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Cadernos de História da Educação

On-line version ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.20  Uberlândia  2021  Epub Jan 29, 2022

https://doi.org/10.14393/che-v20-2021-55 

Resenhas

Diários, cartas e cadernos de poesia: arquivos pessoais e ego-documentos na pesquisa e no ensino de história

Diaries, letters and notebooks of poetry: personal archives and ego-documents in research and in the teaching of history

Diarios, cartas y cuadernos de poesía: archivos personales y ego-documentos en la investigación y en la enseñanza de la historia

Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0003-0374-3355; lattes: 3049179956990311

Keila Queiroz e Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-3142-7731; lattes: 8319598000382239

1Universidade Federal de Campina Grande (Brasil). giuseppedeoliveira9@gmail.com

2Universidade Federal de Campina Grande (Brasil). keilaqueirozesilva@gmail.com

CUNHA, Maria Teresa Santos. (Des) Arquivar: arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. São Paulo: Florianópolis: Rafael Copetti Editor, 2019. 182pp.


Em (Des) arquivar: arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente (2019), Maria Teresa Santos Cunha, apresenta um livro que reúne estudos produzidos nos últimos anos, e, já publicados em periódicos especializados noutros momentos.

Os artigos que compõem esse livro são portadores de um tempo acumulado, foram escritos em temporalidades distintas, textos que testemunham histórias de encontros, desencontros, proximidades e distâncias, que trazem como temática os arquivos pessoais e os chamados ego-documentos.

Os arquivos pessoais comportam documentos de textualidades plurais como cartas, diários pessoais, álbuns de poesias e autobiografias, sendo estudados e mostrados em suas interações discursivas - entre o visto e o escrito - e na sua materialidade - do manuscrito ao impresso.

São redutos de sensibilidades no campo historiográfico do Tempo Presente, criam possibilidades de buscar traços descontínuos e vestígios sobre passados que imprimem inteligibilidade àqueles tempos. Trata-se, enfim, de fazer emergir o passado do presente, cruzando o global e o local em textos que anunciam uma revolução documental em que ondas de memória acabam por unir e agitar com intensidade as sociedades contemporâneas.

Os ego-documentos são considerados aqueles que, resistindo ao fogo e/ou ao lixo, foram preservados e se referem às experiências pessoais com um intuito de guardar a si próprio. Os ego-documentos se referem, portanto, à diversidade das formas de expressão escrita dos sentimentos e experiências pessoais.

Por intermédio deste ponto de vista, um ego-documento é um texto de qualquer forma ou tamanho, em que ele se esconde ou descobre deliberada ou acidentalmente um ego. “São textos em que um autor ou autora, escreve, por si mesmo ou através de outro, sobre suas vivências (diretas ou conhecidas), sentimentos e pensamentos.” (CUNHA, 2019, p. 11-12).

O livro está organizado em duas partes: arquivos pessoais e documentos da intimidade, eixos que permitem pensar a escrita de um tempo em diversos suportes.

A primeira parte do livro - Arquivos Pessoais, é composta por quatro artigos, sendo eles: “Essa coisa de guardar...Homens de letras e acervos pessoais”, “Tempos vividos na escola militar: memórias de um aluno (1897-1900)”, “Lembranças escolares em um arquivo pessoal: bordejos sobre a formação de Lucas Alexandre Boiteux1 na Escola Naval” e “O arquivo pessoal do professor catarinense Elpídio Barbosa2: do traçado manual ao registro digital”.

Os três primeiros capítulos que compõem a primeira parte do livro, abordam a trajetória intelectual de Lucas Alexandre Boiteux, refletindo em torno da formação de um perfil de homens de letras e do seu acervo pessoal, da cultura escolar, e, das suas lembranças escolares na Escola Naval do Rio de Janeiro durante os anos de 1897 e 1903.

Os estudos tiveram como fonte os cadernos de rascunho da série de escritos “Bordejos sobre meio século de Marinha”, que foi publicada por Lucas Boiteux, às quintas-feiras, no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro em uma periodicidade que variava de duas a três semanas, entre janeiro e junho de 1955.

