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Cadernos de História da Educação

On-line version ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub Sep 13, 2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-74 

Dossiê 1 - Contribuições da literatura para a História da Educação

O romance Canção de ninar e a relação entre as mulheres, a educação e o trabalho.

La novela Canção de ninar y la relación entre las mujeres, la educación y el trabajo.

Raquel Lazzari Leite Barbosa1 
http://orcid.org/0000-0002-7688-8486; lattes: 0734650628154687

Mariana Montanhini da Silva2 
http://orcid.org/0000-0003-2066-5651; lattes: 1548745786876242

1Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Brasil). raquel.leite@unesp.br

2Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Brasil). mariana.montanhini@unesp.br


Resumo

Com base na temática feminina abordada no romance francês Canção de Ninar, de Leïla Slimani, esse artigo propõe um estudo sobre a relação entre algumas questões de gênero, educação e trabalho. Em que pese ser uma história situada na atualidade, apoiado na leitura desse livro pode-se permitir abordar aspectos históricos, desde meados do século XIX, período no qual as mulheres foram incorporadas às relações laborais exteriores, para entender como foi forjada a problemática envolvendo gênero, educação e trabalho, que ultrapassa o tempo histórico, e oferecer aspectos, a partir dos quais se pode perceber uma configuração social referente ao papel das mulheres na atuação profissional. Isto posto, o romance Canção de Ninar, torna-se um recurso como móvel de formação e conhecimento da realidade social e histórica.

Palavras-chave: História de mulheres; Ensino; Estudos literários

Resumen

Basado en el tema del femenino abordado en la novela francesa Canção de ninar/ Chanson douce, de Leïla Slimani, ese artículo propone un estudio sobre la relación entre algunas cuestiones de género, educación y trabajo. Aunque se trate de una historia situada en el tiempo presente, apoyada en la lectura de este libro se puede permitir abordar aspectos históricos, desde mediados del siglo XIX, periodo en el que las mujeres se incorporaron a las relaciones laborales externas, para comprender cómo se forjó la problemática que involucra al género, la educación y el trabajo, que va más allá del tiempo histórico, y ofrecer aspectos, a partir de los cuales se puede percibir una configuración social referida al papel de las mujeres en el desempeño profesional. Así, la novela Canção de ninar/ Chanson douce se convierte en un recurso como formación móvil y conocimiento de la realidad social e histórica.

Palabras clave: Historia de mujeres; Enseñanza; Estudios literarios

Abstract

Based on the female theme addressed in the French novel Canção de ninar/Lullaby/ chanson douce, by Leïla Slimani, this paper proposes a study of the relationship between some issues of gender, education, and work. Despite being a history situated in the present time, the reading of this book can allow us to approach historical aspects, since the middle of the 19th century, the time in which women were incorporated into labor relations, in order to understand how the problematic involving gender, education and work was forged, which goes beyond historical time, and offer aspects, from which one can perceive a social configuration referring to the role of women in professional performance. Therefore, the novel Canção de ninar/Lullaby /Chanson douce becomes a resource as a mobile for training and knowledge of social and historical reality.

Key Words: Women histories; Teaching; Literary studies

Nana neném,

que a Cuca vem pegar.

Papai foi pra roça,

mamãe foi trabalhar.

Cantiga de ninar brasileira1

A tradicional cantiga brasileira Nana neném, de domínio público, é essencialmente uma canção de terror. A criança pequena representada pelo termo neném na canção, fora deixada sozinha pelos seus responsáveis, uma vez que os versos papai foi pra roça e mamãe foi trabalhar indicam a partida dos pais para suas respectivas responsabilidades profissionais. Essa criança seria atormentada por uma criatura mitológica retratada pela figura da Cuca2, caso insistisse no ato de não dormir. Entretanto, antes de ser um terror infantil, a canção Nana neném é também, um terror feminino.

Esse “acalanto” tão comum nos lares brasileiros deixa evidente a diferença existente entre as representações de gênero e suas respectivas relações com o trabalho e, consequentemente, com seus papéis relativos à ordem familiar. Verificando em outras versões tradicionais dessa mesma cantiga3, a criança também corre perigo por estar desacompanhada, já que sua família não está presente. Em todas versões clássicas desse acalanto, o papai foi para a roça, ou seja, o homem está trabalhando e, portanto, cumprindo com o seu papel de mantenedor do lar. O trabalho masculino é nomeado - ir para a roça, ou seja, um trabalho rural, digno e honesto.

No entanto, a mesma cantiga apresenta a mulher como um personagem que rompe com a organização familiar, uma vez que não está presente em casa, porque a mamãe foi trabalhar. Nessa versão, não é dado um nome para o trabalho da mulher, fato responsável por uma certa redução de valor do ofício feminino, já que o ouvinte desconhece qual a profissão dessa mãe, levando a conclusões indefinidas sobre a distinção desse trabalho, ainda mais se comparado ao oficio de trabalhador rural designado no verso anterior e relacionado ao gênero masculino.

Em uma outra versão dessa cantiga 4, com os três primeiros versos idênticos aos três primeiros versos da canção anterior, a última parte da estrofe também é dedicada ao gênero feminino que, por sua vez, não está presente no lar e volta já. A saída da mulher de sua casa, nesse caso, não indica algum tipo de relação profissional, visto que a expressão mamãe volta já traz em si uma noção de curto período de ausência do lar. Dessa forma, nessa versão da cantiga, o papel do gênero feminino representado sugere que a mulher não possui uma ocupação externa às tarefas domésticas, fato que a imobiliza na posição de cuidadora da família e da casa, ou seja, a mulher recatada, já que quase não sai de sua casa, e do lar.

