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Cadernos de História da Educação

On-line version ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub Sep 13, 2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-79 

Artigos

Sertões: histórias e memórias da educação e da cultura do povo sertanejo

Sertones: historias y memorias de la educación y la cultura del pueblo sertanejo

Jailson Costa da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-5078-3603; lattes: 4481661071361187

Marinaide Lima de Queiroz Freitas2 
http://orcid.org/0000-0003-3659-4165; lattes: 0771452713521203

1Instituto Federal de Alagoas (Brasil). jailson.costa@ifal.edu.br

2Universidade Federal de Alagoas (Brasil). naide12@hotmail.com


Resumo

Este texto retrata pesquisas realizadas no período de 2011 a 2018, nos sertões de Alagoas, que tiveram como foco as ações de alfabetização e cultura, desenvolvidas na comunidade sertaneja no período da Ditadura civil-militar (1970-1985), apoiando-se na História oral, Alberti (2008) e Bosi (1994), privilegiando como fontes as entrevistas e fotografias. Estes escritos têm o objetivo de apresentar as narrativas memorialísticas, sobre muitos sertões alagoanos, com ênfase na educação e cultura do povo sertanejo. Essas narrativas vão na contramão da história oficial, que reforça os estigmas sobre a região sertaneja, encabeçados pelo projeto de dominação colonial que se perpetua nos discursos das correntes hegemônicas do nosso país, que lutam pela dominação dos poderes e dos saberes. As fontes orais e visuais trouxeram novas reflexões em relação ao lugar - Sertões alagoanos - e nos fizeram perceber as ressignificações que foram possíveis, mesmo em tempo de regime militar.

Palavras-chave: Memória; Oralidade; Fotografia

Resumen

Este texto retrata las investigaciones realizadas durante el período de 2011 a 2018, en los sertones de Alagoas, cuyo foco fueron las acciones de alfabetización y cultura, desarrolladas en la comunidad sertaneja durante el período de la Dictadura civil-militar (1970-1985), con base en la Historia oral, Alberti (2008) y Bosi (1994), privilegiando las entrevistas y fotografías como fuente. El objetivo de estos escritos es presentar las narrativas memorialísticas, sobre muchos sertones alagoanos, con énfasis en la educación y la cultura del pueblo sertanejo. Estas narrativas se contraponen a la historia oficial, que refuerza los estigmas sobre la región sertaneja, encabezados estos por el proyecto de dominación colonial que se perpetúa en los discursos de las corrientes hegemónicas de nuestro país, en lucha por la dominación de los poderes y los saberes. Las fuentes orales y visuales trajeron nuevas reflexiones con relación al lugar - sertones alagoanos- y nos permitieron entender las resignificaciones que han sido posibles, incluso durante el régimen militar.

Palabras clave: Memoria; Oralidad; Fotografía

Abstract

This paper presents researches carried out from 2011 to 2018, in the sertão of Alagoas, and were focused on literacy and culture actions, developed in the sertão community during the period of the civil-military dictatorship (1970-1985), based on Oral history, Alberti (2008) and Bosi (1994), privileging interviews and photographs as sources. These reports have as purpose to present the memorialistic narratives, about several Alagoas’ sertões, with emphasis on the education and culture of the people of the countryside. These narratives go against official history, which reinforces the stigmas about this region, led by the project of colonial domination that is perpetuated in the hegemonic discourses currents of our country even in nowadays, and constantly fights for the domination of powers and knowledge. The oral and visual sources brought new reflections in relation to the place - Alagoas’ Sertões - and made us realize that resignifications were possible, even during the military dictatorship.

Keywords: Memory; Orality; Photography

Considerações iniciais

A reconstrução da história dos sertões alagoanos, a partir das memórias dos seus sujeitos, motivou as nossas andanças pela comunidade sertaneja, região que carece de preservação da memória escrita real, sobretudo, quando as fontes que registram os fatos são grafadas pelos interesses políticos da história oficial. Em nossos escritos, usamos o termo sertões, no plural, por reconhecermos a diversidade que povoa estes espaços, o que nos impede de conceber o sertão no singular. Neste “[…] recorte espacial [registramos a nossa] identidade regional [nos descobrindo, uma vez que] guarda em [nosso] interior a diferença, a diversidade, a multiplicidade de realidades e, […] de representações” (ALBUQUERQUE Jr., 2014, p. 41-42).

Os sertões alagoanos, assim como em todo o estado de Alagoas, carregam estigmas históricos; não obstante, na região sertaneja essas marcas agravam-se, uma vez que a prioridade, no processo de formação histórica dessas terras, foi o atendimento do mercado externo com a produção da cana-de-açúcar nos engenhos. Restou à população menos favorecida o enfrentamento das secas periódicas dos sertões.

A luta pela sobrevivência em terras dos sertões é fortemente marcada pela submissão dos pequenos agricultores, em terras geralmente tomadas de empréstimo aos posseiros, que tinham em meio às condições climáticas, lutar por uma colheita que garantisse, minimamente, o sustento de uma família, em sua maioria numerosa, durante o ano inteiro. As famílias sertanejas que aventuravam a deixar os sertões, arriscando novas perspectivas de vida, encontravam os entraves do padrão de organização da produção, que deixava as classes populares dependentes das usinas de açúcar e, também, da indústria têxtil, com o “[…] uso massivo do trabalho de mulheres e de crianças.” (VERÇOSA, 2006, p. 92).

O autor enfatiza que esse ranço histórico fez Alagoas chegar à metade do século XX com um imenso contingente de pobres e laboriosos, completamente dependentes. Nos sertões, essa dependência estava atrelada à presença do coronelismo, em que “[…] o coronel é o proprietário de terras que sustenta, protege e socorre os seus agregados, exigindo, em troca, obediência e fidelidade” (CARVALHO, 2015, p. 258).