Maria Teresa chamou atenção ao substantivo que dá título às memórias de Lucas Boiteux, que estava vinculado à sua condição de homem do mar. “Bordejar” significa navegar mudando com frequência o rumo, segundo a direção do vento, assim, navegava-se em ziguezague, de modo cambaleante.

A escolha deste termo - marítimo, por excelência - sinalizava o teor dos escritos. Pode-se considerar que as memórias que ele pretendia contar não obedeceram, necessariamente, uma direção fixa, elas poderiam “vagar”. “Não há compromisso em seguir uma direção cronológica precisa, o objetivo parece ser narrar o vivido.” (CUNHA, 2019, p. 23-24; 43).

O acervo, alvo desses estudos, foi doado pela família Boiteux ao IHG/SC em agosto de 1989, sendo composto de cerca de 40 mil documentos, onde é possível encontrar cartas, recibos, atestados, certidões, produções intelectuais do autor analisado e de seus contemporâneos, recortes de jornais, folhetos, mapas eleitorais, fotografias e uma coleção de cartões postais de Florianópolis no período que compreende desde fins do século XIX até as primeiras décadas do século XX.

A grande maioria desses documentos apresentam-se enriquecidas com anotações pessoais que permitem variadas leituras, notadamente no âmbito dos estudos e pesquisas para a História da Educação. Para Maria Teresa, a tarefa do historiador, aqui, “[...] consiste em problematizar essas fontes mediante um ato significativo de interpretação para descobrir outros mundos possíveis e deles extrair um universo mental e material das elites.” (CUNHA, 2019, p.19-21).

O trabalho com esse material autobiográfico tornou possível buscar evidências de como Lucas Alexandre Boiteux viu e representou aspectos de sua formação escolar e, mais amplamente, examinar a relação entre escrita e memória. Nos relatos feitos é possível encontrar algumas práticas cotidianas que caracterizavam uma cultura escolar da época que englobava toda a vida escolar. “A natureza desses documentos publicizados pelo jornal implica entendê-los como discursos que formalizam práticas e veiculam representações sobre elas.” (CUNHA, 2019, p.32).

É importante destacar que é sob essa perspectiva que os artigos apresentados sobre Lucas Boiteux se ancoram, ou seja, se encontram na singularidade de um escrito aparentemente menor, um discurso, uma lembrança traduzida em memória a ser transferida para a esfera da história e problematizada pela construção de uma narrativa.

Escrita em letra manuscrita, muito corrigida e alterada à mão, parece ter sofrido significativas mudanças antes de sua publicação em jornal, a partir de 1955, e pode ser ainda analisada na perspectiva dos estudos da História da Cultura Escrita. “As memórias, quando historicizadas, oferecem novas e interessantes possibilidades para iluminar aspectos da cultura escolar em que foram socializados futuros militares, pois colocam ênfase na ideia de sua formação.” (CUNHA, 2019, p. 47; 62).

No último capítulo da primeira parte, Maria Teresa apresenta um estudo sobre o arquivo pessoal do professor catarinense Elpídio Barbosa. A reflexão sobre esse educador/professor e inspetor, que em determinado momento de sua vida resolveu constituir e guardar tomos com diversos recortes para uso em sua vida profissional, permite que se considere importante tais documentos na estrutura de seu pensamento educacional.

Entre recorte, fotografias de visita escolares e registros de comemorações pessoais, o arquivo pessoal deixado por Elpídio Barbosa autoriza a refletir sobre tempo, história e acontecimento, e pode, enfim, atestar a existência de um passado que caracteriza e reverbera, hoje, a experiência no tempo. “São, enfim, testemunhos de um mundo desfeito cujas evidências deixadas pelos documentos do arquivo podem contribuir para reconhecer parte da nossa estrutura educativa.” (CUNHA, 2019, p. 78).

A segunda parte do livro - Documentos da Identidade: cartas, diários, álbuns e cadernos, é composta por cinco artigos, sendo eles: “Do baú ao arquivo: escritas de si, escritas do outro”, “A ‘bio’ que foi grafada: gênero e modelos geracionais no diário de MRRH”, “Uma vida em primeira pessoa: leituras e ego-documentos de uma professora brasileira”, “‘Por hoje é só...’: cartas entre amigas” e “Copiar para homenagear, guardar para lembrar: cultura escolar em álbuns de poesias e recordações”.