Há também uma terceira versão bastante conhecida da canção Nana neném5, que apresenta a mesma estrutura com relação aos três primeiros versos das versões já citadas anteriores. Contudo, nessa terceira versão da cantiga, a mamãe foi para o cafezal. Aqui a figura materna está ausente do lar porque tem um trabalho, e seu trabalho tem um nome, já que, assim como a figura paterna, essa mulher também é trabalhadora rural. No entanto, a criança ainda corre perigos por estar só em casa, uma vez que, mesmo reconhecendo o trabalho da mulher, a Cuca ainda assombra o bebê.

Ao comparar o verso mamãe foi trabalhar, com mamãe volta já, nas diferentes versões da canção Nana neném, fica perceptível a compreensão de que o ofício feminino profissional remunerado e externo ao espaço da casa seria considerado menos importante que sua atuação diante das suas tarefas domésticas não remuneradas, pois o ato de não nomear o trabalho feminino o coloca num lugar de não existência, uma vez que “identidade e diferença partilham de uma importante característica: elas são o resultado de atos de criação linguística”. (SILVA, 2007, p.76, grifo nosso)

E ainda que o trabalho feminino seja autenticado, quando nomeado como um ofício no cafezal, na terceira versão da música, a criança, todavia padeceria por estar só, demonstrando que, independentemente de o trabalho da mulher ser reconhecido, a representação do feminino mais relevante ainda está associada ao meio familiar.

Assim como a cantiga brasileira Nana neném, o romance francês Canção de ninar, de Leïla Slimani, também levanta reflexões sobre as representações de gênero e suas relações com o trabalho. Leïla Slimani é uma escritora e jornalista franco-marroquina, nascida no início dos anos 1980 em Rabat, Marrocos. Ao final de sua adolescência mudou-se para Paris, França, com o objetivo de concluir seus estudos. De educação ao mesmo tempo mulçumana e francófona, a autora é um dos nomes promissores da literatura francesa contemporânea. Suas obras literárias têm em comum o universo silencioso das mulheres, pois escancaram a solidão e introspecção que permeiam a vida feminina nas mais diversas culturas. Nas palavras da própria autora, em entrevista à plataforma Fronteiras do Pensamento em 20186, suas obras foram criadas para abordar estas mulheres “devoradas por uma forma de melancolia, por uma forma de violência, aspectos que escondem”.

A obra literária Canção de ninar, original em francês Chanson douce, publicada em 2016, pela Éditions Gallimard, foi vencedora do Prêmio Goncourt de literatura francesa no mesmo ano de sua publicação. No Brasil, Chanson douce foi traduzida por Sandra Stroparo e reproduzida pelo selo Tusquets da editora Planeta, em 2018. Essa obra, segundo a autora, foi inspirada em fatos reais, na história verídica de uma babá dominicana julgada por duplo homicídio em 2012, na cidade de Nova York.

O romance é anunciado como um suspense psicológico e apresenta a história de Myriam e de Louise. Quando Myriam retorna ao mercado de trabalho, depois de se tornar mãe, ela e seu marido decidem contratar Louise como babá de seus dois filhos. Inicialmente a relação entre a família e a babá é aparentemente muito agradável. Aos poucos, no entanto, essa relação se revela em uma situação de dependência entre ambas as partes e o acúmulo dos pequenos desgastes cotidianos resultantes dessa situação culmina na tragédia que norteia o enredo, apresentada logo nas primeiras linhas dessa obra: a babá assassina as duas crianças, Mila, a garotinha e Adam, o bebê.

A tensão que transforma esse romance em um suspense psicológico acontece de forma quase imperceptível ao leitor, pois a narrativa se desenvolve a partir de eventos banais da configuração do relacionamento social. Entretanto, é justamente a partir dessas pequenas disputas de poder do homem comum que a tensão narrativa ganha corpo e torna-se sufocante para o leitor. O suspense, nessa obra, é fruto dos episódios do dia a dia de pessoas comuns.

Sob o recorte da temática feminina, esse artigo propõe um estudo sobre a relação entre algumas questões de gênero, educação e o mercado de trabalho. Em que pese ser uma história situada na atualidade, apoiado na leitura desse livro pode-se permitir fazer uma incursão histórica desde meados do século XIX, período no qual as mulheres foram incorporadas às relações laborais sociais, para entender como foi forjada a problemática envolvendo gênero, educação e trabalho, que ultrapassa o tempo histórico e que tangencia as relações sociais ainda na atualidade.

O desenvolvimento desse artigo conta primeiramente, com uma revisão sobre a perspectiva do recorte de representações de gênero como categoria de análise histórica. Em seguida, o texto aborda os elementos discursivos estruturais presentes no romance Canção de ninar, destacando a análise dos personagens femininos Myriam e Louise, cotejando a construção literária das personagens com as relações entre gênero, educação e trabalho, a partir da metade do século XIX.

Segundo Franco Junior (2003, p. 38), “a personagem é um dos principais elementos constitutivos da narrativa. É sobre ela que recai, normalmente, a maior atenção dispensada pelo leitor, dada a ilusão de semelhança que tal elemento cria com a noção de pessoa”. O personagem é significativo na narrativa pois é o primeiro elemento presente no texto que estabelece ligações diretas com o leitor. Sendo assim, o destaque dos dois personagens femininos centrais, Myriam e Louise, pode ser compreendido como uma representação metonímica para ilustrar a história da educação e do trabalho das mulheres desde meados do século XIX.

Já a literatura é a manifestação artística por meio do uso especial da linguagem escrita, carregada de sentido, no mais alto grau possível (POUND, 1976), que busca representar os feitos de todos os homens em decorrência de todos os tempos. É uma criação do homem sobre as suas próprias criações, e assim, está qualificada para formar o ser humano por meio de vivências indiscriminadas, livre de prejuízos conceituais imbricados na sociedade.

