SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21Marchas e contramarchas da educação técnica durante o terceiro governo peronista (1973-1976)Uma cartografia do Ensino Comercial: pesquisas recentes sobre Brasil, Itália, Portugal e Espanha (2008-2017) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Cadernos de História da Educação

versão On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub 13-Set-2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-70 

Artigos

Literatura pedagógica e escolarização da infância: os bons moldes de ensino da “caixa de utensílios1

Literatura pedagógica y escolarización de la infancia: los buenos moldes de enseñanza de la “caja de utensilios”

Hercília Maria Fernandes1 
http://orcid.org/0000-0002-5927-5629; lattes: 5652804027020933

1Universidade Federal de Campina Grande (Brasil). fernandeshercilia@hotmail.com


Resumo

Falar de literatura pedagógica pressupõe considerar uma racionalidade orientada em saberes objetivados, que conquistaram sua excelência na e pela escrita. Essa literatura, no Brasil, se ligou ao modelo de formação docente da “caixa de utensílios”, vinculado à pedagogia moderna e introduzido em São Paulo, no final do século dezenove. Nessa linha de entendimento, objetiva-se refletir os modos de educar e ensinar da caixa de utensílios. Modelo esse difundido, em grande medida, por contribuição da Revista do Jardim da Infância (1896-1897), da Escola Normal Caetano de Campos. Sendo uma pesquisa histórica, a metodologia articula a análise de fontes documentais à historiografia. Como considerações finais, os modos de ensinar e educar são concebidos enquanto dispositivos de uma forma e um modo escolar de socialização da infância, de conformidade aos moldes da pedagogia do Kindergarten.

Palavras-chave: Literatura pedagógica; Escolarização da infância; Caixa de utensílios

Resumen

Hablar de literatura pedagógica presupone considerar una racionalidad orientada en saberes objetivados, que conquistaron su excelencia en la y por la escritura. Esta literatura, en Brasil, se ligó al modelo de formación docente de la caja de utensilios, vinculado a la pedagogía moderna e introducido en São Paulo, a finales del siglo XIX. En esta línea de entendimiento, se pretende reflejar los modos de educar y enseñar de la caja de utensilios. El modelo es difundido, en gran medida, por contribución de la “Revista do Jardim da Infância” (1896-1897), de la Escuela Normal Caetano de Campos. Siendo una investigación histórica, la metodología articula el análisis de fuentes documentales a la historiografía. Como consideraciones finales, los modos de enseñar y educar son concebidos como dispositivos de una forma y de un modo escolar de socialización de la infancia, de conformidad a los moldes de la pedagogía del Kindergarten.

Palabras clave: Literatura pedagógica; Escolarización de la infancia; Caja de utensilios

Abstract

Speaking about pedagogical literature presupposes considering a rationality oriented in objective knowledges, which conquered its excellence by the writing process. This literature, in Brazil, has connected itself to the “utensils box” model, related to modern pedagogy and introduced in São Paulo, by the end of the nineteenth century. Following this guideline, this work’s goal is to analyze the ways to educate applying the utensils box methodology, which was largely broadcasted by the contribution of the “Revista do Jardim da Infância” magazine (1896-1897), published by the Escola Normal Caetano de Campos school. As a historical research, the methodology articulates the analysis of sources towards the historiography, leading to the conclusion that the ways of teaching and educating are achieved while understood as childhood socializing and educating devices, following the Kindergarten pedagogy model.

Keywords: Pedagogical literature; Childhood schooling; Utensils box

Introdução

Falar de literatura pedagógica pressupõe pensar em uma forma e um modo particular de socialização dos sujeitos na escola: a “forma escolar” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001). A invenção da forma escolar se deu por volta do século dezesseis, conjuntamente com a “descoberta da infância”; isto é, com a consciência adulta das particularidades da infância. Com o avanço da racionalidade pedagógica moderna, circulação do livro impresso e alfabetização socializada, são produzidos diversos livros de natureza educativa, escritos por pedagogos e educadores moralistas, destinados a orientar a educação das crianças nas instituições escolares. Nesse processo de mudanças estruturais nas sociedades ocidentais, a escola é “reinventada” e a criança transformada em “aluno” (ARIÈS, 1978; BOTO, 2002; POSTMAN, 1999).

Filiada aos saberes e às prescrições da Pedagogia, a forma escolar impõe um conjunto de relações impessoais entre os sujeitos educativos. Trata-se de garantir a normalidade e a simultaneidade dos processos formativos, por meio de práticas escriturais-escolares (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001). A forma escolar instaura, dessa maneira, uma relação pedagógica caracterizada pela “impessoalidade”. Não se trata mais de uma relação de pessoa a pessoa, mas de uma submissão do mestre e alunos a regras impessoais específicas de “[...] um espaço fechado e totalmente ordenado para realização, por cada um, de seus deveres, num tempo tão cuidadosamente regulado que não pode deixar nenhum movimento imprevisto, cada um submete sua atividade ‘aos princípios’ ou regras que a regem” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 15).

Concomitantemente às transformações próprias da modernidade, o pensamento filosófico-pedagógico de Erasmo de Rotterdã a Jan Amós Comenius, e, posteriormente, de Jean-Jacques Rousseau a Friedrich Wilhelm August Fröbel, além de difundir uma nova imagem de criança, contribui para institucionalizar a infância ao considerar, por analogia, esse tempo inicial da vida humana em “tempo escolar” (FERNANDES, 2018).

Ao associar a infância ao “tempo de semeadura”, segundo reflete Fernandes (2018), o pensamento pedagógico moderno orienta as ações de um espaço específico e separado à infância; então regido pela dinâmica do relógio, diferenciação das idades, seriação e gradação das atividades e conteúdos correspondentes, apresentação e adequação dos materiais de ensino, e de uma nova relação pedagógica estabelecida com o mestre: a “escola infantil”. Nessa nova constituição social, os castigos e as punições físicas são abolidos, as linguagens, brincadeiras e jogos infantis valorizados. O tempo da infância se confunde ao tempo de aprendizagem, e transforma a criança em aluno. O antigo mestre-escola torna-se um “especialista” da natureza, vivências e atividades próprias da infância.

Esse conjunto de atributos que acompanharam a aparição da escola moderna e caracterizam os “novos” modos de ensinar e educar nas instituições educativas republicanas, define o que os historiadores sociais Guy Vincent, Bernard Lahire e Daniel Thin (2001) denominaram de “forma escolar”. A forma escolar impõe um conjunto de regras e uma predominância de relações pedagogizadas estabelecidas entre adultos e crianças, orientadas por uma prática distanciada, impessoal, desincorporificada, com a linguagem e com o mundo das coisas e suas simbologias (FERNANDES, 2018).

