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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub 13-Sep-2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-114 

Dossiê 3 - A pedagogia personalizada e comunitária no espaço ibero-americano (1950-1970)

Pedagogia personalizada e comunitária no México: o primeiro curso de verão em Guadalajara (1975)

Pedagogía personalizada y comunitaria en México: el primer curso de verano en Guadalajara (1975)

Norberto Dallabrida1 
http://orcid.org/0000-0002-5100-2028; lattes: 7488521314793134

Norma Cecilia Bross Leal2 
http://orcid.org/0000-0003-3601-8803

1Universidade do Estado de Santa Catarina (Brasil). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. norbertodallabrida@hotmail.com

2Instituto Pierre Faure de Guadalajara (México). nbross@pierrefaure.edu.mx


Resumo

Este artigo se propõe a compreender o primeiro curso de verão animado pelo padre jesuíta francês Pierre Faure, ocorrido em meados de 1975, na cidade de Gualajara, México. Inicialmente, contextualiza-se a circulação da pedagogia personalizada e comunitária proposta por Pierre Faure na América Latina, particularmente no México. Enfocam-se no texto os principais aspectos pedagógicos explorados por Faure em suas palestras, que constituíram o cerne desse curso. À luz da perspectiva historiográfica de Marta Carvalho, considera-se o curso de verão uma estratégia de circulação da pedagogia personalizada e comunitária. O curso de verão de 1975 foi marcante devido à presença pioneira do padre Faure em Guadalajara, que atraiu educadores do México e de outros países.

Palavras-chave: Pedagogia personalizada; Pedagogia comunitária; Pierre Faure; Circulação

Resumen

Este artículo tiene como objetivo comprender el primer curso de verano animado por el padre jesuita francés Pierre Faure, que tuvo lugar a mediados de 1975, en la ciudad de Guadalajara, México. Inicialmente, se contextualiza la circulación de la pedagogía personalizada y comunitaria propuesta por Pierre Faure en América Latina, particularmente en México. El texto se centra en los principales aspectos pedagógicos explorados por Faure en sus conferencias, que son el núcleo de este curso. A la luz de la perspectiva historiográfica de Marta Carvalho, el curso de verano se considera una estrategia para la circulación de la pedagogía personalizada y comunitaria. El curso de verano de 1975 fue notable debido a la presencia pionera del padre Faure en Guadalajara, que atrajo a educadores de México y de otros países.

Palabras clave: Pedagogía personalizada; Pedagogía comunitaria; Pierre Faure; Circulación

Abstract

This article aims to understand the first summer course animated by the French Jesuit Father Pierre Faure, which took place in mid-1975, in the city of Guadalajara, Mexico. Initially, it contextualizes the circulation of personalized and community pedagogy as proposed by Pierre Faure in Latin America, particularly in Mexico. The text focuses on the main pedagogic aspects explored by Faure in his lectures, which are the core of this course. In the light of Marta Carvalho’s historiographic perspective, the summer course is regarded as a strategy for the circulation of personalized and community pedagogy. The 1975 summer course was remarkable due to Father Faure’s pioneering presence in Guadalajara, which attracted educators from Mexico and other countries.

Keywords: Personalized pedagogy; Community pedagogy; Pierre Faure; Circulation

Introdução

Formulada desde a década de 1940 pelo padre jesuíta francês Pierre Faure, a pedagogia personalizada e comunitária procura aproximar princípios educacionais católicos e matrizes pedagógicos do movimento da Educação Nova. A Igreja Católica tinha uma longa tradição escolar que fora fundada pela Companhia de Jesus, tendo como referência a Ratio Studiorum, atualizada no retorno dos jesuítas ao cenário europeu no início do século XIX. Desde os anos 1930, a educação católica era definida pela encíclica papal Divini Illius Magistri, que sublinhava a dimensão espiritual na formação integral do ser humano. De outra parte, guiado por interesse metodológico, o padre Faure se apropriou de diversas matrizes pedagógicas da Educação Nova, inclusive aquelas que destoavam do catolicismo e defendiam o naturalismo pedagógico (FAURE, 2008). Por meio de Lubienska de Lenval, Faure conheceu e entusiasmou-se com o método Montessori e, embora discordasse de seu viés marxista e da sua psicologia pavloviana, elogiava a inovação educacional de Célestin Freinet, que era ao mesmo tempo individualizadora e colaborativa. Dessa forma, a “escola nova católica” (SAVIANI, 2008, p. 300) inventada pelo padre Faure tinha uma dimensão personalizada, mas também comunitária.

