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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub 13-Sep-2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-117 

Dossiê 4 - Circulação transnacional de livros de leitura e de manuais pedagógicos (entre fins do século XIX e início do século XX)

Livros de leituras ou manuais de civilidade como cultura material da escola maranhense para o ensino do ler e do vir-a-ser1

Libros de lecturas o manuales de civilidad como cultura material de la escuela maranhense para la enseñanza del leer y del venir a ser

Samuel Luis Velázquez Castellanos1 
http://orcid.org/0000-0003-0849-348X; lattes: 5639830901440817

1Universidade Federal do Maranhão (Brasil). samuel.velazquez@ufma.br


Resumo

Neste artigo analisam-se pontos de contatos entre livros de leitura de autores maranhenses e manuais de civilidade não nacionais, no intuito de se alargar estes conceitos em ambas as direções, já que temas sustentados no controle e nas estratégias de imposição permitidos em lei derivam de armaduras conceituais conectadas à teia de significados construída por indivíduos/instituições em tempos específicos. Fundamenta-se a análise d’O livro do Povo de Antonio Marques Rodrigues e do Código de Bom Tom de J. I. Rouquette como fonte e objeto à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da história cultural. Conclui-se que os livros de leitura de autores maranhenses podem ser apreciados como manuais de prescrições, visto que não só coabitam e concorrem pelo consumo escolar; como também criaram estratégias semelhantes à produção não nacional, marcando singularidades da cultura local sem perder de vista o controle de hábitos, condutas e comportamentos em nome de uma moralidade específica.

Palavras-chave: Livros de leitura locais; Manuais de civilidade; Maranhão Império

Resumen

En este artículo, se analisan puntos de contactos entre libros de lectura de autores maranhenses y manuales de civilidad no nacionales, objetivando alargar estes conceptos en ambas direcciones, ya que temas sustentados en el control y en estratégias de imposición permitidos en lei derivan de armaduras conceptuales conectadas al tejido de significados contruido por individuos/instituciones en tiempos específicos. Se fundamenta el análisis de O Livro del Povo de Antonio Marques Rodrigues y del Código de Bom Tom de J. I. Rouquette como fuente y objeto a la luz de las directrices de la Historia Cultural. Concluimos que los libros de lectura de autores maranhenses, pueden ser apreciados como manuales de prescripciones, visto que no sólo cohabitan y concorren por el consumo escolar; como también crean estratégias semejantes a la producción no nacional, al marcar singularidades de la cultura local sin perder de vista el control de hábitos, conductas y comportamientos en nombre de una moral específica.

Palabras-clave: Libros de lectura locales; Manuales de civilidad; Maranhão Imperio

Abstract

In this article, points of contact between reading books by authors from Maranhão and non-national civility manuals are analyzed, in order to broaden these concepts in both directions, since themes supported by the control and enforcement strategies allowed by law, they derive from conceptual armor connected to the web of meanings constructed by individuals/ institutions at specific times. The analysis of O livro do Povo by Antonio Marques Rodrigues and Código de Bom Tom by J. I. Rouquette is based, as a source and object, in the light of the theoretical-methodological assumptions of cultural history. It is concluded that the reading books of authors from Maranhão can be appreciated as prescription manuals, as they not only cohabit and compete for school consumption, but also created strategies similar to non-national production, marking singularities of the local culture without losing sight of control of habits, conducts and behaviors in the name of a specific morality.

Keywords: Local readings books; Civility manuals; Maranhão Empire

Introdução

Os manuais de civilidade considerados polissêmicos em seus usos, plurais na sua composição e diversos segundo sua natureza e função são livros difíceis de classificar convencionalmente. Ao mesmo tempo em que vulgarizam prescrições sobre múltiplos aspectos da vida em sociedade, apresentam determinações e objetivos pedagógicos definidos que podem ser utilizados em espaços singulares e promovem saberes específicos que norteiam posicionamentos, relações e trajetórias. Nem totalmente práticos, nem somente literários, os tratados de condutas estiveram estreitamente ligados ao mercado do livro escolar, especificamente, no século XIX e XX no Brasil; divulgação que nos ambientes de ensino mostra com precisão sutilezas e agilidades de forma breve (no entanto profunda!) na transparência de transmissão de normas, comportamentos e valores, na clareza das ideias, na coerência da escrita, na envolvência de imagens discursivas (às vezes até visuais!) ou de desempenhos configurados evocando perspectivas, no dizer de Geertz (1989).

Narrativas simples, que por meio de mapas e percursos a recorrer, materializados em índices por assuntos, páginas numeradas, desenhos ilustrativos e exemplos edificantes, pretendem enraizar-se numa cultura do gesto e do agir, considerados aqui como elementos que auxiliam no “entendimento de práticas culturais que contribuíram para a constituição do indivíduo moderno” (GOMES, 2004, p.11), na medida em que a relação estabelecida não é “[...] de dependência das estruturas mentais quanto a suas determinações materiais [já que] as próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social” (CHARTIER, 1992, p. 9). Livros de leitura ou literatura de civilidade para um público infantil que deveriam ser concebidos e elaborados com vocabulário familiar aos meninos evitando-se as adaptações, com frases e períodos curtos que garantissem o reconhecimento/ compreensão da lição e que fossem centrados em ideias de efeito moral e de civilidade, segundo Abílio Cesar Borges (o Barão de Macaúba); práticas contrastantes que devem ser entendidas “[...] como competições, que suas diferenças organizam-se por estratégias de diferenciação ou imitação, e que os diferentes usos dos mesmos bens culturais estão enraizados nas predisposições estáveis próprias de cada grupo” (CHARTIER, 1992, p. 236).

A literatura de civilidade tem causado modificações no corpo ao introduzir hábitos e regimes disciplinares que se inserem num processo civilizador (ELIAS, 1994), traduzido na corporificação de uma lenta e sutil aprendizagem expressa em forma de capital cultural (BOURDIEU, 2007). O uso do corpo e seus atributos, as habilidades, os valores e as atitudes reproduzem relações de classe ou clivagens sociais/culturais preconizadas num determinado espaço-tempo, no qual, cada um aprende as condutas corporais, morais e societais apropriadas às diferentes situações de vida, à condição social de pertencimento e ao espectro cultural que circunda, fazendo com que o corpo, as formas de agir, de pensar e de se posicionar ganhem valor simbólico. Processos que parecem evidentes pelos protocolos usados nos livros de leitura ou nos manuais de condutas que intencionam moldar e aculturar; no entanto, é precisamente nesse aparente evidente que se deve ‘desestabilizar as certezas’ como defende Foucault (2019) ao “destruir os automatismos verbais e mentais [tornando] problemático o que tem a aparência de evidente no mundo social” (CHARTIER, 2011, p. 21) e identificar os interesses diferenciados e as relações de força que convergem na construção de normas, regras e estatutos, como também questionar ao máximo as fronteiras, as divisões, os recortes considerados naturais quando, ao final, eles são sempre construções de grupos específicos com interesses singulares de imposição (CHARTIER, 2011).

Nesse sentido, as obras de prescrição de comportamentos como sistemas de representação coletiva fazem parte das relações de poder estabelecidas em cada sociedade que visam certo tipo de integração e diferenciação. Ao se apresentarem como discursos, fazem circular modos de ser, de sentir e de agir, que têm como finalidade a modificação do baseamento ideológico impregnado nas mentalidades, “[...] gracias al ejercicio de ciertas prácticas, sustituyéndolo por una representación social de acuerdo a los ideales de la civilidad [;] modelo instrumentado desde la instrucción y, por supuesto, secularizado” (MIRANDA OJEDA, 2007, p. 132). Destarte, os manuais de urbanidade (como foram identificados no território espanhol)2 não são mais do que um poder-saber de uma realidade histórica que tem fortes incidências sobre o corpo e no processo de subjetivação que instaurara certa ordem no todo social, fazendo parte dos mecanismos de poder que se inscreveram no poder disciplinador na modernidade, tornando-se o sujeito a presa apetecível; alvo da marcação do poder disciplinar dentro e fora das instituições escolares, pela via externa (a vigilância) e pela interna (o autocontrole). Sensibilidades e comportamentos que se modificaram continuamente desde o século XIX por dois fatos fundamentais: “a monopolização pelo Estado, da violência que obriga ao controle das pulsões e assim pacifica o espaço social; e o estreitamento das relações individuais que implica necessariamente um controle mais severo das emoções e dos afetos” (ELIAS, 2001, p. 19).