Nesse sentido, falar de uma literatura pedagógica pressupõe considerar a existência de uma racionalidade pedagógica escrita relacionada a “saberes objetivados”, que conquistaram sua coerência e excelência na e pela escrita, através de um trabalho de classificação, divisão, articulação, estabelecimento de relações, hierarquização etc.; que deverão, por essa razão, ser interiorizados e externalizados pelos sujeitos educativos. Falar, portanto, de uma literatura pedagógica requer considerar que:

Uma pedagogia do desenho, da música, da atividade militar, da dança etc., não se faz sem uma escrita do desenho, uma escrita musical, uma escrita esportiva, uma escrita militar, uma escrita da dança. Escritas que exigem quase sempre a utilização de gramáticas e de uma teoria das práticas. O modo de socialização escolar é, portanto, indissociável da natureza dos saberes escriturais a transmitir (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 29).

Assim sendo, compartilhando a teoria da forma e do modo escolar de socialização (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001), o objetivo do artigo consiste em refletir os modos de educar e ensinar racionalmente sistematizados pela literatura pedagógica vinculada ao modelo de formação docente da “caixa de utensílios”, em observância ao entendimento historiográfico proposto pela historiadora da educação Marta Maria Chagas de Carvalho (2000). Esse modelo se difundiu, no Brasil, a partir da Escola Normal Caetano de Campos, em grande medida por contribuição da Revista do Jardim da Infância (1896-1897). Constituindo uma pesquisa histórica, na área de História da Educação, a metodologia articula a análise de fontes documentais, especificamente a Revista do Jardim da Infância e as obras de Froebel (1897; 1902; 2001), a uma revisão bibliográfica e à historiografia produzida, destacando-se os trabalhos de Carvalho (2000), Fernandes (2018), Monarcha (2001) e Kuhlmann Jr. (2010).

Enquanto considerações finais, os modos de ensinar e educar orientados e prescritos pelas jardineiras autoras da Revista do Jardim da Infância são compreendidos enquanto dispositivos de uma forma escolar e um modo escolar de socialização da infância, mediante as bases conceituais e didáticas da pedagogia froebeliana do Kindergarten; isto é, do modelo pedagógico da “caixa de utensílios”.

A literatura pedagógica da “caixa de utensílios”

No Brasil, assim como em outros países ocidentais, a escolarização da infância se efetivou em associação à formação docente nas Escolas Normais. Visando garantir a sistematização do ensino, mediante o modelo republicano de educação recentemente instaurado (CARVALHO, 2000), a formação pedagógica docente compreendeu a circulação de publicações destinadas a oferecer bons moldes de ensino e educação.

No final do século dezenove, a literatura pedagógica destinada a formar professores e a orientar os modos de ensinar e educar nas escolas brasileiras se vinculou à pedagogia da “arte de ensinar” (CARVALHO, 2000; FERNANDES, 2018). Essa literatura pode ser concebida, conforme apropriação de Carvalho (2000), uma “caixa de utensílios” do modelo paulista de educação. Ligada à pedagogia moderna, especialmente às ideias filosóficas e educativas do pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi e do alemão Friedrich Froebel, a literatura pedagógica da caixa de utensílios expande uma imagem de criança como ser ativo e em progressivo desenvolvimento físico, emocional e cognitivo; cabendo ao educador observar a sua natureza e oferecer meios apropriados à sua livre e espontânea atividade.

De conformidade à pedagogia da “arte de ensinar”, essa literatura orientou uma educação escolar das crianças baseada na tríade da educação integral, que é, também, pestalozziana (“coração, mente e mão”), e, igualmente, no “método desenvolvimental” proposto por Froebel (KISHIMOTO; PINAZZA, 2007), baseado no “ABC das coisas2” (FERNANDES, 2018).

No Brasil republicano, o modelo da caixa de utensílios se expandiu a partir da Escola Normal Caetano de Campos, constituído por três tipos de instituições escolares: Jardim da Infância, Escola Modelo (ensino primário) e Escola Normal (extensiva à formação de professores). Nesse modelo, tem-se a predominância de ensinamentos relativos à pedagogia ativa e ao “método intuitivo”, baseado na educação dos sentidos - fundamento da pedagogia moderna. Considerada a “arte de ensinar”, a tarefa do professor consistiria em predispor às crianças a uma série graduada de objetos e um conjunto de procedimentos de uso, que orientariam a sua ação a partir das chamadas “lições de coisas” (FERNANDES, 2018).

Concebido assim, nas revistas especializadas e manuais pedagógicos do final do século dezenove e início do século vinte prevalece essa pedagogia da “arte de ensinar” ou da “imitação”. Nesse modelo pedagógico, caberia ao professor se apropriar, pela observação e reflexão da prática, de bons moldes de ensino; garantindo a exemplaridade da educação dos sentidos, conforme os materiais cultivadores do desenvolvimento integral das crianças (CARVALHO, 2000; FERNANDES, 2018).

Froebel, idealizador do Jardim de Crianças (Kindergarten), foi um dos primeiros educadores a direcionar uma literatura pedagógica a jovens mulheres e mães interessadas nos cuidados da primeira infância, assim como nos modos de emprego dos materiais constituintes de sua “metodologia desenvolvimental”; isto é, nos “dons" e “ocupações” froebelianas. Para o pedagogo do Kindergarten, o “ABC das coisas” deveria preceder o “ABC das palavras” e dar às palavras abstrações, seus verdadeiros fundamentos.

Esse pedagogo pensou os materiais constituintes do “ABC das coisas” associados a uma metodologia de aplicação, de conformidade a três fenômenos do desenvolvimento infantil interligados: i) a ação espontânea (impulso natural da criança à interação com os objetos); ii) a percepção (aprendizagem dos objetos pela estimulação dos sentidos em jogos mediatizados pela linguagem) e, iii) a abstração (conhecimento dos objetos pela interiorização de suas estruturas). (FERNANDES, 2018).

A pedagogia do Kindergarten de Froebel, além de explicitada teórica e metodologicamente em livros como Pedagogics of the Kindergarten (1897) e Education by development (1990), foi amplamente difundida em manuais pedagógicos do entre séculos; destacando-se a obra The paradise of childhood, de Edward Wiebé (1869), publicada no Brasil sob o título “Guia para Jardineiras”, nos dois volumes da Revista do Jardim da Infância (1896 e 1897).

Nesse sentido, com a criação do Jardim da Infância Caetano de Campos (1896), anexo à Escola Normal e à Escola Modelo, tem-se a constituição de uma forma escolar e um modo escolar de socialização da infância, mediante o modelo de formação docente da “caixa de utensílios” (CARVALHO, 2000). Esse modelo foi orientado por um “programa de atividades” e por um conjunto de regras impessoais e normas disciplinares em observância às pedagogias de Pestalozzi e Froebel. Publicado na Revista do Jardim da Infância, colaborou para sistematizar as ações das professoras no Jardim da Infância Caetano de Campos, ao passo que serviu de bom molde de ensino e educação a outros estabelecimentos brasileiros do entre séculos.

