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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.20  Uberlândia  2021  Epub 29-Ene-2022

https://doi.org/10.14393/che-v20-2021-41 

Resenhas

O olhar das professoras na escrita da História da Educação

The view of teachers in writing the History of Education

La mirada de las profesoras en la redacción de la Historia de la Educación

Kellen Jacobsen Follador1 
http://orcid.org/0000-0003-2289-8272; lattes: 3989971009436970

1Universidade de São Paulo (Brasil). Bolsista Capes de Doutorado. kellenjf@usp.br

VIDAL, Diana Gonçalves; VICENTINI, Paula Perin. Mulheres inovadoras no ensino: São Paulo nos séculos XIX e XX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2019.


O livro é fruto de um projeto internacional “Mulheres e inovação docente. São Paulo e França nas décadas de 1860-1960", firmado entre a Universidade de São Paulo e a universidade francesa Sorbonne Paris Cité. Foi organizado por Diana Gonçalves Vidal e Paula Perin Vicentini, igualmente autoras e pesquisadoras do projeto. As demais autoras são igualmente pesquisadoras integrantes do projeto, sejam alunas de doutorado, pós-doutorandas ou professoras universitárias. O livro foi escrito por mulheres professoras que investigaram e escreveram parte da história de outras mulheres professoras.

Lembremos que a História é escrita a partir do tempo presente e as interpretações acerca da História enquanto tempo passado são “construções historiográficas e apropriações contemporâneas que ajudam a definir o lugar e a relevância desses estudos na contemporaneidade” (BOVO, 2017, p. 135). Logo, “o passado que conhecemos é sempre condicionado por nossas próprias visões, nosso próprio presente. Assim como somos produtos do passado, assim também o passado conhecido (a história) é um artefato nosso” (JENKINS, 2009, p. 33). Nesse sentido, as narrativas construídas sobre a trajetória profissional das mulheres biografadas passam por aquilo que as fontes permitem conhecer e pela lembrança e esquecimento inerentes às biografadas, pois como afirma Paul Ricoeur (2007), o esquecimento está ligado à história, pois o ser humano não é capaz de tudo narrar. Além disso, as narrativas construídas passam pela historicidade das autoras, pois são mulheres professoras biografando a trajetória de mulheres professoras. Nesse sentido, aflora o lugar de fala que problematiza questões de gênero na Educação e enfatiza a necessidade de reescrevermos parte da História da Educação a partir de um grupo politicamente minoritário, mas numericamente soberano: as professoras.

Diversas foram as trajetórias narradas, limitadas em parte pelo o que as fontes possibilitaram conhecer acerca das biografadas. Algumas pesquisadoras foram agraciadas pela vida, que as brindou com um encontro pessoal e um relato oral da professora biografada. Outras tiveram acesso apenas a fontes documentais em arquivos públicos e/ou particulares. A tipologia das fontes é variada, fotografias, testemunhos orais, fontes literárias, documentos oficiais, cadernos de registro, dentre outros. Para alguns casos, conhecer a trajetória profissional das biografadas não foi tarefa fácil. Ainda mais difícil foi conseguir dados sobre a vida pessoal. Aquelas que faziam parte da elite paulista ou de famílias com maior prestígio social tinham sua vida particular publicizada nos jornais (a exemplo de Alice Meirelles Reis, e das irmãs Iracema e Noemy da Silveira), mas, para a grande maioria, principalmente as mulheres das camadas populares, o anonimato e a invisibilidade na vida pública era a regra.

Apesar da invisibilidade e da “não-voz” à qual a maioria das mulheres estava submetida, essas professoras lutaram contra o silenciamento, esquecimento e o descaso do Estado de diferentes modos, e os registros das atividades no cotidiano escolar, as obras acadêmicas e literárias foram os meios escolhidos por várias delas para contar suas histórias e experiências. As obras literárias, em especial, foram canal de queixa das mazelas, descaso e falta de isonomia sofridas pelas professoras, como denunciaram Violeta Leme Fonseca (1905-1935)1, sob o pseudônimo de Dora Lice, em seu romance de 1928 O calvário de uma professora; e Botyra Camorim Gatti (1917-1962) em Coisas que acontecem (1986), uma de suas obras.