Manuais de civilidade, tratados de conduta, literatura de civilidade, obras de prescrição de comportamentos, livros de urbanidade, manuels de civilité, livros de classe ou escolares entre outras denominações, podem ser identificadas na bibliografia em estudo, como também nos registros documentais; embora, nos jornais maranhenses do Oitocentos usados como fontes, chamados de natureza diversa, como anúncios de venda, denúncias de circulação, gestão de aulas particulares, programas de ensino e promoções de produção/ editoração não indiquem o gênero das obras nem as identifiquem como tal. Este fato parece apontar a familiaridade das tipografias com esta tipologia de textos, a aparente intimidade do público com essas obras e a frequência de uso das instituições com estes exemplares, uma vez que manuais de civilidade oriundos de Portugal, Espanha e França (originais e traduções) coabitaram e concorreram com livros de leitura produzidos por autores maranhenses na imprensa local; vestígios que indicam a transnacionalidade de práticas e artefatos pedagógicos.

Nessa lógica, nossa problemática fundamenta-se em avaliarmos até que ponto a circulação dos manuais de civilidade no Maranhão oitocentista contribuiu com a produção de livros de leitura de autores maranhenses e em que medida a natureza desses tratados de conduta e os espaços de circulação influenciaram nos ambientes de ensino? Identificarmos pontos de contatos entre a literatura prescritiva e os livros de leitura de autores locais, segundo as concepções em uso, os conteúdos propostos e as regras impostas, nos permite compreender o tratamento sugerido pelos mentores às regras moralizantes e disciplinadoras tratadas que se sustentam em códigos de condutas propostos e impostos; análise, comparação e interpretação do Código do Bom tom (1845, 1867, 1875, 1876) de José Inácio Roquete e d’O Livro do Povo (1861, 1865, 1881), de Antônio Marques Rodrigues, que à luz dos pressupostos teórico-metodológicos da História Cultura nos permite abarcá-los como objeto e fonte.

Livros de leituras ou manuais de civilidade? Essa é a questão

Para falar sobre livros de classe como parte da cultura escolar ou sobre manuais de civilidade como ferramentas para consolidar orientações de conduta pessoal, moral e social que visam práticas de sociabilidade, lançamos mão de livros de leitura escritos por autores maranhenses que foram usados na instrução local no Oitocentos, por meio dos quais se tentou direcionar de forma escolarizada e sistemática “maneiras de ser” e “maneiras de fazer” sustentadas no autocontrole de si em relação com os outros, como também se tentou mediar a relação estabelecida na gramática da escola entre comportamento social e expressão de emoções. Regras de civilidade e formas de agir tornadas em hábitos pela intensificação de práticas cotidianas que em tese se tornam naturais. Educação do espírito, ensinamento das letras e indicação das obrigações sociais, por meio de regras de civilidade consideradas como parte da filosofia e a mais modesta etapa da educação da criança, que segundo Erasmo, atuariam para externar as três etapas anteriores já em desenvolvimento (HUIZINGA, 1970).

Nessa acepção, incutir formas civilizadas de conduta pessoal e moral por meio dos livros de leitura e desfilar as próprias marcas do desenvolvimento como um saber escolar possibilita alargar o conceito tradicional de manual de civilidade como leitura prescrita e fundamentada na prática, para apresentá-lo como um livro de classe, que embora tenha um sustento didático-pedagógico no que se refere a sua produção, organização e uso, e esteja inscrito numa rede de preceitos governamentais de toda ordem, mesmo assim, por meio dele se definem regras de conduta para o controle e a contenção de sentimentos e sensações, ao mesmo tempo em que se investe na formação de novas sensibilidades consideradas indispensáveis como signos de civilidade, que sempre são enunciados como “modos de deve ser”. Civilidade que se para Chartier (2004) “visa transformar em esquemas incorporados, reguladores, automáticos e não expressos das condutas, as disciplinas e censuras que ela enumera e unifica numa mesma categoria” (p.48), definindo-se no século XIX “[...] como o conjunto de regras que tornam agradáveis e fáceis as relações dos homens entre si” (p. 88); para Miranda Ojeda (2007) é “[...] una visión total del hombre, ya que los detalles acerca del régimen moral predominante se advierten en sus premisas individuales y valores sociales, destacadas en la apariencia física, en los movimientos y el comportamiento” (p. 150). “Em uma palavra, é a qualidade por excellência que revela todas as outras qualidades, applicando ao bem-estar, à satisfação de todos” (ROQUETTE, 1875, p. 17).

No caso da Província do Maranhão, os livros escolares que circulavam vinham ao encontro da divisão de Bittencourt (2008, p. 43): os livros das disciplinas que procuravam atender os diversos níveis de aprendizagem das crianças, incluindo o catecismo para a educação moral e religiosa, e os livros de leitura que objetivavam instrumentalizar os alunos nos fundamentos do ato de ler, quer para o entretenimento, quer para a aquisição do conhecimento. A edição dessas obras, para atender o crescente mercado educacional, propiciou uma série de investimentos de autores brasileiros e maranhenses em escrever obras destinadas à instrução das primeiras letras e ao ensino secundário.

Entre os livros de leitura garimpados nas fontes, além do acesso à 1ª, 4ª e à 9ª edição d’O Livro do Povo, escrita por Antônio Marques Rodrigues (1861, 1865, 1881), impressa esta última na tipografia de Frias3; duas obras de César Augusto Marques produzidas também por Frias (na rua da Palma, nº. 7) e vendidas na Livraria Popular de Magalhães e na Botica Imperial (respectivamente) aparecem adotadas nas escolas de primeiras letras em toda a Província do Maranhão: Almanaque das Lembranças Brasileiras (1862) e Aos Meus Meninos (1874). Nesse sentido, outros exemplares deste gênero foram identificados, entre eles: Seleta Nacional (1873) de R. Alves Fonseca; Seleta escolar (1886) de J. S. Castello Branco; o Livro de Nina (1884) de Epomina d’Oliveira Condurú Serra e Beleza da Literatura latina (1885) do Dr. João Henrique Vieira da Silva (CASTELLANOS, 2017).

Estes livros de leitura segundo a classificação dos autores/tipógrafos e os registros que legitimam sua avaliação nos procedimentos de aprovação, adoção e veto nos dispositivos legais foram analisados e comparados com os livros de civilidade anunciados na imprensa local oriundos de Portugal, Espanha e França (originais e traduções) que denunciam por diferentes vias um consumo cultural no espaço escolar e/ou não escolar, na tentativa de estreitar pontos de contatos e operacionalizar um alargamento na conceituação destas obras de prescrição de comportamentos. Operação historiográfica que nos autoriza a reconhecer os livros de leitura de autores maranhenses no ensino local, como manuais de civilidade que se materializam em saberes escolares e a compreender as formas de sociabilidade concretizadas e induzidas por estas obras; paralelo traçado para o escopo deste artigo, entre o livro de leitura de Antonio Marques Rodrigues O livro do Povo e o manual de civilidade de Rouquete, Código do Bom tom, tendo em conta várias edições.

Nessa perspectiva, o entendimento de práticas seja enquanto deciframento dos textos, imagens e sentidos, seja enquanto manuseio dos livros ou compreensão do significado de ditas práticas, modela tanto as representações quanto as experiências dos sujeitos e se dão no transcorrer dos rituais escolares e de formação (CHARTIER, 1988). Semelhante posição é tomada por Bourdieu (2007), considerando-a como parte de um cenário conjuntivo e gerador que pode dar início a um processo de transformação estrutural de uma sociedade, de uma escola ou de um espaço de sociabilidade. Assim, o uso da prática para a compreensão do papel do livro de leitura aprovado e indicado nos espaços de ensino e sua atuação via texto como modelador dos comportamentos que estimula o autocontrole das pulsões em contextos específicos, indicam pretensas modelagens de representações e de experiências como estratégias de imposição (CERTEAU, 1995).