Dentro desse contexto de pobreza e de luta pela sobrevivência, as ações do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral1), ainda que alienantes e assistencialistas, apresentavam-se para o povo sertanejo, como a única oportunidade de alfabetização; embora mecânica e sem a intenção de politização dos sujeitos, uma vez que suas ações eram fruto do regime militar em vigor.

As narrativas que apresentamos neste texto são situadas como fortes experiências humanas, que nas palavras de Alves e Garcia (2008, p. 274), “[…] têm amplitude no tempo e no espaço. São narrativas encontradas que [nos permitiram] uma ressignificação, uma história diferente daquelas relativas aos conhecimentos […] políticos oficiais, que são, sobretudo, escritos”.

No caso específico, os conhecimentos do povo sertanejo. Nessas trilhas de pesquisas (anos de 2011 a 2018) a abordagem da história oral com base nos postulados teóricos de Alberti (2008) e Bosi (1994), constituiu o caminho percorrido por nós, articulando as fotografias que são imagens narrativas que, também, compuseram as fontes que utilizamos. É importante dizer que o aparecimento das fotografias no momento das entrevistas, ajudou-nos a perceber a necessidade dessa interação entre as fontes visuais - fotografias e as fontes orais - os depoimentos memorialísticos dos sujeitos que participaram do fato histórico.

Na nossa trajetória de estudo a história oral desempenhou/desempenha um papel fundamental na reconstrução de fatos históricos, uma vez que vem nos permitindo: “[…] realizar entrevistas gravadas com pessoas que puderam testemunhar sobre acontecimentos, conjunturas, instituições, modos de vida ou outros aspectos da história contemporânea” (CPDOC)2.

Nesse sentido, operamos com a entrevista denominada temática, que “[…] prioritariamente [dedica-se] à participação do entrevistado no tema escolhido” (ALBERTI, 2008, p. 175). A restituição do passado por meio da memória, em nossos estudos foi e sempre será realizada com muito cuidado. Aprendemos em diálogo com Bosi (1994), da impossibilidade de resgate do passado. É possível, apenas, a reconstrução e o repensar desse passado, tendo como base as ideias e imagens do presente. Nessa direção, a autora ressalta que “A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual” (BOSI, 1994, p. 55).

Destacamos nesse percurso investigativo a importância da interação das fontes orais com outras - as fotografias -, na perspectiva da composição de uma rede documental, concordando que: “Na análise de entrevistas de História oral deve-se ter em mente também outras fontes - primárias e secundárias; orais, textuais, iconográficas etc. - sobre o assunto estudado” (grifos nossos) (ALBERTI, 2008, p. 187).

Com o objetivo de apresentar as narrativas memorialísticas, sobre muitos dos sertões alagoanos que vivenciamos, com ênfase na educação e cultura do povo sertanejo, este artigo é composto de quatro itens: no primeiro, ocupamo-nos em comentar as conceituações reguladoras que invisibilizam os sertões e seu povo, constituídas com muita força no decorrer da história oficial. Na sequência apresentamos Santana do Ipanema, o ponto de partida das nossas andanças pelos sertões; ancorados nas narrativas memorialísticas de dois sertanejos3; no terceiro e quarto item debruçamo-nos sobre as memórias do povo sertanejo com ênfase na alfabetização e em aspectos das culturas tradicionais da comunidade sertaneja.

Conceituações que invisibilizam os sertões e os sertanejos

A história insistentemente contada e apresentada acerca dos sertões e dos habitantes que povoam este espaço, foram/são histórias marcadas pelos discursos hegemônicos que ditaram e continuam a ditar, o que lhes convém dizer, a respeito da história do povo sertanejo. O estigma que se tem a respeito da região sertaneja, advém do projeto de dominação colonial que se perpetua nos discursos contados e apresentados pelas correntes hegemônicas do nosso país, que lutam constantemente pela dominação dos poderes e dos saberes, desrespeitando as inúmeras diferenças que caracterizam os diversos contextos de um país de dimensões continentais.

As conceituações que se propagaram sobre os sertões, por meio do estigma de lugar atrasado onde impera a desordem e a brutalidade, já não pode mais ser o discurso protagonista a respeito dessa região. Outras histórias precisam ser elucidadas, na perspectiva de rompimento dos estereótipos criados e cultivados a respeito dos sertões nordestinos. Nesse sentido, neste texto, estamos na contramão da história oficial na tentativa de demonstrar o que não foi/é contado, buscando, sobretudo, desconstruir as conceituações reguladoras dos sertões e do seu povo, constituídas com muita força no decorrer da história.

João Guimarães Rosa, na obra Grande sertão: veredas demonstra sensibilidade ao ratificar que essa região não pode ser reduzida a um mero lugar, uma vez que: “sertão - se diz - o senhor querendo procurar nunca não encontra.” O sertão vai além dos espaços ideologicamente demarcados e estigmatizados pelos homens, sendo assim o sertão pluraliza-se, deixa de ser único e atinge outras proporções e de forma repentina, e insistente “[…] quando a gente não espera, o sertão aparece” (ROSA, 1986, p. 356). É um espaço que vai além dos estereótipos que lhe foram atribuídos, é um campo de pluralidade, levando em conta a diversidade que permeia essa região.

As formulações discursivas que se propagam, tanto pela literatura quanto pelos meios midiáticos, apresentam o Nordeste e o seu sertão como um espaço parado no tempo, e o que precisam ser repensadas, considerando, sobretudo, o sertão como um espaço de diversidade. Essa vastidão do sertão aparece com grande força na obra de Guimarães Rosa (1986, p. 458) quando o autor busca desmitificar o imaginário do sertão como um espaço geograficamente demarcado: “O sertão aceita todos os nomes: aqui é o Gerais, lá é o chapadão, lá acolá é a caatinga”. A infinidade territorial que Guimarães Rosa descreve, dá ao sertão o valor imensurável que este espaço carrega.

