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Cadernos de História da Educação

On-line version ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.20  Uberlândia  2021  Epub Jan 29, 2022

https://doi.org/10.14393/che-v20-2021-39 

Resenhas

Saberes e práticas educativas de crianças tupinambá do século XVII

Knowledge and educational practices of the tupinambá children of the 17th century

Conocimientos y práticas educativas de los niños tupinambá del siglo XVII

Gercina Ferreira da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-7187-0359; lattes: 3794956412496654

Marcio Barradas Sousa2 
http://orcid.org/0000-0003-1481-4980; lattes: 0641896303685645

Moises Levy Pinto Cristo3 
http://orcid.org/0000-0003-0818-3668; lattes: 2226566788236807

1Universidade Federal do Pará (Brasil). ferreiragercina@gmail.com

2Universidade Federal do Pará (Brasil). mmbarradas@hotmail.com

3Universidade Federal do Pará (Brasil). moiseslevypintocristo@gmail.com

BUECKE, Jane Elisa. Educação e Infância na Amazônia Seiscentista. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2020.


O livro originou-se da dissertação de mestrado defendida em 2019 no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará. Nesta obra, Jane Buecke analisa os sentidos da infância, as práticas educativas e os saberes culturalmente produzidos na tessitura do cotidiano social das crianças tupinambá que viveram na Amazônia do século XVII. Com olhar atento, a autora empreendeu uma instigante análise dos fios e dos rastros deixados nas fontes documentais e na historiografia europeia e brasileira sobre os processos formativos dessas crianças, sob a perspectiva teórica e metodológica da História Cultural. Inserida nesse horizonte, a obra de Jane Buecke revela o protagonismo das crianças ao atuarem como mediadoras culturais capazes de catalisar as novas aprendizagens em que estavam envolvidas, redimensionando o conceito de práticas educativas e o cotidiano como peça-chave da educação, vista como cultura.

A empresa colonial estabelecida na Amazônia do século XVII empreendeu uma ousada estratégia de dominação ideológica, atrelada a um projeto de sociedade aos moldes do colonizador por meio da educação moral, religiosa e civilizadora dos indígenas, sobretudo das crianças. No livro, Jane Buecke, ao afirmar que “de fato, tais crianças não eram o ‘papel em branco’ que os religiosos acreditavam que fossem, pois já traziam consigo os saberes que lhes eram importantes, apreendidos no convívio cotidiano” (BUECKE, 2020, p. 98), aponta que, na contramão desse projeto, as crianças tupinambá protagonizaram um movimento de resistência e subversão gestado na tradição cultural de suas famílias, espaço privilegiado de trocas simbólicas, códigos identitários, produção de saberes postos em movimento entre os rituais religiosos, artes e ofícios ocorridos nos aldeamentos edificados pelas missões religiosas em que estavam inseridas.

O prefácio, intitulado “As infâncias no período colonial: os desafios das fontes documentais”, foi escrito pelo historiador Dr. Moysés Kuhlmann Jr., pesquisador sênior da Fundação Carlos Chagas, que percorre a introdução e os capítulos da obra sinalizando suas contribuições para o campo da História da Educação, o elenco de fontes - como as crônicas dos capuchinhos Claude D’Abbeville, Yves D’Evreux e do jesuíta João Felipe Bettendorff -, as cartas e o regulamento das aldeias, do padre Antônio Vieira, articuladas a referências da historiografia sobre a temática, como Philippe Ariés, Carlo Ginzburg, Gilberto Freyre, Mary Del Priore, entre outros, apontando possibilidades de pesquisa sobre o período colonial, segundo o autor, ainda pouco explorado por pesquisas históricas.

A obra está organizada em três capítulos divididos didaticamente entre os temas Infância, práticas educativas e saberes, sobre os quais a autora discorre de forma objetiva sobre as representações da infância no contexto europeu e amazônico do século XVII, abordando situações em que houve trocas de saberes, seus espaços e subjetividades conformando desse modo uma educação ocorrida no cotidiano.