Na primeira acepção é possível, a partir de determinado ritual relacionado à instituição escolar (de qualquer natureza) implícito nos textos, aos dispositivos prescritos nas formas de ler e/ou aos processos de aprovação, indicação, distribuição e veto direcionados pela gerencia governamental, perceber de que forma as representações sobre o ensino da leitura, sobre o desenvolvimento do leitor em formação e, mesmo sobre as prescrições e regras, se imprimem nas atitudes e tomadas de decisões dos sujeitos que concebem, decidem e instituem rituais e práticas de ações legais, mas não menos impostas e criadas; práticas de diferenciação não naturais e historicamente construídas que pretendem a subjetivação do indivíduo via leis, normas e regulamentos que emanam de uma história ou um conto, de uma poesia ou um exercício didático presentes nos livros de leitura como manuais de códigos que trazem na sua gênese divisões, classificações e formas de vir-a-ser. Tropos literários que tornam familiar o mundo desconhecido da criança e é precisamente mediado por metáforas, metonímias, sinédoques e ironias expressas nos livros de leitura como manuais de prescrições que se tenta induzir condutas reguladas e comportamentos regrados, seja a partir dos enredos usados nos textos (romântico, trágico, cômico ou satírico), seja por meio de modalidades possíveis do argumento (formalista, mecanicista, organicista e contextualista) ou de modalidades de implicação ideológica.

Nesse sentido, se faz preciso que tais divisões objetivas se compreendam na dinâmica histórica que as institui, na medida em que se deve entender que as lutas relativamente às classificações são “[...] tão reais quanto as lutas de classes (se é que elas poderiam ser separadas!) e que as representações abordadas do mundo social, além de produzi-lo, acabam por ser sua expressão” (CHARTIER, 2011, p. 8). Por tanto, questionarmos como os livros de autores maranhenses concebidos como manuais de urbanidade possibilitaram transformações nas formas de sociabilidade, nortearam novos pensamentos e resignificaram as relações com o poder é uma interrogação que nos orienta a ver nesta literatura de civilidade objetos não estáveis nem naturais, mas obras dadas a conhecer por meio dos discursos; artefatos considerados aqui como objetos discursivos, que denunciam relações culturais que se expressam no campo da prática cultural e da produção cultural, a partir das diferencias na apropriação e nos usos das formas culturais que expressam a existência de lutas e conflitos, fazendo-se necessária uma análise “[...] que seja sensível às desigualdades nas apropriações de materiais ou práticas comuns” (CHARTIER, 1992, p. 17).

Segundo Marques Rodrigues uma das medidas mais urgentes para a melhoria da instrução maranhense seria a uniformidade dos livros de leitura e seu acesso a todas as crianças e jovens das escolas públicas e particulares. Com esse interesse escreve O Livro do Povo que se constitui na maior tiragem e distribuição de uma obra em toda a história do Maranhão Império, tendo circulado não só em várias províncias, como também no Município Neutro e em Portugal; transnacionalização dos artefatos da cultura material escolar que se concretizara em intercâmbios recorrentes entre ambos lados do Atlântico ou entre províncias em solo nacional. Para o autor o livro tinha a finalidade de “[...] vulgarizar a história do Salvador do Mundo, os seus milagres, a sua doutrina e os melhores preceitos de economia e ordem” (RODRIGUES, 1881, p. 3). Para tanto, a sua vasta produção e circulação deveria facilitar o acesso às famílias, aos professores, aos diretores de escolas e aos alunos dos mais diferentes níveis econômicos, o que provocou que em menos de dois anos, se esgotassem as duas primeiras edições com 10.000 exemplares cada; obra que registrara a aprovação canônica do bispo do Maranhão D. Luiz e do Arcebispo da Bahia D. Manoel, certificando no conteúdo os preceitos da moral e dos bons costumes apregoados pela igreja católica.

Figura 1 O Livro do Povo, 4ª. ed. de 1865 e 9ª ed. de 1881 

Em ofício enviado em 2 de novembro de 1864, Antônio Marques Rodrigues (Inspetor da Instrução Pública) transmitia ao Presidente da Província, Ambrosio Leitão da Cunha, o desejo de oferecer às escolas públicas, no ano de 1865, mil exemplares em brochura da obra “já adotada nas escolas desta, e de outras províncias [cumprindo] declarar a V. Exª. que [...] já foram distribuídos gratuitamente pelas escolas [maranhenses] três mil e duzentos exemplares, os quais, reunidos aos mil que [oferecia] agora, perfazem o total de quatro mil e duzentos”4. Segundo Hallewell (2005), parece que “no total [...] foram impressos trinta a quarenta mil cópias, tendo o autor doado mais de cinco mil a escolas” (HALEWELL, 2005, p. 173), entre elas: a Casa dos Educandos Artífices5, o Asilo de Santa Teresa6, as escolas de primeiras letras e outras instituições do interior e da capital, constituindo-se a principal referência de leitura e de instrução religiosa direcionada aos meninos e meninas do Maranhão e de outras localidades.

Nas primeiras páginas, o autor dedica a obra a José Lustosa Paranaguá (Presidente da Província do Maranhão) em 1859, pela sua iniciativa de ter criado a Escola Agrícola do Cutim com a finalidade de formar mão de obra qualificada para a aplicação dos modernos métodos utilizados na lavoura7. Ele explicita a base religiosa que utilizou para a escrita do texto, a qual se sustenta na História Sagrada, do padre I. J. Roquette e nos textos de Royaumont e do Brispot. A obra é dividida em duas partes: na primeira, trata da “Vida de Jesus Cristo” apresentada em cinco capítulos, desde o nascimento até a sua ascensão; na segunda, aborda os “Assuntos Diversos”, sem, contudo, perder o foco nos princípios religiosos, morais e de civilidade, enfatizando a importância do trabalho para o crescimento do Brasil e para a dignidade do homem.

Nesta segunda parte trata sobre a descrição dos animais, dividindo-os em gêneros e espécies, explicando suas origens e ressaltando suas principais características e imagens. As estratégias de manter o leitor atento intercalam-se com contos diversos de caráter moralizante como O Bom Homem Ricardo em que procura mostrar diferenças entre pessoas: uma dedicada ao trabalho e cuidadosa com o dinheiro; a outra ociosa e esbanjadora, afirmando na sua historieta que “a preguiça causa cuidados e, o ócio, sem necessidade, [dá] lugar a grandes dissabores. O trabalho pelo contrário, [traria] consigo comodidades, abundância e considerações [; na contramão dos] prazeres [que correriam] atrás daquele que fogem deles” (RODRIGUES, 1881, p. 178). N’O Professor Primário, o único conto em toda a obra em que trata de forma mais direta sobre a instrução, procura mostrar a importância da profissão “como uma das mais santas” por ter o dever de inculcar nos alunos as ideias religiosas e morais mais profundas e de prolongamento por toda a vida.

Na Moral Prática discute a amizade e o amor como um dos maiores bens dado por Deus aos homens, sendo o mais importante o amor paterno e o materno; “o mais perfeito e sublime”, o filial e o fraternal. Em seguida debate sobre a justiça, a coragem, a bondade e outros “sentimentos que engrandecem ao homem”. No item que denomina de “Máximas e Sentenças” apresenta uma série de frases “edificantes”, como por exemplo: “O temor de Deus é o princípio da sabedoria; não gasteis hoje aquilo de que amanhã podeis necessitar” (RODRIGUES, 1881, p. 246). Sobre a Higiene oferece um texto com a função de ensinar aos meninos a cuidarem do corpo e da mente, do vestuário e do asseio, dos alimentos e das bebidas. Nas últimas partes, procura tratar dos astros e finaliza expondo os aspectos geográficos e a divisão política do Brasil. Portanto, a obra apesar de centrar-se nos princípios religiosos e morais, exibe outros conteúdos que integravam as aulas de instrução primária, o que possibilitaria a apreensão de vários conhecimentos mediados por novas práticas em um único livro, entre elas: aprender a ler e apreender com a leitura, tentar absorver os preceitos da fé católica e avaliar os hábitos pessoais e sociais baseados na moralidade e na civilidade.