Sobre a Revista do Jardim da Infância

Em 1896, mesmo ano de instalação do Jardim da Infância anexo à Escola Normal e à Escola Modelo, o diretor Gabriel Prestes editou a Revista do Jardim de Infância, visando tornar conhecidos os processos de Froebel, assim como auxiliar a criação e a organização de outros estabelecimentos. Embora o projeto editorial de Gabriel Prestes tenha se restringindo à publicação de duas edições, a Revista do Jardim da Infância desempenharia “[...] papel exemplar no cenário cultural e educacional do final do século XIX e início do século XX” (MONARCHA, 2001, p. 110).

Fonte: Coleção Escola Estadual Caetano de Campos (Aclimação), São Paulo (SP). Disponível no CRE Mário Covas: http://www.crmariocovas.sp.gov.br/obj_a.php?t=pedagogicas01.

Figura 1: Capa da Revista do Jardim da Infância (1896). 

A primeira edição da Revista (1896) foi composta pelos trabalhos de Gabriel Prestes na qualidade de tradutor, destacando-se a “apresentação da Revista”, o “Plano do Jardim da Infância da Cook County Normal School”, o “Guia para jardineiras” (WIEBÉ, 1869), e o “Programa de Jardim da Infância da inspetora Anna W. Devereaux”; além de um resumo dos “Dons de Froebel”, reunidos da obra de Edward Wiebé e do catálogo do material do Kindergarten fabricado pela J.L. Hammett.

Da inspetora Maria Ernestina Varella, a edição expõe o “Relatório anual do Jardim”, o “Programa e o Horário”, assim como o artigo “Exercícios práticos do jogo da bola: primeiro dom”. Da professora Rosina Nogueira Soares, destaca seu trabalho como tradutora nas seções “Brinquedos”, “Marchas” e “Cantos”. Da poetisa e auxiliar de direção Zalina Rolim, exibe uma série de contos, conversações e brincos do Kindergarten. Das jardineiras Isabel Prado, Anna de Barros e Joanna Grassi, o número reúne os artigos “Primeiro exercício de desenho feito no 3º Período do Jardim da Infância”; “Desenho”; e, “O brinquedo no Jardim”.

A segunda edição se caracteriza pela veiculação da pedagogia do Kindergarten a partir de 2 (duas) fontes: a norte-americana e a europeia. Gabriel Prestes também se destaca como tradutor. Sua participação inclui a publicação do “Programa de um Jardim da Infância”, extraído do livro da inspetora italiana Amélia de Rosa, com a continuidade do “Guia para Jardineiras” e um “resumo” dos princípios de Froebel, ambos retirados de The paradise of childhood (WIEBÉ, 1869).

Das jardineiras autoras, a edição privilegia a publicação de textos autorais e diversas traduções. A inspetora Maria Ernestina publica os artigos originais “Segundo dom” e “A Ginástica no Jardim da Infância”. A jardineira Isabel Prado, “Exercícios com anéis executados no 3º Período do Jardim da Infância”, e Joana Grassi, “Números quebrados”. Nesse volume, Zalina Rolim publica diversos artigos de cunho teórico, destacando-se os títulos: “Resumo dos princípios de Froebel”, retirado de Kindergarten and child culture papers (BARNARD, 1890), e os textos “Do conto e da arte de contar” e “Os jogos e a externação da individualidade”, extraídos de Frederico Froebel ed il suo sistema de educazione (ROSA, 1896).

Em face ao exposto, compreende-se o trabalho realizado pelas professoras autoras da Revista do Jardim da Infância como uma “caixa de utensílios” do modelo paulista de educação, em que os modos de ensinar e educar do Jardim da Infância se constituiriam em um processo de apropriação, objetivação e sistematização da pedagogia froebeliana, então entendida como “arte de ensinar”. A “caixa de utensílios” dessas jardineiras não constitui, entretanto, uma mera “cópia” do sistema froebeliano. Conforme reflete Carvalho (2000), se faz oportuno relacionar a “engenharia” do modelo de educação paulista “[...] às concepções que propunham a arte de ensinar como boa cópia de modelos” (CARVALHO, 2000, p. 113).

Considerada essa direção de entendimento, a análise dos modos de ensinar e educar da Revista do Jardim da Infância compreende o exame do Programa dessa instituição infantil, no tocante às lições de linguagem e aos exercícios com os dons froebelianos; destacando-se os bons moldes de ensino oferecidos pela professora e poetisa Zalina Rolim, auxiliar de direção, e pela inspetora Maria Ernestina Varella3.

Os bons moldes de ensino da Revista do Jardim

O Programa organizado por D. Maria Ernestina Varella, inspetora do Jardim da Infância Caetano de Campos, sistematiza o ensino e a educação da primeira infância paulista mediante exercícios de linguagem, memória, nomenclatura objetiva e trabalhos manuais. Organizado em 3 (três) períodos, o Programa é constituído por atividades graduadas que variam, somente, em relação à profundidade dos assuntos, materiais e processos didáticos dirigidos às crianças de 4, 5 e 6 anos de idade; sendo constituído pelos seguintes eixos: Linguagem (conversações e contos, e, para o segundo e terceiro períodos, formação de palavras por letras impressas); Dons froebelianos (sólidos não divisíveis e dons de construção); Trabalho manual (continhas, recortes de papel, entrelaçamento, dobraduras, picagem etc.); Modelagem (bola, cubo e cilindro); Desenho (com uso de varetas, pauzinhos, lousas e papéis quadriculados); Números (contagem de um a dez com bolinhas, numeração com pauzinhos e cartões, pequenas operações e números impressos); Cores (primárias e secundárias por mapa de cores); Cantos (pequenos hinos e marchas); Ginástica (movimento da cabeça e dos dedos através de melodias fácies); e, brinquedos (de movimentos, imitação, marcha etc.).

O curso do Jardim de Infância foi dividido em 3 (três) períodos, em que “[...] o Jardim só pode admitir crianças até a idade de 6 (seis) anos”, sendo o terceiro e último período “[...] preparatório do primeiro ano da Escola Modelo” (VARELLA, 1896, p. 10). O tempo escolar, por sua vez, envolvia 20 (vinte) momentos distintos: 1. Canto, saudação; 2. Conversação; 3. Marcha; 4. Repouso; 5. Dons; 6. Recreio (parcial); 7. Discos e contagem com bolinhas; 8. Preparação para o lunch; 9. Lunch em classe; 10. Recreio no Jardim (geral); 11. Revisão, canto e chamada; 12. Desenhos; 13. Marcha; 14. Trabalhos manuais; 15. Recreio (parcial); 16. Exploração das cores; 17. Repouso; 18. Brinquedo; 19. Pensamentos, prêmio e cantos de despedida; e, 20. Saída.

