capitalista do trabalho, os diplomas irão ocupar; a denúncia da escassez de possibilidade de emprego qualificado (problema dos “débouchés”) (THIOLLENT, 1998).

Em pouco mais de dez anos, de 1958 até maio de 1968, o número de alunos passou dos 150 mil para 500 mil na França. Milhares de escolas foram construídas, o número de universidades foi multiplicado, muitos professores assistentes foram contratados, mesmo assim, faltavam espaços. Os anfiteatros e os restaurantes universitários estavam lotados (ROTMAN, 2008).

O questionamento do tipo de saber tratado na universidade esteve também presente nas causas do Maio de 68. Indagava-se

a utilidade social de um conhecimento abstrato, separado da prática, e sua recuperação pela burguesia. Havia (...) uma rejeição da maioria do conhecimento oferecido pela universidade, que de fato aparecia bastante obsoleto e não conseguia satisfazer as expectativas do grande contingente de estudantes do pós-guerra, especialmente na área de ciências sociais, de escassas perspectivas profissionais (THIOLENT, 1998, p.69).

Observa-se que o perfil da geração jovem de 68 não era o mesmo perfil da geração de seus pais e avôs. A geração mais velha estava desfalcada pela guerra. A nova geração se reconhecia como numerosa, criticava os costumes e valores da geração mais velha. Havia no imaginário coletivo desse grupo jovem a sensação de que era o grupo mais poderoso da sociedade e precisava de uma realidade renovada, próxima do perfil diferente do que viveram seus pais e avôs (VIANA, 2016). Era necessário um saber aplicável no cotidiano:

o saber apareceu como essencial para o desenvolvimento do país e da civilização. Havia as universidades clássicas, em que jovens de “bem” vinham aprender coisas que eram do “bem”. E outras, construídas rapidamente, como Nanterre ou Vincennes, nas quais se precipitaram um certo número de jovens revoltados, saídos da onda dos anos 40: uma juventude com vontade de saber, mas não de saber qualquer coisa, não de saber obrigatoriamente o que queriam impor os professores clássicos, mas do saber o que eram a vida e o conhecimento da vida. É esse estado de espírito que vai explodir em 1968! (NU-SOL, 2008, p.13).

A Guerra da Argélia, de 1954 até 1962, mostrou o quanto havia de imperialismo na França em confronto com a pedagogia humanista existente nos intelectuais liberais e nos estudantes. A Guerra da Argélia era uma guerra colonialista, muitos jovens sentiram-se traídos pelo Partido Comunista Francês e lutaram pela honra internacional ferida do movimento operário Francês, defendendo a independência da Argélia. Os estudantes e os intelectuais liberais se fortaleceram na luta a favor da Argélia e o movimento estudantil ganhou força (NU-SOL, 2008).

A geração de 68 tinha latente a ‘mitologia’ da II Guerra Mundial, o combate entre o bem e o mal, o fascismo e o antifascismo. Foi uma geração educada na visão de mundo preto e branco, que ouviu pelo rádio ou assistiu na televisão os povos do terceiro mundo na luta pela justiça, injustiça, pelo direito e poder, isso justifica a revolta moral, emanada das imagens da Guerra do Vietnã. Foi a primeira guerra transmitida pela televisão: “a gente assistia ao vivo os bombardeios” (ROTMAN, 2008, p. 45). A população assistia o povo de pés descalços nas lavouras de arroz, desviando-se das bombas. As imagens resgatam a simbologia dos deserdados e poderosos, dos oprimidos e dos opressores, e a revolta moral, transforma-se em revolta política contra o imperialismo.

Além do contexto já mencionado, o Maio de 68 também foi influenciado pela crise no processo de produção do tipo fordista no início dos anos 1960, em decorrência de fatores como os conflitos entre trabalhadores desqualificados, a maioria imigrantes da África e sul da Europa, que escapavam ao controle dos sindicatos (THIOLLENT, 1998).

Maio de 1968: um olhar sobre os fatos

As manifestações do Maio de 68 nascem dentro de Universidade de Nanterre. A universidade foi criada em 1964, entre terrenos vagos e bairros dormitórios. Tinha estudantes vindos do oeste de Paris, de classe social confortável, e estudantes bolsistas, que habitavam as residências universitárias (ARTIÈRES; ZANCARINI-FOURNEL, 2008).

Um dos estudantes, Daniel Cohn-Bendit, de origem franco-alemã, liderava um grupo chamado de Preto e Vermelho, dentro do Departamento de Sociologia. Esse Departamento era conhecido por não seguir os mandarins tradicionais, como as ideias de Alain Touraine ou Henri Lefèvbre, mas de ter posições contrarias às críticas e reflexões sociais (ROTMAN, 2008).

O grupo de Cohn-Bendit, a LEA, rompia com as formas de ação tradicionais da União Nacional dos Estudantes da França (l'UNEF - Union Nationale des Étudiants de France). Agindo com zombaria e provocações, o pequeno grupo era bastante ativo, na intenção de ganhar outros estudantes ao grupo.

Em 8 de janeiro de 1968, em decorrência da inauguração da piscina da Universidade de Nanterre, o Ministro da Juventude foi a cidade, momento em que Cohn-Bendit censurou uma publicação recente que tratava da juventude e que não abordava os problemas da sexualidade, tema que na visão do estudante deveria ser abordado. As leituras que Cohn-Bendit e seu grupo tinham no assunto eram do pensador freud-marxista Wilhelm Reich, estudioso que defendia a satisfação plena e o orgasmo durante uma realização sexual.

Em 20 de março de 1968, houve uma manifestação contra a Guerra do Vietnã. O Comitê Vietnã Nacional fez uma mobilização contra uma sucursal da American Express, localizada atrás da Opera, em Paris. Algumas pedras da pavimentação foram lançadas em vitrines, um estudante da Universidade de Nanterre, Xavier Langlade, foi preso. Em apoio ao estudante, Cohn-Bendit, Jean-Pierre Duteuil, que também era liderança do movimento, e o grupo LEA mobilizaram outros estudantes e decidiram ocupar a torre administrativa de Nanterre. Eram 142 pessoas reunidas, uma hora da manhã, dentro da sala de Conselho da universidade (ARTIÈRES; ZANCARINI-FOUNEL, 2008). Essa mobilização foi denominada de movimento de 22 de março em homenagem ao Movimento Revolucionário Cubano, de 26 julho de 1954, destacando a importância da simbologia internacional.