Dislane Zerbinatti Moraes apresenta Violeta Leme Fonseca que nos brinda com a sua historicidade e critica duramente o discurso educacional das décadas de 1910-1920, especialmente a contradição entre o discurso de valorização das professoras e uma realidade marcada por falta de condições de trabalho, baixos salários e falta de perspectiva na ascensão profissional, já que a “carreira docente” era muito mais um benefício destinado aos homens, problema muito denunciado por diferentes professoras biografadas neste livro. Por sua vez, Botyra Camorim Gatti, biografada por Wiara Rosa Rios Alcântara, descreve em suas obras as dificuldades encontradas pelas professoras que trabalhavam nas escolas isoladas. Problemas relacionados à moradia, alimentação, condução, falta de estrutura dos prédios escolares, falta de material escolar, falta de apoio e compreensão por parte dos fazendeiros, pais de alunos, etc.

Os relatos de Botyra e Violeta Leme convergem com o de outras professoras e descortinam um momento da história educacional no Brasil no qual parte da população ainda não compreendia muito bem a importância da educação na vida dos filhos, principalmente em um período onde a educação das meninas não era prioridade e a dos meninos, em se tratando da zona rural, ser vista com desconfiança pelos pais por precisarem da criança na lida com a lavoura.

Sobre os desafios enfrentados pelas professoras que desbravaram o sertão paulista e sobre a desigualdade no acesso à “carreira docente”, a trajetória de Olinda Magarotto dos Santos (1967-1985), reconstruída por Angelica Pall Oriani, torna-se exemplar. Sua história profissional foi relatada em entrevista e corrobora as obras de Botyra Camorim e Violeta Leme. A professora lembrou que concluiu os estudos e se casou contra a vontade do pai que queria que ela fosse freira. Apesar de formar-se normalista aos 19 anos, em 1953, apenas começou a lecionar em 1967, após o casamento e a autorização do esposo que também era professor. Aliás, a progressão do esposo “puxou” Olinda para escolas mais próximas da cidade onde residiam, devido a um dispositivo legal que obrigava a remoção de cônjuges para que pudessem trabalhar mais próximos. A promoção do marido, segundo Olinda, adiantou sua remoção em pelo menos sete anos. O caso de Olinda é um exemplo da desigualdade de gênero nas promoções e ascensão profissional no magistério. Homens ascendiam e ocupavam cargos de direção com menos tempo e experiência docente em relação às mulheres, uma lógica perversa do magistério estudada por Demartini e Antunes (1993) como “profissão feminina e carreira masculina”.

Apesar dessa falta de igualdade na “carreira docente”, o livro descortina trajetórias de mulheres que se esforçaram para buscar seu espaço no meio profissional, seja na sala de aula, em cargos na administração pública ou no cenário político-educacional, como Carolina Ribeiro (1913-s/d). Raquel Abdala Duarte reconstrói parte do caminho percorrido por Carolina Ribeiro, que transitou por esses três mundos e ousou ocupar cargos considerados como masculinos e reverter as amarras do magistério como “profissão feminina e carreira masculina”. Outra professora que buscou reverter essa lógica foi Maria Antonieta Mendes de Castro (1912-1962), uma das primeiras educadoras sanitárias do Brasil e que ascendeu profissionalmente assumindo um cargo de chefia na Inspetoria de Educação Sanitária de São Paulo, como demonstrado por Claudinéia Maria Vischi Avanzini.

Todas as biografadas de algum modo inovaram na educação. Essa é a defesa que Vivian Batista da Silva faz de Madre Ninetta Jonata (1887-1976), Madre Geral das Mestras Pias Filippini e cuja vida esteve dedicada à educação de meninas pobres, principalmente na cidade de São Paulo onde a congregação se instalou na década de 1960. Igualmente religiosa, mas com um perfil “transgressor” no que se refere ao ensino feminino, Benedita da Trindade do Lado de Cristo (1828-1853) teve sua história contada por Fabiana Garcia Munhoz.