No primeiro capítulo, “Olhares sobre a infância: da Europa moderna à Amazônia seiscentista” (p. 43-66), a autora explica o conceito de infância na Europa e suas implicações no contexto brasileiro, visto que a ideia de infância como a conhecemos hoje não existia no período pesquisado. A autora, embasada pelas teses de Philippe Ariés, que investigou acerca do conceito de infância na França do século XVII, relata que a escolarização e a privatização da vida familiar são aspectos importantes para se perceber a criança na sociedade, não mais como um ser adulto em miniatura, mas diferente e com outras necessidades. Essa visão de infância corrobora a identificação e o desenvolvimento de uma categoria até então recente. Mas, como comparar esse conceito formulado no contexto europeu com a Amazônia colonial? Nesse sentido, começa o grande desafio de Buecke em buscar nas fontes disponíveis formas de conceituar a infância a partir de crianças que viveram na Amazônia seiscentista. A autora destaca que o sentimento de infância já se encontrava presente nas relações tecidas entre as crianças indígenas e os seus grupos sociais, a exemplo da participação de meninos e meninas tupinambá na cultura das aldeias, nos ritos de passagem, na ludicidade das brincadeiras e tarefas que seriam determinadas de acordo com suas aptidões. Nesse sentido, a pesquisadora avança ao revelar o protagonismo e o papel social das crianças indígenas na manutenção da cultura tupinambá, suas práticas educativas e mediação cultural.

No segundo capítulo, “Práticas educativas na Amazônia Colonial” (p. 67-99), Jane Buecke descreve com riqueza de detalhes os processos formadores das crianças tupinambá na Amazônia do século XVII, cotejadas entre os escritos de D’Abbeville, Yves D’Evreux, Antônio Vieira e João Felipe Bettendorff. Tomada pelo famigerado desejo de controle e dominação das populações autóctones, a empreitada colonizadora europeia contou com o trabalho minucioso das missões religiosas, em toda a colônia, incumbidas de civilizar os nativos por meio da educação das novas gerações indígenas aos moldes cristãos, forjando uma mestiçagem cultural. O contexto histórico tratado pela autora permite identificar práticas educativas ocorridas em diferentes cenários da Amazônia seiscentista como a aldeia indígena, o aldeamento, a igreja, a escola de ofício, mas também em eventos igualmente educativos como os ritos de passagem entre os tupinambá, celebrações religiosas cristãs, a catequese, em que a atenção, o silêncio e a imitação se constituíram como peças-chave nos processos educativos mediados pela oralidade e memória, forjando subjetividades, competências e habilidades como o saber ler, escrever, contar, cultuar, revelando, desse modo, o cotidiano como educativo em uma controversa produção de saberes na qual a criança nativa se fez mediadora, resistindo e ou reinventando a lógica eurocêntrica em uma alquimia cultural.

No terceiro capítulo, intitulado “Saberes do Cotidiano na Amazônia Colonial” (p.101-129), a autora focaliza a relação entre crianças e religiosos em situações de aprendizagem a partir dos saberes linguísticos, musicais, das danças e dos saberes lúdicos e práticos, que circulavam nos aldeamentos da Amazônia seiscentista. A linguagem foi o precípuo meio para tornar a colonização bem-sucedida. Para isso, houve a utilização direta de crianças portuguesas e indígenas no ensino da doutrina e da língua aos jovens autóctones, o que implicava a decodificação e sistematização da língua indígena. A música, não autorizada pelo clero no processo colonizador, tornou-se objeto de sedução para o alcance e aproximação dos indígenas, a partir de 1555. Nesse contexto, os aspectos musicais também são analisados por Jane Buecke como prática educativa, pois as comuns repetições da doutrina católica e afazeres diários indígenas, entre as crianças e os religiosos, promoviam o aprendizado. A dança também atravessava o universo cultural indígena na Amazônia colonial, em momentos como apresentações, beberagens, bailes, cerimonias de nascimento, rituais fúnebres, rituais antropofágicos, reuniões políticas e produção de cauim. Estes momentos envolviam práticas que se tornavam objeto de aprendizagem entre os atores sociais da época. Quanto aos jogos e saberes práticos, estes se mesclavam em brincadeiras e afazeres diários, como a domesticação de animais, a pesca, e uso do arco e flecha, forjando, assim, um sistema amplo de tradução da realidade social na qual as populações indígenas e o colonizador estavam inseridos. Os religiosos captaram a importância desses saberes para os autóctones e passaram a utilizá-los como estratégia pedagógica para educação e catequização. É inegável que as relações entre o colonizador e o colonizado proporcionaram, a partir da observação de práticas indígenas cotidianas, estratégias de dominação sobre as terras brasileiras. Ao mesmo passo que os indígenas também desenvolveram mecanismos de resistência e aprendizagens com os colonizadores, como a língua e conhecimentos musicais.