Euclides da Cunha apresenta, em sua obra magistral Os Sertões, publicada em 1906, conceitos por ele construídos dos sertões e dos seus habitantes, imagens muitas vezes ambíguas e contraditórias. O autor dá ênfase à paisagem que, ao mesmo tempo em que é desoladora e desértica, é também paradisíaca, descrevendo-a como uma terra que vai “Da extrema aridez à exuberância extrema”. (CUNHA, 1954, p. 231). Essas contradições aparecem nas narrativas do autor ao esclarecer que, ao chegar das chuvas, longe dos períodos prolongados de estiagem “O sertão é um paraíso” (CUNHA, 1954, p. 43). O autor apresenta esse espaço em suas imprecisões de ordem, sobretudo climática, ao dizer que “o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono”.

O escritor pernambucano Josué de Castro, em sua célebre obra Geografia da fome, na década de 1940, já denunciava os agravantes sociais e políticos deterioradores deste espaço. Ao apresentar aspectos acerca da difícil condição de sobrevivência dos sertanejos, esclarece: “Muito mais do que a seca, o que acarreta a fome no Nordeste é o pauperismo generalizado, a proletarização progressiva, é magreza, é miséria relativa ou absoluta, segundo chova ou não chova no sertão” (CASTRO, 1984, p. 260).

O autor retrata, em sua obra, a penúria que ameaçava a existência dos sertanejos, tornando-os reféns dos processos de exclusão que se propagavam constantemente no âmbito das camadas pobres da sociedade brasileira. O escritor considera o “fenômeno da fome”, como de interesse econômico de uma minoria dominante: “Um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido […]” (CASTRO, 1984, p. 20).

Portanto, é um tema que durante muito tempo tem sido ignorado pelos governantes deste país. Diante dos cenários que nos foram apresentados por Rosa (1986), Castro (1984) e Cunha (1954) e das leituras que fizemos, assumimos nas nossas pesquisas o termo sertão no plural. Como observado por Xavier (2018, p. 513) destacamos a necessidade de reconhecer o “[…] território na escala do lugar. Deixá-lo falar e revelar suas tensões e conflitos, suas carências, seus conformismos e suas revoltas, mas também suas riquezas, seus valores e suas possibilidades”.

É importante registrar, que nos sertões alagoanos ainda encontramos em suas entranhas as relações de mandonismo, guiadas pela mão de ferro dos senhores de latifúndios. Como já denunciava Ramos (2007, p. 175): “[…] aí não se consegue terra facilmente, o salário é baixo - e para lá das cancelas do despotismo do proprietário vale o mosquito e o cardo juntos.” Os pequenos lavradores que perseguiam a sobrevivência, fugindo da fome dos sertões, onde o cardo - praga da lavoura - destruía as plantações, buscavam espaço de produção da sobrevivência em terras tomadas de empréstimo, em uma parte do estado onde as terras são destinadas à produção da cana-de-açúcar.

Esses fatos históricos acabaram por criar um estereótipo da região sertaneja, destinando a essa localidade e a seu povo um lugar secundário, desprivilegiado. E nesse sentido, foram cunhadas caricaturas dos sujeitos sertanejos enquanto seres dignos de pena e assistência dos poderes que dominam, de forma patriarcal e colonialista, os que são por eles julgados como “incapazes”. A ruptura dessa visão estigmatizada torna-se um enorme desafio, e a luta pela superação de uma história unificada deve ocupar lugar, na perspectiva de rompimento da invisibilidade construída pelo processo histórico excludente que foi incapaz de perceber as diferenças e está presente na realidade que estamos vivendo no Brasil, a partir de janeiro de 2019.

Afirmamos isso, considerando que os estigmas que vêm circulando acerca do Nordeste, do sertão e do sertanejo são de engessamento das imagens dessas localidades e das pessoas que nelas habitam. São perspectivas que parecem que estavam adormecidas e não rompidas. Temos descoberto nas nossas andanças que essas pessoas têm muito a contar em suas histórias. Histórias de vivências que não são lineares, histórias de experiências que são ressignificadas no cotidiano, portanto, não podem ser tidas como histórias de sentido único.

Recorremos com destaque a Boaventura de Sousa Santos que com muita propriedade critica o projeto de dominação e esclarece que, nesse sistema de distinções as diferenças são estabelecidas por meio de linhas radicais que, por sua vez:

dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo ‘deste lado da linha’ e o universo ‘do outro lado da linha’. A divisão é tal que ‘o outro lado da linha’ desaparece e enquanto realidade torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente (SANTOS, 2010, p. 23).

Nessa perspectiva só há espaço para o que se encontra “deste lado da linha”, ou seja, o que é apresentado por uma corrente hegemônica que domina com poderio os saberes. O que se encontra “do outro lado da linha” é tido como inválido, sendo desrespeitado, desconsiderado, ou seja, invisibilizado. Sendo assim: “Do outro lado da linha, não há conhecimento real; existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou subjectivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornar-se objectos ou matéria-prima para a inquirição científica” (SANTOS, 2010, p. 25).

O autor argumenta que os saberes populares são desconsiderados em nome da cientificidade do conhecimento. Os saberes que advêm das camadas que estão fora da corrente hegemônica não podem ser propagados, é preciso negá-los, uma vez que estes desconstroem o que foi instituído historicamente como verdade. Santos, (2010, p. 31) esclarece quão maléfica é esta distinção ao denunciar que: “A negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na medida em que constitui a condição para a outra parte da humanidade se afirmar enquanto universal”. Nota-se que a anulação do outro é o ponto central para a autoafirmação dos que dominam os poderes e saberes, tornando esta prática naturalizada historicamente.

No que se refere aos sertões e aos sertanejos, observa-se que estes encontram-se do outro lado da linha. São reféns de um estigma histórico contado e recontado com tanta eloquência que, para a maioria, naturalizou-se como verdade. Dentro dessas verdades foram sucumbidas as especificidades da região sertaneja e dos seus habitantes.

Nessa direção, é possível observar as ocultações existentes na história homogênea, enfatizando a dívida histórica atrelada à história contada pelos vencedores que, por sua vez, acaba por desconsiderar as peculiaridades dos que não tiveram, no contar da história, o seu devido valor.