Se analisarmos os propósitos implícitos nos conteúdos registrados neste livro de leitura, um paralelo pode ser traçado com os numerosos manuais de civilidade e etiqueta que no final do século XIX no Brasil foram editados e divulgados. Livros de transcrição de comportamentos que foram usados pela elite agrária brasileira que ia migrando para as cidades na medida em que uma nova burguesia ocupara os espaços. O Código do Bom tom publicado em 1845 e escrito pelo cônego português José Inácio Roquete é provavelmente o mais famoso e mais antigo. Na sua sexta edição em 1900 procurava normatizar os rituais do Brasil Imperial e se tornou leitura obrigatória para quem almejava ser bem sucedido na sociedade, sendo relançado em 19988, quando introduz (inspirado em manuais franceses) regras de comportamentos em festas, em eventos da sociedade e nas artes de bem viver, segundo Cunha (1999); mas a autora não especifica, se o relançamento referido corresponde a esta obra independente do número de edições ou se está referindo-se, especificamente, àquela sexta edição publicada no início do século XX, na medida em que uma análise de diferentes edições de uma mesma obra pode ampliar nosso horizonte de expectativas, quando aponta para diferentes concepções do impresso e diversas formulas de edição (dispositivos vários em uso que norteiam o sentido e a visualidade dos textos), como também para a tipologia textual do registro em suas diversas tensões e configurações (MORTATTI, 2010).

Figura 2 Código do Bom Tom, 4ª ed., 1867. 

Entre os tratados de urbanidade ou comportamentais oriundos de Espanha e Portugal que coabitam e concorrem com livros de leitura de autores locais (maranhenses) considerados aqui como manuais de civilidade, são anunciados e registrados na imprensa oitocentista alguns exemplares, entre eles: o Código do Bom Tom.

Quadro 1 Manuais de civilidade ou de urbanidade registrado na imprensa local. 

TITULOS AUTOR DATA FINALIDADE
Compêndio de civilidade e Urbanidade Cristã S/A 1839 Geral
Catecismo de urbanidad civil y cristiana S/A 1845 Para uso das escolas
Código do Bom tom J. I. Roquette 1845
La cortesanía. Nuevo manual práctico de urbanidad D.V.J.B. 1850 Para uso das escolas
Preceitos de civilidade Pereira J. F. 1856 Escolas de Instrução Primária
Manual abreviado de civilidade M.B.C 1862 Geral
La educación social: tratado completo de cortesanía D. Juan Cortada. 1868 Geral
Compêndio de civilidade ou regras de educação civil, moral e religiosa, aprovado pelo Conselho Superior de Instrução Pública (p. 5) Joaquim Lopes Carreira de Mello 1878 Escola - 1º e 2º grau
Novo manual de civilidade ou regras necessárias para qualquer pessoa poder frequentar a boa sociedade B.N. 1883 Geral
Civilidade

Catecismo de moral, virtud y urbanidad. Biblioteca de la juventud
António Maria Baptista

S/A
1886

1885
Geral e escolas

Para uso das escolas
Código de civilidade e costumes de bom tom

Compêndio elementar de civilidade
Não indicado

J. M. B. Ferreira
1894

1897
Geral

Geral
A civilidade José Agostinho Não indicado [1899] Geral e Escolas

Se analisarmos, por exemplo, a edição de 1845 do Código do Bom Tom, que foi publicada pela tipografia de Rignoux (rua Monsieur-le-Prince (29 bis) e vendida em casa de J. P. Aillaud (quai Voltaire, nº 11) - ambos endereços em Paris, verifica-se que apresenta o autor como professor de Literatura no Colégio Stanislao, fazendo referência a sua condição de padre franciscano; já na edição de 1867, publicada na mesma cidade pela Tipografia Portuguesa de Simão Raçon e Companhia (na rua D’erfurth, nº 1) e vendida pelos “livreiros de suas Majestades o Imperador do Brazil e El-Rei de Portugal”: J. P. Aillaud, Guillard e Cª (residentes da rua Saint-André-des-Arts, nº 47), Roquette aparece registrado na capa do livro não só, como Cônego da Sé Patriarchal e professor de eloquência sagrada no Seminário de Santarem, como também Cavalheiro das ordens N. S. da Conceição em Portugal e da Rosa no Império de Brasil, além de ser sócio correspondente da Academia Real das Sciencias de Lisboa (ver figura 2). Em outras palavras, se observamos detidamente estas duas publicações e o período de 22 anos que as separam, algumas inferências podem ser feitas.

Em primeiro lugar, as diferenças quanto à qualidade na concepção e fabrico do exemplar contrastam no tipo de papel usado, nos estilos das portadas, nas divisões dos assuntos, na indicação de ser uma “nova edição corrigida e consideravelmente augmentada”, na diagramação do texto e das imagens segundo as temáticas, assim como nos detalhamentos do currículo do autor, que se na edição de 1845 é tímido, na edição de 1867 marcam seu estatuto como professor e como homem honorável e ilustre dos espaços de sociabilidade portugueses. Estes vestígios se relacionados parecem apontar para diferentes leitores levando-se em conta as clivagens sociais, culturais ou de grupos a que pertencem, por exemplo, a própria divisão das profissões, como nos adverte Bourdieu (2011, p. 23) quando as aprecia como uma construção histórica e, portanto, prefere “[...] considerar as classificações profissionais como objetos de análise, em vez de utilizá-las sem hesitação nem reflexão”; como também indicam estes sinais os tipos de instituições escolares sejam públicas ou privadas, sejam religiosas ou laicas a que foram direcionados estes suportes segundo sua natureza e função, na medida em que o indicativo de aumento de publicação, a riqueza de detalhes na folha de rosto do exemplar, como também sua nova restauração dependente de novos tempos, concepções e práticas, parecem sugerir a necessidade de se insinuar para quem eram dirigidos, com que intencionalidades foram escritos/editados e o porquê de tal indicação.

Esta “nova edição”, que em realidade é a quarta, traria muita coisa nova, já que segundo J. I. Roquette na advertência que faz o 1º de novembro de 1866,

chamaremos Nova Edição, porque effectivamente ha nela muita coisa nova, com os necessarios melhoramentos que o tempo e a circumstancias pediam, e que ham de agradar e ser uteis aos benévolos leitores. - Simplificaram-se alguns artigos que, para Portugal, eram algum tanto diffusos; modificaram-se outros em harmonia com os novos usos que o tempo tem introduzido; entremearam-se varias anecdotas chistosas que dam amenidade ao stylo didactico do livro; e acresceram finalmente alguns Contos Moraes em que traluz a virtude moderna entrelaçada como a civilidade polida, que faz o verdadeiro ornamento d’uma educação desvelada (ROQUETTE, 1867, 1-2).

Se as inovações de toda ordem desta quarta edição são correlatas aos “necessarios melhoramentos que o tempo e as circumstancias pediam”, estas mudanças parecem indicativos das novidades nos programas de ensino, das exigências em novas metodologias, dos diferentes usos do suporte como pretexto na formação do leitor em formação independentemente de seus níveis de leitura, da restrição de aprovação e indicação das obras que não cumprissem com as reformas da instrução, obrigando-as a uma reformulação e a um ajustamento segundo as prescrições nos dispositivos legais, como também à valorização do professor em quanto profissão, já que era exigência de leitura obrigatória e de formação nas Escolas Normais, especificamente no Maranhão, para formar parte da trajetória profissional das normalistas (CUNHA, 1999; CASTELLANOS, 2011). Por outro lado, se Roquette (1867, p. 1) simplificou alguns artigos e “[...] modificou outros em harmonia com os novos usos que o tempo tem introduzido [...]”, a que usos este professor fazia referência? Suas inferências se direcionavam aos métodos de ensino da leitura ou à natureza da recepção do discurso presente na obra? Inquiria sobre a tipologia da leitura tendo em conta o público-alvo, seja a leitura em voz alta praticada em grupos ou salas de aulas, seja a leitura em silencio por leitores mais experientes para marcar níveis de leituras e propósitos dos usos como cultura material? Fazia referência a diversos leitores e a suas diversas práticas no ato de ler tendo em conta suas crenças, expectativas e o lugar que ocuparam na cultura local?