Os reflexos do movimento de 22 de março se estenderam por todo o mês de abril dentro da universidade, apesar da libertação de Xavier Langlade. Os integrantes desse movimento criaram um jornal anti-imperialista, que provocava conflitos com os professores, sobretudo porque o discurso defendia uma universidade sem a ideologia da sociedade burguesa (ROTMAN, 2008), além de invocar o profano.

No dia 02 de maio de 1968, as perturbações de Cohn-Bendit e seu grupo envolvem o professor René Rémond, que leva o fato a direção. Na escrita de Rotman (2008), René é vítima. A direção da Universidade de Nanterre entendeu que a situação exigia medidas drásticas. Não havia ambiente para a docência. Nanterre foi fechada e Cohn-Bendit e seus companheiros foram direcionados para o conselho de disciplina da universidade. A medida intencionava parar as agitações, entretanto, o que aconteceu foi o oposto.

Em 03 de maio de 1968, a direção de líderes estudantis, como chefes de facções políticas e do UNEF, organizou uma reunião de apoio aos estudantes de Nanterre, na Universidade de Sorbonne. Reuniões como aquela aconteciam periodicamente dez vezes por ano, o que os líderes fizeram foi aproveitar a situação e organizar o encontro. Reuniram-se 300 estudantes (naquela época, apenas 10% do total de estudantes eram sindicalizados). Durante o encontro, alguém anunciou que chegaria o comando do movimento de extrema direita do Ocidente e poderia haver conflito (ROTMAN, 2008). Os estudantes se precaveram com pedras e pegaram mesas para serem usadas como escudo, entretanto, nada do que foi anunciado aconteceu. A reunião não se diferenciou das outras reuniões já realizadas. Além desses estudantes reunidos, a biblioteca tinha alunos trabalhando normalmente nas atividades de final de semestre.

Foi naquele momento que a polícia, chamada pelo reitor, entrou na universidade. Poucas vezes a polícia foi chamada para entrar na universidade. Dentro da Universidade de Sorbonne, a polícia já tinha entrado em 1964. Dentro da Universidade de Caen, Nanterre e Nantes, tinha entrado em janeiro e fevereiro de 68. Dentro da Universidade de Toulouse, em abril de 68. A diferença da ação da polícia dessa vez foi a resistência e a violência contra a reação permanente dos estudantes parisienses no ‘seu’ quarteirão (ZANCARINI-FOURNEL, 2008).

Durante a entrada da polícia, os estudantes não se defenderam. Depois de algumas negociações, foram liberados para o controle de identidade. Sem explicações, a polícia decidiu fazer o controle na praça. O procedimento começou calmo, mas aos poucos foi ficando tenso e se transformou em violência. Galhos das árvores da Avenida Saint-Michel foram quebrados, sendo usados para barricada. A polícia usou gás lacrimogêneo. Um jovem foi atingido na cabeça por um pedaço de pavimento jogado por um brigadeiro da polícia e caiu. O descontrole estava estabelecido (ROTMAN, 2008).

Na noite do dia 3 para o dia 4 de maio de 1968, próximo às duas horas da manhã, os estudantes retidos foram liberados. Ainda na noite, na Escola Normal Superior, localizada no Quarteirão Latin, em Paris, aconteceu um encontro de estudantes promovido pelos movimentos esquerdistas e facções do UNEF. Parte da radicalidade do Maio de 68 pode ser explicada pela sobreposição de um grupo revolucionário às contestações libertárias e juvenis da sociedade naquela época, uma vez que o papel decisivo na primeira semana do mês foi tomado por uma minoria. Dois desses jovens vanguardistas, Alain Geismar e Alain Krivine, ao amanhecer do sábado do dia 04, após a reunião noturna, perceberam a importância do dia 03 e do processo que se estabeleceu. Decidiram explorar o fato, lançando um chamado para uma manifestação na segunda, dia 6. As reivindicações eram três, “Le retrait des forces de police, l’ouverture de la Sorbonne et la libération des prisonniers” (ROTMAN, 2008, p.61).

Durante o fim de semana a polícia parava ao acaso qualquer jovem. Também foram julgados os jovens retidos na sexta, dia 03. Quatro estudantes foram condenados há 2 meses de prisão em regime fechado.

O dia 6 de maio foi o julgamento de Cohn-Bendit e de seus companheiros no Conselho de Disciplina. A universidade de Sorbonne estava rodeada de policiais. No início da manhã eram três mil estudantes nas ruas, que se chocavam com os postos de controle da polícia. Até o fim do dia, entre 15 e 20 mil pessoas, os incidentes eram inevitáveis, começaram no início da tarde, no cruzamento Saint-Germain e se estenderam pela Praça Maubert. A tarde, a manifestação chamada pela UNEF passou pela rua Rennes e chegou à Saint-Germain-des-Prés, onde havia barricadas dos policiais. O maior número de feridos estava no cruzamento Mabillon.

Os registros fotográficos dos fatos do dia 6, nos jornais da manhã do dia 7, colocaram a opinião pública favorável aos estudantes. A televisão não registrou cenas impressionantes. Dias depois, os jornalistas da ORTF (L’office de radiodiffusion-télévision française) fizeram greve para lutar contra a censura.

No dia 07 de maio de 1968, em Paris, outra manifestação foi marcada, no final da tarde, na Praça Denfert-Rochereau. Reuniram-se 20 mil manifestantes e milhares de policiais (ROTMAN, 2008). Foi uma longa marcha, os manifestantes caminharam pela Camps-Élysée até o Arco do Triunfo. Nesse dia, o movimento ganhou dimensão. Em Paris, o reitor da Faculdade de Letras e de Ciências Humanas, Jean Roche, decide fechar a faculdade em apoio ao movimento (PAPILLON, 1968). Os estudantes de Toulouse entraram em greve por tempo ilimitado. As universidades de Nantes, de Lyon, de Lille, de Bordeaux e de Marseille entraram em greve também.