É importante salientar o sertão como um espaço heterogêneo que possui vida própria. Essa heterogeneidade precisa ser respeitada, sobretudo, no que diz respeito ao fato de se admitir o sertão enquanto espaço em constante mudança. Torna-se necessário compreender as experiências contemporâneas desse espaço, que não ficou estagnado no passado, mas que é reinventado cotidianamente.

O ponto de partida - situando o contexto: Santana do Ipanema

A curiosidade epistemológica em investigar a mobilização da comunidade sertaneja em torno das ações do Mobral (1970-1985) adveio de pesquisas anteriores, pelas recorrências de citações desse Movimento o que nos levou à cidade de Santana do Ipanema4, localizada no médio sertão alagoano.

O território do médio sertão de Alagoas configura-se como espaço de pluralidade, por compor-se de nove municípios5 que têm peculiaridades, apesar de estarem tão próximos geograficamente. Entre esses sertões que compõem o médio sertão de Alagoas, a ênfase vai para o município de Santana do Ipanema, que se caracterizou como ponto de partida dessas e de outras investigações.

O primeiro marco na história de Santana do Ipanema tem registro do século XVIII, momento em que a cidade se resumia a um arraial, habitado por índios e mestiços. Melo, F. e Melo, D. (1976), em seus relatos, explicitaram que antes da criação da Comarca de Alagoas houve a concessão de algumas sesmarias na região, e uma delas situou-se onde se encontra a sede do município de Santana do Ipanema. E nesse contexto “É que foram surgindo as fazendas de gado, próximas umas das outras para se poderem comunicar entre si, e, também, com as povoações ribeirinhas do valioso e tradicional Rio São Francisco” (MELO, F.; MELO, D., 1976, p. 19-20).

É uma cidade cravada na região dos sertões alagoanos que iniciou seu desenvolvimento de forma eminentemente rural, com a denominação de Ribeiro do Panema. Em 1771, passa a ser chamada de Santa Ana da Ribeira do Panema, devido à construção de uma capela em homenagem à Nossa Senhora Santana6.

No final da década de 1920, um aspecto econômico que ganhou destaque no município foi a feira livre, realizada aos sábados. Tornou-se, então, um sustentáculo importante para a economia da região. O movimento era intenso, como mostra a figura 1 abaixo, em decorrência da “[…] chegada de numerosos carros de bois e negociantes, sem falarmos em pessoas outras que acorriam ao local para comprar seus gêneros alimentícios, suas chitas, suas alpercatas ou para tratar de assuntos com as autoridades”. (MELO, F.; MELO, D., 1976, p. 8).

Fonte: Disponível em: http://www.maltanet.com.br/galeriadefotos/foto.php?id=754.

Figura 1 Santana do Ipanema em dia de feira. Imagem: Sr. Sulino Acervo: Erinha. 

A fotografia da figura acima é “[…] um espelho de momentos passados” (LEITE, 1993, p. 160) e proporcionou ao nosso olhar as mensagens que retratam as pessoas que se aglomeravam para celebrar a cultura, em meio ao sol escaldante dos sertões, que junta-se semanalmente para praticar esse ato cultural democrático, em espaço público que reúne a diversidade. Espaço esse, fortemente marcado “[…] pela multiplicidade de vozes, de pregões, de falas, de ditos que se misturam, confundem-se e terminam por gerar uma verdadeira algaravia de vozes”.

A figura, também, remete à “[…] multiplicidade de apelos em torno das distintas mercadorias que se tenta vender” (ALBUQUERQUE JR., 2013, p. 24). Um lugar de convergência popular, no qual os produtos produzidos nas comunidades urbanas e rurais dos sertões são negociados, fazendo da cidade um ponto de encontro de diversas culturas.

Barros (2010, p. 76), em um texto memorialístico, descreve como se dava a movimentação da feira de Santana do Ipanema, que ocupava um extenso espaço físico e acontecia aos sábados, quando as pessoas subiam ladeiras. Explica o autor que tinha:

gente caminhando em toda direção, lojas cheias, cegos cantando enquanto balançavam o ganzá, chegando caminhões, carros de boi, charretes com mulheres vestidas de guarda-pó e muitos cavaleiros. Dando boa tarde a todas as pessoas debruçadas nas janelas, passavam muitas mulheres vestidas de saia comprida e cabeção. Eram as matutas de pano branco ou totalmente preto na cabeça. Que vinham fazer a feira chegando dos arredores de Santana, vindo das pequenas propriedades da vizinhança.

O crescimento populacional do município esteve muito relacionado ao cangaço7 existente na região. Famílias residentes à época na zona rural, diante dos constantes ataques de Lampião8, resolveram migrar para Santana do Ipanema. Segundo Rocha (2014), por volta de 1925 apareceram na comunidade santanense três figuras emblemáticas que marcaram o imaginário de muitos sertanejos, amparados na casta de heróis: “o ‘coronel’ Delmiro Gouveia9, que tinha domado a cachoeira de Paulo Afonso; o ‘capitão’ Lampião10, percorrendo sempre vitorioso as caatingas alagoanas, de ponta a ponta; e o tenente José Lucena, que competia com este, em nome do governo [...]” (ROCHA, 2014, p. 19).

Com o crescimento populacional, a cidade apresentou a necessidade de ampliação de órgãos públicos como: grupos escolares e postos de saúde para o atendimento às pessoas que chegaram à sede do município. No campo educacional, o então prefeito Joaquim Ferreira da Silva conseguiu verbas estaduais para a construção de um grupo escolar que denominou de Padre Francisco José de Albuquerque e também “Fez vir [da capital] o corpo docente para educar a população infantil. Era a solução parcial para o caso.” (MELO F.; MELO, D., 1976, p. 63).