Usando os critérios de seleção de Roquette (1845), este opúsculo estaria destinado a completar em forma de leituras o “Thesouro da Adolescencia e da Juventude”; livro que, “[...] devia [ter saído] á luz depois d’elle; mas por varias razões, que não importa[ra] saber, [saiu] antes”, conforme a advertência registrada em abril do mesmo ano. No entanto, usando a paternidade e o instinto educativo como signo para conceber a obra, a escrita do texto se inicia a partir de um “Gentilhomem que saíra de Portugal em 1834 com dous filhos de menor idade, orfaos de sua mãi, os quaes mand[ara a] educar em França, e a quem leva para a pátria depois de dez annos de ausência” (ROQUETTE, 1845, p.1). Este autor, na quarta edição de 1867, elimina artigos referentes à cultura francesa que para Portugal eram difusos, e coloca anedotas simpáticas para amenizar a obra no sentido de ser mais didática, ‒ talvez visando a idade dos leitores em formação segundo as indicações nos dispositivos legais como livro escolar (embora fosse considerado um manual de civilidade e cortesia!) ‒, como também coloca contos morais que por meio de práticas leitoras impõem regras de condutas e ajustamento de comportamentos.

Na divisão em vinte capítulos da edição de 1845, com 491 páginas e, em vinte seis, a de 1867, com 339 pode-se identificar a intencionalidade do autor em eliminar passagens do meio francês que não representavam a cultura portuguesa, como também parece apontar táticas de apropriação diante do poder instituído; embora fosse uma obra indicada e aprovada para o ensino da leitura e para a inculcação de normas de conduta, eliminar o quantitativo de folhas no volume parece dar indícios de uma maior aceitação pelas editoras para a sua produção, o que garantiria a circulação, distribuição e consumo entre os leitores em formação.

No comparativo do ‘índice de matérias’ de ambas as edições, embora a primeira (de 1845) apresente um artefato supostamente maior pela composição de 491 páginas em relação à quarta edição elaborada com 152 páginas a menos; mesmo assim esta última se excede em capítulos. Embora Rouquette (1867) nos informe na Advertência da quarta edição que simplificara alguns artigos difusos para Portugal e modificara outros pelos novos usos, nem por isso deixa de articular diversos assuntos, mesmo diminuindo a extensão dos já publicados; práticas do autor ou do editor que parecem se acomodar às novas exigências do livro de leitura como livro escolar que depende de um formato específico para sua comercialização, distribuição e consumo, e de estarem sujeitos a normas estabelecidas segundo os dispositivos legais que nortearam a instrução. Significado dos textos que dependem das ideias dos leitores, das inovações tipográficas e da multiplicação de indicações cênicas numa relação triangular entre como é concebido o texto pelo autor, como é impresso pelo editor e de como é lido ou ouvido pelo leitor.

Com respeito ao uso de imagens também há divergências de uma edição para outra. Si na primeira existem vinte gravuras colocadas numa aparente desordem, uma vez que a simples vista não obedecem nenhuma lógica, mesmo que todas estejam relacionadas como os textos que fazem enlaces; a quarta edição apesar de apresentar só quatro imagens, a qualidade do papel se diferencia do restante do volumem ‒ impressas possivelmente num tipo de papel couche ‒, a nitidez na impressão e o uso de cores parecem apontar para uma legitimidade do livro no mercado das letras em ascensão e de um reconhecimento da obra na indústria escolar em formação. Nesse sentido, a maioria dos capítulos da edição de 1845, trazem suas respectivas gravuras e, embora alguns assuntos contemplem um mesmo capítulo, por exemplo, a seção que se refere à igreja que abrange batizados, casamento e enterros como práticas religiosas, todas elas são acompanhadas de uma encenação via imagem. Isto não acontece no restante dos capítulos nem todos eles são articulados a desenhos gráficos. A escolha dos capítulos para o uso de imagens: cumprimentos (p. 93); dos bailes (p. 103); banquetes (p. 150); da conversação (em francez) (p. 204); da estada no campo (p. 382) e a Theophilo em particular (p. 445) e; a distância destas gravuras entre páginas, parece desafiar qualquer raciocínio coerente. Ou seja, não será possível “[...] entender uma estrutura [qualquer que seja sua natureza] se no conseguirmos enxergá-la ao mesmo tempo da perspectiva-eles e da perspectiva-nós” (ELIAS, 2001. p. 80).

Já na edição de 1867, as quatro imagens também não apresentam um critério fácil de identificação. O ensino paternal (nomeação da primeira imagem) parece concorrer com a folha do rosto e preparar ao leitor para o entendimento da advertência sugerida pelo autor, na qual coloca motivos e intencionalidade da sua escrita. As Nupcias (nomeação da segunda imagem) que se localiza no item Casamentos na página 3, correspondente à igreja como primeiro capítulo, tem uma relação direta entre o que se escreve e o se que se observa, trazendo o enlace esperado entre texto/imagem que em tese auxiliariam no entendimento do assunto por crianças em formação leitora. Com respeito aos capítulos IX “Das visitas” na página 149 e, o XVII “Dos amigos” na página 262, ainda que as imagens não se articulem diretamente com o contexto do texto, mesmo assim, há uma conexão aparente entre A princesa Sybila e “as visitas”, entre Damon e Pythias e o capítulo XVIII. Não entanto, os critérios de seleção das imagens e o lugar de escolha para sua localização com respeito aos textos, não parecem apresentar regras que definam os posicionamentos destas representações dentro da obra e muito menos denunciam as intencionalidades do autor ou do editor aparentemente; sem embargo, mesmo com essa mistificação contornando as escolhas de imagens, de localização e de articulação com o escrito, é necessário enxergá-las na perspectiva-eles quanto da perspectiva-nós: “[as imagens são] vista[s] como figuração de outros homens, a respeito dos quais dizemos “eles”; ao mesmo tempo, [são vistas] da maneira como aqueles homens a viam, como eles viam a si mesmos, quando diziam nós” (ELIAS, 2001, p. 80)

Se me detenho a analisar a função das ilustrações utilizadas nos livros escolares que seriam destinadas ao ensino da leitura ou das primeiras letras, isto é, imagens empregadas que ajudariam (em tese) a compreender por meio da visualidade os temas tratados, a diferenciar os assuntos para serem aprendidos e o reconhecimento das letras e das palavras que nomeassem pessoas, animais e coisas, como o exposto n’O Livro do Povo (1861); estas tentativas são às vezes superficiais. A aparente finalidade das ilustrações nos livros de leitura para enriquecer os textos de significados, ajudando assim na compreensão do sentido nas aulas de primeiras letras, fica um tanto distorcida e incoerente em alguns exemplares concebidos e produzidos para este fim. N’O Livro do Povo (1881), obra classificada por muitos como “o livro de leitura que serviria na formação moral das crianças”, não existe necessariamente uma correlação direta entre o texto exposto e a imagem de referência, e muito menos entre as figuras reveladas e o cotidiano das crianças em formação leitora; animais como o urso e o dromedário, que nem estão contemplados na escrita da obra, nem mesmo pertencem ao contexto das crianças brasileiras nem das maranhenses, aparecem.

Nessa perspectiva, se o Codigo de Bom Tom ou Regras de civilidade e de bem viver no XIXº século de 1845 é acompanhado por uma pergunta de Cícero como epígrafe na portada, no qual questiona em latim: “que maior e melhor serviço podemos fazer a’ Republica do que ensinarmos e instruirmos a mocidade?”9; na quarta edição de 1867, embora o autor ou o editor o elimine, Roquette nos informa na advertência, que “[...] tres edições se têm publicado até este anno de 1866, mas [em] nenhuma d’ellas se fez mudança notável no seu conteúdo e redacção”, não acontecendo o mesmo nesta quarta denominada de “Nova Edição”. Nestas duas publicações, como nas de 1875 e 1876, se considera que a educação dos filhos é uma loteria, que a “escola do mundo” considerada como “o trato dos homens” é muitas vezes mais indulgente do que as classes dos colégios, mas algumas vezes mais exigente e mais austera do que elas e, que a sociedade também tinha sua “gramática”, sendo necessário estudá-la: “[...] os que desprezam suas regras se não levam palmatoadas, ou outro qualquer castigo, são olhados como homens sem educação, e muitas vezes rejeitados no seu seio” (ROQUETTE, 1876, p. 10). Ou seja, tanto na 1ª edição de 1845, como na quarta de 1867, câmbios estruturais se manifestam por meio de diversos dispositivos, sejam nos tipos usados, nas mensagens colocadas, nos avisos interpostos e mesmo no nível de visualidade., se consideramos o número de imagens e a escolha do que é representado, a qualidade do registro e o uso de cor, não acontecendo nenhuma mudança palpável, nem na publicação de 1875, a não ser sobre a desinformação do lugar de impressão aparentemente extraviado da página no exemplar, nem na de 1876 publicada pela Imprenta de Pillet fils ainé, calle des Grands-Augustins, nº. 5, exatamente como acontece nas três edições d’O livro do Povo em análise.

Sem embargo, é curioso como duas obras destinadas ao ensino da leitura em crianças em formação leitora numa mesma escala temporal, se publiquem e se indiquem, se distribuam e se usem no espaço escolar e, na contramão, existam discrepâncias entre elas de concepções, funções e modos de apresentação que forjam uma diferenciação; embora se inter-relacionem por interação ou por contraste. Isto pode ser indicativo de uma explicação plausível se consideramos os pontos de vistas dos autores, que nas suas produções atenderam aspectos essenciais, entre eles: as formas de ensino, a natureza da apreensão do conhecimento, as diferentes concepções em jogo, as regras de conduta e o ajuste dos comportamentos; conjunto de proposições ligadas logicamente entre si (por meio da escrita, de símbolos ou de figuras) que podem possuir referentes comuns (CASTELLANOS, 2017). Mas por outro lado, neste fabrico e projeção de exemplares destinados à leitura, múltiplos recursos materiais e/ou humanos incidem na produção, independentemente das abrangências de quem escreve, das visões de mundo que defenda e das finalidades concebidas.

Dessa forma, se não foi possível constatar no início da investigação se o padre I. J. Roquette (autor da História Sagrada que sustentou a escrita d’O Livro do Povo, segundo Antonio Marques Rodrigues) e o padre J. I. Roquette (autor do Código do Bom Tom)10 eram a mesma pessoa, uma vez que as iniciais parecem trocadas, verificando-se em principio como estas duas leituras com características específicas, intencionalidades aparentemente opostas e formas de produção, distribuição e circulação diversas (que dependem das decisões dos autores e editores, como também dos erros cometidos no processo de editoração), coabitam e se cruzam quando fazem referência a temáticas similares consideradas como saberes escolares e/ou não escolares disponíveis no âmbito da escola ou fora desta; depois de um certo tempo de seguir pistas, vestígios e indícios, encontramos uma relação direta entre os livros de civilidade de origem lusófona com os livros de leitura de autores maranhenses. Segundo Marques Rodrigues (Inspetor da Instrução Pública) O Livro do Povo foi sustentado pela História Sagrada, do padre I. J. Roquette e pelos textos de Royaumont e do Brispot, sendo José Ignácio Roquette autor da História Sagrada do Antigo e Novo Testamento, enriquecida com notas e reflexões morais para a instrução e santificação dos fiéis. Livro que se foi publicado em Paris, na tipografia J. P. Aillaud, em 1850, e sua segunda edição foi a público, também em Paris, em 1856; este padre franciscano, publica não só esta obra em Lisboa, no mesmo ano, como também escreve um dicionário e vários outros instrumentos didáticos.

A História Sagrada do Antigo e Novo Testamento do padre I. J. Roquette é uma obra notável em matéria autoral. O autor dispõe, sob a forma de narrativa, o Velho e o Novo Testamento. O texto está organizado em lições compostas por informação e reflexão. Cada lição tem cerca de 2 páginas. O discurso é rigoroso e límpido. A edição é ilustrada. No Prefacio, o autor explicita o modo como produziu esta História Sagrada, quer relativamente à leitura e interpretação da Bíblia, quer atendendo à conveniência de elaborar uma História que pudesse ser lida, salientando a importância da leitura como resposta ao mundo protestante. A 1ª edição de 1850 foi publicada com aprovação do Bispo da Bahia, do Bispo de Mariana e do Cardeal Patriarca de Lisboa; ordem que veio a ser alterada na 2ª edição (1856), na qual aparece primeiramente a menção ao Cardeal Patriarca de Lisboa.

Os mecanismos de economia doméstica presentes num livro de leitura que cogitam sobre “leis de higiene”11, ao sugerirem cuidados “do corpo e da mente, do vestuário e do asseio, dos alimentos e das bebidas” (RODRIGUEZ, 1861), coabitam com pronunciamentos de condutas para o corpo estabelecidos nos manuais de civilidade: No que Roquette (1875, p. 61) em Código do Bom Tom afirma que “[...] nunca se côça na cabeça, nem se mettem os dedos pelos cabellos, ainda menos no nariz, nem se levam as mãos á boca para roer as unhas, ou uma espiga, etc”, e deixa claro que não “há objeto mais desagradável do que uma mulher desgrenhada ou mal penteada” (p. 291); Erasmo (1978), em Civilidade Pueril, explica que nem “[...] se roem os ossos com os dentes, como fazem os cães; [os quais se limpam] com a ajuda de uma faca”. (p. 93), nem se deve lamber “[...] com a língua o açúcar ou qualquer outra coisa doce que ficou presa ao prato, ou à travessa, [já que era] comporta-se como um gato e não como um homem. (p. 93); já Prevost (1840) sugeria em Elementos da civilidade que deveríamos “[...] ter sempre o cuidado de ter a cabeça limpa, como também os olhos, e dentes, cuja negligencia, ou descuido corrompe a boca, e infecta aquelas, pessoas, com quem falamos” (p. 8). Isto é, as posturas, os gestos corporais e as “formas de deve ser e fazer” são codificados, não só para o reconhecimento de uma posição social, na medida em que a assimilação e aplicação das regras direcionam pretensamente a construção de novas subjetividades que inscrevem no indivíduo um código de civilidade, na medida em que vigiar posturas e regrar condutas via leitura são práticas que ficam a cargo do sujeito, cabendo a ele a função de governar seus modos corporais instigando o reconhecimento noutro dos mesmos códigos que tem codificado em si numa certa margem de liberdade; dinâmica que constata “[...] que o problema da liberdade e o problema da efetiva distribuição de poder entre homens estão em conexão bem mais estreita do que pode parecer” (ELIAS, 2001, p. 159).

Com respeito à linguagem, apesar desta estar submersa em um universo simbólico pré-estabelecido pelas normas sociais da língua e de seus algoritmos de expressão e legitimidade, mesmo assim a fórmula usada nos códigos de disciplinamento do corpo e da mente nos manuais de civilidade trasvestidos como livros escolares para o ensino inicial da leitura ou para o ato de ler em leitores em formação (uma vez que são destinados para as escolas primárias na sua maioria) tem a capacidade de se converter em uma ação produtiva do discurso e de se reconfigurar partindo de práticas diferenciadas, embora submetidas pretensamente a formas de se estar e de vir-a-ser. Linguagem que para Chartier, não é neutra nem fixa, visto que, tanto a realidade quanto as significações a ela atribuídas são construídas, na medida em que a ‘construção de significação’ parece “[...] residir na tensão que articula a capacidade inventiva dos indivíduos singulares ou das ‘comunidades de interpretação’ [...] com as restrições, normas, convenções que limitam o que é possível pensar e enunciar” (CHARTIER, 1988, p. 10). É precisamente nesta tensão, onde situamos e analisamos o livro de leitura de autores maranhenses como tratados de conduta, aprovados e indicados na instrução local, em uma tentativa de não ceder mais ou menos para nenhum dos dois lados: nem para as significações atribuídas pelo discurso do cotidiano, nem para as significações formais do discurso oficial. Nessa lógica, é no embate entre eles a tentativa de identificar diferenças e concordâncias, buscando possíveis respostas ou novas perguntas que podem surgir do contraste sobre o que é dito e não dito no médio de esta interposição, que dependem em última estância das expectativas e das atitudes do aluno-leitor e do nível de apropriação dessas normas e regras de condutas pretensamente induzidas.