O dia 08 de maio foi dedicado às negociações entre o Ministro da Educação Nacional, Alain Peyrefitte, com a FEN (Fédération des Etudiants Nationalistes) e o sindicato dos professores. Uma manifestação ao fim do dia havia sido marcada em Paris, mas a chuva forte impediu. O apoio para os estudantes vinha de muitos professores e de personalidades importantes, como o prêmio Nobel em Física, Alfred Kastler. Apesar do Ministro mostrar-se propenso a abertura da Sorbonne, o dia terminou sem essa decisão. Fora da capital, entre 100 e 120 mil pessoas desfilaram nas cidades, um sucesso de público para os organizadores (ZANCARINI-FOURNEL, 2008).

No dia 09 foi organizada uma ‘sentada’ entorno da Sorbonne. Pacificamente, os estudantes sentaram, uma vez que não poderiam entrar. A ideia partiu de Cohn-Bendit e reuniu em torno de 3 mil pessoas (ROTMAN, 2008).

No dia 10, em Paris, na Praça Denfert-Rochereau, ao final da tarde, um encontro foi marcado. Com a solidariedade de estudantes dos liceus, o número total de pessoas chegou a 30 mil. O cortejo espalhou-se por todo o quarteirão Latin, ocupou toda a Avenida Saint-Michel, o Jardim de Luxembourg e a Praça Edmond-Rostand. As ruas pequenas, em tono da Sorbonne, foram também ocupadas. Não havia violência e os jovens conversavam entre si, até que próximo às 21h, sem que se soubesse a razão, a ‘quebradeira’ começou. Em menos de uma hora, as ruas do quarteirão Latin foram despavimentadas. Próximo à meia noite, uma delegação de professores, liderados por Alain Touraine, tentou uma mediação com o reitor da Sorbonne. Cohn-Bendit se infiltrou e entrou junto com o grupo de professores na negociação com o reitor. Cohn-Bendit reivindicava a reabertura da Sorbonne. Ao ser indagado pelo reitor o que aconteceria se o pedido fosse aceito, ele afirmou que nada, apenas faria chegar até a Sorbonne três orquestras e dançariam a noite inteira. Cohn-Bendit tinha também esse perfil zombador. Rotman (2008) afirma que nesse instante, o reitor da Sorbonne recebeu uma chamada telefônica. Era o Ministro Alain Peyrefitte. O Ministro queria saber se Cohn-Bendit estava no gabinete da reitoria. O reitor confirmou. Peyrefitte pediu que as mediações fossem interrompidas, não era recomendado negociar com Cohn-Bendit.

Até às 2 horas da manhã houve momento de calmaria, depois a polícia reprimiu as barricadas e o que se seguiu foi uma violência injustificada. O fato ficou conhecido como “a noite das barricadas”. Foram 367 pessoas feridas, 460 interpelações e 188 veículos estragados (ZANCARINI-FOURNEL, 2008).

Em Estrasburgo, como reflexo dos fatos de Paris, o entardecer do dia 10 reuniu mil estudantes, dos 17 mil matriculados na universidade, que ocupam a Faculdade de Letras, ergueram uma bandeira vermelha e reivindicaram a autonomia da universidade.

No amanhecer do dia 11, com as notícias da violência exercida pela polícia, transmitidas pelos jornais e os rádios, a opinião pública se volta favoravelmente para os estudantes (ROTMAN, 2008). Durante o dia, os sindicatos dos trabalhadores reuniram-se, tomando partido a favor dos estudantes. Os líderes dos sindicatos da CFDT (Confédération Française Démocratique du Travail) e do CGT (Conféderation Générale du Travail) chamavam para uma greve geral e manifestação no dia 13. O Primeiro Ministro Francês, Georges Pompidou, retornou da viagem oficial ao Afeganistão. Com a intenção de parar a propagação dos incidentes, cedeu aos três pedidos dos estudantes: a retirada das forças, a reabertura da Sorbonne e a liberação dos prisioneiros.

Dia 13 de maio aconteceu um grande desfile e a Sorbonne foi aberta desde a manhã, com atmosfera festiva, orquestra e pianos animando. A televisão mostrava as imagens da abertura da Universidade anunciando que, segundo os órgãos da impressa, eram 171 mil participantes (ZANCARINI-FOURNEL, 2008).

Dia 14 de maio começou a greve dos trabalhadores. A greve foi aprovada por votação na Usina Sud-Aviation de Bouguenais, no departamento de Loire-Atlantique, região Pays de la Loire. Acionada por um núcleo anarco-sindicalista, dois mil trabalhadores ocuparam a usina e sequestraram o chefe. A bandeira vermelha foi hasteada. Mais tarde, o diretor da Usina da Renault, em Cléon, foi sequestrado. A reivindicação dos operários era salarial, sobretudo para ter um teto mínimo para o SMIG (Salaire Minimum Interprofessionnel Garanti), por 40 horas de trabalho semanal e por condições de trabalho mais dignas. Do dia 14 ao dia 21 eram 6 mil trabalhadores em greve. Em 23 de maio eram mais de 7 mil grevistas. Foi a maior greve do movimento operário na França (ROTMAN, 2008). Juntaram-se aos operários outras categorias como a dos arquitetos, médicos, artistas e escrivães.

A greve operária foi caracterizada pelas ocupações das empresas. Os operários faziam piquetes de greve, passavam a noite dentro do local do trabalho, os equipamentos de trabalho não foram danificados. Para passar o tempo, os grevistas jogavam cartas e bola. Somando os manifestantes de Paris e das províncias, a polícia contou 80 mil manifestantes, o serviço de contagem somou 220 a 230 mil, os organizadores contabilizaram um milhão (ZANCARINI-FOURNEL, 2008).

Em 16 de maio, os estudantes realizaram uma marcha, saindo da Universidade de Sorbonne e indo até as portas da Renault, em solidariedade aos operários. Durante um tempo, os estudantes mantiveram um comitê de solidariedade em Paris e nas províncias. Alguns desses estudantes permaneciam junto com os operários dentro das empresas, o que fez com que a CGT (Confédération Générale du Travail), com receio de alguma reação anarquista, ordenasse aos grevistas a não permissão de entrada desses estudantes dentro das empresas, podendo, entretanto, manifestar apoio no lado de fora.

No dia 17, alguns militantes fecharam a Sorbonne e formaram um Conselho para manter a ocupação. No fim do dia, aconteceu uma marcha no Quarteirão Latin, no sentido Boulogne-Billancourt.

Dia 18, o General Charles de Gaulle retornou de sua viagem a Romênia, exigiu de Grimaud, o prefeito da polícia, e de Fouchet, Ministro de Interior, a evacuação de Sorbonne e do Odéon, repletas de manifestantes. Pompidou afirmou ao General de Gaulle não haver como retirar os manifestantes.

No dia 19 de maio, o Festival de Cannes foi interrompido. Desde o dia 17, a Associação Francesa de Crítica sugeria que o festival parasse, em apoio aos estudantes e aos operários.

No dia 21, as indústrias químicas, têxteis e automobilísticas estavam paradas, assim como os funcionários da Peugeot, Michelin, Bréguet, Citroën, da companhia de eletricidade (EDF - Eléctricité de France) e do gás (GDF - Gaz de France). Muitos servidores públicos e de grandes lojas pararam. Agrupamentos profissionais, escritores de revistas, a Sociedade dos Homens das Letras, a Ordem dos Médicos, dos Arquitetos, todos aderiram à greve (ZANCARINI-FOURNEL, 2008). Cohn-Bendit tinha nacionalidade alemã, teve a licença de permanência na França retirada pelas autoridades, que aproveitaram uma viagem do líder a Berlin e a Amisterdã para retirar a licença.

Dia 24 aconteceu uma manifestação de estudantes na Gare de Lyon, em Paris. As críticas a uma sociedade mecânica e capitalistas eram latentes. A polícia isolou a área e houve muito confronto. Um policial, na Praça do Panthéon, foi atingido por um cocktail Molotov e começou a pegar fogo. O incidente fez com que os policiais pedissem autorização ao Prefeito da Polícia para atirarem, mas uma campanha da CRS (Compagnies Républicaines de Sécurité) chegou a tempo de evitar o início dos tiros. Alain Krivini, um dos líderes do movimento, orientou para não haver pilhagem. Maurice Grimaud sugeriu que os manifestantes ocupassem, à noite, o quarteirão Latin, por ser território conhecido. Paris acordou estarrecida com os excessos de violência (ROTMAN, 2008).

Dia 25, após o meio-dia, as negociações no Ministério do Trabalho, entre o governo, os sindicatos e os patrões começaram. As negociações continuaram nos dois dias seguintes. O resultado desse evento foi chamado de Acordo de Grenelle, nome da rua onde se localizava o Ministério do Trabalho. Foi estabelecido um aumento médio de 10% no salário líquido, um aumento de 35% no SMIG e o reconhecimento da sessão sindical dentro das empresas. Entretanto, o resultado das negociações não agradou as bases do movimento operário, sobretudo os operários da Renault, em Boulogne-Billancourt. Os operários da Renault permaneceram em greve, todos os outros metalúrgicos também continuariam, entendendo que três semanas de greve era muito tempo para um aumento de apenas 10%.

Quarta-feira, dia 29 de maio de 1968, os manifestantes saíram às ruas com o slogam “governo popular”, marcando reivindicações políticas, não mais de caráter material.

Dia 30 de maio, às 16 horas, o General de Gaulle, usou o rádio, uma vez que a televisão estava em greve, e fez locução direcionada aos franceses. Logo no início da fala, anunciou: “Eu não vou me retirar”. Anunciou, também, a dissolução da Assembleia Constituinte e a organização de eleições legislativas. O povo foi para a rua. A Praça da Concordia e a Champs-Élysées acolheram entre 300 e 400 mil pessoas, segundo a avaliação do departamento da polícia, mais gente que a manifestação do dia 13 (ZANCARINI-FOURNEL, 2008).

O discurso de aproximadamente 4 minutos do General de Gaulle cessou a crise aguda, embora a greve continuasse por mais três semanas em alguns setores. A Sorbonne voltou imediatamente. Os transportes, o RATP (Régie Autonome des Transports Parisiens), as escolas e os serviços públicos levaram cinco ou seis dias para voltarem ao normal. Em algumas empresas de metalurgia e grandes usinas de automóveis, lugares de tradição operária resistente, com consciência de classe enraizada, a greve permaneceu. Foi o caso da Usina da Renault de Flins, da usina da Citroën e da usina da Peugeot, em Sochaux, em que as forças da CRS (Compagnies Républicaines de Sécurité) entraram em ação. Houve conflitos, muitos feridos e dois mortos (ROTMAN, 2008).

No dia 10 de junho, um jovem estudante do liceu, Gilles Tautin, de 17 anos, membro do movimento UJCML (Union des jeunesses communites marxistes-léninistes) afogou-se no rio Sena, numa tentativa de fuga da polícia de choque, nos arredores da Usina da Renault de Flins, em Meulan.

No dia 11 de junho, em consequência da luta entre os operários da Usina Peuget, em Sochaux, foram mortos Pierre Beylot, de 24 anos, vítima de disparo de arma de fogo das forças da CRS (Compagnies Républicaines de Sécurité), e Henri Blanchet, 49 anos, que caiu de um muro (CALINON, 2008).

Além desses dois falecidos, Maio de 68 teve outros três, no total. No dia 24 de maio, em Paris, uma granada matou um homem. Em Lyon, um caminhão em chamas, jogado pelos manifestantes na direção das forças de ordem, matou um comissário da polícia de Lacroix (ROTMAN, 2008). Em 26 de maio de 1968, morreu Philippe Mathérion, 26 anos, vítima de facada, no Quarteirão Latin (CALINON, 2008).

A greve terminou com o acordo que estipulou ganhos iguais ou superiores aos do acordo de Grenelle, com exceção da indústria alimentícia, que não foi superior a 7,5%. No setor público, o maior aumento foi o da Defesa, de mais 18%. No setor privado, o maior aumento foi na indústria petrolífera, de mais 17%. O aumento mais expressivo foi no SMIG, de 35%, a partir de 1° de julho, subindo de 2,22 fracos para 3 francos por hora de trabalho. Empresas dos ramos marginais, como a indústria têxtil e de confecções ao norte da França, que não conseguiram pagar os novos salários, realizaram demissões individuais ou coletivas (ZANCARINI-FOURNEL, 2008).

Em termos políticos, o Maio de 68, sinalizou que o tempo do General de Gaulle tinha findado; que o Primeiro Ministro Pompidou tinha força política; que a Assembleia Constitucional caminhava para ser mais conservadora que antes. No primeiro comício pós-Maio de 68, Pompidou rompeu com o General de Gaulle. Em 15 de junho de 1969, Pompidou foi eleito presidente da Quinta República da França, com 58,21% dos votos.

Entre outras consequências do Maio de 68, cita-se a aprovação da redução da maior idade aos 18 anos, assim como a aprovação da lei do divórcio e da interrupção voluntária de uma gestação, ocorrida no governo de Valéry René Marie Georges Giscard d’ Estaing (1971-1981).

A escola republicana francesa, pós-Maio de 68, foi criticada em duas vias, de um lado, foi vista como escola capitalista, instrumento de dominação social e intelectual, de outro foi a negação da escola. Ivan Illich defendeu a sociedade sem escolas, e por consequência, discutiu-se a destruição da universidade burguesa.

Contribuições do Maio de 68 para o sistema universitário da França

Apesar do Maio de 68 ter terminado e tudo ter voltado ao normal dentro da universidade (VIANA, 2016), o movimento provocou contribuições para o sistema universitário na França.

A aprovação da lei de orientação do ensino superior Francês, Lei n° 68-978, de 12 de novembro de 1968 (FRANCE, 1968), é uma das primeiras consequências diretas do Maio de 68. A lei ficou conhecida como Lei Edgar Faure, nome do Ministro da Educação após o movimento.

Essa lei é significativa por representar o fim da universidade organizada pela Terceira República de Louis Liard e pela Lei de 1896. A lei Edgar Faure cria a possibilidade de um novo tipo de universidade na França. Os estabelecimentos públicos de caráter científico e cultural (les Établissements Publics à caractère Scientifique et Culturel - EPSC), as faculdades desaparecem e são substituídas por unidades de ensino e pesquisa (des Unités d’Enseignement et de Recherche - UER). No Título I°, artigo I°, a Lei estipula que a missão fundamental da universidade é a elaboração e transmissão do conhecimento, o desenvolvimento da pesquisa e a formação dos homens1 além disso, a universidade deve responder às necessidades da nação fornecendo cursos para todos os domínios2 (FRANCE, 1968, p. 10579, tradução nossa), dar conta do desenvolvimento regional, contribuir com a orientação profissional dos estudantes e desenvolver a cooperação universitária internacional, além de ter em sua missão a formação continuada e a educação permanente.

A lei estipula os três grandes princípios da universidade: a autonomia, a participação e a pluridisciplinaridade. A autonomia diz respeito ao fato de que cada instituição é responsável por determinar seu estatuto e estrutura interna. A autonomia pedagógica defende que cada EPSC fixe o conteúdo dos programas, os programas de pesquisa, os métodos pedagógicos e as modalidades de controle do conhecimento, além disso, as UER não têm estatuto. A autonomia financeira refere-se à gestão de recursos oriundos de crédito do Estado. Cada EPSC administra seus recursos, mas está sujeita à inspeção geral da educação nacional e os gastos sujeitos à inspeção do Tribunal de Contas.

O princípio da autonomia tem restrições, as disposições incluídas na Lei e seus Decretos de execução restringem a autonomia estatutária; além dos diplomas universitários livremente definidos, os diplomas nacionais são mantidos pelas condições estabelecidas pelo Ministre de l’éducation Nacional, e não é garantido um aumento nos recursos próprios das universidades (DUPONT, 2007).

A participação é garantida por meio da eleição de conselhos para administrar as EPSCs. Cada conselho é composto por professores, pesquisadores, estudantes e membros não relacionados ao ensino, selecionadas pela competência e desempenho regional (FRANCE, 1968).

O princípio da participação é contemplado também pela criação de novos órgãos consultivos como o Conselho Nacional de Ensino Superior e Pesquisa (Conseil National de l'Enseignement Supérieur Et de la Recherche - CNESER), que inclui representantes eleitos de professores e estudantes, universidades e outras instituições de ensino superior, bem como um terço de pessoas externas que representam “grandes interesses nacionais” e os Conselhos Regionais de Ensino Superior e Pesquisa (les Conseils Régionaux de l'Enseignement Supérieur Et de la Recherche - CRESER).

O princípio da multidisciplinaridade estabelece que as universidades envolvam, na medida do possível, as artes e as letras na ciência e na tecnologia. O princípio também apresenta, no Artigo 6, a possibilidade de a universidade ter uma vocação dominante, a ideia foi dar fim às áreas isoladas contempladas pelas faculdades.

A aprovação da Lei Edgar Faure foi fruto das circunstâncias do Maio de 68, sendo facilitada porque havia intensas discussões sobre a reforma universitária desde a II Guerra Mundial. As discussões inspiraram dois simpósios em Caen, 1956 e 1966, dois números especiais da revista Esprit (maio e junho de 1964), projetos publicados nas colunas de Le Monde ou Le Figaro, o livro de Gérald Antoine e Jean-Claude Passeron, La reforme de l’université, de 1966. A Lei Edgar Faure representou também uma resposta a muitas tentativas falhas para reformar o sistema de ensino superior da era napoleônica (DESVIGNES, 2014).