Para Candido (1999), a literatura tem a capacidade de confirmar a humanidade do homem, na medida em que desperta o pensamento crítico sobre as relações sociais em seu leitor. Dessa forma, a obra literária pode e deve ser estudada como fonte dos mais diversos saberes, para as mais diversas áreas do conhecimento.

é difícil pôr de lado os problemas individuais e sociais que dão lastro às obras e as amarram ao mundo onde vivemos [...] há no estudo da obra literária um momento analítico, se quiserem de cunho científico, que precisa deixar em suspenso problemas relativos ao autor, ao valor, à atuação psíquica e social, a fim de reforçar uma concentração necessária na obra como objeto de conhecimento; e há um momento crítico, que indaga sobre a validade da obra e sua função como síntese e projeção da experiência humana. (CANDIDO, 1999, p. 82)

Trazer a literatura para o ensino é valer-se de um grande recurso como móvel de formação e conhecimento da realidade social e histórica, pois a obra literária expõe as vivências sociais de forma despretensiosa, atendendo a vontade de saber sobre as diversas áreas do conhecimento, dos mais diversificados leitores.

E é isso sem dúvida que faz com que a obra literária possa por vezes dizer mais, mesmo sobre o mundo social, que muitos escritos com pretensão científica (sobretudo quando, como aqui, as dificuldades que se trata de vencer para chegar ao conhecimento são menos obstáculos intelectuais que resistência da vontade); mas ela o diz apenas de um modo tal que não o diz realmente. O desvendamento encontra seu limite no fato de que o escritor conserva de alguma maneira o controle do retorno do recalcado. A formalização que ele opera funciona como um eufemismo generalizado e a realidade literariamente desrealizada e neutralizada que propõe permite-lhe satisfazer uma vontade de saber capaz de contentar-se com a sublimação que lhe oferece a alquimia literária. (BOURDIEU, 1996, p. 48)

Assim, aparar-se na obra literária Canção de ninar para se obter uma visão histórica da educação e da profissionalização das mulheres desde meados do século XIX, é valer-se de um recurso indiscutivelmente eficiente para a promoção do processo reflexivo sobre as relações que sempre compuseram essa tessitura social.

Mamãe foi... pra onde? - História das mulheres, história das representações de gênero

O lugar da mulher é nos livros de história. Anne Firor Scott, Presidente da Organização dos Historiadores Americanos na década de 1980, declarou tal citação em 1979. Contudo, a história sempre fora considerada como uma criação masculina, sobre os feitos masculinos. Para Bock (1989, p. 158), “a experiência masculina, tanto na como da história, era equiparada à história geral, à história em geral”. A história e a historiografia das mulheres foi uma temática marginalizada ao longo dos anos pelas investigações nesse campo de conhecimentos.

Apesar do aumento de publicações sobre a história das mulheres durante o século XX, o estudo do tema ainda exigia uma mudança de pressupostos que embasavam as categorias tradicionais da compreensão histórica. Para Bock (1989, p. 160),

não era somente as mulheres na história, mas antes a história das mulheres, a experiência das mulheres na e da história, de uma história que, embora não sendo independente da história dos homens, é, apesar de tudo, uma história específica das mulheres enquanto mulheres. As mulheres permaneceram invisíveis fundamentalmente porque elas, as suas experiências, atividades e espaços não foram considerados merecedores da análise histórica.

Entender o passado sob essa nova perspectiva historiográfica das mulheres pode significar uma maior compreensão das estruturas que pautam as relações sociais e consequentemente, os processos históricos de desenvolvimento das sociedades. Segundo Bock (1989, p. 164), “é tão discutível separar a história das mulheres da história geral como separar a história dos homens - e ainda mais a verdadeira história geral - da história das mulheres. O que significa que a história das mulheres diz respeito não apenas à metade da humanidade, mas a toda.” Dessa forma, a história das mulheres pode também ser compreendida como a história dos gêneros e de suas representações.

O gênero é compreendido por Scott (1990, p. 14) como “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder”. Já as representações são, para Chartier (1990, p. 17),

Variáveis consoante às classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias do grupo. São estes esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças as quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornarse inteligível e o espaço ser decifrado.

As representações podem ser entendidas como conceitos construídos ao longo do percurso histórico, absorvidos pelos diversos nichos sociais, que carregam ideias e ideais capazes de ressignificar o momento e os sujeitos atuais. Ou seja, “no primeiro sentido, a representação é instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é”. (CHARTIER, 1990, p. 20)

Isto posto, refletir sobre a história da educação e do trabalho das mulheres sob a perspectiva de gênero e de suas representações significa compreender as diversas formas com que as mulheres vêm sendo retratadas no decorrer histórico e cultural, o que pode auxiliar na compreensão das mesmas questões que ainda tangenciam as relações femininas com a sociedade atual.

Isto significa que, em alguns períodos da história, mulheres são primariamente definidas como agentes reprodutivas, em outros como educadoras das crianças da nação, e até como as executoras da moralidade, e novamente como subversoras da razão. Elas são às vezes equiparadas com a natureza; em outros tempos, identificadas com a cultura. Em alguns períodos, elas foram entendidas como tendo a mesma alma dos homens, em outros elas foram distinguidas pela sua falta de razão. (SCOTT, 2012, p. 336)

Quando a cantiga Nana neném vira história - os elementos constituintes do discurso narrativo no romance Canção de ninar.

Pode-se dizer que o romance Canção de ninar apresenta dois personagens principais que oscilam entre o protagonismo e o antagonismo: Myriam e Louise. Ora vilãs, ora heroínas, a mãe e a babá são personagens aparentemente estereotipadas, que por fim conquistam um alto grau de densidade psicológica, ou seja, marcam-se “pela alinearidade no que se refere à relação entre os atributos que caracterizam o seu ser (a sua psicologia) e o seu fazer (as suas ações)” (FRANCO JUNIOR, 2003. p. 39).