O recreio, por sua vez, seria dividido em três intervalos do tempo escolar: dois parciais e um geral. Os parciais ocupariam 10 (dez) minutos para os alunos do segundo e terceiro períodos, sendo um pela manhã e outro à tarde. Para as crianças do primeiro período, os intervalos parciais conteriam 15 (quinze) minutos de duração. O recreio geral ocuparia maior espaço de tempo, totalizando 30 (trinta) minutos, dos quais seriam destinados “[...] quinze para o lunch que é feito em classe, aproveitando a professora para corrigir certos defeitos que são naturais em toda criança de pouca idade”. Já os demais quinze minutos se passariam no jardim ao ar livre, “[...] tendo as crianças toda liberdade possível, porém debaixo da vigilância das professoras” (VARELLA, 1896, p. 12).

Apesar de o Relatório da professora Maria Ernestina Varella ser correspondente ao primeiro ano de atividades do Jardim da Infância, essa organização do tempo e do espaço escolar, segundo apontam as fontes documentais e historiográficas, haveria prevalecido quando a instituição foi instalada em prédio próprio aos fundos da Escola Normal, localizada na Praça da República; constituindo, assim, um modelo de organização institucional e pedagógico a ser imitado por outros estabelecimentos.

Fonte: Fotografia de Guilherme Gaensly. Disponível no site Tesouros de São Paulo: http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=fotos&pagfis=4576.

Figura 2: Jardim da Infância Caetano de Campos, 1901-1910[?]. 

Separado das instalações da Escola Normal e cercado por um vasto jardim, o prédio dispunha de amplas salas de aula, com laboratórios, sala de professores, depósito de materiais, um enorme salão decorado com os retratos de Froebel, Pestalozzi, Rousseau e Mme. Carpentier; muitas varandas ornamentadas com vidros importados e áreas cobertas para os jogos infantis. O material educativo, por sua vez, foi importado dos Estados Unidos, tendo chegado “[...] a princípio de maio de 1896 todo material froebeliano [...], inclusive um harmônio que, por muito tempo, serviu para as aulas de canto e marchas cantadas” (NOSSO ESFORÇO, 1949, p. 2). Da inauguração a meados de 1926, o Jardim da Infância Caetano de Campos adotou “[...] o método de Froebel, e os jogos que formam os ‘dons’”. Posteriormente, os jogos froebelianos, sendo aplicados de diversas maneiras, foram sendo compreendidos como “[...] material de apreciável valor, e do qual quase todos os outros métodos se originam” (NOSSO ESFORÇO, 1949, p. 2).

Nesse sentido, os modos de ensinar e educar do Jardim da Infância Caetano de Campos aparecem expostos na Revista tanto em relação às atividades diárias (canto, saudação, entrada, recreio, saída etc.) como às atividades formais à vista dos exercícios de linguagem, dos dons e ocupações, das noções geométricas e matemáticas froebelianas. A própria organização do tempo e do espaço escolar já incluía uma formalidade imbuída de intenção educativa, que expressa o ideal republicano de educação, defendido por Rui Barbosa (1882), baseado no desenvolvimento intelectual, físico e moral das crianças (NASCIMENTO, 1997).

Todas as atividades no Jardim da Infância seriam demarcadas por cantos e marchas que, além de se ligarem à formação de hábitos e de valores morais e corporais, regulariam os comportamentos das mestras e das crianças durante a execução das tarefas. Essas atitudes formais contribuiriam para auxiliar “[...] a construção da pertinência de um grupo social organizado a partir de regras específicas” (KUHLMANN Jr., 2010, p. 122). Essas regras seriam ditadas pelas maneiras como a instituição executava a entrada, as filas acompanhadas por cantos, o repouso, o recreio, os pensamentos, os méritos, os diversos preparativos de uma atividade à outra etc., ações repetidas diária e constantemente.

Os modos de aplicação do programa e horário do Jardim da Infância estabeleciam, assim, certa “regularidade” às ações das crianças e das mestras, se concretizando pela “[...] constante ritualização das atividades”; haja vista que:

As canções e as práticas corporais auxiliam na marcação dos diferentes horários, indicam o início e o fim das atividades. Além delas, vários outros recursos são utilizados na organização da vida diária: comandam-se as atividades com sinais; fazem-se adivinhações para definir quem será o chefe da sala ou ajudante do dia; faz-se escolha do auxiliar da distribuição do material, da posição do comandante da marcha e da fila das crianças (KUHLMANN Jr., 2010, p. 123).

Esses modos de ensinar e educar relativos aos hábitos e aos comportamentos sociais encontram-se presentes em diversos artigos da Revista. Por meio da execução de cantos, hinos, marchas e jogos de movimento, as crianças apreenderiam um “significado simbólico”, em que a música, os gestos da jardineira e as expressões corporais infantis constituiriam “[...] a marca de pertencimento ao grupo [...]”, que se concretizaria pelo “[...] conhecimento e domínio destes atos” (KUHLMANN Jr., 2010, p. 123).

Nesse sentido, o Jardim da Infância dispunha de um repertório de canções e jogos froebelianos, para ser desenvolvido durante todas as atividades diárias; como o “Canto de despedida”, exposto a seguir:

Finda a hora dos folguedos

Vamos pra o materno lar

Dóceis, bons, ativos, ledos,

A mamãezinha beijar.

Boas mestras, vossas falhas

Vão aqui no coração,

Elas são flores e galas

Que vossos lábios nos dão.

(CANTOS E MARCHAS PARA ENTRADA E DESPEDIDA, 1896, p. 146).

Por meio de cantos, marchas, brincadeiras e jogos rítmicos, a linguagem oral permearia todos os tempos do Jardim da Infância, não se restringindo às lições ministradas pela poetisa Zalina Rolim. Através dos exercícios formais de linguagem, no entanto, seriam aperfeiçoados, sistematicamente, a mente, o coração e as mãos das crianças - fundamento da educação moderna.

Os assuntos a serem trabalhados com as crianças nos chamados “exercícios de linguagem” deveriam se efetuar por meio de “conversações infantis” e “brevíssimos e simples contos” (VARELLA, 1896, p. 20). As conversações corresponderiam à apresentação e à exploração de temas articulados às vivências das crianças, mas, também, aos conteúdos escolares oriundos das ciências naturais, morais e cívicas.

Nessas lições de linguagem, as jardineiras deveriam apresentar, primeiramente, um objeto ou uma representação correspondente, a fim de despertar a curiosidade infantil, e, sobretudo, a “colheita” das impressões das crianças sobre o tema.

Em a “Lição de Frutas”, publicada pela poetisa e auxiliar de direção Zalina Rolim, a autora fornece um “bom molde de conversação”:

― De onde vêm as frutas?

― Cada fruta vem da sua árvore.

― As árvores levam anos para dar frutas. Quando é que nós vemos frutas na macieira?