Outra contribuição do Maio de 1968 para o sistema de universidade francês foi uma mudança efetiva no mapa das universidades. A França tinha 20 universidades em 1968, a maioria localizada na região de Paris, as outras, em grandes cidades. As discussões sobre a descentralização das universidades era assunto discutido desde o fim da II Guerra Mundial, assim como a criação de novas universidades (LEQUIN, 2015). Buscando evitar aglomeração de jovens universitários em Paris e de descentralizar a capital, em 1973, a França contava com 60 universidades, localizadas em todo o território, criando um novo mapa universitário (LEQUIN; LAMARD, 2016).

Entra no hall das contribuições do Maio de 68 para os franceses a nova divisão da Universidade de Paris em 13 universidades, passando a vigorar a partir de 1° de janeiro de 1971. Assim ficou a divisão: Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne), Universidade de Paris II (Panthéon-Assas), Universidade de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), Universidade de Paris IV (Paris-Sorbonne), Universidade de Paris V (Descartes), Universidade de Paris VI (Pierre-et-Marie-Curie e Campus de Jussieu), Universidade de Paris VII (Denis-Diderot), Universidade de Paris VIII (Vincennes-Saint-Denis), Universidade de Paris IX (Paris-Dauphine), Universidade de Paris X (Paris Ouest Nanterre La Défense), Universidade de Paris XI (Paris-Sud), Universidade de Paris XII (Paris-Val-de-Marne) e Universidade de Paris XIII (Paris-Nord) (LEQUIN, 2015).

O aumento do número de universidades e a descentralização da universidade de cidade de grande porte para cidade de pequeno porte espalhada pelo país são consequências do Maio de 68, entretanto, mesmo que o sistema universitário da França, existente antes do movimento de 1968, fosse questionado e existissem discussões com alternativas para atualizá-lo, forças de resistência política impediam as mudanças isso porque a função principal da universidade na sociedade francesa era “formar uma elite restrita e próxima do poder estabelecido ... o que começa a mudar nos anos de 1960”3 (LEQUIN, 2015, p. 82 - tradução nossa).

O fato de a Lei Edgar Faure possibilitar a criação de instituição pública de caráter científico, cultural e profissional foi fundamental para eclodir discussões sobre um novo modelo de universidade diferenciado, um modelo pensado há muito tempo, e que de certa maneira respondia as reivindicações estudantis do Maio de 68 no desejo de uma universidade próxima da vida profissional, das necessidades concretas das pessoas em aliar formação humana sólida com domínio do saber fazer, que promovesse um equilíbrio entre a teoria e a prática. O modelo que surgiu foi denominado, à época, depois de oscilações na nomenclatura, de universidade de tecnologia.

Como já escrito, a ideia desse modelo, na França, vem de longa data. O ensino técnico já era discutido no século XIX. A Sociedade dos Engenheiros Civis propôs, em 1848, uma ‘universidade industrial’, projeto que não se concretizou. O ensino técnico, a nível superior, teve início após 1919. Para se chegar a ideia de universidade de tecnologia muitas reflexões aconteceram, inclusive no Colóquio de Caen, em 1956, pensou-se em uma universidade experimental na área de tecnologia, mas enquanto havia um grupo preocupado em concretizar um novo modelo de universidade, havia outro grupo preocupado em manter a ideia distante da concretização. O grupo interessado em criar esse novo modelo de universidade continuamente resgatava a ideia. Em 1964, uma comissão denominada de “Réflexions pour 1985”, presidida pelo ministro da educação, Pierre Guillaumat, atribuiu à Bernard Delapalme a função de relator geral para criar uma universidade diferente, o que na época foi chamada de Universidade de Ciências Aplicadas (LEQUIN, 2015). Em 1966 a ideia de se criar uma universidade das Ciências Aplicadas é retomada pelo Diretor de Ensino Superior, Pierre Aigrain, após outro Colóquio em Caen. Nesse colóquio também se pensou em criar vinte novas universidades com estrutura para vinte mil estudantes, a intenção era deixar a região de Paris com quinze universidades e localizar as outras universidades em cidades espalhadas pela França, remodelando o mapa de localização desse tipo de ensino.

O Maio de 1968 despertou ainda mais a ideia de se criar uma universidade diferenciada na França, apesar de a ideia não ser totalmente original, o mundo anglo-saxão tinha universidades diferentes, na França ainda era um desejo. Em 1969 um grupo denominado de Paris-Nort, formado por universitários e industriais, traçaram as linhas mestras, condições administrativas e pedagógicas, para uma universidade de ciência e tecnologia para ser implantada na cidade de Villetaneuse (LEQUIN; LAMARD, 2016). Um outro estudo realizado pelo grupo DATAR (Délégation à l’Aménagement du Territoire et à l’Action Régionale) avaliou a localização e as características territoriais da cidade de Compiègene e decidiu que a cidade seria a sede da nova universidade de tecnologia, entre o fato de ser próxima de Paris, ter acesso rápido a aeroportos, ter malha rodoviária e ferroviária próxima, ser historicamente sede da primeira escola de arte e negócios da época de Napoleão Bonaparte, ser uma cidade calma e não representar potencial para tumultos universitários como os de 1968 (UTC, 2013).

Em 1970, um grupo formado pelo Ministro Olivier Guichard foi encarregado de projetar a universidade de tecnologia em Compiègne. A pedido de Guichard, Bernard Dalapalme ficou responsável de dar conteúdo mais preciso ao projeto e fazer acontecer um modelo piloto da nova universidade, fundada sobre a tecnologia. O texto foi entregue em outubro de 1971. Em 1972, o decreto n° 72-893, de 02 de outubro, criou a Universidade de Tecnologia de Compiègne (UTC), uma instituição pública de caráter científico, cultural e profissional, viabilizada pela Lei Edgar Faure e também influenciada pelos reflexos dos fatos do Maio de 68.

Atualmente (2020) a França tem três universidades de tecnologia. Em 1994 foi criada a Universidade de Tecnologia de Troyes e em 1999 foi fundada a Universidade de Tecnologia de Belfort-Montbéliard.