Ambas as personagens são apresentadas em seu íntimo por um narrador heterodiegético7, onisciente e neutro, fato responsável por conduzir o leitor pelos imbricamentos psicológicos de cada uma das personagens sem influenciar em possíveis posicionamentos dos leitores diante dos eventos narrados. Myriam é a personagem evidenciada durante a primeira parte da narrativa, seguindo pelo destaque a Louise na segunda metade da obra.

Há dois tempos presentes nessa narrativa: o objetivo e o subjetivo. O tempo objetivo ou cronológico é marcado pela passagem das estações de ano e dos meses - Os parquinhos nas tardes de inverno (SLIMANI, 2018, p.94), durante aquele dia lindo de maio (SLIMANI, 2018, p. 181), dos dias e das horas - Os dias de abatimento sucedem aos de euforia (SLIMANI, 2018, p. 159), às seis da tarde (SLIMANI, 2018, p. 168), além dos eventos como o aniversário de Mila e as férias da família Massé.

O tempo subjetivo, ou psicológico, para Aguiar e Silva (1988) é o tempo das experiências subjetivas das personagens, seu tempo vivencial. A narrativa apresenta o tempo subjetivo de forma anacrônica, por meio de analepses8 e prolepses9, fato responsável por revelar os personagens sob uma perspectiva muito mais aprofundada, além de ser um dos recursos criadores do clima de suspense sugerido pela leitura da obra.

A narrativa também é realizada em ultima res, recurso muito comum em romances policiais, uma vez que que o discurso narrativo se inicia com o acontecimento pertencente ao desfecho da diegese, que nesse caso específico é o assassinato das crianças pela babá.

O espaço oscila entre aberto, tais como parques, praias, casas de campo, etc., e fechado como o apartamento da família e o apartamento da babá. No entanto, a caracterização do espaço fechado não pode ser dissociada das personagens principais, pois tanto o apartamento de Myriam, quanto o apartamento de Louise refletem o estado emocional das personagens.

No início da narrativa, o apartamento da família Massé é um espaço angustiante, apertado e desorganizado - É o menor apartamento do edifício [...] eles dormem em um cômodo apertado (SLIMANI, 2018, P. 10), [...] procuram desesperadamente arejar o apartamento que os sufoca (SLIMANI, 2018, p. 13) - que se transforma em um ambiente calmo, arrumado e acolhedor com a chegada da babá - Louise empurrou as paredes. Deixou os armários mais profundos, as gavetas mais largas. Ela fez a luz entrar a luz. (SLIMANI, 2018, p. 28), [...] Louise faz desse rascunho de apartamento um perfeito interior burguês (SLIMANI, 2018, p. 28).

A personagem Myriam também é apresentada como uma mulher irritada e desajeitada devido ao acumulo de funções advindas com a maternidade - [...] ela usava uma calça larga demais, botas velhas e estava com os cabelos sujos presos num coque (SLIMANI, 2018, p. 17), [...] ela sentia cada dia um pouco mais a necessidade de ficar sozinha e tinha vontade de gritar como uma louca na rua (SLIMANI, 2018, p. 15) - que, após a chegada de Louise, se converte em uma mulher bem apresentada e feliz que se dedica a sua realização profissional e familiar - [...] acordou ao amanhecer com uma excitação infantil. Pôs uma saia nova, saltos altos [...] (SLIMANI, 2018, p. 33), deitada no sofá, com Adam nos braços, ela sorri com uma ternura maravilhosa. (SLIMANI, 2018, p. 56).

Já o apartamento da babá é apresentado como um espaço extremamente limpo e organizado - O apartamento só tem um cômodo, que Louise faz de quarto e sala ao mesmo tempo. Ela toma o cuidado, a cada manhã, de fechar o sofá-cama e cobri-lo com uma capa preta. (SLIMANI, 2018, p. 26), gosta de limpar os vidros, freneticamente, duas vezes por semana (SLIMANI, 2018, p. 25) - que se transmuta para um ambiente fétido e sujo - [...] deitada, doente, no apartamento com vidros sujos. (SLIMANI, 2018, p. 133), ela odeia esse lugar. Está obcecada pelo cheiro de podridão que vem do box do banheiro. (SLIMANI, 2018, p.133).

Louise também sofre uma transformação no decorrer da narrativa, já que no início é apresentada aparentemente como uma mulher calma e metódica - Junta do chão as sapatilhas compradas há mais de dez anos, mas das quais cuidara tanto que ainda pareciam novas (SLIMANI, 2018, p. 26), canta o dia todo para esse bebê cuja preguiça admira. (SLIMANI, 2018, p. 31) - que acaba por adquirir uma instabilidade emocional com o desenrolar da narrativa - Chega domingo e o tédio e a angústia continuam. (SLIMANI, 2018, p. 75), Louise ri menos, brinca com menos vigor na corrida de cavalinhos ou nas guerras de almofadas. (SLIMANI, 2018, p. 177).

Ao aprofundar as reflexões a respeito das personagens, pode-se propor um paralelo entre sua construção diegética e a história da educação e da profissionalização sob o recorte da perspectiva do gênero feminino.

Mamãe para o cafezal - A luta feminina por reconhecimento público

Myriam é uma das personagens principais. É a mãe das crianças Massé e quem decide retornar ao mercado de trabalho após um hiato em sua carreira devido a maternidade. Sua personagem é principalmente apontada na primeira metade da narrativa.

Sobre sua relação com a educação, Myriam é caracterizada como uma mulher que se empenhou para conseguir o acesso à educação formal: “Pensava nos esforços que tinha feito para terminar os estudos, apesar da falta de dinheiro e da ajuda da família, na felicidade que sentira ao ser admitida na Ordem, na primeira vez que usara a beca de advogada [...]” (SLIMANI, 2018, p. 15).