― Na primavera.

― Então a primavera é o tempo em que a macieira está florescida. E as outras árvores quando florescem?

― Todas as árvores florescem na primavera. [...]

― Quem é que ajuda a árvore a fazer a maçã, e as outras frutas?

― A terra, o ar, os raios de sol e a chuva?

― Para que servem as frutas?

― Para comer e para se fazer doces.

― Algum de vocês sabe me dizer o que há bem no interior, ou bem no meio da fruta?

― As sementes. [...]

(ROLIM, 1896, p. 45-46).

Antes de socializar esse modelo de conversação, Zalina Rolim oferece uma “explicação” de como deveria se dar os modos de ensinar e educar com esse exercício de linguagem. Adverte que, antecedendo a lição, “[...] seria conveniente que a professora tivesse além da maçã: uma pera, um pêssego, ameixas, uvas etc., para mostrar às crianças”. E reitera: “O melhor mesmo seria um galho com frutas e flores, ou um desenho colorido” (ROLIM, 1896, p. 45).

Coerente à orientação froebeliana de a educação da primeira infância privilegiar a apresentação do “todo”, a pronúncia exata do “nome” e o estímulo apropriado aos sentidos (FROEBEL, 1897), Zalina Rolim recomenda que a professora articule a conversação às impressões visuais, táteis e olfativas das crianças; orientando que a jardineira deveria dar, primeiramente, “[...] o nome das frutas e fazer perguntas a respeito das cores”, assim como “[...] animar as crianças a distingui-las pelo tato [...]”; chamando-lhes a “[...] atenção para o cheiro, sabor etc.” (ROLIM, 1896, p. 45). Além dessas recomendações, adverte que seria conveniente “[...] uma série de desenhos, mostrando a maçã gradualmente desenvolvida” (ROLIM, 1896, p. 46).

No Jardim da Infância, as conversações infantis deveriam contemplar uma “História para a lição anterior”. As noções já aprendidas e apreendidas com a lição de “Frutas” seriam, assim, ampliadas com a narrativa de um “conto”, que contribuiria para despertar o interesse e a curiosidade infantis, a fantasia, o gosto pelo belo; e, sobretudo, traria uma utilidade moral, cuja significação do conteúdo não caberia à dedução da professora, embora lhe fosse permitida a “sugestão”. Sendo assim, a lição de “Frutas” seria continuada com a história “O sono da maçã”, traduzida pela poetisa, do livro In the child’s world, de Emilie Poulsson.

A educadora Zalina Rolim atuou ativamente na parte literária da programação do Jardim de Infância. Coube a essa professora, a adaptação, tradução e também criação de cantos, contos, brinquedos e jogos infantis. No tocante ao “conto”, a mestra das lições de linguagem traduziu e publicou o artigo “Do conto e da arte de contar”, do livro Frederico Froebel ed il suo sistema de educazione (ROSA, 1896). A partir dessa fonte, Zalina Rolim refletiu os princípios froebelianos acerca de o conto constituir um “eficaz meio de educação”. Pelas vias da narrativa, a educadora desenvolveria “[...] os sentimentos mais belos, mais nobres, mais delicados e que deixam no espírito das crianças a recordação nova de quando executam com prazer”. Os efeitos produzidos por uma “boa história”, nesse sentido, seriam “[...] grandes e se referem na maior parte à educação moral [...]”, tendo em vista as expressões se alojarem “[...] indeléveis na alma, têm um caráter sugestivo e são estímulos à imitação do belo e do bem” (ROSA, 1897, p. 87-88).

Além da ideia froebeliana de os contos oferecerem bons estímulos à moralização das crianças, Zalina Rolim, por meio da leitura de Amélia de Rosa, reflete o princípio estabelecido por Froebel (1897) de as narrativas serem articuladas às vivências infantis próximas, incluindo os contos sobre animais domésticos, que seriam os “[...] primeiros companheiros dos brinquedos infantis, atraindo as crianças com os seus vivos e ágeis movimentos” (ROSA, 1897, p. 88). Extraídos da vida real, os contos deveriam, pois, “[...] ser adaptados à índole especial das crianças procurando alagar-lhes o conhecimento e aguçar-lhes a observação” (ROSA, 1897, p. 88).

O trabalho de Carlos Monarcha (2001) evidencia a repercussão da Revista do Jardim da Infância na sociedade paulistana. Entre as fontes disponibilizadas por esse historiador da educação, consta um texto de autoria de Antônio D’Ávila, que “[...] observou o enrijecimento da organização do jardim da infância segundo os ‘processos de Froebel’” (MONARCHA, 2001, p. 91). Nesse escrito, o intelectual afirma:

O Jardim da Infância trazido para São Paulo pelas mãos laboriosas de Gabriel Prestes, [...] aqui chegou com o rígido caráter froebeliano. Tinha uma Bíblia - The Paradise of childhood [...], de cujas páginas brotaram os nossos programas [...], as nossas lições de dons e ocupações. Era uma peça inteiriça, nos moldes do espírito matemático geométrico de Froebel, que imprimia ao Kindergarten, um cunho rígido, ortodoxo de princípios e de normas. Durante mais de vinte anos foi um Jardim froebeliano puro, enquadrado na didática dos dons e ocupações (D’ÁVILA, 1972, apud MONARCHA, 2001, p. 91, grifos do autor).

As considerações de Antônio D’Ávila (1972) fazem sentido se forem observados os modos de ensinar e educar com os dons froebelianos. Em o artigo “Exercícios práticos do jogo da bola: primeiro dom”, a inspetora Maria Ernestina oferece aulas completas sistematizadas com as 6 (seis) bolinhas coloridas do primeiro dom froebeliano.

Para a preparação das lições, a professora deveria organizar as crianças em círculo, e, ao “sinal dado pela mestra”, a criança “menor” do grupo faria “[...] a distribuição de mão em mão até a última da classe” (VARELLA, 1896, p. 261). Esse processo de “circulação das bolinhas” seria acompanhado da “Música 16”, que integra o catálogo de cantos traduzidos do Jardim da Infância:

A bolinha quer passar

Da minha pra sua mão,

Vai levar-te a saudação:

― Bom dia!

E vai e vem a bolinha [...].

(apud VARELLA, 1896, p. 261).

Após essa preparação, a jardineira deveria instigar as crianças a estenderem as mãos direitas já portando suas bolas. Feito o procedimento, a mestra indagar-lhes-ia sobre o que podiam realizar com o brinquedo, obtendo as possíveis respostas: “A minha bolinha pode pular”. “Esta bola pode cair”. “Minha bola pode mover-se” (VARELLA, 1896, p. 262).

Obtidas algumas respostas, a educadora incentivaria, então, as crianças a fazerem “rolar” suas bolinhas, sendo essa atividade acompanhada pelo canto de uma quadrinha. Posteriormente, orientaria as crianças a levantarem as mãos, mediante as seguintes “ordens”:

Agora levantem todas as bolinhas com a mão direita.