Esses dois lados da moeda da pedagogia personalizada e comunitária estão corporificados nos instrumentos de trabalho e nos momentos didáticos que Pierre Faure inventou a partir de ensaios educativos realizados no Centro de Estudos Pedagógicos, instalado em Paris e dirigidos por ele no imediato pós-guerra. Segundo Dallabrida (2018, p. 330):

Os primeiros [os instrumentos de trabalho] são formados inicialmente pela programação - seleção de conteúdos e técnicas realizadas pelo professor para estimular o trabalho pessoal do estudante, que deve se adequar às prescrições de regiões e países, mas deve ir além delas -; plano de trabalho definido pelo estudante; uso de guias ou fichas para o trabalho pessoal do estudante, o que não dispensa a aula coletiva do professor; e material didático, formado por biblioteca de sala de aula ou uma comum a várias salas com livros e documentos, material sensório-motor, material audiovisual, bem como material de autocontrole do aluno. Os momentos didáticos (trabalho independente, trabalho grupal, partilha, síntese e registro pessoal, exposição oral e escrita e avaliação contínua) não têm uma ordem fixa, podendo ser flexibilizados de acordo com as necessidades dos estudantes.

Por meio desses procedimentos didático-pedagógicos, o trabalho escolar era iniciado não por aulas do professor, mas pelo protagonismo do aluno que escolhia um roteiro de estudos que era realizado sem a divisão cronológica do tempo. A atividade de pesquisa discente poderia ser feita com os colegas da classe e mesmo provocar trocas e discussões em pequenos grupos. Assim, não havia provas padronizadas nem repetência de ano escolar, mas ao aluno que não conseguisse completar a programação era oferecida a classe de aperfeiçoamento. Nesse modo de aprendizagem, o professor tinha a função de animador e guia (KLEIN, 1998).

Desde o início dos anos 1950, a pedagogia personalizada e comunitária em constante construção passou a ser difundida em vários países, particularmente por circuitos católicos e, em boa medida, franceses. A convite do padre jesuíta Artur Alonso, que dirigia a Associação de Educação Católica (A.E.C.), Pierre Faure esteve no Brasil em 1951 para proferir uma palestra no 4º Congresso Interamericano de Educação Católica (ALONSO S. J., 1952). E, em meados de 1955 e 1956, esteve respectivamente nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo para animar reuniões com gestores e professores de colégios católicos que desejavam renovar a tradicional escolarização católica, especialmente do ensino primário, que ficaram conhecidas como semanas pedagógicas (AVELAR, 1978). Assim, Pierre Faure iniciou a disseminação da sua pedagogia no Brasil por meio de um circuito de congregações femininas católicas de ascendência francesa que se dedicavam à escolarização da infância. No início de 1959, Pierre Faure esteve na cidade de São Paulo para preparar professores de colégios católicos que desejavam implantar as classes secundárias experimentais - ensaios inovadores no ensino secundário (DALLABRIDA, 2018). Além de retornar ao Brasil quase todos os anos para animar docentes na inovação pedagógica, Pierre Faure publicou artigos de cunho educacional no SERVIR ‒ Boletim da A.E.C., fato que deu ainda mais disseminação à pedagogia personalizada e comunitária.

Nos países hispanos-americanos, a pedagogia personalizada e comunitária passou a circular somente a partir do início dos anos 1970. No México, apesar de as primeiras intervenções de Pierre Faure terem sido na Cidade do México, foi em Guadalajara, capital do estado de Jalisco, que a pedagogia personalizada e comunitária fincou raízes, especialmente por meio das sessões pedagógicas que, por se realizarem na época das férias escolares, foram chamadas de cursos de verão. Animados pelo padre Faure e com ajuda de alguns de seus discípulos franceses e latino-americanos, esses cursos se realizaram anualmente de 1975 a 1983, sendo que cada um deles gerou uma memória escrita (SILVA, 2021). Dessa forma, este artigo se propõe a compreender a importância do primeiro curso de verão realizado em Guadalajara, em 1975, porque contou com as intervenções verbais do idealizador da pedagogia personalizada e comunitária. Para tanto, tem como fonte principal o documento produzido a partir da transcrição das palestras de Pierre Faure, intitulado “Memoria del curso sobre Educación Personalizada” (CIPE, 1975). No introito, o documento afirma que “o estilo falado do Dr. Faure foi intencionalmente mantido, considerando que dessa forma o documento se mostrará mais vivo...” (CIPE, 1975, s.d., tradução nossa). Trata-se da fonte oficial do curso de verão de 1975, que deve ser lida de modo contextualizado e crítico como um documento-monumento.

O curso de verão realizado em Guadalajara em 1975 é considerado uma estratégia da circulação da pedagogia personalizada e comunitária. À luz das reflexões historiográficas de Carvalho (2003), a operação de circulação de modelos pedagógicos é realizada por meio do deslocamento de pessoas em outros espaços e pela publicação de impressos como jornais, periódicos especializados e livros ou de filmes e documentários em diferentes suportes materiais. Por isso, ela não é natural nem linear, mas marcada por interesses e jogos de poder de indivíduos e/ou grupo sociais que têm afinidades eletivas. Enfim, o texto está dividido em duas partes: inicialmente há uma contextualização latino-americana do primeiro curso de verão de Guadalajara e, em seguida, serão analisadas as palestras de Pierre Faure e seus desdobramentos educacionais.

Circuitos hispano-americanos da pedagogia fauriana

Segundo Klein (1998, p. 103), “Anne Marie Audic, francesa, Maria Nieves Pereira, espanhola, e Celma Pinho Perry, brasileira, acompanharam padre Faure em 1972 à Cidade do México para orientar o primeiro curso aos educadores mexicanos”. A primeira foi a principal colaboradora francesa de Pierre Faure no Instituto Católico de Paris e autora de uma tese de doutorado sobre a pedagogia personalizada e comunitária transformada em livro (AUDIC, 1988); a segunda foi a principal discípula do jesuíta francesa entre a Espanha e os países hispano-americanos; e a terceira foi uma das principais responsáveis pela promoção das semanas pedagógicas no Brasil em meados da década de 1950 (AVELAR, 1978). Esse curso na Cidade do México atraiu educadores católicos de outros países, como o padre jesuíta Alfonso Quintana, professor da Faculdade de Educação da Universidad Javeriana de Bogotá e seu coirmão de batina, padre Angel Maria Pedrosa, diretor do colégio da Companhia de Jesus de São Salvador - capital de El Salvador (KLEIN, 1998). Desta forma, de 10 a 20 de dezembro de 1973, auxiliado por Maria Pereira Nieves, Pierre Faure foi o animador das “jornadas de educação personalizada para a formação de professores” (PEREIRA DE GÓMES, 1997, p. 49, tradução nossa), realizada na Faculdade de Pedagogia da Universidad Javeriana de Bogotá.

Para compreender a circulação da pedagogia personalizada e comunitária no México é importante considerar a trajetória profissional de Maria Nieves Pereira, porque ganhou centralidade como mediadora pedagógica. Em seu período formativo, ela foi aluna de Pierre Faure na École d`Éducatrices de Paris de 1966 a 1968 (PEREIRA DE GÓMES, 1997, p. 301) e, em seguida, trabalhou com seu mestre jesuíta e francês nas jornadas de educação personalizada, realizadas de 14 a 16 de fevereiro de 1972, na Universidad de Murcia, Espanha. Lá, Maria Nieves Pereira defendeu sua tese de doutorado, sob o título Educación personalizada: un proyecto pedagógico em Pierre Faure, que foi publicada em forma de livro no México em 1976, e posteriormente traduzida para a língua portuguesa no Brasil (PEREIRA DE GÓMES, 1997). Em meados da década de 1970, ela passou a morar no México e tornou-se a principal mediadora de Pierre Faure em países latinos americanos de língua espanhola. Dessa forma, Maria Nieves Pereira participou ativamente no deslocamento do centro da circulação e apropriação da pedagogia personalizada da Cidade do México para Guadalajara.

Fonte: Arquivo pessoal de Norma Cecilia Bross Leal.

Figura 1 Portal de Entrada do Instituto Pierre Faure 

Nos primeiros anos da década de 1970, a pedagogia personalizada e comunitária passou a ser conhecida em Guadalajara. Segundo Bross Leal e Romero Garcia (2008, p. 9), “em 18 de julho de 1973, na cidade de Guadalajara, Jalisco, um grupo de pais e professores se reuniu para estabelecer legalmente uma Associação Civil sem fins lucrativos, chamada ‘Centro de Pesquisa e Planejamento Educacional’ (Centro de Investigación y Planeación Educativa [CIPE])” (CIPE, 1975, tradução nossa). À luz da pedagogia personalizada e comunitária, o CIPE criou o Instituto Pierre Faure (ver Figura 1), que passou a oferecer o ensino primário e, posteriormente, o ensino secundário e o pré-escolar, sendo dirigido pelo experiente professor Rafael Paz, que formou a equipe docente e proporcionou a sua preparação por meio de um curso intensivo de uma semana no mês de julho daquele ano. Durante o ano letivo 1973-74, os professores do Instituto Pierre Faure continuaram sua formação permanente por meio de uma reunião de segunda a sexta pelas tardes, que tinha um caráter didático porque visava a preparação das aulas (BROSS LEAL e ROMERO GARCIA, 2008). Ao terminar o primeiro ano letivo, o diretor do Instituto Pierre Faure apostou ainda mais na formação de professores, promovendo um curso em julho de 1974, com duas semanas de duração, tendo palestras diárias sobre a pedagogia personalizada e comunitária e uma oficina de psicomotricidade. Sobre essa iniciativa inédita, Bross Leal e Romero Garcia (2008, p. 24, tradução nossa) asseveram:

Para a preparação deste curso, foi formada uma equipe coordenada pelo diretor do Instituto, Rafael Paz, que por sua vez convidou a Dra. Ma. Nieves Pereira e a Dra. Begoña Ezcurra para modelarem o trabalho da professora com as crianças para entender como o EPyC é colocado em prática. É a partir do verão de 1974 quando começa a assessoria aos professores das escolas por pessoas de fora da instituição.

Fonte: Acervo pessoal de Norma Cecilia Bross Leal.

Figura 2 Pierre Faure ao centro, sendo ladeado por Maria Nieves Pereira e Rafael Paz 

No final do ano letivo 1974-75, o diretor Rafael Paz envidou esforços para viabilizar a vinda do próprio Pierre Faure para animar o curso de verão de 1975. Tratava-se de um fato pioneiro e alvissareiro, porque o idealizador da pedagogia usada no Instituto Pierre Faure animaria um curso de 28 de julho a 8 de agosto de 1975, com palestra diárias, seguidas por um tempo para questões, bem como com sessões de observação dos alunos em atividade escolar - como se pode verificar na Figura 2. Esse curso de verão atraiu 395 educadores de vários estados do México, bem como da Nicarágua, da Guatemala e de El Salvador, estendendo seu raio de ação para a América Central. E foi viabilizado pela parceria entre o CIPE e a Association Internationele pour la Recherche et l`Animation Pédagogique (AIRAP), criada por Pierre Faure em 1971, que publicava a Revue AIRAP (CIPE, 1975). No encerramento do curso de verão, Antonio Huerta, representante dos pais no Instituto Pierre Faure, afirmou: “tenho uma notícia para vos comunicar e é que a AIRAP, através de Pierre Faure, cedeu-nos sua representação para a América Latina e para começar, assumimos a responsabilidade de traduzir a revista [...]” (CIPE, 1975, p. 74, tradução nossa). Guadalajara se tornou, portanto, a capital latino-americana da pedagogia personalizada e comunitária.

As palestras de Pierre Faure

Durante o curso de verão que se realizou em Guadalajara em 1975, Pierre Faure proferiu uma série de palestras sobre a pedagogia personalizada e comunitária. Começou sublinhando o puericentrismo tão caro ao movimento da Educação Nova, afirmando que as crianças são os guias dos educadores na busca de melhores atitudes educativas e de métodos pedagógicos mais adequados. Assevera que educação demandada pelo mundo contemporâneo deve ser pautada em uma pedagogia “onde não se repete, nem se recita, mas antes se trata de assimilar pessoalmente segundo o próprio ritmo, segundo o modo de cada um, não como o próximo assimila. Recebeu o nome de um ensino personalizado que talvez seja a garantia do ensino do futuro [...]” (FAURE, 1975 apud CIPE, 1975, p. 2, tradução nossa). No entanto, chama a atenção para o fato de que cada vez mais há iniciativas no sentido de individualizar a educação escolar, mas personalizá-la é um processo de outra natureza, que envolve respeito à singularidade de cada indivíduo. Por isso, rechaça o mecanismo estímulo-reposta próprio da psicologia comportamentalista e defende que, mediante os estímulos externos, cada aluno responde à sua maneira e de forma ativa e criativa. Na clave da pedagogia personalizada, o professor deve se afastar da disciplina mecânica e exterior e apostar na interiorização do processo de aprendizagem que transforma o estudante em um coautor no processo de aprendizagem.

Não sem razão, o jesuíta francês sugere as prescrições sobre o silêncio de Maria Montessori e as contribuições decisivas de Jean Piaget, que já eram bem conhecidas no mundo ocidental. Sobre as posições acerca do processo de aprendizagem do pedagogo suíço, Faure (1975 apud CIPE, 1975, p. 18) afirma:

Durante cinquenta anos, Piaget trabalhou em como construir o que chamamos de espírito da criança e, portanto, como proceder para seu desenvolvimento mental. As conclusões alcançadas são muito interessantes e referem-se ao problema central da construção das estruturas mentais. Considera que a criança está sendo construída por uma “autogênese” da criança desenvolvida, ou seja, pelo desenvolvimento orgânico do indivíduo em relação à espécie inteira como um todo. Piaget não está interessado no grupo como os “marxistas”, mas na pessoa que pertence ao grupo. Não o diz assim, mas expressa em outros termos: “meu primeiro resultado geral ‒ diz ele ‒ é que a importância do papel ativo e construtivo do sujeito atuante, do ato de conhecimento do sujeito atuante, está se tornando cada vez mais fortemente imposta, ao invés da simples aquisição, do simples registro de dados”.

Apoiando-se em premissas piagetianas, o padre Faure constrói seu personalismo educativo refutando tanto as ideias que reduzem o ser humano à herança genética quanto aquelas de cunho marxista. Entre estas últimas menciona as pedagogias de Célestin Freinet e de Paulo Freire que, por terem fundamentação socialista, tratam a criança em seu grupo social, desconsiderando a singularidade de cada uma.

No entanto, Pierre Faure não se detém em discussões teóricas e concentra suas energias na operacionalização metodológica de sua proposta pedagógica, pois, como diz acertadamente Pereira de Gomes (1997, p. 15): “ele começou fazendo, não montando teorias”. À luz de sua fé no personalismo na educação, afirma que, apesar de partir de uma mesma programação, o plano de trabalho de cada aluno é específico, devendo ser rigorosamente respeitado. Dá destaque à programação, que não pode ser confundida com o programa oficial, dirigido aos professores e gestores de cada país, mas “pelo contrário, é sobre o que o professor deve fazer na aula dele, a matéria que ele explica, como vai transmitir, ou seja, como vai fazer na aula, como vai traduzir o programa oficial, como ele vai escolher as noções. O que seus alunos têm que comprar [...]! (FAURE, 1975 apud CIPE, 1975, p. 24, tradução nossa). Trata-se da operação de didatização dos conteúdos escolares que, segundo Pierre Faure, devem do mais simples ao mais complexo, obedecendo, ao mesmo tempo, a perspectivas lógica, ou seja, proporcionar o encadeamento de noções, e psicológica, respeitando o desenvolvimento biopsicológico dos alunos. Faure (1975 apud CIPE, 1975, p. 24, tradução nossa) insiste que a programação deve ser clara e operacional:

Cada noção de programação deve corresponder a alguns instrumentos de trabalho ou diretrizes, ou documentos (dependendo do assunto). Desse modo, permitimos que a criança busque, encontre, compreenda ou exercite o que já aprendeu; portanto, entre os instrumentos de trabalho, também devem aparecer exercícios de aplicação que podem ser o controle que foi compreendido, até mesmo às vezes podem ser adicionadas autocorreções desses mesmos exercícios para que os instrumentos estejam presentes e a criança saiba o que é. fazer, ele sabe o quanto pode avançar ou quanto tem que voltar para corrigir algo que mal adquiriu; e assim ao longo do ano.

Os instrumentos de trabalho jogam um papel estratégico na pedagogia fauriana, porque devem concorrer para a autocontrole dos alunos que vise à busca de novos conhecimentos. Na palestra intitulada “Controlar, não corrigir”, Faure (1975 apud CIPE, 1975, p. 43, tradução nossa) diz que “um segundo meio de autocontrole é a apresentação do trabalho ao professor”. A função do professor não é somente observar os alunos, mas também controlá-los, ou seja, monitorar seus processos de aprendizagem, de modo que eles se autocorrijam. O professor deve estar disponível para que os alunos o procurem, visando ter orientações para que eles mesmo busquem as soluções dos seus problemas e dúvidas. Nessa direção, a avaliação está entranhada no processo de aprendizagem, de modo que Pierre Faure recomenda que os professores guardem os planos de trabalhos de seus alunos como documentos de avaliação de um ano escolar, bem como a médio prazo para mostrar os avanços na aprendizagem. E insiste que o processo avaliativo não focalize somente conhecimentos, mas também habilidades de busca de conhecimentos em diferentes suportes como livro e tábua de Pitágoras. Enfim, Faure (1975 apud CIPE, 1975, p. 44-45, tradução nossa) arremata sua visão sobre avaliação escolar, afirmando:

É necessário assegurar que a avaliação seja real, justa e objetiva para que permita efetuar avaliações; mesmo quando os expressamos com uma figura, essa figura pode ser comentada, porque é possível, que pode ser apreciada. Se uma criança realmente trabalhou, sua verdadeira avaliação é o próprio emprego.

Esses dispositivos didático-pedagógicos concorriam para incitam a interiorização do processo de aprendizagem, de modo que a disciplina externa e coercitiva seja abandonada em favor do autodisciplinamento de inspiração montessoriana. Não sem razão, uma das palestras do jesuíta francês foi intitulada “Normalização”, definida como “fazer as coisas normalmente como eles pedem para ser feitas” (FAURE, 1975 apud CIPE, 1975, p. 48, tradução nossa), indicando que a metodologia da pedagogia personalizada e comunitária deveria produzir uma conduta que partisse das subjetividades dos estudantes. Assim, a dimensão personalizada da proposta pedagógica de Pierre Faure “regulava” - no sentido foucaultiano - os alunos, ou seja, governava a população escolar por meio de incitações ao self-governement (DUSSEL e CARUSO, 2003). Não sem razão, a pedagogia fauriana é uma das contribuições mais potentes do escolanovismo católico gestada na França.

No entanto, à luz de uma crítica ao excesso de individualização da pedagogia de Maria Montessori e do Plano Dalton, Pierre Faure vai construir a dimensão comunitária de seu projeto educacional, de sorte que ao mote montessoriano “ajuda-me a fazer sozinho” ele acrescentava: “com a ajuda dos outros” (AUDIC, 1988, p. 180). Durante muitos anos, a iniciativa educacional de Pierre Faure era conhecida como pedagogia personalizada, mas ele insistiu que sua dimensão comunitária era imprescindível. Dessa forma, o livro-síntese de Faure, publicado na França em 1979 e traduzido para a língua portuguesa no Brasil, foi intitulado Ensino personalizado e comunitário (FAURE, 1993), sublinhando os dois aspectos do formativo escolar que ele propunha. No curso de verão de 1975 em Guadalajara, o padre Faure abordou formação social como uma atitude que deve ser trabalhada na escola para que se constitua em algo permanente na vida pós-escolar do aluno. Formação social significa inicialmente perceber que os outros existem, mas sobretudo ter consciência de que fazemos parte de um grupo social, de um colégio, de um município, de uma nação e que devemos respeitar as diferenças dos outros e ajudá-los por meio de críticas positivas, bem como torcer pelo êxito dos outros, como ocorre nos esportes (FAURE, 1975 apud CIPE, 1975). Nesta visão de consciência social, não há referência à desigualdade social e à concentração de renda na América Latina, que, à época, era criticada pela Teologia da Libertação. A análise marxista não era somente descartada em relação ao campo da pedagogia, mas também na análise do mundo social.

Como sacerdote católico, Pierre Faure tece considerações sobre a formação religiosa das crianças, ou seja, a educação da fé por parte dos professores. À luz da pedagogia personalizada e comunitária, Faure (1975 apud CIPE, 1975, p. 31, tradução nossa) afirma: “como sempre, deve estar ajudando a criança, explicitando o que há de vivo nela. Em primeiro lugar, ajudar a criança a se colocar diante de Deus, numa atitude de respeito, de adoração, atitudes que a conduzam a esta adoração, que supõe um clima de calma e silêncio”. Esta prescrição vai no sentido de criar uma atmosfera de interiorização nos alunos, com clara inspiração montessoriana, que concorria para a personalização da educação da fé. De outra parte, o padre Faure indica a importância de incitar os alunos à prática litúrgica, ou seja, estimulá-los a participar de missas, batismos, eucaristia, crisma, ordenação sacerdotal, entre outros, que trabalham mais a dimensão externa e comunitária da vida religiosa. Dá um destaque para a primeira eucaristia que, além de ser uma festa com parentes e vizinhos, é um momento de tomada de conhecimento da presença de Cristo na vida de cada um e de aquisição do conteúdo do catecismo. Todavia, faz uma crítica ao caráter intelectualista na liturgia católica, que certamente era um desdobramento do Concílio Vaticano II, que fizera transformações significativas nos rituais litúrgicos da Igreja Católica, particularmente na missa, que passou a ser rezada nas línguas nacionais e estimulou a participação dos fiéis.

Segundo o jesuíta francês, a educação da fé deve ser feita sobretudo com leituras sobre a intervenção divina na vida dos homens e mulheres e, para tanto, a escola deve disponibilizar aos alunos livros com conteúdo católico. Em primeiro lugar, o Antigo Testamento, que conta a história de Deus se revelando ao povo de Israel e guiando seus líderes; em seguida, o Novo Testamento que relata a trajetória de Jesus Cristo e que, ao mesmo tempo, mostra que Deus é trindade e uno; por fim, livros que indicam que a Igreja Católica dá a continuidade ao plano divino traçado por Cristo. Para concretizar a aprendizagem do conteúdo religioso, o padre Faure faz algumas sugestões, começando pela criação de sala de documentação, que tenha livros, documentos e algumas programações sobre a vida de Jesus, a história do povo de Deus e desenvolvimento da Igreja Católica, que devem ser vistas em perspectiva geo-histórica. E também aponta a importância de disponibilizar aos alunos na sala de documentação ou em outro lugar um quadro de atualidades da vida cristã e da Igreja Católica com matérias da imprensa, bem como informações sobre o evangelho de cada domingo (CIPE, 1975). Enfim, após a contestadora década de 1960 e o aggiornamento do Concílio Vaticano II, o jesuíta francês sugeria a necessidade oferecer, na educação escolar, uma formação religiosa consistente e atualizada.

Considerações finais

As palestras de Pierre Faure no primeiro curso de verão em Guadalajara focalizaram os fundamentos pedagogia personalizada e comunitária atualizados pelas novas tendências sociais, religiosas e educacionais. Não sem razão, o tema da programação tem importância ímpar na pedagogia fauriana, porque se trata da operação que realiza uma apropriação didática do programa oficial definido pelo Ministério da Educação de cada país, que deve ser construída de modo consistente e criativo. Demandando trabalho docente coletivo e estudo aprofundado, a programação é a peça central da metodologia sugerida pelo jesuíta francês, pelo fato de ser a base do trabalho personalizado de cada estudante, momento em que ocorre, efetivamente, a aprendizagem. Nesse processo, o professor não é dispensado, mas passa a ter a função de mediador, guia, incitador da busca de conhecimento pelo discente e mesmo poderá ministrar momento de ensino simultâneo. Na pedagogia fauriana, o docente não deve corrigir porque se espera que a programação e o material disponível faça isso, mas atuar no sentido de regular - no sentido foucaltiano - a aprendizagem como desejava o movimento escolanovista. De outra parte, à luz da crítica a matrizes pedagógicas individualizadoras como o método montessoriano e o Plano Dalton, Pierre Faure insiste na dimensão comunitária da sua proposta educacional, filtrando as ideias do seu conterrâneo Célestin Freinet. Assim, o trabalho discente personalizado pode e deve ser realizado com a colaboração de colegas de classes e mesmo ter momento de partilha das pesquisas com toda a classe, sendo animado pelo professor.

É importante situar o primeiro curso de verão de Guadalajara no movimento de expansão da pedagogia personalizada e comunitária na América Latina. No Brasil, esse projeto pedagógico foi disseminado, em circuitos católicos e afrancesados, desde o início dos anos 1950, pelo próprio Pierre Faure, por meio da publicação de seus artigos no SERVIR ‒ Boletim da A.E.C. e da realização de suas sessões pedagógicas que prepararam professores dos colégios católicos tanto do ensino primário e como do nível secundário. Na década de 1970, quando essa irradiação no território brasileiro arrefeceu, a proposta pedagógica fauriana ganhou difusão em países latino-americanos de língua espanhola, especialmente na Colômbia, no Chile e no México. Neste último país, a cidade de Guadalajara tornou-se a capital da pedagogia personalizada e comunitária, devido à fundação do Instituto Pierre Faure, por ser o local onde se realizaram os cursos de verão e por se tornar sede da AIRAP na América Latina a partir de 1975. Ademais, essa penetração das ideias educacionais de Pierre Faure no México - e em outros países hispano-americanos - tiveram a mediação decisiva de educadores laicos, particularmente de Maria Nieves Pereira e de Rafael Paz, que merecem outra investigação histórica.

Referências

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Recebido: 02 de Setembro de 2021; Aceito: 10 de Dezembro de 2021

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