No início da década de 1970, em plena Ditadura civil-militar, assumiu o governo municipal de Santana do Ipanema um novo gestor11. Segundo os autores, o período da sua gestão foi de dificuldades, uma vez que ocorreu uma grande seca, o que ocasionou terrível crise econômica e social na localidade. Como consequência, veio a fome e a sede, com mais intensidade na população da zona rural, e doenças dizimaram rebanhos de gado vacum. Segundo Melo, F. e Melo, D. (1976), mesmo diante desse quadro, o então prefeito conseguiu construir uma unidade de ensino primário em convênio firmado com a Secretaria de Educação de Alagoas e, nessa década, apoiou a implantação de um dos Programas do Mobral, denominado Programa de Alfabetização Funcional (PAF), para atendimento aos adultos analfabetos, com atuação no horário noturno.

Narrativas memorialísticas da alfabetização dos sertanejos

Seguindo as trilhas da história oral, saímos do município de Santana do Ipanema em busca de outros sertões, onde foi possível contatos com pessoas que tinham histórias e memórias da educação e da cultura do povo sertanejo, a partir das suas narrativas memorialísticas advindas de fontes orais e visuais. Nesse contexto, ressaltamos a contribuição de dois sujeitos, que vivenciaram as ações do Mobral - sobretudo o PAF, desenvolvidas nos sertões alagoanos. Ambos atuantes diretos, com participações diferenciadas. Tratou-se de um ex-aluno e de um ex-supervisor de área - denominação da época -, do referido Programa.

O PAF/Mobral era um programa que, assumira desde a nomeação, em 1967, a duas perspectivas. A primeira funcional que dizia respeito à concepção de um modo de alfabetização, que tinha a finalidade de utilizá-la para aplicação imediata no cotidiano, o que deveria ser feito em prazos curtos, revertendo rapidamente a condição da mão de obra trabalhadora até então analfabeta e requerida como, minimamente, alfabetizada.

A segunda perspectiva trazia a concepção de funcionalidade, creditada à alfabetização, vinha de formulações e acordos internacionais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) com os países, em estratégia política de reverter o quadro alarmante de analfabetismo no mundo, pela lógica do capital, demonstrando a ambiguidade da atuação do organismo. Por essa lógica, trabalhadores alfabetizados eram mais produtivos e desperdiçavam menos recursos, em todas as atividades desempenhadas.

Apesar da forte motivação da população para as atividades do Mobral estava-se distante das múltiplas experiências de educação popular iniciadas e desenvolvidas no final da década de 1950 e início da dos anos de 1960, com base em Freire, que assumiam um compromisso emancipador da população pobre e de classes populares principalmente no Nordeste do país. Essas experiências foram abortadas pela Ditadura civil-militar.

O projeto da ditadura militar passava pelo alargamento do avanço capitalista na constituição do país pela industrialização e, por isso mesmo, necessitava de mão de obra qualificada - o que incluía maior escolarização e redução do analfabetismo entre a mão de obra industrial - para que atraísse multinacionais e desse conta de “retirar o Brasil do atraso histórico” a que estava submetido. Esse projeto passava, também, pela melhoria dos níveis de escolarização de jovens e adultos, historicamente interditados do direito à educação no país. O caminho primeiro, inegavelmente, era o de aprender a ler e escrever para que, deixando de serem analfabetos, homens e mulheres pudessem atender aos requisitos do capital e da mão de obra trabalhadora. A alfabetização12 apresentava-se como possibilidade rápida e de curta duração, porque a ditadura tinha pressa de executar seu projeto de “Brasil grande”.

Para o governo repressor daquele momento histórico, a alfabetização de adultos fazia sentido porque o desenvolvimento do país, com a entrada de multinacionais, exigia mão de obra capaz de dominar, no mínimo, técnicas básicas de leitura e escrita, para que pudessem se pôr em acordo com ditames internacionais quanto à redução do analfabetismo entre os trabalhadores, o que se resolvia com propostas curtas de alfabetização.

Na época, havia muitas implicações entre o rural e o urbano. Implicações essas tanto de ordem psicossocial e afetiva, como político-ideológica, uma vez que essa proposta de deslocamento, no nosso entendimento, deve ter contribuído para baixar a autoestima e ter também aumentado a sensação de impotência diante das dificuldades de deslocamento daqueles sertanejos da zona rural, que estavam sendo provocados a alfabetizar-se, o que nunca tinha acontecido na região.

A iniciativa de implantar turmas de alfabetização nos sítios e fazendas, mesmo em situações precárias, fora muito importante para o atendimento de muitos trabalhadores rurais, que após a labuta diária, ainda encontravam força para frequentarem as aulas, que segundo um dos ex-alfabetizandos, aconteciam em espaços, muitas vezes, como a casa de farinha iluminada à luz do:

Candeeiro ou lampião. No dia que o gás do lampião secava tinha que ser no candeeiro. Colocava o candeeiro perto do quadro aí a gente via as letras. Nós nunca estudamos em escola, era nas casas, depois foi numa bodega que tinha uma sala grande. Era muito difícil, por isso que muita gente desistia (FERNANDO, 69 anos).

A próxima fotografia traz a imagem de um grupo de alfabetizandos do Programa de Alfabetização Funcional (PAF) do município de Palestina, também situado no sertão alagoano, nas proximidades de Santana do Ipanema, conforme depoimento do ex-supervisor da região. A foto é o registro de uma das apresentações culturais dos alunos do PAF e demonstra como se dava a integração entre os Programas Cultural e o de Alfabetização. Segundo o narrador, a fotografia capturou o momento em que o grupo se organizava para representar o reisado, uma das manifestações culturais mais tradicionais de Alagoas.

Fonte: Arquivo pessoal de Hélio da Silva Fialho - Ex-supervisor de área do Mobral.

Figura 2 Atividade cultural com os alunos do Programa de Alfabetização Funcional. 