Myriam também é descrita como a estudante mais séria que ele já tinha encontrado, (SLIMANI, 2018, p. 18), quando a personagem reencontra Pascal, um antigo colega da faculdade. Também é quem interrompe sua carreira devido aos acordos familiares em decorrência dos filhos:

Myriam estava terminando o curso de Direito quando ficou grávida de Mila. Formou-se duas semanas antes de dar à luz. Paul somava um estágio ao outro, cheio de otimismo que seduzira Myriam quando ela o conheceu. Ele tinha certeza de que poderia trabalhar por dois. (SLIMANI, 2018, p. 13)

A relação entre o gênero feminino e a educação formal sempre foi complexa. Isso porque a mulher esteve relacionada, ao longo dos anos, com o espaço interno, privado, já que seu papel estava ligado apenas com a gravidez e com os cuidados domésticos. A partir do século XVIII e, principalmente do século XIX, a mulher passou também a frequentar o espaço público, uma vez que a sociedade moderna necessitava sobretudo de mão de obra para a demanda profissional que as revoluções de produção industrial haviam criado.

Apesar das correntes iluministas, a escolarização das meninas ainda estava precarizada durante esse período histórico, se comparada à escolarização dos meninos. Segundo Aries (1981) as meninas aprendiam a leitura, a escrita, as operações matemáticas e os afazeres domésticos, enquanto os meninos da mesma idade podiam frequentar colégios, entrando em contato com disciplinas das áreas de humanidades e de ciências da natureza. As instituições de ensino, para as poucas meninas da elite que as frequentavam, eram geridas pela Igreja que, sob o pretexto de oferecer uma educação de qualidade, tratava de moldar a figura feminina conforme as exigências de manutenção do status quo.

Ao longo da história ocidental sempre houve mulheres que se rebelaram contra sua condição, que lutaram por liberdade e muitas vezes pagaram com suas próprias vidas. Mas a chamada primeira onda do feminismo aconteceu a partir das últimas décadas do século XIX, quando as mulheres, primeiro na Inglaterra, organizaram-se para lutar por seus direitos, sendo que o primeiro deles que se popularizou foi o direito ao voto.

Segundo Almeida (1998, p. 27), “com o movimento feminista e na esteira das reivindicações pelo voto, o que lhes possibilitaria maior atuação política e social, a domesticidade foi invadida e as mulheres passaram a atuar no espaço público e a exigir igualdade de direitos, de educação e profissionalização”. A constatação da capacidade feminina em exercer trabalhos fora do ambiente doméstico foi o primeiro grande passo para a aquisição do direito feminino à educação formal.

Entretanto, a profissionalização das mulheres via academia, durante a segunda metade do século XIX e início do século XX, foi marcada pela resistência contra a misoginia dominante nas instituições de ensino.

Estes (os estudantes parisienses do final do século XIX) apreciavam as costureiras, jovens operárias que cuidavam de seus lares e camas, mas recusavam qualquer presença feminina, quer se tratasse de conciliábulos políticos ou simplesmente de cursos. Quando Julie Daublié, de posse de um bacharelado conquistado sob grande luta em 1861 (em que a intervenção do saint-simoniano lionense Arlès-Dufour e da imperatriz Eugênia), decidiu, no curso dos acontecimentos, preparar uma licenciatura em Letras, que só foi autorizada pelo reitorado de Paris com a condição de não frequentar os cursos, para evitar qualquer contestação; ela o fez, portanto, como autodidata. Em 1893, o curso do professor Larroumet, na Sorbonne, foi vaiado “em protesto contra a presença das mulheres no anfiteatro”. Os professores eram também bastante reservados, notadamente em Direito, disciplina cuja austeridade parecia incompatível com a presença feminina. As atribulações da primeira estudante são exemplares: foi preciso a intervenção do Conselho da Universidade para que o porteiro consentisse em deixá-la entrar. (PERROT, 2014, p.34, grifo nosso)

Perrot (2014) relata a dificuldade da mulher parisiense da segunda metade do século XIX em ter acesso a determinados espaços urbanos prioritariamente masculinos, dentre eles as instituições de ensino técnico, científico e profissionalizante. Graças às manifestações feministas, as mulheres conseguiram conquistar espaços cada vez mais amplos na sociedade urbana, dentre eles a inserção no espaço escolar. E essas conquistas femininas influenciaram inclusive o Brasil que, nas primeiras décadas do século XX, segundo Almeida (1998, p. 26), “no plano educacional, os anos iniciais do século ofereceram maiores oportunidades ao sexo feminino, representadas pela escolarização das meninas e moças, na esteira dos ideais positivistas e republicanos, tendência essa que se estruturou nas décadas seguintes”.

Não obstante, é preciso compreender que mesmo com as conquistas feministas referentes ao direito de acesso às instituições de ensino, a educação ainda se desenvolvia/desenvolve de forma diferente com relação ao gênero, já que a dicotomia masculino x feminino esteve/ está inculcada no habitus10 dos sujeitos, legitimando como natural as desigualdades provocadas por essa distinção.

Bourdieu (1995) defende que as instituições sociais, incluindo a escola, contribuem para a perpetuação das divisões hierárquicas dos gêneros, uma vez que a construção dos gêneros ocorre entre suas oposições no contexto social. Essas divisões acontecem naturalmente, como uma forma de moldar os sujeitos por meio de seu comportamento relacionado à materialidade de seus corpos.