Um grande diferencial das universidades de tecnologia da França é que elas diplomam exclusivamente engenheiros. A realidade francesa à época dos eventos de 1968 mostrava um contraste entre a realidade industrial emergente e a formação de engenheiros que era praticamente concentrada na região de Paris, “muito especializada (portanto, não muito aberta a novos campos ou novos ramos de atividade), com lições teóricas elevadas, mas sem pesquisa e sem contato real com a realidade (os estágios ainda eram raros), todos com recrutamento limitado4” (LEQUIN; LAMARD, 2016, p. 178 - tradução nossa). A UTC surge como resposta a uma demanda concreta de formação de engenheiros.

Outro ponto marcado à década de 1970 foi que o modelo de universidade de tecnologia apresentado representava o meio termo entre o que uma universidade clássica ofertava (formação humana e teórica sólidas) e o que as escolas de engenharia ofereciam (conhecimento aplicado à prática) (LEQUIN, 2015).

a lei de orientação de 12 de novembro de 1968 promove experimentos iniciados desde o verão de 1968 (Vincennes, Dauphine) e novas configurações universitárias. No entanto, deixa uma dupla separação, que também é tipicamente francesa: primeiro entre escolas de engenharia (uma centena em 1968) e universidades, segundo entre ensino superior e pesquisa científica5 (LEQUIN; LAMARD, 2016, p.178 - tradução nossa).

A universidade de tecnologia surgiu justamente com a intenção de ser uma alternativa intermediária entre as universidades e as escolas de engenharia e entre os conceitos que envolviam o ensino superior e a pesquisa científica.

Outro diferencial é o ingresso do estudante, que acontece por uma seleção personalizada e muito diferente do ingresso do estudante à uma universidade clássica. Para ter acesso a universidade clássica, o estudante precisa ter o BAC (baccalauréat). Ter o BAC significa que o estudante obteve no mínimo 10/20 (dez sobre vinte) acertos no exame nacional aplicado após a conclusão dos estudos de liceu (equivalente ao ensino médio no Brasil). O BAC é realizado uma única vez por pessoa e contempla conteúdo acumulativo. O resultado de acertos gera uma menção. “Notas entre 12 e 14/20 são chamadas de menção Assez Bien (suficiente), notas entre 15 e 16/20 são chamadas de Bien (bem) e notas de 17 até 20/20 são chamadas de Très Bien (honrosa)” (CECHIN, 2019, p. 81). Nas universidades de tecnologia a seleção prioriza menções trés bien e bien obtidos no baccalauréat, o que significa que os alunos com intenção de se candidatar a uma vaga em uma das universidades de tecnologia são os que atingiram entre 75 e 100% de acertos no BAC. Além da análise da menção, existe uma entrevista que identifica talentos nos candidatos, sejam habilidades artísticas como música, dança, desenho, ou outras habilidades que torne particular o estudante e que o destaque da maioria. A ideia é recrutar pessoas potencialmente talentosas e inovadoras pelo princípio de que estudantes que têm perfil diferenciado produzem soluções inovadoras e criativas para resolver as situações problemas originais, oriundas dos contratos da universidade com as indústrias, principalmente locais, situações em que nem o professor tem a resposta. Notadamente, a pesquisa faz parte da graduação e pós-graduação (CECHIN, 2019).

Outra característica da universidade de tecnologia é a oferta de disciplinas como se fosse um menu, o aluno escolhe as disciplinas que estão relacionadas ao seu desejo de formação e as cursa. A ideia é ofertar desde o início do curso autonomia para o futuro engenheiro. O aluno iniciante escolhe disciplinas científicas (como física, química, matemática) e técnicas (como informática, desenho de máquinas) do tronco comum. Entre os objetivos do tronco comum estão: melhorar a capacidade do estudante “de se comunicar por escrito e oralmente, em francês e em um idioma estrangeiro”6 (UTC, 2019, p. 17 - tradução nossa) e apresentar para ele “uma abertura para as ciências humanas e sociais”7 (UTC, 2020, p.17 - tradução nossa). Depois de 3 ou 4 semestres de tronco comum, o estudante deve ter concluído um mínimo de 102 créditos divididos da seguinte maneira: conhecimento científico (48 créditos), técnicas e métodos (24 créditos), tecnologia e ciências do homem (24 créditos) e estágio (6 créditos). Esses créditos são oriundos das Unidades de Valor (UV), que constam no menu das disciplinas (UTC, 2019a). O tronco comum prepara o estudante para o branche, a área da engenharia que ele quer se diplomar. A ideia é fazer o estudante frequentar as disciplinas básicas (ou disciplinas do núcleo comum, na nomenclatura conhecida no Brasil) antes de o estudante escolher o curso. A adoção do tronco comum e das Unidades de Valor à época da criação da universidade de tecnologia dava conta das reinvindicações dos estudantes do Maio de 68 para uma universidade que atendesse as necessidades particulares do público estudantil. O que foi inovador na década de 1970, na atualidade, deixou de ser exclusivo das universidades de tecnologia, uma vez que a universidade clássica francesa adota as UVs também (CECHIN, 2019).

Outro destaque é que a universidade de tecnologia oferta um terço das disciplinas nas áreas de ciências humanas e sociais (LEQUIN; LAMARD, 2016). A formação e a atuação do engenheiro estão diretamente relacionadas à oferta de serviços para melhorar a vida do homem, ter acesso a conceitos e a teorias da sociologia, psicologia, antropologia, entre outras disciplinas de humanidades é fundamental para o engenheiro, além de conseguir se comunicar e expressar ideias sob as modalidades escritas e orais em várias línguas. Para o estudante estrangeiro é ofertada UV em língua francesa. A universidade entende que o estudante estrangeiro precisa conseguir se expressar para compreender a cultura universitária da universidade de tecnologia, a cultura do país, seus costumes, pessoas e comportamento por meio da linguagem (UTC, 2013).

Também foi inovador na década de 1970 a oferta de dois estágios para todos os estudantes que entram na universidade desde a primeira fase, isso porque é permitido o ingresso na universidade de tecnologia em vários momentos. Esse estágio pode acontecer tanto na França como em países estrangeiros. Outros dois aspectos da universidade de tecnologia dizem respeito a formação do engenheiro em cinco anos e o caráter internacional dos estudantes, característica presente desde a primeira turma (UTC, 2013).