Driblando imposições sociais de sua época, Benedita do Lado de Cristo por mais de vinte anos não ensinou às suas alunas as prendas domésticas previstas na legislação paulista. No século XIX, a instrução feminina deveria ser muito básica, dando condições de a mulher apenas assinar o nome, ter uma capacidade leitora que a possibilitasse ler os missais ou uma novela e realizar as quatro operações matemáticas. O mais importante era a mulher ser preparada para cuidar da casa, do marido e dos filhos. Nesse sentido, a negativa de Benedita em ensinar as prendas domésticas levou a discussões no âmbito da instrução pública a ponto de a professora ser convocada para dar explicações sobre a ausência desse “componente curricular” em suas aulas. A “rebeldia” da professora resultou, anos depois, na exigência de saberes relacionados à economia doméstica nos exames para o cargo de professora pública na província de São Paulo. Ainda no século XIX, assim como Benedita, Deolinda de Paula Machado Fagundes (1870-1890) desafiou o poder público. Seus relatórios, de acordo com Rita de Cassia Gallego, deixam claro o perfil crítico, questionador e não submisso às instâncias superiores da administração escolar.

Outras professoras foram destaque devido aos métodos inventados ou aplicados, em diferentes frentes, como a experiência do “ensino rural” de Noêmia Saraiva de Matos Cruz (1914-s/d) no Grupo Escolar Rural de Butantan entre as décadas de 1930-1940. Por meio da “pedagogia da ação”, Noêmia aliava o programa de ensino oficial às atividades rurais. A professora registrou suas atividades em fotografias, livros, cadernos de alunos, apresentação em congressos, jornais seculares e educacionais e em um livro no qual abordou sua experiência no Grupo Escolar de Butantan. Devido a esses esforços, seu trabalho ficou conhecido em todo o Brasil e ainda hoje é exemplar e inspirador, como mostra o texto escrito por Ariadne Lopes Ecar.

Também voltada para o protagonismo infantil foi a proposta pedagógica da professora e bibliotecária Iracema Marques da Silveira (1919-1966), biografada por Diana Gonçalves Vidal. Depois de vários anos como professora, Iracema atuou como bibliotecária, função na qual se aposentou, na Escola Primária Modelo Caetano de Campos. Para além da sua experiência como professora e na formação de bibliotecas infantis, as relações sociais construídas pela família e por Iracema, principalmente com Carolina Ribeiro, diretora da escola à época, provavelmente tiveram influência em sua trajetória e, especialmente, na nomeação para o cargo em 1939. Essas relações construídas pelas professoras também podem ser lidas como táticas (no sentido “certoniano”) para a ascensão profissional, num contexto no qual a diferença de gênero e o machismo estrutural privilegiavam os homens na carreira do magistério.

Na biblioteca infantil da Escola Primária da Caetano de Campos, Iracema desenvolveu com outras professoras um projeto que seguia os preceitos da Nova Escola e que alcançou destaque nacional. Tratava-se do jornal escolar Nosso Esforço, que perdurou por mais de trinta anos. Tudo na biblioteca foi pensado para incentivar o protagonismo infantil, das atividades desenvolvidas pelos jornalistas, editores e bibliotecários mirins até os móveis do recinto. Além da administração da biblioteca e do projeto, Iracema traduzia livros estrangeiros para o português a fim de democratizar a leitura de diferentes obras.

Dentre os primeiros alunos jornalistas que participaram do jornal Nosso Esforço, destacou-se como professora Ilka Brunhilde Laurito (1961-1966), cujo percurso foi investigado por Fernanda Franchini. Na década de 60, Ilka passou a usar filmes como recurso didático e, em decorrência do envolvimento com essa atividade, ousou ocupar espaços hegemonicamente masculinos, como os clubes e eventos voltados para especialistas em cinema. Ilka Laurito foi uma das sementes plantadas no jornal Nosso Esforço que germinou, cresceu e deu frutos, uma vez que, além de professora ela foi escritora e cronista do jornal O Estado de São Paulo.

Também receberam destaque na mídia as professoras que se dedicaram a alunos com deficiência em uma época na qual a educação especial não era uma modalidade de ensino. Nesse sentido, Paula Perin Vicentini e Josiane Acácia de Oliveira Marques, respectivamente, destacam os esforços de Maria José Tristão Parise (1953-1985) e Zuleika de Barros Martins Ferreira (1911-1955) para tornar a educação um direito de todas as crianças, especialmente aquelas com deficiência. Maria José ganhou destaque e foi homenageada em 1961 pelo governador de São Paulo por alfabetizar uma aluna que havia nascido sem as mãos, ensinando-a a escrever com a boca. Por sua vez, Zuleika de Barros Martins Ferreira (1911-1955) preocupava-se com a educação de alunos cegos, motivo pelo qual dedicou-se à formação e especialização de professores.