A parada obrigatória para a foto permitiu a análise de um instante em que o grupo, composto majoritariamente por mulheres, preparava-se para se apresentar ao público, e contara com o auxílio do tocador, também alfabetizando do PAF, que trazia como dispositivo de animação a sanfona de oito baixos, instrumento que, segundo o narrador, pertencia ao Posto Cultural do Mobral, que sempre disponibilizava para as apresentações, que aconteciam na localidade. O espaço físico representado na imagem nos remete à simplicidade das comunidades rurais dos sertões, no contexto em que muitas casas de taipa enfeitavam as ruas dos pequenos lugarejos.

Essas memórias e outras, que evocamos nesta pesquisa, dos sujeitos esquecidos pela história oficial - testemunhas vivas - trouxeram novas reflexões sobre o Mobral, sobretudo em relação ao lugar, sertão, de onde brotaram narrativas diferentes das que povoam o imaginário nacional acerca do referido Movimento. Isso nos fez perceber os múltiplos sentidos que podem ser construídos nas práticas desenvolvidas de um Movimento com a dimensão que teve o Mobral, em todo o Brasil.

Estes estudos tiveram sua relevância na necessidade de reconstrução das ações do Programa de Alfabetização Funcional e do Programa Mobral Cultural a partir da tessitura das histórias e memórias de sujeitos dos sertões alagoanos, sobre como experienciaram e ressignificaram ações desenvolvidas pelo Mobral no contexto da Ditadura civil-militar. Ressignificação entendida nesta pesquisa como “maneiras de fazer” que, nas palavras de De Certeau (2011, p. 41), “[…] constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sociocultural”, ou seja, os sentidos atribuídos em suas próprias culturas às ações apresentadas pelo Programa Mobral Cultural na comunidade sertaneja.

A prática cultural do Batalhão de Lagoa

Nas nossas andanças pelos sertões conseguimos reunir, além das narrativas orais, um corpus documental composto por 87 fotografias13 caracterizado por imagens diversas, que apresentam comportamentos fotográficos variados, em sua grande maioria de profissionais desconhecidos, entre elas surgiu a possibilidade da reconstrução da história do Batalhão de Lagoa.

Com base na oralidade e nos registros fotográficos que datam do início dos anos de 1980, abrimos um espaço para comentar sobre a experiência de um grupo de pessoas pertencentes à comunidade sertaneja do povoado Santiago, situado nas imediações do município de Pão de Açúcar14 - sertão alagoano.

Em sua organização o Batalhão de Lagoa tem no seu espaço a abertura para cooperação entre os membros das comunidades participantes, que se ajudam no labor diário, bem como comungam dos festejos populares que resistem às padronizações colonizadoras, com as manifestações populares que ainda são recorrentes nas comunidades mais tradicionais, no sertão alagoano.

Thompson (1998) nos dá respaldo para confirmar essa resistência das comunidades tradicionais que, mesmo poucas, ainda conservam seus costumes e tradições. Esclarece o pesquisador que esses campos de resistências são pontuais e, geralmente, são evidenciados em comunidades de pequenos agricultores e pescadores, nos quais o ritmo do trabalho ainda é ditado pela natureza e não pelo tempo do mercado; a lógica que impera nesses contextos é a da necessidade de execução das tarefas diárias, mencionadas na citação abaixo, o que o autor chama de ritmos “naturais” de trabalho:

cuidar das ovelhas na época do parto e protegê-las dos predadores; vacas devem ser ordenhadas; deve-se cuidar do fogo e não deixar que se espalhe pelas turfas (e os que queimam carvão devem dormir ao lado); quando o ferro está sendo feito, as fornalhas não podem apagar (THOMPSON, 1998, p. 271).

Apesar da obrigatoriedade no cumprimento das tarefas, os sujeitos das classes populares ainda não se renderam ao tempo do capital, ou seja, ao tempo do relógio, o que os tornam peculiares e, sobretudo, resistentes aos mandos do capitalismo em suas ocupações rurais.

Os mutirões ou batalhões são entendidos, como forma de criação cultural do povo. Carlos Rodrigues Brandão (1995, p. 209) ao descrever as características de um mutirão esclarece que esta tarefa coletiva contém os elementos do dom de:

dar, receber, retribuir. Há um convite regido pela necessidade de um trabalho coletivo, associado ao desejo de realizá-lo não através de empresa paga, mas por meio de uma coletivização de um serviço vivido em um dia, como um rito. Há uma resposta obrigatória ao convite, por razões de parentesco, vizinhança, amizade, associada ou não a uma dívida anterior e equivalente de parte de um convidado (quem o convida participou antes de um mutirão em suas terras).

O dom da doação, o dom da coletividade, do companheirismo acaba por amenizar os desgastes físicos do trabalho braçal. O nosso narrador ex-supervisor de área dessa região sertaneja, localizado nas nossas incursões pelo campo da pesquisa, narrou a experiência e a tradição dos sertanejos:

Um grupo de moradores locais que trabalhava no plantio de arroz, em cujas terras da Lagoa do Santiago o arroz era plantado de meação, isto é, da quantidade de arroz que era colhido, 50% eram destinados ao dono das terras e os outros 50% ficavam com o dono da plantação. A cada dia, a depender da área de terra a ser plantada e replantada, o mesmo grupo (o Batalhão de Lagoa) saía da casa do dono da plantação (morador) para ‘fechar a terra’ de determinada pessoa (morador), onde o grupo passava o dia inteiro trabalhando e cantando as cantigas tradicionais do folclore local. (HÉLIO FIALHO - EX-SUPERVISOR DE ÁREA DO MOBRAL).