O Maio de 68 foi elemento impulsionador para aflorar muitos anos de discussão e mexer com a estrutura universitária, possibilitando um novo mapa das localizações das universidades no território francês e a ampliação do número de universidades, também contribuiu para a criação da primeira universidade de tecnologia da França, que apesar de ter como precedentes uma eclosão de muitos fatores, foram fundamentais as manifestações do Maio de 68 e da Lei Edgar Faure. Nas palavras de Lequin; Lamard (2016, p. 192 - tradução nossa), que ao indagarem se “Podemos concluir que "a universidade de tecnologia", inaugurada em 1972, em Compiègne, é filha de lei de orientação E. Faure e mais geralmente de maio a junho de 1968?8” respondem “Sim, mas ... ou Não, ... mas9”. (LEQUIN; LAMARD, 2016, 192 - tradução nossa) é justamente a afirmação de que a lei e o Maio de 68 isolados da história das discussões e das lutas para nascer uma universidade diferenciada não fariam eclodir a universidade de tecnologia, assim como, as discussões e as versões do projeto da universidade de tecnologia durante as várias fases até a versão final não viabilizaria a UTC sem o Maio de 68 e a Lei Edgar Faure, porque existe contexto político, social e cultural que prepararam a versão final do projeto da UTC como fizeram acontecer o Maio de 68 e a Lei Edgar Faure.

Na França, a universidade de tecnologia, a universidade clássica e a escola de engenharia têm papel distinto uma da outra e perfis reconhecidos pela sociedade. No Brasil, existe uma única universidade de tecnologia, a Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), com 13 campus, em 2017, último relatório de gestão, registrava mais de 33 mil estudantes matriculados em todas as modalidades de ensino (UTFPR, 2018). A parceria entre a Universidade de Tecnologia de Compiègne e a UTFPR vem desde a década de 1970, quando a UTFPR, com a nomenclatura de CEFET-PR (Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná) enviou professores para a qualificação na UTC, depois a UTC, na ocasião da elaboração do projeto de transformação do CEFET-PR em universidade, enviou professores para apresentarem o modelo da instituição para os servidores na sede em Curitiba e também em uma das Unidades Descentralizadores, localizada em Medianeira (CECHIN, 2019). 50 anos após o Maio de 1968 ainda ele é lembrado. Ecos do movimento se escutam na França e em outras partes do mundo. A ampliação da universidade de tecnologia em território francês é um desses ecos e, com cuidadosa análise, as influências da UTC no projeto da UTFPR deixam presente no Brasil a repercussão do movimento no que tange à universidade especializada em um campo do saber.

Conclusão

O Maio de 68 foi um movimento muito intenso, ocorrido na França. Durou o mês de maio e de junho de 1968. Foi consequência de vários fatores: do grande número de crianças nascidas após a II Guerra Mundial e que estavam na juventude nos anos 60, da superpopulação universitária, da inadequação da estrutura tradicional da universidade, da sala de aula, da maneira de ensinar à massa jovem. Da sociedade de consumo aflorando, de uma França com 2 milhões de pessoas recebendo apenas o salário mínimo, de 500 mil pessoas desempregadas, de um avanço científico na sociedade, de uma crise do modo de produção fordista, de um abismo entre a modernização e os costumes rígidos, das lembranças da II Guerra Mundial, da percepção de um governo imperialista durante a Guerra da Argélia (1954-1962), entre outros fatores.

Quando as manifestações do Maio de 68 terminam, a França voltou a funcionar. As mudanças pensadas para as universidades encontraram no movimento a oportunidade para acontecerem. A reforma do ensino superior francês pensada desde o fim da II Guerra Mundial foi concretizada na Lei Edgar Faure, aprovada ainda em 1968. A ampliação do número de universidade no país, questão também discutida após o ano de 1945, aconteceu, descentralizou-se o ensino superior da região de Paris e se criou um novo mapa para as universidades no território francês. O pós-Maio de 68 proporcionou um aumento no número de universidades na França, de 20 unidades, em 1968, passou-se para 60 universidades, em 1973. A divisão da Universidade de Paris em 13 unidades é outra contribuição do movimento. Em 1972, um projeto piloto de uma nova universidade surgiu, foi criada a primeira universidade de tecnologia na cidade de Compiègne, diplomando exclusivamente engenheiros, apresenta um modelo intermediário entre as universidades clássicas e as escolas de engenharia, entre os estudos teóricos e a pesquisa aplicada, com o uso das Unidades de Valor e a oferta de um terço de disciplinas nas áreas de ciências humanas e sociais, incluindo estudos de línguas, e com estágios durante a formação.

Referências

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1L’elaboration et la transmission de la connaissance, le développement de la recherche et la formation des hommes.

2Elles doivent répondre aux besoins de la nation en lui fournissant des cadres dans tous les domaines.

3Celle de former des élites restreints er proches des pouvoirs en place … Ce qui commence à changer dans les années 1960.

4Très spécialisées (donc peu ouvertes à de nouvelles filières ou à de nouvelles branches d’activités), avec des enseignements théoriques très élevés mais sans recherche et sans véritable contact avec le réel (les stages sont encore rares), le tout avec un recrutement restreint.

5La loi d’orientation du 12 novembre 1968 favorise des expérimentations engagées depuis l’été 1968 (Vincennes, Dauphine) et de nouvelles configurations universitaires. Cependant elle laisse en l’état une double séparation, elle-aussi typiquement française : d’abord entre écoles d’ingénieurs (une centaine en 1968) et universités, d’autre part entre enseignement supérieur et recherche scientifique.

6d’améliorer votre aptitude à communiquer par écrit et oral, en français et en langue étrangère.

7d’apporter une ouverture sur les sciences humaines et sociales.

8Peut-on conclure que « l’université de technologie » inaugurée en 1972 à Compiègne, soit la fille de la loi d’orientation E. Faure et plus généralement de mai-juin 1968 ?

9Oui, mais…ou Non,…mais.

Recebido: 08 de Março de 2020; Aceito: 24 de Junho de 2020

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