Debates estabelecidos sobre “a justiça, a coragem, a bondade” n’O Livro do Povo, entre máximas e sentenças que engrandecem a moral prática do homem, quando se vulgariza a história do Salvador do Mundo, os seus milagres, a sua doutrina e os melhores preceitos de economia e ordem” atendendo aos bons costumes (RODRIGUES, 1861), se cruzam com o conceito de civilidade defendido em diferentes tratados de conduta: se a civilidade em Código do Bom tom “não é outra cousa senão a manifestação, a prova visível, e por assim dizer, palpável, da bondade de cada qual que deve sempre transluzir no trato do mundo” (ROQUETTE, 1875, p.16); e em Civilidade Pueril repousa sobre o princípio ético, que em cada homem “a aparência é o signo do ser e, o comportamento, o índice seguro das qualidades da alma e do espírito” (ROTTERDAM, 1978, p.78); para Prévost (1840, s/p), a civilidade se constitui “hum compendio de todas as virtudes moraes, e huma união da modestia, urbanidade, discrição, condescendência, prudência, circunspecção, decência que a cada hum cumpre guardar em suas palavras e acções”, em Elementos de civilidade. Graus de interdependências que emanam entre os indivíduos ou diversos graus de poder nas suas relações recíprocas, na medida em que “[...] a ação relativamente independente de um homem põe em questão sua relativa independência dos outros; [alterando] o frágil equilíbrio de tensões entre eles, sempre instável” (ELIAS, 2001, p. 158).

A indução da mulher via leitura d’O Livro do Povo, a ser uma “carinhosa mãe, filha obediente ou fiel esposa e [do] homem [a amar] a DEUS sobre todas as coisas [e] ao próximo como a si mesmo”, que marca discrepâncias entre as posições sociais que deveriam ser tomadas, como outro elemento a ser analisado, se cruza com a diferenciação de funções sociais também expressas na inevitável separação efetuada por Roquette (1875, p. 59) na instrução de seus filhos, quando aconselha a Eugenia que prefira “[...] o estudo e a vida doméstica aos passatempos mundanos”, ao mesmo tempo em que se desculpa, ao reconhecer que: “[...] como nossos costumes, de acordo com a natureza, não prescrevam a vós os mesmos deveres pessoais, sou obrigado, para completar minhas instruções, a dirigir uma em particular a ti, assim como o farei igualmente a Eugênia” (1875, p. 272).

Destarte, levando-se em consideração a categoria significação que abrange as armaduras conceituais propostas por Chartier, é aqui, nas práticas, um dos pontos onde a História Cultural tem destaque no estudo dos manuais de civilidade, tratados de conduta, literatura de civilidade, obras de prescrição de comportamentos, manuels de civilité, livros de urbanidade trasvestidos como livros de leitura na instrução do Maranhão. Tendo em conta a compreensão das significações dos sujeitos no período em foco, estas devem ser percebidas, lidas e articuladas às práticas, às decisões e às estratégias de imposição de acordo com o contexto que refletem a variedade de suas manifestações, na medida em que ditas práticas são recursos que podem impulsionar novas determinações, novos sentidos e novas formas de apropriação do objeto. Dessa maneira, é necessário distingui-la nos discursos, já que as práticas independentemente da sua natureza, estrutura e função se relacionam com a singularidade da cultura, reafirmando-a, reavaliando-a e legitimando-se em quanto tal. Esquemas culturais que definem o processo em que a história é culturalmente ordenada e que a cultura também é historicamente ordenada, numa relação de influências mútuas. (BIERSACK, 1992); cultura que é constituída de esquemas mentais e afetivos, segundo Chartier (1989) - influência de Norbert Elias -, nos quais se deve investigar a criação de significados e a recriação desses significados pela recepção não passiva nem linear dos indivíduos. (CHARTIER, 1988, p. 11).

Contudo, independentemente do sucesso do livro de leitura e do lugar que ocupou no cenário educacional maranhense, a relevância da obra só poderia ser analisada sem ignorar os estratagemas implícitos nos processos de produção, divulgação, adoção e veto. Trâmites e negociações que estiveram pautados “[...] na legislação vigente e nos programas de ensino, [em que] vários ideólogos dos programas e reformas [eram] os próprios autores [dos] livros [...]” (MACIEL; FRADE, 2003, p. 106). Dito de outra forma, Antônio Marques Rodrigues como Inspetor da Instrução Pública deve ter exercido grande influência no ambiente escolar em sentido geral, e nos agentes avaliadores no âmbito governamental, já que os indícios latentes na excessiva produção de seu livro em tempo recorde para a época, na acelerada liquidação das edições de forma massiva, assim como nos processos de aprovação, adoção e uso em todos os espaços ensino público local e em algumas províncias mostram de alguma maneira a ressonância de sua atuação/projeção como autor, divulgador e legislador. O autor por ser gestor e ocupar posições estratégicas encontrou as condições especiais que conferiram prestígio à obra e favoreceu a divulgação, o que pode justificar como esse livro de leitura superou as expectativas no nível das concretizações, se manteve atuante no decorrer do Oitocentos no nível das normatizações e seu autor intercedendo e mostrando a sua relevância para a formação leitora dos alunos se impôs no nível das tematizações (MORTATTI, 2010).

Embora O Livro do Povo (1861; 1865, 1881) seja constituído de textos religiosos e moralizantes preocupados com o ajustamento dos corpos, com a civilidade e com a moral cristã (em primeira instância) e não um livro propriamente dito para o ensino da leitura em alunos em formação inicial como foi reconhecido na documentação oficial, e por outro lado, careça de uma concepção explícita de leitura, de métodos de ensino a serem usados no ato de ler e mesmo não exista uma relação constante entre escrita e imagens (que em tese seria uma estratégia pedagógica na compreensão dos textos ‒ na pretensa analogia entre a palavra e o desenho), ainda assim, se faz importante entender a sua utilização como livro de leitura, avaliar o nível pedagógico/didático da obra para a época e o teor dos escritos, analisar a variedade das temáticas abordadas para sujeitos singulares e compreender o sentido de sua produção e o público para quem foi dirigido; nesse caso, uma plateia infantil ou as escolas de primeiras letras, nas quais o ensino deveria se sustentar no aprender a ler, escrever e contar, e nos preceitos morais e religiosos. Ou seja, mesmo que “o tratado de civilidade erasmiano não seja um livro escolar, porém [tenha satisfeito] uma necessidade mais rigorosa do que a mixórdia dos antigos livros de cortesia”, segundo Ariès (2006, p. 247) e que os processos da escolarização tenham feito com que este manual de civilidade fosse associado ao ensino de crianças pequenas, as quais aprendiam por ele as primeiras lições de leitura, já que este texto “visa[r]a sobretudo sensibilizar as crianças para um código geral de sociabilidade” (REVEL, 1996, p.181), tendo por finalidade, aproximá-las desde cedo às práticas da civilidade, mais que a preocupação de cunho pedagógico com a aprendizagem das letras; na contramão, os livros de leitura de autores maranhenses no século XIX, para além de sua função primeira no plano didático com o ensino das letras e da leitura, parecem apontar para certa influência exercida nas práticas de sociabilidade e nas novas representações por meio dos assuntos tratados, as conceituações em foco e as imposições de regras.

À guisa de conclusão

Analisar os livros de leitura de autores maranhenses como objeto e como fonte, ao mesmo em tempo que nos permite considerá-los como manuais de civilidade ou tratados de conduta, como literatura de civilidade ou obras de prescrição de comportamentos e, mesmo, como livros de urbanidade, ‒ já que temas específicos sustentados no controle e nas estratégias de imposição do permitido em lei se derivam de armaduras conceituais conectadas à teia de significados construída por indivíduos e instituições em temporalidade específicas ‒, também nos ajuda a alargar o conceito de livro de leitura como cultura material escolar, já que mesmo mantendo esta função pedagógica de primeira ordem (que é o ensino do ler), de forma sutil, camuflada e fingida via leitura de histórias e contos, via metáforas, fabulas e poesias, entre outros tropos literários em uso como recurso de linguagem, estratégia de compreensão e formas de manter a atenção e o interesse das crianças em formação leitora, pretendem em sua totalidade como obras escolares ou como repertorio de códigos permissíveis, a formação do sujeito escolar num ideal de homem, de sociedade e de pais criado de forma intencional, no intuito de legitimar uma identidade em função da civilidade, da ordem e o progresso.

