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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.20  Uberlândia  2021  Epub 29-Ene-2022

https://doi.org/10.14393/che-v20-2021-38 

Resenhas

Passeios para desenhar, costurar e pensar. História do ensino de geometria e seus parceiros

Walks to draw, sew and think. History of geometry teaching and its partners

Paseos para dibujar, coser y pensar. Historia de la enseñanza de la geometría y sus socios

Elisabete Zardo Búrigo1 
http://orcid.org/0000-0003-1532-7586; lattes: 0813705231998657

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil). elisabete.burigo@ufrgs.br

LEME DA SILVA, Maria Célia. Histórias do ensino de geometria nos anos iniciais e seus parceiros: desenho, trabalhos manuais e medidas. São Paulo: Editora da Física, 2021. 182pp. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1ewifbYm7bqUcbZMlKCI3NmCzFAp60vE5/view,


Aos vinte e alguns anos de idade, a História da Educação Matemática, constituída como campo de pesquisa no Brasil e no âmbito internacional, dá sinais de maturidade. Uma profícua produção acadêmica já sustenta sínteses que se constituem, ao mesmo tempo, em suporte para a formação de professores que ensinam Matemática e para o desenvolvimento de novas investigações. O livro Histórias do ensino de Geometria nos anos iniciais e seus parceiros, de Célia Leme, faz isso e mais ainda: pela discussão das articulações entre o ensino de Geometria, Desenho, Trabalhos Manuais e Medidas, desde os 1800, no Brasil, nos convida a refletir sobre os processos complexos pelos quais matérias escolares - ou disciplinas - surgem, se modificam, fundem, separam e, eventualmente, “morrem”. É um livro, portanto, que interessa a todos nós, com formações e inserções diversas, que nos interrogamos e interessamos em compreender como os currículos escolares são reconfigurados ao longo do tempo.

Denso em provocações, referências e ilustrações, o livro é - mais um - resultado de uma sequência de projetos de pesquisa coordenados por Célia, desde 2010, sobre o ensino de geometria no ensino primário ou nos anos iniciais da escolaridade. Mas, não se trata de um texto acadêmico em que os resultados são precedidos pela apresentação detalhada do percurso da pesquisa. Dialogando com vários trabalhos, e com um público amplo de pesquisadores, estudantes e professores, o texto convida o leitor a construir seu próprio itinerário de perguntas e releituras.

A autora propõe três passeios, em que são examinadas as articulações, tensões, aproximações e afastamentos entre o ensino de Geometria e seus “parceiros”: Desenho, Trabalhos Manuais e Medidas. Como em um circuito turístico por uma cidade desconhecida, são sugeridos ao viajante possíveis pontos de “parada”, para apreciar com mais atenção esta ou aquela vista, acompanhando o texto ou examinando fontes e referência citadas. Professores e estudantes de Matemática e Pedagogia deparar-se-ão com um texto instigante, formativo e informativo sobre a história de seu próprio ofício e, portanto, relevante para a constituição de sua identidade profissional, como propõe Matos (2018); professores atentos ao desenvolvimento do pensamento geométrico, em diferentes etapas do ensino, perceberão reflexões ainda hoje pertinentes sobre aprendizagem, além de atividades e materiais didáticos que podem ser mobilizados no ensino; apaixonados por geometria encontrarão interessantes desafios de construção com régua e compasso, em extratos de manuais pedagógicos e de livros antigos; pesquisadores poderão obter referências a teses e outros trabalhos, para uma leitura mais adensada sobre temas relevantes; leitores de todos os matizes terão acesso a um amplo repertório de fontes acessíveis em acervos virtuais.

De que são feitas as matérias escolares? Enfrentando o senso comum, Célia nos lembra que elas não resultam de transposição das disciplinas acadêmicas, nem são a expressão direta das demandas que a sociedade faz à escola. Pois essas demandas são mediadas pela cultura escolar e pela interveniência de diferentes atores, com suas concepções pedagógicas, como ilustram as narrativas sobre o Desenho e a Medida. Orientações para uma geometria prática ora se articulam com práticas de imitação e memorização, ora se articulam com proposições que buscam o desenvolvimento da observação, da invenção e da faculdade de aprender. A preparação para os ofícios amplia a importância atribuída à Geometria, quando articulada ao Desenho, aos Trabalhos Manuais e à Medida; mas em diferentes momentos essa orientação se defronta com perspectivas que atribuem à escola finalidades educativas mais amplas, visando a “formação moral, intelectual e física da criança” (p. 103).