Os costumes, as tradições e os rituais também são narrados pelo interlocutor, que conta com entusiasmo e orgulho ter vivenciado com esses sujeitos as experiências culturais de um contexto peculiar na história dos trabalhadores do referido povoado, e continua de forma emocionada,

Geralmente o grupo saía da casa do ‘posseiro’ para a área de terra a ser plantada na lagoa. Todos saíam cantando em alta voz as cantigas do cancioneiro ribeirinho dos batalhões de lagoa, sendo que o dono da plantação (meeiro ou meeira, a depender do gênero), carregava consigo uma bandeira branca erguida sobre uma vara. Ao chegar ao local desejado (na área de terra a ser plantada, na lagoa, os membros do grupo adentravam nas águas da lagoa e a bandeira branca era fincada à margem (na terra) onde seria plantada. Para superar a longa e árdua jornada de trabalho sob o sol causticante, o batalhão cantava continuamente - uns puxavam alguns versos e outros respondiam. E assim passavam o dia inteiro trabalhando. Na hora do crepúsculo, o batalhão retornava da mesma maneira que partira pela manhã. Ao chegar à casa da ‘meeira do dia’, os membros começavam a dançar uma espécie de ‘coco de roda’ ou ‘pagode de coco’. Durante e após o fechamento da terra (até retornar para casa), os membros do batalhão (mulheres e homens) bebiam vinho, cachaça e comiam rubacão com carne guisada (gado ou galinha de capoeira). E assim, os tradicionais batalhões de lagoa, muito comuns nas localidades ribeirinhas que viviam da plantação de arroz), resistiram ao tempo, porém, não resistiram ao desaparecimento das lagoas do Velho Chico. (HÉLIO FIALHO - EX-SUPERVISOR DE ÁREA DO MOBRAL).

Os rituais citados nas narrativas do interlocutor nos deixam margem para inferir sobre as diversas possibilidades de interpretação das experiências e tradições dos sujeitos sertanejos. Brandão (2002) ao dar ênfase aos saberes populares presentes na cultura de cada comunidade enfatiza que:

Dentro da cultura do povo há um saber; no fio de história que torna esse saber vivo e continuamente transmitido entre pessoas e grupos há uma educação (grifo nosso). É a partir destas redes de trabalho popular de cultura que o educador popular deve situar o seu trabalho através da cultura. Ele não tem o direito de invadir, como colonizador bem-intencionado, esses domínios de educação e saber da cultura do povo. (BRANDÃO, 2002, p. 97).

A palavra educação refere-se no seu sentido amplo às relações sociais cotidianas estabelecidas no interior das comunidades. Ou seja, os saberes impregnados na cultura do povo das comunidades rurais dos sertões. A imagem a seguir demonstra o ritmo de trabalho do batalhão, orquestrado pelo canto e pelo esforço coletivo dos camponeses que, em nome da tradição, ancorada na convivência solidária, desenvolvem trabalho produtivo e, sobretudo, cooperativo.

Fonte: Arquivo pessoal de Hélio da Silva Fialho - Ex-supervisor de área do Mobral.

Figura 3 Serviço de eito - Batalhão de Lagoa - Povoado Santiago, agosto de 1981. 

A fotografia que, para Guran (2011, p. 80) “[…] é, por natureza, eminentemente descritiva”, registra a labuta diária dos sertanejos, alguns deles, ex-alunos do PAF/Mobral, que se agregavam para fechar uma determinada parte do serviço proposto para aquele período do dia, mais conhecido como serviço de eito. A determinação dos trabalhadores em fechar o eito demonstra que o ritual do batalhão também era controlado pelo exercício de competição e, muitas vezes, de conflito entre os labutadores (BRANDÃO, 1995).

Com a construção da Usina Hidrelétrica de Xingó15 a formação das lagoas deixou de ser uma constante, o que pôs fim à cultura de produção do arroz em terras sertanejas. O desaparecimento das lagoas representou, para as comunidades ribeirinhas, o fim da produção de um cereal considerado integrante principal na alimentação dos sertanejos, e que adicionado ao feijão torna a alimentação equilibrada, fornecendo energia para o cumprimento das árduas tarefas diárias que envolvem, geralmente, o trabalho braçal.

É importante salientar que o cultivo do arroz em mutirão, ao aproveitar a cheia das lagoas, certamente existia muito antes do Mobral Cultural. Esta prática cultural passou a ser apoiada pelo Mobral, numa ocasião propícia, e daí ter sido considerada pela Comissão do Município de Pão de Açúcar como uma das práticas culturais mais significativas. Entendemos que neste caso, houve a apropriação pelo Mobral de uma forma de ação típica da cultura local.

Considerações finais

A guisa de “conclusão”, destacamos que as “respostas” construídas no decorrer dos nossos estudos, originaram-se, sobretudo, de um exercício de escuta de pessoas comuns que, geralmente, não aparecem nos registros escritos oficiais, mas que são sujeitos que ajudaram na recriação da história do Mobral Cultural, a partir do recomendado por Walter Benjamin: “a contrapelo”.

Acreditamos que considerar os sertões é uma forma de rompimento dos paradigmas reguladores que o conceituam. Essa desconstrução implica, sobretudo, a quebra dos estereótipos atribuídos aos sujeitos sertanejos, constituídos historicamente como sujeitos rudes, estagnados em um passado muito distante do mundo contemporâneo. Torna-se importante, pois, continuar as andanças pelos sertões, desconstruindo as conceituações que regulam e anulam os saberes do povo sertanejo.

Além das narrativas orais, as fotografias utilizadas como fonte - com mensagens não verbais - permitiram a dinamicidade da memória dos sujeitos entrevistados e, também, a análise mais aguçada de nossa parte enquanto pesquisadores. Esperamos que ajudem aos leitores interessados por este trabalho a decifrar o significado e o conteúdo cultural das imagens tomadas como documentação histórica, para reaver a construção ignorada na história oficial.

No processo desta investigação ficou explícito que os sertanejos deste estudo deixaram-se ser invadidos pelo que não podiam controlar, mas resistiram com as múltiplas astúcias da sabedoria popular, ao mostrar o que sabiam fazer. Isso fez parte das “artimanhas” de resistência popular diante dos serviços e novidades oferecidos pelo Mobral. O que não significa dizer que o envolvimento da comunidade nas ações culturais e de alfabetização representou a aceitação/passividade das ações apresentadas, pois quando essas ações foram implementadas, certamente já existia uma estrutura social da cultura popular alicerçada nos costumes e tradições dos povos dos sertões. Exemplos dessa realidade são os trabalhadores do Batalhão de Lagoa que aparecem na Figura 3, com seus ritos, que existia muito antes do Mobral.