Abaixem a mão direita.

Levante a mão esquerda. Abaixo.

Levantem as duas mãos. Passem a bolinha da mão esquerda para a direita. Abaixem a mão direita. [...]

(VARELLA, 1896. p. 262).

Esse exercício promoveria a distinção da mão direita e esquerda, de modo que os movimentos fossem executados com graça e agilidade. Essa orientação apresenta-se compatível aos modos de ensinar e educar sugeridos por Edward Wiebé, em o manual The paradise of childhood (1869), que foi traduzido por Gabriel Prestes. Nas palavras de Wiebé:

Esta primeira ocupação tem por objeto ensinar as crianças a fazerem a distinção entre direita e esquerda e a darem a denominação própria às várias cores. Presta-se também a desenvolver o órgão vocal e a instruí-las nos princípios da polidez (WIEBÉ, 1896, p. 75).

Coerente às prescrições do Guia das jardineiras, Maria Ernestina descreve diversos modos de emprego relativos à exploração das bolinhas. As atividades com o primeiro dom froebeliano deveriam ser norteadas por “exercícios de comparação”, que possibilitariam às crianças o reconhecimento de objetos esféricos em relação à cor, à forma e ao movimento, assim como a diferenciação das cores.

Em relação à forma esférica, fazia-se necessário compará-la com frutos e objetos significativos à vida infantil, de modo que as crianças chegassem a conclusões do tipo: “Minha bola é redonda como uma maçã”. “Esta bolinha é redonda como uma laranja” (VARELLA, 1896, p. 265, grifos da autora). Sendo assim, as crianças deveriam ser incentivadas a substituir o pronome possessivo “minha” pelo demonstrativo “esta”.

Feita a substituição, a jardineira deveria perguntar: “Quem é que gosta da bolinha?” Sendo afirmativas as respostas, a professora e as crianças entoariam a “Música 13”, que igualmente integra o repertório de canções do Jardim da Infância. Conseguidas algumas sínteses, as crianças também deveriam pronunciar a palavra correspondente à forma, substituindo a palavra “redonda” por “esférica” (VARELLA, 1896, p. 266).

Realizada a investigação gradual das propriedades do primeiro dom, a inspetora sugere a criação de uma história a se desenvolver sob a forma de “diálogos”, preparando as crianças para a “despedida das bolinhas”, como, também, dar abertura à introdução do segundo dom froebeliano: a esfera, o cilindro e o cubo. Nessa historinha, a jardineira deveria chamar “seis meninas” e entregar uma bola colorida a cada; advertindo-as a falar em lugar das bolinhas, quando fossem “despedir-se de suas amiguinhas”. As crianças deveriam, então, sair da sala e retornar à classe dramatizando as falas; conforme se pode ler no fragmento textual exposto a seguir:

Estão batendo, diz Paulo. Quem será? De certo são as bolinhas [...]. Levanta-se a classe para recebê-las. Entrem... Boa tarde, amiguinhas! Boa tarde, bolinhas. Sentem-se.

― Vieram brincar hoje conosco, não?

― Já brincámos muito [...], é tempo de irmos embora.

― Porque vieram [...] se não querem mais brincar?

― Viemos para nos despedirmos de vocês. [...]

― Pois olhem: ficaremos muito tristes sem vocês.

― Qual!... [...] vão ter novas amiguinhas.

― Quais são elas?

― A esfera, o cubo e o cilindro.

― Pelos nomes, não me parecem serem boazinhas [...].

― Vamos nos despedir, disse a bolinha vermelha: já é tarde. Principio pela minha amiguinha Judith:

― Hás de te lembrar [...] da tua bolinha vermelha?

― Sim! Sim. Cada vez que a mamãe me vestir de vermelho lembrar-me-ei de ti. [...].

(VARELLA, 1896, p. 281-282).

E, assim, prosseguiriam os jogos de conversação até que a sexta bolinha, em processo análogo de relações, fosse guardada na caixa, e, especialmente, no coração e na mente da criança.

Segundo Froebel, “[...] o ponto de partida do desenvolvimento humano e, portanto, do desenvolvimento da criança, é o coração e as emoções” (FROEBEL, 1897, p. 42, tradução nossa). O treinamento destinado à ação objetiva e ao pensamento subjetivo, todavia, continuaria de forma inseparável e constante das faculdades sentimentais; considerando que “[...] ambos têm suas raízes na natureza emocional” (FROEBEL, 1897, p. 42, tradução nossa). A atividade física e espiritual da criança, nesse sentido, deveria ser nutrida por exercícios de observação mediatizados por “jogos de fala”, sobretudo quando seus membros já estivessem fortalecidos e sua capacidade para falar pudesse “[...] entrar em uma espécie de conversa com a sua educadora” (FROEBEL, 1897, p. 47, tradução nossa).

Para Froebel, a criança é naturalmente observadora. Desde as primeiras manifestações, apreende o mundo que lhe é próximo, percebendo “[...] o pássaro, o passarinho na gaiola, o pardal na janela [...]” (FROEBEL, 1897, p. 47, tradução nossa). De conformidade à faculdade perceptiva, a criança desenvolve a capacidade de tornar um objeto inanimado em um objeto animado, atribuindo-lhes qualidades por meio da faculdade representativa. Nesse sentido, os jogos de conversação com as bolinhas possibilitariam às crianças o exercício da fantasia e da imaginação. Ao acreditar que a bolinha representa um pássaro ou uma galinha, a criança dá um novo passo à atividade criativa, ampliando o pensamento por meio de relações comparativas; como as demonstradas por Froebel:

‘Veja como o passarinho voa, agora aqui, agora ali!’ Agora, a bola saltitante pode se tornar uma gatinha: ‘Lá vem a gatinha [...]’. Agora, um cachorro: ‘Opa, agora o cachorro vai por cima da cerca’. Agora a bola se torna uma galinha: ‘Tip, tap, tap, a galinha chega correndo’. Agora, o galo: ‘Tap, tap, tap, o galo pega o milho’ (FROEBEL, 1897, p. 47, tradução nossa).

Considerado assim, as propriedades relativas à bola (movimento, leveza, salto, presença, ausência, retorno etc.) dariam ensejo a diversas representações significativas ao desenvolvimento simbólico infantil. Nessa perspectiva, as brincadeiras com as bolinhas deveriam ser realizadas “[...] em parte a outros objetos ― por exemplo, uma maçã, um lenço, [...] uma flor etc.” (FROEBEL, 1897, p. 51, tradução nossa). Esses objetos deveriam ser trazidos à criança através de diversos exercícios, muito embora a bola devesse continuar sendo concebida como “[...] o objeto de união e explicação, e, portanto, o verdadeiro meio de conexão e compreensão, [...] para conectar a criança com suas educadoras e proximidades” (FROEBEL, 1897, p. 51, tradução nossa).