As professoras biografadas buscaram se atualizar (cursos, graduação em nível superior, viagens ao exterior) e estiveram atentas às discussões pedagógicas do período no qual lecionaram. Aquelas que concluíram o curso normal nas décadas de 1920-1930 foram marcadas, por exemplo, pelo escolanovismo. Uma dessas professoras foi Alice Meirelles Reis (1923-), que fotografava as atividades desenvolvidas com os alunos, como o teatro infantil, e viajou para os Estados Unidos, Europa e América do Sul para conhecer e se inspirar em projetos e práticas pedagógicas sobre o Jardim de Infância, como demonstram Ariadne Lopes Ecar e Rafaela Silva Rabelo.

No fervor da defesa da educação pública, bandeira alçada pelos escolanovistas, duas professoras iniciaram a vida profissional e conquistaram espaço na recém-criada Universidade de São Paulo. Amélia Americano (1941-1961), enquanto professora da disciplina de Didática Geral na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP, teve grande importância na difusão das ideias e obras de Jean Piaget no Brasil, como relata Katiene Nogueira da Silva. Em paralelo, o texto de Rafaela Silva Rabelo, destaca que Noemy da Silveira Rudolfer (1918-1954), professora do Instituto de Educação da USP e signatária do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, consagrou-se no Brasil e no exterior nos estudos sobre psicologia educacional.

Uma questão que chama a atenção é que as professoras biografadas cujas famílias possuíam algum destaque social ou relações políticas com membros da elite paulista, e principalmente paulistana, não foram enviadas para o sertão paulista. As normalistas recém formadas eram indicadas ou conquistaram uma vaga para trabalhar na capital, em escolas modelo como a Caetano de Campos ou em grupos escolares. Quanto a isso, paira no ar uma pergunta que o livro não responde, talvez porque a princípio esse não fosse seu objetivo: qual o peso das relações políticas e sociais entre membros da elite paulistana na indicação e ascensão profissional na área da educação? Por que algumas professoras da elite paulista ou de famílias abastadas não eram enviadas ao sertão paulista?

Não obstante a ausência dessa problematização, o livro Mulheres inovadoras no ensino toca em discussões que ainda são muito atuais, como a representação da mulher e seu papel social; o difícil cotidiano de professoras que eram mães e chefes de família; a disparidade de direitos entre homens e mulheres no mercado de trabalho e na ascensão profissional; a falta de recursos das escolas, a desvalorização das professoras, baixos salários, discurso das autoridades que enobrecem a profissão, mas que na prática não são seguidos por ações que demonstrem esse valor social; culpabilização dos professores pelos problemas de ensino; falta de diálogo entre os professores e as leis/normas educacionais, dentre outros. Por vezes, ao ler as biografias, a impressão que temos é que as tramas se confundem e aspectos profissionais ou do papel social que se espera que as mulheres desempenhem são de tal modo embaralhados que duvidamos se estamos lendo os relatos de vida de uma mulher e professora do século XIX e inícios do século XX ou do século XXI. Permanências e rupturas que nos fazem refletir sobre o tempo presente, sobre o papel da mulher na sociedade brasileira, sobre questões de gênero, de inserção no mercado de trabalho, sobre isonomia e, por fim, mas não menos importante, sobre a escrita da História.

Agradecimento

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Referências

BOVO, Cláudia Regina. El tiempo en cuestión: ubicar la Edad Media en la actualidad. Revista Chilena de Estudios Medievales (Chile), n.11, 2017, p.134-155 [ Links ]

DEMARTINI, Z.B.F; ANTUNES, F.F. Magistério primário: profissão feminina, carreira masculina. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n.86, p.5-14, ago.1993. [ Links ]

JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Contexto, 2009. [ Links ]

RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007. [ Links ]

VIDAL, Diana Gonçalves; VICENTINI, Paula Perin (org.). Mulheres inovadoras no ensino: São Paulo nos séculos XIX e XX. Belo Horizonte: Fino Traço, 2019. [ Links ]

1As datas são relativas aos anos de atuação profissional até a aposentadoria, de acordo com o que foi disponibilizado no livro resenhado.

Recebido: 08 de Fevereiro de 2021; Aceito: 10 de Abril de 2021

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