Durante o passeio, podemos atentar a outras pistas ainda: segundo o manual de Albuquerque (1829), os instrumentos - régua, transferidor, compasso - eram de uso exclusivo do professor e dos decuriões. O desenho por reprodução é consistente com essa restrição. Lembramos então que os modos de ensinar são dependentes dos suportes materiais disponíveis, dos modos como são constituídas as turmas, como os professores aprendem a ensinar... Reciprocamente, novas perspectivas pedagógicas tratam de trazer novos materiais para a sala de aula. Ao final do passeio, avançamos até os ambientes dinâmicos, como o Geogebra. Como se dá a exploração desses ambientes, hoje, nas salas de aula? Encontraríamos, talvez, resquícios das práticas de imitação, quando os alunos assistem a exposição das construções do professor em uma tela?

A escola constrói o “ensinável”, nos diz Chervel (1990, p. 200). Para ensinar geometria a crianças, é preciso seguir um caminho, uma abordagem, dispor de materiais, atividades, exercícios. Autores de manuais pedagógicos e de livros didáticos oferecem esses caminhos, a partir de apropriações, sobretudo, de manuais franceses e norte-americanos. No primeiro passeio organizado por Célia, temos contato não apenas com extratos dos livros, mas também com os debates que podem ser apreendidos a partir dos prefácios e de outros textos introdutórios, sobre um ensino de geometria mais intuitivo ou mais abstrato. Vemos que os autores se ocupam de avaliar as abordagens em voga. Nas avaliações, então, sobressaem-se as vozes dos intelectuais, das figuras eminentes. Havia, nessas vozes, ecos de falas de professores?

Em variadas passagens, somos alertados de que a articulação entre a Geometria e seus parceiros, no ensino primário, visava e visa uma educação da mente e do corpo: dos olhos, das mãos. Estamos em um mundo muito diferente do ensino secundário, que tenta imitar as práticas da geometria acadêmica, pelo apelo ao pensamento dedutivo e apontando os limites da intuição. Ao mesmo tempo, pela ênfase atribuída às construções com régua e compasso, em livros e normativas, podemos entrever ressonâncias da escola secundária na geometria dos anos iniciais da escolaridade. Como explicar essas ressonâncias? Tratava-se, também, de preparar os estudantes para a escola secundária, uma aspiração de muitos e destino de poucos? Ou as aproximações podem ser atribuídas às identificações desses autores com a cultura e os valores do ensino secundário?

Ensinava-se mais ou menos geometria, no passado? O livro nos convence de que essa questão não faz sentido. Ensinavam-se diferentes geometrias, ou melhor, propunha-se o ensino de variadas geometrias. A autora nos adverte de que pouco sabemos, ainda, sobre as práticas de ensinar geometria no século XIX, e mesmo sobre a circulação e uso dos livros e manuais. São raros os cadernos escolares daquele tempo que foram guardados e estão hoje acessíveis para consulta - em parte, porque seu uso era pouco frequente - e os registros de memória são rarefeitos. Quando avançamos para o século XX, a abundância de fontes nos aproxima do cotidiano escolar. Extratos de cadernos escolares, apresentados no livro, nos falam de uma geometria ensinada para crianças. Fotografias de salas de aula, compartilhadas durante o segundo passeio, nos mostram que os materiais didáticos de Froebel, componentes de uma proposta de educação pela intuição e imaginação, estavam presentes em salas de aula do início dos 1900, ainda que talvez não corriqueiramente.

Uma geometria para meninos, outra geometria para meninas. Trabalhos manuais para eles, trabalhos com agulhas para elas - podemos perceber aí não apenas o espelhamento da divisão do trabalho na sociedade. Pelas exposições de trabalhos, também ilustradas em fotografias, vemos a intenção da escola em ir além do exercício. Meninos e meninas são convidados a se constituírem em autores: trata-se de produzir uma obra, uma artesania.

A disciplina de Trabalhos Manuais morreu... mas suas marcas persistem. Ao final do segundo passeio, Célia nos lembra que muitas de suas práticas foram herdadas pela geometria. Outra herdeira é a disciplina de Educação Artística - o que nos faz pensar que a formação de professores não é, necessariamente, organizada a partir das matérias escolares existentes, mas pode ser constitutiva dessas matérias. Se a Educação Artística é sustentada pelos licenciados no campo das Artes, podemos pensar que os Trabalhos Manuais desapareceram por falta de quem os defendesse?

O livro não pretende - nem poderia - ser exaustivo. Ele nos convida a pensar, e pesquisar. Menciono aqui três questões suscitadas pela leitura, e que poderiam ensejar novas discussões, e novos textos.