A forte carga ideológica que cercava o imaginário nacional não impediu que sertanejos agissem enquanto praticantes culturais, ressignificando as ações com suas “maneiras de fazer”, a partir dos “usos” que delas fizeram em seu “espaço” - o sertão alagoano -, criando possibilidades de novas interpretações e apropriações das ações desenvolvidas.

Registramos que, mesmo em situações concebidas com finalidades diversas e previamente definidas, ao visar o controle social das populações, a realidade investigada se impôs para além das estratégias políticas. Das condições reais emergiram “táticas” cotidianas imprevistas, que invencionaram novas lógicas de apropriação do que foi oferecido aos sujeitos, que escaparam ao controle, e pode daí resultar novas formas de significação.

Nos sertões alagoanos, muitas reflexões ainda permanecem em aberto configurando-se, portanto, como campo fértil de investigação em Alagoas, como já evidenciamos, devido à ausência de memória escrita. Esse despertar gera possibilidades de continuidade deste estudo e, também, para outros pesquisadores interessados em reconstruir a história pelas lentes dos “sujeitos ordinários” esquecidos pela história. Esses, guardam em suas lembranças experiências significativas que merecem ser acionadas no momento presente, com o desígnio da valorização e preservação da memória e, consequentemente, modificando visões monolíticas das histórias que, comumente, são contadas a respeito dos Sertões.

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1O Mobral nasceu como Fundação amparada pela Lei n. 5.379 de 15 de dezembro de 1967. Era originalmente financiado por recursos provenientes da Loteria Esportiva e da indicação de até 2% do Imposto de Renda devido por pessoas jurídicas. Em momento posterior, seus recursos limitam-se ao Imposto de Renda, nas mesmas regras anteriores. Em 1985, quando da chamada transição democrática se iniciava, por eleição indireta, o retorno à democracia, a instituição Mobral foi extinta, dando origem à Fundação Educar, que teve objetivos e finalidades redimensionados, estrutura e vinculação com o MEC, definição de propósitos e modus operandi, passando a atuar em apoio e fomento a ações diretas executadas por municípios e estados.

2Concepção da metodologia da História oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/acervo/historiaoral.

3Optamos por apresentar apenas as vozes de dois interlocutores, considerando as dimensões reduzidas de um artigo. Salientamos que outros interlocutores participaram da pesquisa por meio de entrevistas a saber: cinco ex-supervisoras componentes da comissão estadual do Mobral, uma ex-supervisora de área do Município de Santana do Ipanema, e um ex-supervisor de área de um município vizinho, além dos ex-alunos do Mobral.

4De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010) Santana do Ipanema conta com uma população de 44.932 habitantes, com área territorial de 437, 875 Km² e densidade demográfica de 102, 61 (hab./km²). O Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM) - Santana do Ipanema é 0,591, em 2010, o que situa esse município na faixa de Desenvolvimento Humano Baixo (IDHM entre 0,500 e 0,599). (ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL).

5São eles: Carneiros, Dois Riachos, Maravilha, Ouro Branco, Olivença, Poço das Trincheiras, Santana do Ipanema, São José da Tapera e Senador Rui Palmeira.

6Pela Lei n. 09 de 24 de fevereiro de 1836, foi criada a Freguesia de Santana da Ribeira do Panema, tendo o padre Francisco Correia de Albuquerque sido nomeado seu primeiro pároco (MELO, F.; MELO, D. 1976, p. 24-25).

7Caracterizado como uma luta revolucionária contra os desmandos das oligarquias, em que os homens do grupo vagavam pelas cidades em busca de justiça e vingança pela falta de emprego, alimento e cidadania, causas do desordenamento da rotina dos camponeses. O termo cangaço vem da palavra canga - peça de madeira usada para prender junta de bois a carro de boi ou arado.

8Virgulino Ferreira da Silva (Lampião), considerado o cangaceiro líder, abraçou o cangaço devido a uma injustiça política, para fazer justiça com as próprias mãos, juntamente com um grupo de injustiçados.

9Industrial brasileiro, pioneiro na instalação de uma fábrica nacional independente no Nordeste. Explorou o potencial energético da Cachoeira de Paulo Afonso. Em 1921, conseguiu dotar a Vila operária de energia elétrica e água canalizada, vindas da cachoeira de Paulo Afonso.

10Os estudos de Barros (2015, p. 600) denunciam que o cangaço comandado por Lampião “[…] se fortalecia no convívio de ‘negócios’ com governador, ricos empresários, comerciantes, desembargadores, juízes de direito e vários comandantes de polícia”.

11Henaldo Bulhões Barros.

12Tinha-se uma perspectiva ancorada nos princípios de funcionalidade e aceleração, utilizando-se de “palavras que exprimem as necessidades e interesses básicos dos grupos e da comunidade (funcionalidade), garantindo a rapidez do processo de aprendizagem (aceleração)”. (JANNUZZI, 1987, p. 60).

13Todas as fotografias fazem parte do conjunto de memórias de seu acervo pessoal dos entrevistados, foram cedidas no momento das entrevistas e disponibilizadas para publicação.

14Município da Mesorregião do sertão alagoano, situada na Microrregião Santana do Ipanema, com uma área 662,95 km², com uma população (Censo 2010) de 23.811 habitantes. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDHM) - Pão de Açúcar é 0,593, em 2010, o que situa esse município na faixa de Desenvolvimento Humano Baixo (IDHM entre 0,500 e 0,599). A dimensão que mais contribui para o IDHM do município a longevidade, com índice de 0,793, seguida de renda, com índice de 0,536, e de Educação, com índice de 0,491. (ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL).

15Situada entre os Estados de Alagoas e Sergipe, a Usina Hidrelétrica de Xingó começou a ser construída em 1987 e foi inaugurada em 1994.

Recebido: 12 de Agosto de 2021; Aceito: 10 de Novembro de 2021

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