Nesse sentido, diversos pontos de contato são permitidos estabelecer entre os livros de leitura de procedência local com os manuais de civilidade de procedência internacional; tratados de condutas de Espanha, Portugal e França registrados na imprensa maranhense que apontam indicações de uso e aprovação das instâncias governamentais para sua utilização nas instituições de ensino e coabitam e concorrem com a produção local de autores maranhenses e a nacional no âmbito escolar. Em primeiro lugar, as diferenças quanto à qualidade na concepção e fabrico dos exemplares contrastam no tipo de papel usado, nos estilos das portadas, nas divisões dos assuntos; vestígios que se relacionados parecem apontar para diferentes leitores levando-se em conta as clivagens sociais, culturais ou de grupos a que pertencem, por exemplo, a própria divisão das profissões, sejam professores de primeiras letras, normalistas ou aqueles dos Liceu Maranhense, seja na própria formação dos que governam com concepções e práticas diferenciadas quando se discute a instrução e a educação, seus valores e preferências. Por outro lado, as inovações de toda ordem presentes de uma edição para outra, como por exemplo, no Código de Bom Tom de J. I. Rouquette, sinalizando-se suas edições (1845; 1867; 1875 e 1876), seja nos exemplares d’O Livro do Povo de Antonio Marques Rodrigues (1861; 1865 e 1881), parecem indicativos das novidades nos programas de ensino, das exigências em novas metodologias, dos diferentes usos do suporte como pretexto na formação do leitor em formação independentemente de seus níveis de leitura, da aprovação e indicação das obras ou mesmo da restrição daquelas que não cumprissem com as reformas da instrução, obrigando-as a uma reformulação e a um ajustamento segundo as prescrições nos dispositivos legais.

Na identificação das obras de origens portuguesa e espanhola (para este estudo) que apontam para a transnacionalização de práticas/artefatos, mesmo que algumas delas não indiquem o gênero das obras nem as identifiquem como tal, parece indicativo da familiaridade das tipografias com esta tipologia de textos, a aparente intimidade do público com essas obras e a frequência de uso das instituições com estes exemplares. Nesse sentido, embora os livros de leitura produzidos, editados e divulgados por autores/editores maranhenses e sua respectiva circulação estimulada pela imprensa local, para além da aceitação como livros escolares ou mesmo pelas compras de particulares para ministrarem aulas e do papel didático pedagógico destes suportes, outras funções (aparentemente de segunda ordem!) indicam a gradativa acolhida nas instituições e podem justificar seu gradual crescimento como artefato local em uso na instrução no Maranhão Império; livros escolares de leitura como manuais de civilidade que portam uma natureza normativa específica e uma função formativa singular. Por último, a própria função das imagens e gravuras, longe de responder a uma lógica implícita que justifique as localizações nas obras e coloque ao descoberto a pretensa articulação entre texto, imagem e contexto que garantisse uma maior compreensão do escrito pelos pequenos leitores, ao fazer-se uso da observação e provocar a atenção/interesse pelo escrito em crianças em processos de formação leitora, criando-se hábitos/intencionalidades que diluíssem o entendimento de normas e prescrições para seu efetivo cumprimento em detrimento de um autoritarismo mecânico; mesmo assim, em alguns casos, a função esperada da visualidade cumpre um papel parcial, noutros, são médios figurativos que a simples vista não apresentam motivações aparentes. Enfim, consideramos que os livros de leitura de autores maranhenses podem ser apreciados como manuais de prescrições, uma vez que não só coabitam e concorrem pelo consumo escolar considerado aqui como uma produção de outra natureza; como também criam estratégias próprias, seja pelos autores, sejam pelos editores que hora se assemelham à produção não nacional, hora marcam especificidades da cultura local sem perder o controle de hábitos, condutas e comportamentos em nome de uma moralidade específica.

Fontes manuscritas

Ofício enviado por Antônio Marques Rodrigues, Inspetor da Instrução Pública, para o Presidente da Província Ambrosio Leitão da Cunha, datado de 2 de novembro de 1864. [ Links ]

Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública de Pernambuco (1868). [ Links ]

Livros escolares analisados

RODRIGUES, Antonio Marques. O livro do povo. 9. ed. Maranhão: Typ. Frias, 1881. [ Links ]

RODRIGUES, Antonio Marques. O livro do povo. 4. ed. Maranhão: Typ. Frias, 1865. [ Links ]

RODRIGUES, Antonio Marques. O livro do povo. 1. ed. Maranhão: Typ. Frias, 1861. [ Links ]

ROQUETTE, J. I. [Jose Ignacio]. Código do Bom Tom. Paris: Rignoux, 1845. [ Links ]

ROQUETTE, J. I. [Jose Ignacio]. Código do Bom Tom. Paris: J. P. Aillaud, Guillard e Cª, 1867. [ Links ]

ROQUETTE, J. I. [Jose Ignacio]. Código do Bom Tom. Paris: J. P. Aillaud, Guillard e Cª, 1875. [ Links ]

ROQUETTE, J. I. [Jose Ignacio]. Código do Bom Tom. Paris: Imprenta de Pillet fils ainé, 1876. [ Links ]

ROQUETTE, J. I. [Jose Ignacio]. Código do Bom Tom. SP: Companhia das Letras, 1998. [ Links ]

Referências

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1Este artigo faz parte do segundo Pós-doutorado em Educação, Circulação de Manuais de Civilidade no Maranhão oitocentista, realizado na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP - 2018/2019) sob a supervisão da Profª. Drª. Mirian Jorge Warde, auxiliado pelos professores doutores Justino Magalhães da Universidade de Lisboa (UL) e Augustin Escolano Benito do Centro Internacional da Cultural Escolar (CEINCE - Espanha). Meus agradecimentos à Fundação de Apoio à Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão - FAPEMA pelos recursos para tradução.

2Na Espanha, contrariamente ao que aconteceu em Portugal, foi o conceito de urbanidade que vingou, tal como se refere Bolufer Peruga (2002, p. 154): o conceito que “de manera más perdurable recogería en España los contenidos associados a las buenas maneras fue el de urbanidad [;] el sustantivo urbanidad acabó imponiéndose hasta englobar en la época contemporánea todo el campo semántico del comportamiento civil”.

3 Frias é considerado, por Hallewell (2005) um dos mais importantes impressores brasileiros do século XIX e que no Maranhão foi responsável pela impressão de jornais, obras literárias e, principalmente, livros escolares.

4Ofício enviado pelo Inspetor da Instrução Pública (Antônio Marques Rodrigues) para o Presidente da Província (Ambrosio Leitão da Cunha), em 2 de novembro de 1864.

5Instituição criada, em 1841, para atender as crianças pobres e desvalidas e dar-lhes uma formação em diversas áreas das artes mecânicas: carpinteiros, marceneiros, alfaiates, tanoeiros, etc. Ver Castellanos (2019).

6Instituição que é criada em São Luís em 1855, para recolher meninas pobres e desvalidas, no intuito de dar-lhes uma instrução de primeiras letras e prendas domésticas visando a educação para o lar. Encerra suas atividades em 1870. Ver Castro; Castellanos (2021).

7Escola criada, em 1865, com a finalidade de recolher meninos pobres e desvalidos e dar-lhes uma instrução profissional agrícola.

8Relançamento do Código do Bom Tom de J. I. Roquette, pela editora Companhia das Letras, em 1998, com uma introdução de Lilian Schwarcz.

9Quod enim munus Reipublicae majus meliusve offerre possumus quam si docemus atque erudimus juven tutem?

10Gilberto Freire, na obra Casa Grande & Senzala, faz referências explícitas a este manual, escrevendo: “O autor de um certo ‘Código do Bom Tom’ (o cônego Roquette) alcançou grande voga entre os barões e viscondes do Império, os quais passaram a adotar regras de bom tom na criação dos filhos”. (2003: p. 420)

11A Comissão na província de Pernambuco, “[...] encarregada de dar o seu parecer sobre a publicação que tem como título: Livro do Povo pelo Dr. Antonio Marques Rodrigues de Maranhão ali na Tipografia de Frias leu com o maior escrúpulo esta útil coleção de textos de máximas de espécimes zoológicas e de leis de Higiene [...]” Relatório da Diretoria Geral da Instrução Pública de Pernambuco (1868, n. 45, p. 58, grifo meu).

Recebido: 17 de Novembro de 2021; Aceito: 15 de Fevereiro de 2022

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