A conclusão da autora é a de que, na Amazônia seiscentista, a educação das crianças tupinambá estava assentada nas práticas educativas que mobilizavam o acervo de saberes historicamente construído pelo grupo do qual faziam parte, posto em circulação em diferentes instâncias da vida cotidiana, como os ritos de passagem, a caça, a pesca, as crenças e as brincadeiras, conformando um sentimento de infância que antecede a chegada do colonizador europeu e sua concepção eurocêntrica de educar e interpretar a criança nativa como futuro cristão.

A autora destaca que as relações entre Igreja e a criança autóctone estavam atravessadas por ações relacionais sócio-pedagógicas tecidas a partir da linguagem, da dança, da música e dos saberes lúdicos e práticos do cotidiano da Amazônia Colonial. A cultura indígena, ao ser percebida como ferramenta facilitadora para a prática da colonização, passou por readaptações em proveito do colonizador.

Reveladas pela autora como mediadoras culturais, as crianças tupinambás, ao se defrontarem com o projeto colonizador de corpos e mentes promovido pelas missões religiosas no século XVII, elaboraram de forma inventiva uma alquimia cultural na qual entrelaçaram os saberes apreendidos com os missionários, ao mesmo tempo em que lhes ensinavam os saberes da sua terra, a exemplo da língua nativa, reinventando o sentido da infância no interior da cultura adulta. Logo, educar na Amazônia seiscentista não era uma prerrogativa dos adultos.

Ao afirmar que as crianças “não absorviam passivamente a cultura imposta pelo catolicismo, mantendo forte vínculo com a sua cultura e sua forma de aprender” (BUECKE, 2020, p. 133), a autora considera que o projeto colonizador não parece ter sido bem-sucedido no sentido de docilizar os corpos e as mentes dos infantes amazônidas, já que as fugas dos aldeamentos em direção às matas constituem um fator sintomático dessa resistência, ao lado da reinvenção de danças católicas, por exemplo, em que as culturas tupinambá e europeia estavam mescladas.

Diante dos limites e imposições das fontes, Jane Buecke ocupou-se em lançar luzes sobre as crianças tupinambá, sujeitos anônimos da nossa história, suas artes de fazer, educar e reinventar o cotidiano frente ao projeto colonizador europeu. Ademais, lacunas ainda não preenchidas sobre a história da criança na Amazônia seiscentista são sinalizadas pela autora, provocando o atento leitor a sair em busca de respostas, seguindo os fios e os rastros de uma história que aguarda para ser contada ao mundo.

A obra de Jane Buecke é inovadora, mobiliza um reconhecido conjunto de fontes, estimula possibilidades de pesquisas que se proponham a reinterpretar as experiências socioculturais das crianças da Amazônia colonial. Trata-se de uma importante contribuição ao campo da educação e da história da educação na Amazônia.

REFERÊNCIAS

BUECKE, Jane Elisa. Educação e Infância na Amazônia Seiscentista. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2020. [ Links ]

Recebido: 21 de Fevereiro de 2021; Aceito: 10 de Abril de 2021

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