Produzidos em segredo e guardados em baús e caixas, materializados em papel e tinta, os diários eternizaram, em folhas amareladas pela passagem do tempo, ideias, saberes, valores, acontecimentos e dizeres. São representações de um tempo que produz, hoje, sentidos à ordem existente. Ainda como reduto de sensibilidades, os diários íntimos, na qualidade de fontes históricas, prestam-se a um processo de interpretação, uma vez que comportam o simbólico, podendo-se a partir deles, compor histórias.

Tomar conhecimento, hoje, do teor dessas escritas íntimas permite pensar nas diferentes formas acerca das quais se dá a constituição da subjetividade, a circulação de modelos geracionais, a construção de gênero. Os diários íntimos são fontes importantes, potencialmente férteis e capazes de ajudar no esforço de compreender a história.

Esses apontamentos permitem pensar sobre a presença e a escolarização de práticas de cunho religioso e católico no calendário da escola pública brasileira, sinalizando para aspectos relativos à formação de professoras, seja pelos conteúdos curriculares, seja pelas leituras indicadas no corpo dos diários.

Maria Teresa mostra nessa sessão que, desde a última década do século XX, vêm se intensificando os estudos sobre escritas cotidianas e práticas epistolares das pessoas comuns, chamadas de escrituras ordinárias ou escritos sem qualidade, abrindo-se cada vez mais, um rico campo para as pesquisas sobre práticas e funções culturais da escrita na sociedade letrada que se desenvolveu a partir do século XIX. Como tema de estudo, as cartas e os diários são considerados objetos nos quais estão imbricadas práticas sociais e são, portanto, passíveis de análise na perspectiva da História Cultural.

A última fonte analisada pela autora são os álbuns de poesia, elemento ritual muito frequentes entre o final do século XIX e os anos 60 do século XX para celebrar a amizade durante o tempo escolar. Os álbuns, suportes de uma cultura escrita, anunciavam um mundo de delicadezas, um lugar para os afetos, um espaço para o exercício caligráfico de se reproduzirem poemas, sonetos e máximas para homenagear.

De igual maneira, os álbuns mostraram padrões de sociabilidade, “[...] cunharam sensibilidades, marcaram subjetividades e, se já não são produzidos no interior da escola, outras trocas escritas com motivações semelhantes se anunciam nas redes sociais.” (CUNHA, 2019, p.99; 101; 131; 147-148; 179).

Ao finalizar a leitura deste livro, percebe-se que investigar a intimidade não é tarefa fácil. Esses documentos do cotidiano de homens e mulheres comuns têm como destino comum o descarte. Mas, a partir daqueles que guardaram seus escritos, é possível articular debates, e interpretar os registros de pessoas comuns.

O livro também mostra que a produção de arquivos pessoais e de ego-documentos também têm se ressignificado com o advento das redes sociais e das tecnologias da informação, alteram forçosamente as formas de arquivamento e as leituras dos arquivos e ego-documentos na história do tempo presente.

REFERÊNCIAS

CUNHA, Maria Teresa Santos. (Des) Arquivar: arquivos pessoais e ego-documentos no tempo presente. São Paulo; Florianópolis: Rafael Copetti Editor, 2019, 182p. [ Links ]

1Nasceu na cidade de Nova Trento, SC, em 1880, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1966. Ingressou na Escola Naval, no Rio de Janeiro em 1897 e seguiu carreira militar na Marinha do Brasil, chegando ao posto de contra-almirante no ano de 1951. Pertenceu a diversas entidades culturais, como o IHGB, IHG/SC e a Academia Catarinense de Letras, notabilizando-se também, como historiador de temas navais, com vasta produção historiográfica (CUNHA, 2019, p. 44).

2Nascido em 1909 em Florianópolis, SC, teve a vida dedicada às atividades educacionais, ocupando cargos variados dentro de instituições de ensino e legislativas. Foi professor, diretor de grupos escolares e deputado na Assembleia Estadual de Santa Catarina pelo Partido Social Democrático - PSD - entre os anos de 1951 e 1955 (CUNHA, 2019, p. 70).

Recebido: 10 de Março de 2021; Aceito: 15 de Abril de 2021

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