Em alguns trechos do livro há referências ao que seria uma obra tradicional: “inicia com as definições e as propriedades das figuras geométricas, sempre representadas por um desenho ilustrativo e, ao final dos capítulos, traz um quadro sinótico que sintetiza as relações anteriormente mencionadas” (p. 41). Ou um método tradicional: “com ênfase na memorização, na reprodução de conceitos” (p. 169). Os comentários abreviados sugerem que o “tradicional” já seria conhecido do leitor. Mas, quando dizemos “tradicional”, estamos pensando em um discurso pedagógico ou um conjunto de práticas mais ou menos assemelhadas? E se existiu ou talvez exista, ainda, uma tradição, como ela se configurou? Não existiu desde sempre enquanto tal... Registro a provocação pensando que o tema pode ser desenvolvido em outros textos.

Um segundo tema, pouco abordado no passeio, talvez pela natureza das parcerias, é o das provas e exames. Como a geometria e seus parceiros participavam das provas de promoção de uma classe para outra, ou das provas de admissão ao exame secundário? Como essas provas regularam e incidiram, de algum modo, sobre a evolução da disciplina? É possível que as atuais avaliações em larga escala valorizem mais a geometria - sob o signo de Espaço e Forma, ou Grandezas e Medidas - do que o fizeram as provas do passado, concentradas em habilidades de cálculo e na resolução de problemas aritméticos. Se isso for verdade, que efeitos tem ou terá sobre o ensino da geometria nos anos iniciais? Outro tema a ser, quem sabe, desenvolvido em textos futuros.

A terceira questão está relacionada ao que Chervel (1990) denomina a “aculturação escolar”. Se tantas gerações aprenderam geometria na escola, como isso constitui nossas práticas cotidianas? O uso do sistema métrico é certamente tributário desse ensino; estimar medidas usando centímetros ou quilômetros é um hábito corriqueiro em meios urbanos e um pressuposto implícito de ser e estar alfabetizado. Mas, o que dizer das controvérsias sobre distâncias e posições quando assistimos a um julgamento de impedimento em um jogo de futebol, em que medidas no espaço são projetadas pela câmera em uma tela plana? Em tempos de pandemia, não é surpreendente que a distância entre pessoas adultas, em filas de supermercados, seja estabelecida por marcações no chão, do mesmo modo como se faz com crianças pequenas, na entrada das escolas?

No prefácio ao livro, Wagner Valente elogia a autora pelo esforço em despir-se de uma cultura disciplinar matemática para adentrar e compreender a cultura escolar primária. Adotando outro ponto de vista, parabenizo Célia por apresentar-se, em diversas passagens e ao longo de todo o livro, como professora. Ou como professora de professores. O texto que compõe o livro é construído a partir de um estranhamento, ou de muitos: não fosse o estranhamento, não haveria narrativa, muito menos três. A história seria contada diretamente pelas fontes; não é o caso. Estranhamento não quer dizer afastamento: pois só nos perguntamos quando estamos de algum modo imantados pelo objeto de pesquisa. Célia confessa, em mais de uma passagem, seu encantamento e seu compromisso com o ensino de geometria. O que torna o livro tão cativante e fecundo é que ele é construído a partir da disposição de compartilhar, ao mesmo tempo, o encantamento e o estranhamento, o que se pôde e o que se quer aprender ainda. Ele é pedagógico também nesse sentido: ao nos lembrar que, no final das contas, é para compartilhar que estudamos.

Referências

ALBUQUERQUE, Antônio Francisco de Paula de Holanda Cavalcanti de. Princípios do Desenho Linear compreendendo os de Geometria Prática pelo método do ensino mútuo. Extraídos de L. B. Francœur. Rio de Janeiro: Na Imperial Typographia de P. Plancher-Seignot, 1829. [ Links ]

CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, Porto Alegre, n.2, p. 117-229, 1990. [ Links ]

LEME DA SILVA, Maria Célia. Histórias do ensino de geometria nos anos iniciais e seus parceiros: desenho, trabalhos manuais e medidas. São Paulo: Editora da Física, 2021, 182p. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1ewifbYm7bqUcbZMlKCI3NmCzFAp60vE5/viewLinks ]

MATOS, José Manuel. Revisitando a História da Educação Matemática - fundamentos, metodologias e temáticas. In: RODRIGUES, A. et al. (Eds.). Livro de Atas do EIEM 2018, Encontro em Investigação em Educação Matemática. A Aula de Matemática. Caparica: SPIEM, 2018. p. 9-25. [ Links ]

Recebido: 09 de Março de 2021; Aceito: 10 de Maio de 2021

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