Considerações finais

Para o intelectual Antônio D’Ávila, o Jardim infantil da Caetano de Campos teria perdido muito do “espírito de Froebel”, ficando a padronização das ações estereotipadas, em que seriam observadas as mesmas atitudes, perguntas e respostas; assim como os “[...] mesmos dons retirados de caixas iguais, o cubo apanhado da mão esquerda, [...] a esfera com a direita, tudo uniforme, mecanizado, rígido, de acordo com manuais orientadores” (D’ÁVILA, 1972, apud MONARCHA, 2001, p. 92).

Considera-se, porém, que a uniformidade e o excesso de diretividade dos modos de ensinar e educar no Jardim da Infância, então expostos na Revista do Jardim da Infância (1896, 1897), encontraram embasamento no próprio Froebel. A sua pedagogia ativa se desenvolveu altamente prescritiva e diretiva. A espontaneidade e liberdade das atividades infantis deveriam ser sistemática e constantemente reguladas pela atuação da educadora, que seria capaz de prever e ordenar os comportamentos das crianças. Diz Froebel, em A educação do homem (2001): “A educação ativa, a que ordena e prescreve, não tem, em todo caso, mais do que um destes dois sentidos: ou sugerir pensamentos claros e vivos, a ideia verdadeira, fundada em si mesma; ou bem oferecer algo que sirva de exemplo e de modelo” (FROEBEL, 2001, p. 27). E prossegue nas páginas seguintes:

Que riqueza espiritual, que frescor de alma, que plenitude de vida interna e externa gozará a criança - que tem sido adequadamente educada, verdadeiramente dirigida - ao chegar à época em que sai da infância propriamente dita para a adolescência (FROEBEL, 2001, p. 63).

Entendido assim, se o modelo escolar paulista colaborou para institucionalizar a infância, mediante dispositivos de uma forma e um modo escolar de socialização (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001), esses atributos já estariam presentes nas bases conceituais e didáticas da pedagogia froebeliana. A “caixa de utensílios” das jardineiras reflete, dessa maneira, a natureza da formação docente na Escola Normal Caetano de Campos, que, no entre séculos, concebia a pedagogia como “arte de ensinar”. As apropriações feitas pelas jardineiras autoras do “ABC das coisas” froebeliano não apresentariam, assim, grandes distanciamentos dos princípios e aplicações práticas dos meios de emprego, educação e instrução do Kindergarten (FERNANDES, 2018).

Esse modelo de educação da infância paulista demonstraria, no entanto, sinais de corrosão em meados de 1923, quando a professora Alice Meirelles Reis4 haveria cogitado, após assistir às aulas do professor Lourenço Filho, “[...] introduzir em sua classe a reforma trazida pela Escola Nova, que exigia o respeito à liberdade de ação e ao interesse da criança” (NOSSO ESFORÇO, 1946, p. 2).

A partir das inovações dessa professora haver-se-ia, no Jardim da Infância, o início de um processo de adaptações e modificações à metodologia desenvolvimental froebeliana. A essa altura, a pedagogia moderna havia a sua hegemonia questionada pela pedagogia da Escola Nova; ofertando materialidade a um novo modelo de formação docente, baseado em “saberes autorizados” ligados a pesquisas experimentais, fundamentadas nas Ciências da Educação. Modelo esse identificado por Carvalho (2000) como o da “Ciência da Biblioteca”.

Segundo Carvalho (2000, p. 111), os modelos pedagógicos que balizaram, desde o século dezenove, o processo de institucionalização da escola no Brasil “[...] haviam esgotado a sua capacidade de normatizar as práticas docentes”. Esse “processo de corrosão” seria marcado por motivações políticas, sociais e econômicas que constituíram “[...] as plataformas políticas e pedagógicas do movimento que Jorge Nagle [...] denominou de entusiasmo pela educação e otimismo pedagógico” (CARVALHO, 2000, p. 111, grifos da autora).

Os reformadores da Escola Nova brasileira, desde os anos 1920, apropriando-se das formulações teóricas e didáticas do filósofo e educador norte-americano John Dewey (1859-1952), passaram a questionar o modelo de formação da pedagogia como arte de ensinar, orientado no método de ensino intuitivo e na centralidade educativa do professor; advertindo que a criança, a quem se destinavam os processos formativos, deveria constituir, de fato, o centro da atividade educativa. Concepções acerca da atividade infantil seriam redefinidas. Da direção da intuição, a ênfase recairá nas atividades livres e criadoras da primeira infância, em ambiente escolar psicológica e pedagogicamente organizado. Já não se trataria, pois, de ensinar e educar unicamente pelo despertar dos sentidos, mas de promover a qualidade das experiências (FERNANDES, 2018).

Nessa perspectiva, integrando as propostas educacionais escolanovistas do início do século vinte, inúmeros livros de natureza pedagógica foram elaborados e difundidos, a fim de formar as jovens professoras dos Jardins de Infância brasileiros nos moldes do espírito renovador de educação, destacando-se publicações que receberam apoio direto de educadores reformistas, entre eles o professor Lourenço Filho, bem como de órgãos vinculados ao Ministério da Educação, como o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e o Programa de Assistência Brasileiro-Americana de Ensino Elementar (PABAEE), que, segundo destacam Abreu e Eiterer (2008), constituíram instituições “campo” para formar as bases pedagógico-curriculares da educação no Brasil.

Todavia, diferentemente da propagação de manuais e revistas especializadas do final do século dezenove e início do século vinte, cuja prescrição de modelos se vinculou à pedagogia da “caixa de utensílios”, em que a oferta de bons moldes de ensino garantiria a organização e a eficácia da forma escolar republicana, a literatura pedagógica escolanovista seria fruto de uma nova concepção de pedagogia, e, como tal, seria elaborada mediante outras regras. Trata-se, pois, como refletiu Carvalho (2000), de formar os educadores mediante um novo modelo pedagógico, então guiado por “saberes autorizados”.

Mas esse constitui outro capítulo da literatura pedagógica destinada à formação e à prática docente nas escolas infantis brasileiras, que foi refletida por Fernandes (2018) em sua tese de doutorado, cujos fundamentos e desdobramentos históricos convêm discutir em outra comunicação.