É por isso que a educação fundamental é fundamentalmente política: ela tende a inculcar maneiras de portar o corpo, em seu conjunto ou esta ou aquela de suas partes, a mão direita, masculina ou a mão esquerda feminina, maneiras de caminhar, de manter a cabeça, ou de dirigir o olhar para o rosto, para os olhos, ou, ao contrário, para os próprios, etc., que estão prenhes de uma ética, de uma política e de uma cosmologia, e isto, primordialmente, porque elas são quase todas sexualmente diferenciadas e porque através dessas diferenças elas exprimem praticamente as oposições fundamentais da visão do mundo. (BOURDIEU, 1995, p. 157)

A atitude da personagem Myriam, ao deixar sua carreira profissional para dedicar-se aos cuidados familiares e à maternidade é um reflexo desse habitus incorporado sobre a representação do feminino dentro do contexto social. As meninas com acesso à educação formal e à profissionalização também têm o acesso a essa dominação simbólica de gênero imposta pela instituição escolar. Dessa forma, nada mais naturalizado que aceitar a mulher retornando para o espaço privado em decorrência da família e da maternidade, mesmo apresentando uma carreira profissional promissora no espaço público.

Assim sendo, Myriam é completamente incompreendida pelos seus pares ao dizer que pretende retomar sua carreira. Em determinado momento, a discussão entre Myriam e seu marido sobre seu regresso profissional é descrita pelo narrador como ele (o marido) ironizava, fazendo as ambições dela parecerem ridículas, dando ainda mais a impressão de que ela estava aprisionada naquele apartamento (SLIMANI, 2018, p. 19, grifo nosso). A personagem feminina ainda ouve seu cônjuge dizer que não sabia que você (Myriam) tinha vontade de trabalhar (SLIMANI, 2018, p. 18, grifo nosso).

Para Bourdieu (1995), uma vez que a educação social também corrobora para a transmissão dos valores de dominação a partir do gênero, a sociedade compreende como não natural a postura de indivíduos que optam por se posicionar de forma contrária ao comportamento esperado. A fala do marido de Myriam demonstra esse habitus inculcado sobre as escolhas naturalizadas e legitimadas pela tradição diante das representações de gênero.

a universalidade de fato da dominação masculina exclui praticamente o efeito de "desnaturalização", ou se preferirmos, de relativização produzido quase sempre, historicamente, pelo confronto com modos de vida diferentes, capazes de fazer com que as "escolhas" naturalizadas da tradição apareçam como arbitrárias, historicamente instituídas (ex instituto), fundadas no costume ou na lei (nomos, nomo) e não na natureza (physis, physei). (BOURDIEU, 1995, p.137, grifo do autor)

Por sair do espaço privado (doméstico) e voltar a atuar no espaço público (carreira como advogada), a protagonista enfrenta os julgamentos da sociedade educada para desnaturalizar esses comportamentos relacionados aos gêneros já ratificados, além de trazer consigo um sentimento de culpa, por ela também ser um indivíduo educado segundo o apoio às tradições. A descrição ela tenta não pensar nas crianças, não se deixar roer pela culpa (SLIMANI, 2018, p. 35), ou a fala da professora de Mila alegando que o mal do século é o abandono das crianças enquanto os pais são devorados pela ambição [...] (SLIMANI, 2018, p. 35), refletem esse habitus sobre as relações entre os gêneros reiterado, inclusive, pela própria protagonista. Segundo Cornwall (2018), a emancipação econômica das mulheres por meio do trabalho profissional reconhecido não faz desaparecer as normas sociais, as relações afetivas e as instituições subjacentes que as constrangem diariamente.

Em um determinado momento da narrativa, Paul, o companheiro de Myriam argumenta que contando as horas extras, a babá e você (Myriam) vão ganhar mais ou menos a mesma coisa. Mas, enfim, se você acha que isso pode te distrair... (SLIMANI, 2018, p. 19, grifo nosso). Embora busque seu reconhecimento profissional, pois no escritório em que trabalha lhe são confiadas responsabilidades que os colaboradores mais antigos jamais tiveram direito (SLIMANI, 2018, p. 34), a profissão de Myriam é equiparada como uma distração por seu companheiro, assumindo que o trabalho feminino no espaço público ainda carrega o estigma de supérfluo e talvez até dispensável. Ou, em outras palavras, mesmo quando a mamãe foi para o cafezal, a sociedade compreende que, na verdade, a mamãe volta já.

Mamãe foi trabalhar - As mulheres invisíveis

Louise é a outra protagonista do romance, sendo a personagem mais trabalhada a partir da segunda metade do livro. Viúva, solitária e com uma filha que não vê há anos, é a babá das crianças da família Massé e quem comete o crime indicado logo nas primeiras páginas da obra.

Não há indícios de que Louise tenha tido uma educação formal científica e/ou profissionalizante, ao contrário de Myriam. Aparentemente, o texto dá indícios de que Louise crescera em uma instituição para crianças, e talvez tenha sido nessa mesma instituição seu contato com a educação formal.

Pela primeira vez na vida Louise se senta no sofá e olha alguém cozinhar para ela. Mesmo quando criança ela não se lembra de ter visto alguém fazer isso, só para ela, só para agradá-la. Pequena, ela comia o resto dos pratos dos outros. Serviam-lhe sopa morna de manhã, uma sopa esquentada dia após dia, até a última gota. Ela devia tomar tudo, apesar da gordura grudada nas bordas do prato, apesar do gosto de tomate azedo, de resto de osso (SLIMANI, 2018, p. 116)

Ao descrever sua alimentação diária, é possível afirmar que a personagem tenha tido muitas dificuldades quando criança, devido a sua situação socioeconômica, e que, dessa forma, também tenha tido inúmeras dificuldades em relação a sua educação institucional. Sendo assim, não restou a Louise outra opção profissional senão a de cuidadora de outras pessoas.

Segundo Guedes (2016), as tarefas de cuidar de crianças, de idosos e de pessoas enfermas continua concentrada nas mãos das mulheres. Esse cenário de trabalho dentro do espaço privado, revela “um descompasso entre os intensos avanços da população feminina no mundo público e a manutenção de padrões que constrangem as mulheres a continuarem desenvolvendo de forma concentrada o trabalho de cuidado” (GUEDES, 2016).

Bourdieu (1995) apresenta que a educação social, institucionalizada ou não e que perpetua e ratifica os padrões de dominação pautados na oposição entre os gêneros, também constrói uma perspectiva de legitimação dos trabalhos de mulheres em contrapartida aos trabalhos de homens. Por pertencer ao espaço público, os ofícios masculinos seriam muito mais reconhecidos e valorizados que as atividades femininas, relacionadas ao espaço privado.

Pelo fato de estar inscrito tanto nas divisões do mundo social ou, mais precisamente, nas relações sociais de dominação e de exploração instituídas entre os sexos, como nos cérebros, sob a forma de princípios de divisão que levam a classificar todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à oposição entre o masculino e o feminino, o sistema mítico-ritual é continuamente confirmado e legitimado pelas próprias práticas que ele determina e legitima. Tendo sido colocadas pela taxonomia oficial, no lado do interior, [...], as mulheres veem atribuir a elas todos os trabalhos domésticos, isto é, os trabalhos privados e escondidos e até mesmo invisíveis ou vergonhosos, como a criação das crianças e dos animais, e uma boa parte dos trabalhos exteriores, principalmente aqueles referente à água, às plantas, ao verde (como a capina e a jardinagem), ao leite, à madeira, e muito especialmente os mais sujos (como o transporte do estrume), os mais monótonos, os mais penosos e os mais humildes. Quanto aos homens, estando situados no lado do exterior, do oficial, do público, [...], eles se arrogam todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares [...] (BOURDIEU, 1995, p. 138)

Para uma mulher sem instruções acadêmico-científicas, como a personagem Louise, só lhe resta reproduzir o habitus instituído e cumprir com o papel destinado ao gênero feminino, relacionado ao subemprego e a falta de valorização econômica consequente da naturalização dessas atividades vinculadas às atuações das mulheres.

Hirata (2001) aponta que a atividade feminina concentrada em setores como cuidado e educação, sofrem uma polarização que, de um lado, há trabalhadoras altamente qualificadas em busca de reconhecimento profissional, enquanto em oposição, estão as trabalhadoras ditas de baixa qualificação, com salários baixos e tarefas sem reconhecimento ou valorização.

Mesmo sendo muito elogiada pelos seus empregadores, Louise é percebida como uma profissional de baixa qualificação, pois realiza as tarefas domésticas que nem Myriam, muito menos Paul conseguem notar. Dessa forma o vínculo de dependência entre a família e a babá é construído por intermédio de uma relação de abusos de ambos os lados, já que há Louise, a empregada doméstica, que na sua busca por atenção, reconhecimento e valorização profissional acaba acessando uma condição peculiar de manipulação dos eventos, e há Myriam e Paul, os empregadores, que por vezes se sentem coagidos com a manipulação de Louise, mas que não conseguem definir a episteme de seus problemas, justamente por não enxergar a própria Louise.

Durante a viagem de férias da família Massé, Paul ensina Louise a nadar. Enquanto ajuda a babá, realiza uma constatação que até então não havia percebido: Louise tem nádegas. Louise tem um corpo que treme nas mãos de Paul. Um corpo que não tinha nem visto, nem mesmo suspeitado, ele que colocava Louise no mundo das crianças ou dos empregados. Ele que, sem dúvida, não a via. (SLIMANI, 2018, p. 63)

O mesmo ocorre com Myriam, já no final do romance, quando vê Louise caminhando pelas ruas e compreende que nunca havia pensado na babá enquanto uma mulher com sua vida própria. Quando seu filho pergunta sobre o destino da sua preceptora, a mãe responde: vai pra casa - responde Myriam. - Pra casa dela (SLIMANI, 2018, p.184). A pausa aqui indica que a própria Myriam acabara de tomar por conhecimento que Louise era uma pessoa antes de ser sua babá.

O trabalho doméstico, privado, compreendido ao universo feminino, é invisibilizado, assim como os corpos que o exercem. Paul, ao constatar que Louise tinha nádegas, também constatou que não a via, por colocá-la no mundo das crianças ou dos empregados, relacionando Louise, sua empregada doméstica, a uma posição inferiorizada e insignificante.

O verso mamãe foi trabalhar, na cantiga Nana Neném, revela a desvalorização do trabalho feminino em comparação ao trabalho masculino. O trabalho dessa mulher não merece ser citado, nomeado. Por sua vez, o nome é o responsável por materializar o não materializado. É por meio dos nomes que se conhece, que se aprende e apreende o mundo. Um trabalho sem nome simplesmente não existe. E se esse trabalho não existe, as pessoas que o exercem também não. Louise exerce um trabalho interno, desvalorizado, praticamente não nomeado, já que não é apenas a babá das crianças, uma vez que realiza todo o trabalho doméstico da casa. Louise não é vista como uma pessoa pelas pessoas que a cercam. As mulheres invisíveis só o são porque exercem os trabalhos invisíveis.

Quando a Cuca vem pegar - Valentia é uma palavra feminina

Para Candido (1999, p. 34) “os contos populares, as historietas ilustradas, os romances policiais ou de capa-e-espada, as fitas de cinema, atuem tanto quanto a escola e a família na formação de uma criança e de um adolescente”. Os homens são forjados pela sociedade. São feitos do que os outros seres humanos lhes oferecem, desde o núcleo familiar aos que circundam em seu entorno. A literatura abre imensurável possibilidade de interação com os outros, fato que enriquece infinitamente o aprendizado.

Como fonte de saberes, parafraseando Bourdieu (1996), a obra literária traz em si conhecimentos sobre o mundo social que nem mesmo as obras ditas científicas conseguem registrar. Isso porque a obra literária é uma criação do homem, para a humanidade, sobre os feitos desse próprio homem, nessa mesma humanidade. Assim, aparar-se na literatura como um objeto de formação é valer-se de um recurso provocativo para reflexões sobre os entrelaçamentos que compõem a sociedade.

A questão da mulher na sociedade contemporânea tem sido tema de muita relevância nas discussões sobre as minorias e as lutas das feministas foram, inclusive, exemplos para outras lutas protagonizadas por outros grupos que tomaram consciência das injustiças sociais que sofriam/sofrem, percebe-se que mesmo que muitas conquistas tenham sido alcançadas desde que se começou a pensar a posição da mulher na sociedade, ainda há um longo caminho a ser trilhado no debate sobre igualdade e equidade de gênero.

Para Tedeschi (2008, p. 40), “ao abordar a história das mulheres pelas representações, busca-se trazer para o cenário os discursos de construção das identidades e da interpretação masculina do mundo. Cabe então a nós, homens e mulheres, contribuir para desnaturalizar essa história".

Sob a premissa das relações de aprendizado provocadas pela obra literária, esse trabalho procurou realizar uma incursão a respeito da educação e do trabalho diante do recorte das representações de gênero, ancorado no romance Canção de Ninar, de Leïla Slimani.

A perspectiva das representações de gênero é uma categoria de análise que não deve ser desprezada principalmente para provocar a reflexão sobre a construção dos processos históricos sociais e das relações de poder decorrentes de tais processos.

As personagens principais do romance, Myriam e Louise, são dois opostos complementares. A primeira, uma mulher de classe média, mãe, esposa e profissional instruída por meio da educação formal, com um emprego relativamente valorizado. A segunda, uma mulher viúva, solitária, sem filhos presentes em sua vida, com um subemprego decorrente da sua pouca instrução formal. Contudo, ambas personagens são deslegitimadas pelo mesmo habitus referente ao universo feminino incutidos na sociedade ao longo do desenvolvimento histórico, lutando, cada uma a seu modo, contra essa estrutura de poder resultante das relações entre os gêneros.

Já Mila, a filha pequena de Myriam, é descrita como arredia, por responder todas as contrariedades com gritos (SLIMANI, 2018, p. 31), como maligna (SLIMANI, 2018, p. 32). Por ser tão pequena, a garotinha ainda não assimilou as configurações comportamentais esperadas para o gênero feminino pela sociedade, sendo descrita como maligna e arredia.

No entanto, Mila pode ser considerada como uma pequena síntese da história da luta do gênero feminino por conquistas de direitos sociais. Durante a breve incursão sobre as questões de gênero (papel das mulheres) realizada nesse artigo, pode-se perceber que desde outros períodos históricos - nesse trabalho especificamente a partir do século XIX - as mulheres somente conseguem alcançar seus direitos sociais devido a muito esforço em se fazer ouvir pela sociedade, ou, mesmo como a pequena Mila, por responder todas as contrariedades com gritos.

E assim como Mila, que ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas (SLIMANI, 2018, p. 09), as mulheres atuais, inspiradas pelas vozes de suas antepassadas, muitas vezes ainda necessitam resistir e lutar como feras, enfrentando as possíveis Cucas que surgirem, para que, dessa forma, possam garantir seus direitos, transformando a sociedade em um espaço mais equilibrado e justo para todos os gêneros.

Dessa forma, nesse artigo, conforme anunciado, pretendeu-se entender como foi forjada a problemática envolvendo gênero, educação e trabalho, que ultrapassa o tempo histórico, amparando-se no romance “Canção de Ninar” como móvel de formação e conhecimento da realidade social e histórica, permitindo aflorar algumas imagens representativas do universo feminino nas relações sociais vigentes desde meados do século XIX.

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1Segundo Machado (2012, p.17), “a definição mais imediata para esse gênero é estabelecida por sua finalidade: canção feita para adormecer criança pequena; uma definição funcional, portanto”.

2Para Cascudo (2012) a Cuca ou a Coca é uma entidade velha e medonha, que aparece durante a noite para levar consigo as crianças inquietas e insones.

3Para Machado (2012) as canções de ninar brasileiras possuem diversos desdobramentos que podem ocorrer pela tradição e folclore, dependentes de fatores geográficos e regionais; também podem ocorrer pela cultura familiar, ou seja, criações que permanecem no âmbito da família; ou por criações artísticas contemporâneas, associadas a selos de gravadoras e divulgadas para um público consumidor específico.

4Nana neném, que a Cuca vem pegar. Papai foi para roça, mamãe volta já”. (VENÂNCIO, 2014, p. 215)

5Nana neném, que a Cuca vem pegar. Papai foi para roça, mamãe para o cafezal”. (Idem, ibidem)

6Disponível em: https://www.fronteiras.com/entrevistas/leila-slimani-as-mulheres-e-o-melancolico-silencio#:~:text=Le%C3%AFla%20Slimani%3A%20O%20que%20t%C3%AAm,de%20viol%C3%AAncia%2C%20aspectos%20que%20escondem. Acesso em 01/06/2021.

7Aguiar e Silva (1988) apresenta o narrador heterodiegético como aquele que não é co-referencial com nenhuma das personagens da diegese, não participando da história narrada.

8Para Aguiar e Silva (1988) analepses são recuos no tempo, que permitem a recuperação de fatos passados. Corresponde ao que em linguagem cinematográfica ao recurso chamado de Flashback.

9“Prolepses são antecipações no tempo, que permitem a anteposição, no plano do discurso, de um fato ou situação que só aparecerá mais tarde no plano da diegese. Corresponde ao que, cm linguagem cinematográfica, é chamado de flaslhfoward”. (AGUIAR E SILVA, 1988, p. 47)

10Para Bourdieu (2002, p. 83), “sendo produto da história, o habitus é um sistema de disposições aberto, permanentemente afrontado a experiências novas e permanentemente afetado por elas. Ele é durável, mas não imutável”.

Recebido: 23 de Junho de 2021; Aceito: 03 de Setembro de 2021

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