Referências

ABREU, Claudia Bergerhoff Leite; EITERER, Carmem Lúcia. A ênfase metodológica na formação de professores no PABAEE. Linhas, Florianópolis, v. 9, n. 1, p. 93-108, jan./jun., 2008. [ Links ]

ARIÈS, Philippe. História social da infância e da família. Trad. D. Flaksman. Rio de Janeiro: LCT, 1978. [ Links ]

BOTO, Carlota. O desencantamento da criança: entre a Renascença e o Século das Luzes. In: FREITAS, Marcos Cezar; KUHLMANN Jr., Moisés (Org.). Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002, p. 11-60. [ Links ]

CARVALHO, Marta Maria Chagas de. Modernidade pedagógica e modelos de formação docente. São Paulo em Perspectiva, v.14, n.1, p.111-120, 2000. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-88392000000100013Links ]

FERNANDES, Hercília Maria. Aprender e apreender no Jardim-Escola (Caicó, Rio Grande do Norte, 1960-1993). Natal-RN: UFRN, 2018, 367 f. (Tese de Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. [ Links ]

FROEBEL, Friedrich Wilhelm August. A educação do homem. Tradução Maria Helena Câmara Bastos. Passo Fundo (Rio Grande do Sul): Editora Universitária, 2001. [ Links ]

FROEBEL, Friedrich Wilhelm August. Pedagogics of the kindergarten. Translated by Josephine Jarvis. New York: Appleton, 1897. [ Links ]

FROEBEL, Friedrich Wilhelm August. Education by development: the second part of the pedagogics of the kindergarten. Translated by Josephine Jarvis. New York: D. Appleton and Company, 1902. [ Links ]

KISHIMOTO, Tizuko Morchida; PINAZZA, Mônica Appezzato. Fröebel: uma pedagogia do brincar para a infância. In: OLIVEIRA-FORMOSINHO, Júlia; KISHIMOTO, Tizuko Morchida; PINAZZA, Mônica Appezzato (Org.). Pedagogia(s) da infância: dialogando com o passado, construindo o futuro. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 37-61. [ Links ]

KISHIMOTO, Tizuko Morchida; SANTOS, Maria Walburga dos. Educação Infantil em São Paulo entre 1920 e 1940: um estudo de caso sobre Alice Meireles Reis. In: VI Congresso Luso Brasileiro de História da Educação - Colubhe 06, 2006, Uberlândia - MG, Anais... Disponível em: http://arquivos\58TizukoMorchidaKishimotoMariaWalburgaSantos.pdf. 2006. Acesso em: 22 jul. 2017. [ Links ]

KUHLMANN JÚNIOR, Moisés. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 2010. [ Links ]

MONARCHA, Carlos. “Revista do Jardim-de-infância”: uma publicação exemplar. In: MONARCHA, Carlos. (Org.). Educação da infância brasileira: 1875-1983. Campinas-SP: Autores Associados, 2001, p. 81-120. [ Links ]

NASCIMENTO, Terezinha A. Quaiotti Ribeiro do. Pedagogia liberal modernizadora: Rui Barbosa e os fundamentos da educação brasileira republicana. Campinas, Editora Autores Associados, 1997. (Coleção Memória da Educação). [ Links ]

NOSSO ESFORÇO. Órgão do Curso Primário da Escola Caetano de Campos. Ano XI, n. 3, São Paulo, maio. 1946. [ Links ]

POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Tradução Suzana Menescal de A. Carvalho e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Grafhia Editorial, 1999. [ Links ]

REVISTA DO JARDIM DA INFÂNCIA. Escola Normal Caetano de Campos, São Paulo, v. 1 e 2, (1986 e 1987). [ Links ]

ROLIM, Zalina. Lição de frutas. Revista do Jardim da Infância. Escola Normal Caetano de Campos, São Paulo, v. 1, p. 45-46, 1896. [ Links ]

ROSA, Amélia de. Do conto e da arte de contar. Trad. Zalina Rolim. Revista do Jardim da Infância. Escola Normal Caetano de Campos, São Paulo, v. 2, p. 86-102, 1897. [ Links ]

VARELLA, Maria Ernestina. O Jardim da Infância Anexo à Escola Normal. Relatório apresentado ao Diretor da Escola Normal pela Inspetora D. Maria E. Varella. Revista do Jardim da Infância. Escola Normal Caetano de Campos, São Paulo, v. 1, p. 8-13,1896. [ Links ]

VARELLA, Maria Ernestina. Programa organizado por D. Maria Ernestina Varella. Revista do Jardim da Infância. Escola Normal Caetano de Campos, São Paulo, v. 1, p. 20-28, 1896. [ Links ]

VARELLA, Maria Ernestina. Exercícios práticos do jogo da bola: primeiro dom. Revista do Jardim da Infância. Escola Normal Caetano de Campos, São Paulo, v. 2, p. 257-284,1896. [ Links ]

VINCENT, Guy; LAHIRE, Bernard; THIN, Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 33, p. 9-47, jun. 2001. [ Links ]

WIEBÉ, Edward. Guia para jardineiras (do “Paradise of childhood”, de Edward Wiebé). Traduzido, com modificações, por Gabriel Prestes. Revista do Jardim da Infância. Escola Normal Caetano de Campos, São Paulo, v. 1, p. 69-136, 1896. [ Links ]

WIEBÉ, Edward. Guia para jardineiras (do “Paradise of childhood”, de Edward Wiebé). Trad. Gabriel Prestes. Revista do Jardim da Infância. Escola Normal Caetano de Campos, São Paulo, v. 2, p. 245-357, 1897. [ Links ]

1Uma mostra da discussão desse trabalho foi apresentada no X Fórum Internacional de Pedagogia (FIPED), sediado pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), Campus de Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte, no período de 27 a 30 de novembro de 2018.

2Para maior conhecimento do método desenvolvimental froebeliano pautado no “ABC das coisas”, sugere-se a leitura do artigo “Fröebel: uma pedagogia do brincar para a infância”, de Kishimoto e Pinazza (2007, p. 37-61), e do segundo capítulo da tese de Hercília Maria Fernandes intitulado “Friedrich Froebel e o Jardim de Crianças” (2018, p. 46-108).

3O terceiro capítulo da tese de Fernandes (2018, p. 109-165), intitulado “Pedagogia(s) do Jardim de Infância”, comporta uma análise bastante aprofundada dos modos de ensinar e educar produzidos e propagados nas duas edições da Revista do Jardim da Infância (1896; 1897). Em sua análise, Fernandes debate os artigos escritos pelas autoras no tocante aos exercícios de linguagem; aos jogos e brinquedos; aos dons froebelianos; ao desenho e ao número. Com essa atitude, evidencia as apropriações teóricas e didáticas da pedagogia froebeliana feitas pelas jardineiras Isabel Prado, Anna de Barros e Joanna Grassi, além das realizadas pela inspetora Maria Ernestina Varella e pela poetisa Zalina Rolim. Nesse artigo, em observância ao objetivo proposto e orientação de entendimento histórico, a análise se limita a refletir as lições de linguagem e os exercícios com os dons froebelianos.

4Acerca da atuação docente da professora Alice Meireles Reis, no Jardim da Infância Caetano de Campos, sugere-se a leitura de Kishimoto e Santos (2006).

Recebido: 15 de Maio de 2021; Aceito: 26 de Setembro de 2021

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons