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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub 13-Sep-2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-84 

Artigos

Entre a educação, a saúde e a religião: Antônio de Almeida Lustosa e os cuidados educativos com a saúde da criança e da família paraense (1935)”

Entre educación, salud y religión: Antonio de Almeida Lustosa y los cuidados educativos con la salud del niño y de la familia paraense (1935)

Maria Lucirene Sousa Callou1 
http://orcid.org/0000-0002-4261-6810; lattes: 5837602972504046

Laura Maria Silva Araújo Alves2 
http://orcid.org/0000-0003-2936-605X; lattes: 6009592378453661

1Universidade Federal do Pará (Brasil). malu_callou19@hotmail.com

2Universidade Federal do Pará (Brasil). laura_alves@uol.com.br


Resumo

Este artigo situa-se no campo da história da educação, onde analisamos as práticas educativas voltadas aos cuidados da criança e da família, apresentadas no livro utilizado nas escolas oficiais de Belém com título de “Pastoral em prol da saúde corporal e espiritual dos nossos diocesanos do interior” - 1935, escrito pelo Salesiano e Arcebispo de Belém Dom Antônio Lustosa. A partir da referida fonte documental e do entendimento de documento enquanto matéria prima da história da educação, pautados na história cultural de Roger Chartier, problematizamos neste trabalho sobre a disseminação da higiene como elemento do processo educativo no espaço escolar, instrumento dos bons costumes morais e cristãos, na capital e interior, constituindo na família, a cultura de assumir uma posição coerente e racional nos cuidados com a criança no contexto histórico dos anos 35, articulando ciência, saúde, religião como saberes escolares.

Palavras-chave: História da educação; Educação e Saúde; Congregação Salesiana

Resumen

Este artículo se ubica en el campo de la historia de la educación, donde analizamos las prácticas educativas orientadas al cuidado de los niños y la familia, presentadas en el libro utilizado en las escuelas oficiales de Belém con el título “Pastoral para la salud corporal y espiritual de nuestros diocesanos. del campo”- 1935, escrito por el salesiano y arzobispo de Belém Dom Antônio Lustosa. A partir de la referida fuente documental y la comprensión del documento como materia prima en la historia de la educación, a partir de la historia cultural de Roger Chartier, problematizamos en este trabajo sobre la difusión de la higiene como elemento del proceso educativo en el espacio escolar, instrumento de buena moral y los cristianos, en la capital y el interior, constituyendo en la familia, la cultura de asumir una posición coherente y racional en la puericultura en el contexto histórico de la década del 35, articulando Ciencia, salud, religión como conocimiento escolar.

Palabras-clave: Historia de la educación; Educación y Salud; Congregación Salesiana

Abstract

We analyze educational practices aimed at caring for children and the family, book used in the official schools of Belém entitled "Pastoral care for the physical and spiritual health of our inland diocesans" - 1935, written by the Salesian and Archbishop of Belém Dom Antônio Lustosa. Based on the documentary source and the understanding of the document as a raw material in the history of education, based on the cultural history of Roger Chartier, we problematize this work the dissemination of hygiene as an element of the educational process in the school, an instrument of moral and Christian morality in the city capital and inland, constituting in the family the culture of assuming a coherent and rational position in the care of the child in the historical context of the 30s, articulating science, health, religion as school knowledge.

Keywords: History of education; Education and Health; Salesian Congregation

Introdução

Neste artigo analisamos as práticas educativas voltadas aos cuidados da criança e da família, apresentadas no livro utilizado nas escolas oficiais de Belém com título de “Pastoral em prol da saúde corporal e espiritual dos nossos diocesanos do interior” - 1935, escrito pelo Salesiano e Arcebispo de Belém Dom Antônio Lustosa. A partir da referida fonte documental e do entendimento de documento enquanto matéria prima da história da educação, pautados na história cultural de Roger Chartier, problematizamos neste trabalho sobre a disseminação da higiene como elemento do processo educativo no espaço escolar, instrumento dos bons costumes morais e cristãos, na capital e interior, constituindo na família, a cultura de assumir uma posição coerente e racional nos cuidados com a criança no contexto histórico dos anos 35, articulando ciência, saúde, religião como saberes escolares.

É curioso identificar na referida obra representações e práticas da relação entre a religião, a saúde, ciência e educação no desenvolvimento dos saberes escolares dos anos 35 do século XX, nos esclarecendo como e que lugar ocuparam cada um desses campos na vida da população paraense. É interessante a relevância que a saúde representa tanto para o Estado (instituição responsável por prover a saúde e educação da população), como para o padre (salesiano que leva consigo nos anos 30 não só a responsabilidade pela alma de cada devoto, mas pelo seu bem-estar físico e espiritual).

Essa dupla preocupação do padre D. Lustosa pode ser explicada pela marca salesiana que este carrega, uma vez que sua congregação tem origem nos ensinamentos de Dom Bosco que prescrevem sobre a importância do bem estar físico, emocional e espiritual para comunhão divina e religiosa cristã, bem como para o exercício das regras do bem viver em sociedade, numa perspectiva humanizadora.

Outra questão que a fonte nos convida a pensar neste trabalho é o lugar que a saúde ocupou na expansão e exercício da religião cristã, bem como sua importância para a educação nos anos 1935, em especial, no município de Belém do Pará.

Assim, nossa fonte documental, nos permite dizer que trata-se de uma leitura pensada a partir de um contexto histórico específico na Amazônia paraense, direcionada à educação popular e entendida como prática e realização social para finalidades diversas.

1. Antônio de Almeida Lustosa e os cuidados educativos com a saúde da criança e da família paraense (1935).

A história das crianças na Amazônia perpassa e entrecruza-se com uma história das congregações religiosas no Brasil, já que estas estiveram nos braços de Congregações Religiosas desde o Brasil Colônia, no entanto, essa relação ocorre de diversas formas, conforme desenvolvem seus projetos sociais e educativos. Cada congregação possui práticas culturais, pensamento educacional, público-alvo e filosofias de trabalho específicas em seus projetos. Para Bittencourt (2017), a partir da República, houve uma forte imigração de Congregações Religiosas de diversas partes do mundo, como Itália e França, entre outros países.

A imigração não se fez ao sabor apenas da política dos Estados liberais, pois a Igreja projetara sua expansão na região colonizada por países católicos - Portugal e Espanha. Estratégias começaram a ser postas em prática desde 1858, com a fundação do Pontifício Colégio Pio Latino-Americano de Roma, instituição criada com o objetivo de formar sacerdotes para os países de línguas latinas, dentro dos cânones romanos (Fernández, 2000). No entanto, o ponto alto da investida constituiu-se na convocação, por Leão XIII, de todos os bispos e arcebispos para o I Concílio Plenário da América Latina, celebrado na sede do papado, no apagar das luzes do século XIX - 1899-1904. Desse conclave emanaram as diretrizes para a ação da Igreja (BITTENCOURT, 2017, p. 38-39).

Nesse encontro da América Latina estavam presentes 53 prelados, dentre eles 4 ex- alunos brasileiros do Colégio Pio Latino: D. Jeronimo Thomé da Silva, arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil; D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcante, arcebispo do Rio de Janeiro; D. Eduardo Duarte Silva, bispo de Goiás; e D. Francisco do Rego Maia, bispo de Petrópolis (Palomera, 2000; Souza, 2000, apud Bittencout, 2017). Vale ressaltar, que Dom Francisco do Rego Maia foi nomeado Bispo de Belém do Pará pelo Papa Leão XIII, no dia 5 de junho de 1901. Tomou posse no dia 25 de março de 1902. Permaneceu em Belém do Pará por quatro anos. Durante seu governo, chegaram no Pará as seguintes congregações: Irmãs Dominicanas, Irmãos Maristas, Padres Barnabitas, Irmãs de Santa Catarina. Aprovou ainda a fundação da Congregação das Irmãs Terceiras Regulares Capuchinhas.

Assim, não fazia mais sentido disputar poder com o Estado, mas se alinhar objetivando um propósito maior, realizando suas ações visando constituir não só o bom cidadão, mas também o fazendo conhecer e praticar os ensinamentos religiosos de um bom cristão. Por isso, é comum ao estudar os projetos de implementação das congregações católicas no Pará - República, e perceber que as ações da Igreja estão sendo articuladas com a construção do Estado Liberal. Na verdade, é a lógica liberal se apropriando nas práticas de reorganização e implementação da Igreja Católica. Assim, Dom Antônio Lustosa, realiza suas ações alinhado ao governo de Magalhães Barata no Pará. Abaixo na imagem 1: temos ao centro da fotografia, D. Lustosa assentado junto ao então Interventor, Magalhães Barata, em uma visita à Bujaru-Pa.

Fonte: Arquivo da Academia Paraense de Letras.

Imagem 1:  Antonio Lustosa ao lado do interventor Magalhães Barata em uma visita à Bujaru-PA 

Dom Antônio de Almeida Lustosa nasceu em 11 de fevereiro de 1886, na cidade de S. João del Rei - MG, ordenou-se padre em 1912. Foi nomeado bispo de Uberaba em 1925 permanecendo nas funções até 1928, ocupando ainda o bispado do Corumbá (1928-1931), sendo posteriormente promovido a arcebispo de Belém do Pará, pelo Papa Pio XI, no dia 10 de julho de 1931. Sobre a presença de Antônio de Almeida Lustosa no Pará, sabemos que este Salesiano se empenhou arduamente em uma missão de romanização como arcebispado entre 1931-1941, reorganizando as estratégias com o objetivo de demarcar o espaço da igreja católica e presença salesiana no norte do Brasil. Foi um notável intelectual religioso, elaborou livros, ocupou uma cadeira na Academia Paraense de Letras (1937), além de Padre, era um grande escritor.

Dentre as muitas realizações de Dom Antônio Lustosa- conhecido como o Bispo da Justiça social, no Pará, destacam-se a reabertura do Seminário Nossa Senhora da Conceição, confiado à administração dos salesianos; criação de diversas paróquias; instalação de comunidades religiosas dos Padres Crúzios, das Irmãs Filhas de Maria Auxiliadora, das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo, das Irmãs Capuchinhas, das Angélicas de São Paulo e das Irmãs de Nossa Senhora da Anunciação; Realizou ainda a Sagração da Basílica de Nazaré fundação da Ação Católica, participou da restauração e levantamento da Congregação do Imaculado Coração de Maria, tornando-se co-fundador, fez campanha da boa leitura, da recitação do terço e procurou valorizar o sacrifício da missa (JORNAL A VOZ DE NAZARE, 2015, p. 5). Na imagem 2. D. Lustosa a esquerda com algumas personalidades do Pará e membros da Academia Paraense de Letras, demonstrando seu valor na cultura letrada e sua participação nos veículos de informação e produção da Literatura Paraense.

Fonte: Arquivo da academia Paraense de Letras.

Imagem 2: Em 18/08/1953 com personalidades do Pará e alguns membros da Academia Paraense de Letras. 

A Igreja, personificada em várias congregações religiosas e personagens intelectuais eclesiásticos importantes, se valeu de diversos recursos para propagar a religião cristã, entre eles temos a imprensa, ocupando-se na fundação de jornais católicos e realização de parceria, livros de cunho religioso e educativo, rádios, bem como criação de boletins impressos e cartas pastorais que alcançavam ampla circulação rapidamente na capital e interior. Além disso, percebemos no século XX, a organização de uma grande rede católica composta por diversas congregações, muitas de matriz estrangeiras, envolvidas nos trabalhos com as crianças pobres, órfãs e abandonadas; com idosos; em Hospitais; Escolas e Associações; Ao estudar estas congregações religiosas, além de sabermos o óbvio, o projeto de romanização dos fiéis, é interessante analisar como a filosofia destas instituições se articulam aos problemas sociais enfrentados pela população que se deseja romanizar? Que discursos e práticas permeiam a necessidade de instalação dessas congregações? Que estratégias utilizam para envolver os párocos e conquistar uma presença positiva em seu prelado? Que alianças são constituídas para a implementação da obra religiosa? Que figuras intelectuais se envolvem nesses processos e que ideologias as envolvem?

O historiador José Maia Bezerra Neto, afirma que Dom Lustosa deu uma grande contribuição literária para a historiografia, não apenas da Igreja Católica no Brasil, mas da Amazônia, inclusive com o registro de seus escritos elaborados em suas visitas pastorais ao interior do Pará. Vale lembrar, que foi graças aos esforços de D. Lustosa que a congregação Filhas de Maria Auxiliadora- FMA, se instalou em Belém no dia 17 de dezembro de 1934. A pedido de D. Antonio de Almeida Lustosa a Inspetoria Salesiana de Turin- Itália, foi solicitado que a Congregação pudesse encaminhar Irmãs Salesianas para fundar uma obra missionária em Belém do Pará. Afinal, nossa capital ainda não possuía nenhuma obra Salesiana voltada para educação de meninas, sendo aos olhos deste arcebispo, além de necessária, uma obra de grande retorno social e religioso aos paraenses. Segundo Azzi (2002), inicialmente a referida obra seria um pensionato e um oratório festivo. Mendes (2006) ao estudar sobre os conflitos religiosos e relações políticas no Pará (1930 - 1941)., concluiu em sua dissertação de Mestrado, que o empenho de D. Lustosa em disseminar a presença católica no Pará e no interior, estava vinculado a um projeto maior, qual seja, de romanização.

Algo importante a se notar é que, era em nome de uma melhor assistência religiosa que Lustosa colocava em prática (e, por isso, também teve facilidades) a romanização na Amazônia. Seguindo orientação de Dom Macedo Costa, que com a “pastoral coletiva de 1890 e um documento oficial destinado aos demais párocos e bispos do país, chamado “Pontos de Reforma da Igreja do Brasil”, recomendou a prática romanizadora e as visitas pastorais como forma de manter a população - na sua totalidade, dada a dimensão das visitas- próximo à instituição eclesiástica. Essa prática encontrava proximidade com sua intenção de atuação no campo político: conseguir mais espaço na cena pública. Para tanto prezar pela boa imagem do regime e da igreja católica paraense se fazia necessário para o bom andamento do governo. (MENDES, 2006, p.141).

Dom Macedo Costa era uma grande inspiração para D. Lustosa, inclusive este fez até uma biografia sua, narrando seus grandes feitos na Amazônia, sendo muito admirado por ele, talvez por isso, tão empenhado em sua missão católica. Mendes (2006) afirma que Dom Antônio de Almeida Lustosa, toma posse como Arcebispo de Belém, em dezembro de 1931. Por meio do Jornal católico - A palavra, anuncia que desenvolverá um projeto de mudança para a Arquidiocese de Belém, envolvendo a disseminação do dever para com o social, a evangelização dos pobres, a boa imprensa, e as obras de assistência, sendo estas ações manifestações de fé e por isso devem ser prioridades em seu arcebispado (MENDES, 2006).

Esse meio novo de conduzir a sociedade católica, foi personificado nas práticas sociais desenvolvidas por D. Lustosa. Em busca das obras sociais e educativas realizadas pelo D. Antônio de Almeida Lustosa no Pará, encontramos uma carta Pastoral escrita por ele, e adotada como leitura oficial pelas escolas do Estado. Neste sentido, percebemos a preocupação em trazer à tona a realidade do homem do interior, o universo hostil no qual famílias e crianças da Amazônia viviam, e das orientações em relação as questões de saúde que estes não tinham acesso. Imbuído dos princípios da Salesianidade, este Arcebispo assumiu em vários estados como Minas Gerais, Pará e Fortaleza, forte missão pastoral voltada para crianças pobres e coletividade em geral, fundando inúmeras obras sociais, entre elas escolas. Diante da lacuna sobre o estudo deste importante intelectual, no que tange a amplitude e impacto do seu trabalho social e educativo voltado a crianças e comunidade da sociedade paraense, devemos estudá-lo e compreender a maneira como D. Lustosa constrói essas práticas envolvendo os princípios da religião e ciência.

Fonte: Arquivo de obras raras da Biblioteca da Universidade Federal do Pará.

Imagem 3 Livro escolar adotado como leitura oficial pela diretoria geral do ensino do Estado do Pará - 1935, 2ª ed. 

Na imagem 3, temos a capa de uma leitura, fonte documental analisada neste artigo. Na história cultural a leitura carrega diversos sentidos em uma sociedade específica, na obra a história ou a leitura do tempo, Chartier (2009) aponta que uma leitura é produzida a partir de um contexto local, com intenções específicas que envolvem novas maneiras de pensar ou perceber algo, sendo tarefa do historiador organizar, tratar e analisar as representações encontradas nesses documentos, elaborando o conhecimento científico e histórico sobre o passado.

Neste sentido, buscando sobre o autor da obra, identificamos que foi escrita pelo Arcebispo do Pará, D. Antonio Lustosa, durante suas longas visitas realizadas as paróquias do interior do Pará. Adotada como livro escolar pela diretoria Geral do Ensino do Estado do Pará, trata-se de uma 2ª edição do ano de 1935, possui 54 páginas, e está dividida em 3 capítulos: 1) “A razão desta”, onde explica-se o porquê da elaboração deste impresso; 2) “A casa”, neste capítulo se elenca diversos cuidados que se deve ter em casa, para assim, evitar as infecções e sua proliferação entre seus habitantes, inclusive entre as crianças; 3) Pequeno histórico do combate e prevenção do paludismo ou malária- nome dados pelos italianos a doença, que significa ar mau. Há orientações sobre como a malária deveria ser combatida no Pará, contemplando também diversos exemplos de como este mal foi enfrentado na Europa.

Diante destas questões, percebemos a importante relação entre a religião, a saúde, ciência e educação no desenvolvimento dos saberes escolares, nos esclarecendo o lugar de cada um desses campos na vida da população paraense. É interessante observar nesta obra a relevância que a saúde representa tanto para o Estado na representação de uma instituição responsável por prover a saúde e educação da população, como para o padre - salesiano que leva consigo nos anos de 1935 não só a responsabilidade pela alma de cada devoto, mas pelo seu bem-estar físico e espiritual.

Essa dupla preocupação do padre D. Lustosa pode ser explicada pela marca salesiana que este carrega, uma vez que sua congregação tem origem nos ensinamentos de Dom Bosco que prescrevem sobre a importância do bem estar físico, emocional e espiritual para comunhão divina e religiosa cristã, bem como para o exercício das regras do bem viver em uma sociedade humanizada.

Sobre a forma como devemos analisar um escrito Chartier faz um alerta a quem realiza os ofícios de um historiador, este “deve poder vincular em um mesmo projeto o estudo da produção, da transmissão e da apropriação dos textos. O que quer dizer manejar ao mesmo tempo a crítica textual, a história do livro e mais além, do impresso ou do escrito, e a história do público e da recepção (CHARTIER, 1999, p. 18). Por isso, é interessante observar, que não é por acaso a seleção desta ou daquela leitura para circulação entre a comunidade popular paraense. A partir dos anos 30, temos vários estudos que comprovam as diversas maneiras de organizar o espaço e tempo da educação popular voltada para a comunidade e os programas de ensino selecionados. Para Faria Filho:

Históricos eles também, o espaço e o tempo escolares foram sendo produzidos diferenciadamente ao longo da nossa história da educação e se constituíram em dois grandes desafios enfrentados para se criar, no Brasil, um sistema de ensino primário ou elementar que viesse atender, minimamente que fosse, às necessidades impostas pelo desenvolvimento social e/ou às reivindicações da população (FARIA FILHO, 2000, p.20).

Assim, tencionamos a análise do livro publicado em 1935, como PASTORAL EM PROL DA SAÚDE CORPORAL E ESPIRITUAL DOS NOSSOS DIOCESANOS DO INTERIOR (PPSCENDI), escrito por um religioso e direcionada a camada popular que ele deseja aproximar-se, usando não só dos conhecimentos científicos da higiene, mas também das práticas religiosas oficiais (catecismo, casamento, batismo, entre outras práticas).

Essa leitura se constitui de relatos detalhados sobre os comportamentos, relações estabelecidas entre a comunidade, bem como a ausência das práticas educativas relacionadas a saúde e cuidados com as crianças. Entendemos aqui, o conceito de educação no sentido mais amplo, enquanto um conjunto de comportamentos e saberes ensinados e aprendidos por um grupo social, num dado espaço-tempo histórico.

A origem do livro oficial adotado nas escolas de Belém é uma carta pastoral elaborada pelo padre D. Almeida Lustosa e devido a sua importância no contexto da sociedade Belenense em 1935, foi transformado em livro oficial a ser utilizado nas escolas. Na referida obra, identificamos que a razão da elaboração da leitura de caráter educativo- pastoral é a relação entre “a higiene rural e o munus pastoral, é caridade e o desejo de tornar mais eficiente o trabalho paroquial” (PPSCENDI, 1935, p. 7), assim ele diz:

A caridade, somente quem percorreu o interior desta nossa Arquidiocese póde calcular quanto sofre o homem habitante das nossas ilhas sem número, das margens dessa rêde de rios e igarapés que não se contam. Sangra nosso coração em ver o estado da miséria fisiológica desses organismos combalidos pelo impaludismo, intoxicados pela verminose. E pôde-se ver esse homem em tanta penúria e passar além sem nada fazer por ajuda-lo a libertar-se dos males que o afligem? Quantas creanças nos confrageram o coração com seu aspecto mórbido, angustioso! A morte prematura ou uma existência de dôres-unicas perspectivas possíveis - logo ao limiar da vida! (PPSCENDI1, 1935, 7-8).

Diante desse desabafo, D. Antônio Lustosa demonstra não só a pobreza em que crianças e suas famílias vivem em 1935, mas as condições precárias de higiene e saúde. Cabe lembrar que Dom Lustosa durante seu arcebispado no Pará, navegou em quase todo o território paraense realizando visitas pastorais, e conferindo não só como se encontrava o atendimento das paróquias no interior, mas a condição da população pobre. Assim, teve conhecimento sobre a situação da arquidiocese no interior, se compadecendo das condições em que os ribeirinhos viviam. Ao ver esse cenário desolador, não lhe restava outra alternativa, a não ser, libertar esse povo desses males e salvar as crianças.

Em relação a instituições renomadas que se empenhavam nos cuidados com Infância, tínhamos, o Instituto de Proteção e Assistência à Infância -IPAI, localizado na capital do Pará, sendo referência nos cuidados relacionados a proteção materno-infantil e puericultura no Pará. Vale ressaltar, que este instituto passava sérias dificuldades para se manter, anunciando-se assim, tempos difíceis não só na capital paraense, mas para o Estado Pará. Segundo Alves e Araújo

Em 1933, o IPAI já tinha atingido o respeito da população e principalmente dos governantes. A terceira sede do IPAI já atendia um número significativo de crianças pobres. Enfrentando dificuldades para se manter, a instituição precisava da ajuda do governo do estado para dar continuidade as suas atividades sociais. Após a saída do médico Ophir Pinto de Loyola, por sérios problemas de saúde em 1934, o IPAI enfrentava serias dificuldades e precisava urgentemente de uma sede própria para se manter. Após a morte prematura do Dr. Ophir Loyola, no Rio de Janeiro, onde foi tratar de câncer no fígado, o IPAI passou a ser denominado “Instituto Ophir Loyola”, em homenagem ao seu fundador. (ALVES E ARAÚJO, p. 35,2016).

Em relação a esse universo hostil que a criança do interior vivia, nos anos 30, podemos revisitá-lo ao folhearmos os relatos das viagens realizadas pelo D. Lustosa no Pará. Nos dez anos de seu prelado, visitou praticamente todo o território da Diocese Paraense, teve contato com a comunidade, sendo testemunha ocular de seus costumes, a condição de vida em que viviam, a maneira como se relacionavam em seu cotidiano, o que compunha a alimentação, sistema de trabalho, a relação dessa comunidade com a religião. Sobre a questão da eficiência do trabalho paroquial, Lustosa relata que as febres palúdicas são eficientes

em abater o ânimo de suas vítimas. O impaludado se sente vencido completamente quando a febre o acomete. Sua energia em colapso, seus planos ruem, seus ideais se desvanecem. Esses efeitos podem ser comuns a todas quase enfermidades; mas variam muito de intensidade. Os impaludados, repitamos, são dos mais prejudicados no alento moral - dom precioso nas lutas da vida. A vida de fé que os trabalhos paroquiais visam conservar e desenvolver está a exigir do católico, continuamente, o esforço e entusiasmo. São todos frutos da vitória os progressos na virtude. Tire-se a um homem a força de vontade e ele não poderá ser um bom católico. (PPSCENDI, 1935. p.8)

Uma das grandes preocupações do bispo é sobre a influência da boa saúde nos trabalhos paroquiais perante a comunidade e a importância desta na constituição do bom católico. Assim, infere-se que o bom católico é aquele que se movimenta, pratica o hábitus da coragem, do ânimo e do entusiasmo na conservação e desenvolvimento dos deveres do bom católico, que por vezes se destacam as qualidades para o trabalho, higiene com o corpo e os cuidados com a vida espiritual.

Nas nossas paroquias do inteiror, o serviço religioso se faz, parte na séde paroquial e parte em pontos diversos do território da paróquia. Nem se pode ser diversamente porque a população é dispersa e o território é vasto, Acresce que rios e igarapés, sempre cheios de voltas, as distancias ficam muito alongadas. Localidades, entre as quais media apenas uma légua, distam de fato, entre si, seis e mais léguas porque o sinuoso que as liga, retificado, teria trinta e mais quilometros. Apesar, porém de se transportar o vigário a pontos dversos para facilitar aos paroquianos a pratica da Religião, evidentemente alguns moradores dessas paroquias vastas terão tambem de se locomover. Quantas vezes, nas Visitas Pastorais, ouvimos dizer: “Se não fossem as febres, quanta gente teria vindo (PPSCENDI 1935, p. 9-10).

Diante deste aconteceimento, sobre essa relação entre educação, saúde e saber científico, podemos afirmar portanto, que não couberam só aos higienistas essa preocupação, mas também às congregações religiosas de cunho salesiano, que ao instalarem-se no Pará dos anos 30, viram nestes espaços uma oportunidade de exercitar a presença e o exercício do sentimento cristão e a comunhão com o divino em sua obra social-cristã-educativa. Segundo Gondra (2000) e Faria Filho (2000) Apud Panizzolo (2005) o desenvolvimento dos saberes científicos, especialmente os saberes médicos, na figura dos higienistas, foram decisivos para a construção da necessidade de um espaço próprio, específico para a escola. Assim o espaço escolar torna-se um território de disputa ideológico, onde Estado cria programas de ensino, métodos, e ações que auxiliam no fortalecimento do poder e controle social e ao mesmo tempo a igreja na personificação das missões religiosas no País amplia suas as obras cristãs educativas.

Quanto ao desafio dessa missão religiosa e pastoral a febre e a locomoção são lembradas para o Arcebispo como desafios e impasses para a prática da religião, durante as visitas pastorais, realizadas pelos vigários às comunidades ribeirinhas.

os nossos zelosos Vigários que constantemente veem muitos dos seus paroquianos impossibilitados, pela enfermidade, de fruir do seu ministério - quanto não sentem a persistencia dessa causa! Com frequencia temos ouvido em Belém que é grave injustiça acolmar de indolente o nosso cabloco. Porque - diz-se - não se trata de indolencia mas de enfermidade ou melhor de efeito de enfermidade. Realmente é ainda para admirar que o homem , a quem o acesso de febre acaba de deixar, tome o machado para derrubar uma arvore ou se ponha a remar horas a fio. E isso faz o homem do inteiror. Mas, seja ou não justificável a tendencia desse homem para o repouso, fato é que a tendencia existe; a aversão ao trabalho constante, a capitulação na luta contra os obstaculos, a fuga de quando exige reação - fatalmente imprimirá seu cunho na vida do homem intoxicado pelo paludismo. A educação e particulermnete a virtude, póde a despeito de tudo, dar exemplos em contrários; mas cumpre-nos predispôr o físico para os triunfos morais. Atenhamos nos casos comuns (PPSCENDI, 1935, p. 10-11).

Na seção da Carta Pastoral, chamada de paternal, Antonio Lustosa deseja que a melhoria do estado de saúde corporal seja entendida pelos dirigentes das paróquias como uma questão de caridade necessára em se empenhar e que faz bem a alma dos filhos do interior. Assim, para ser um bom católico é necessário que se pratique uma higienização da vida. Lustosa sinaliza que este trabalho possui teor científico, mas será feito dentro dos moldes parternal, de orientação, sendo um serviço paroquial extremanete útil. E quem é aquele que leva a comunidade a palavra paroquial na visão de Lustosa? É o vigário, homem em seu ver instruído e acatado,

seus conselhos fazem imprensão no espírito dos ouvintes. Não é nosso intento, nessa Pastoral, aconselhar a nossos Vigários que mediquem os doentes de suas paroquias. Absolutamente. Queremos que eles envidem esforços para persuadir a seus paroquianos da necessiade de viverem de acordo com as leis da higiene. Queremos que eles facilitem aos seus paroquianos a pratica da higiene, sugerindo-lhes para isso o que a ciência exige a fim de não faltar a saúde, Queremos que eles pratiquem essa caridade que parece dirigida á vida temporal do proximo e tanto contribue para o seu bem estar espiritual. (...) A psicologia do nosso homem do interior é de que só lhe é assimilável a doutrina ministrada da forma que podemos chamar pastoral (PPSCENDI, 1935, p. 12-13).

Diante dessas colocações, podemos inferir que o homem do inteiror é aquele que não sabe ler, e quando sabe compreende melhor a leitura simples, sem muitos termos científicos. É um homem criado sem conhecer os preceitos da higiene para com eles próprios e nem para com suas crianças. Este homem do interior, em muitas comunidades encontra dificuldades em chegar até a paróquia para exercer as praticas religiosas, ou costumam frequentar festas não reconhecidas oficialmete pela igreja católica. São povos acometidos principalmente pela malária e verminoses, doenças de maior preocupação de Lustosa ao elaborar essa Carta Pastoral. Assim, a elaboração e publicização desta Pastoral impressa, faz parte de um projeto maior de Lustosa, vinculado a missão salesiana na amazônia: formar bons cidadãos e bons cristãos, desde a infância. Sobre a questão de recorrer aos princípios da ciência na condução dos trabalhos no interior, Arantes (2011) explica que muitos médicos higienistas entendiam que as crianças deveriam ser cultivadas, e se transformaram em objetos de cuidados especiais.

Na arte de cultivar crianças, o higienismo médico se colocou como o melhor aliado do Estado e a ele pode ser creditado, em grande parte, o surgimento do sentimento de infância no Brasil. A criança surge como o futuro do homem e da pátria devendo sua autonomia ser desenvolvida( ARANTES, 2011, p. 187).

Na seção chamada de microscópio, Lustosa dá orientções sobre o que é este instrumento, para que é utilizado e sua importancia na ciência da higiene, comprovando que Pasteur consegue demonstrar a existência dos micróbios no ar que nos parece puro e na água que julgamos cristalinas. Este conta que quando aconselha a um pescador a se prevenir contra os carapanãs,

hospedes de sua casa e do porão de sua canôa, os quais lhe assediam os filhos, ás vezes responde [pescador]: “Qual! Si eles tiverem de adoecer, não adianta nada”. Quantas vezes vemos pessôas sãs em contato com os doentes de molestia contagiosa! “ Si Deus não quísér que eu adoeça, não terei nada”. E encontramos até pessôas receiosas de tomar preocauções como a significar: “Si eu tiver repugnancia é peior, porque Deus me póde castigar”. Amados filhos [orienta Lustosa], não digais nunca semelhantes expressões. Há um pecado altamente ofensivo á Justiça Divina que se designa com a expressão- tentar a Deus. Tentar a Deus é meter-se no perigo sem necessidade e pretender o que se ouve entre o povo: “ Deus disse: ajuda-te, que eu te ajudarei” (PPSCENDI, 1935, p.18).

Dessa forma, D. Lustosa ensina que a doutrina do fatalismo deve ser derrubada, Deus não tira a vida de nínguém, e nós somos responsáveis pela nossa saúde e higiene. E D. Lustosa continua

A sagrada escritura nos previne contra o perigo da lepra (Levítico - Cap. XII e XIV). O homem que se mete no perigo e depois exige de Deus o milagre que salve, quer obrigar ao Senhor a secundar-lhe a imprudencia. Deus quer que façamos o que pudermos e depois de bôa mente nos valerá. É digno de todo louvor o homem que para cumprir o seu dever, afronta impavido, os perigos. Mas inteiramente reprovavel e insultuosos a Deus é o proceder do indolente que não trabalha confiado na providência, do imprevidente que tudo esbaja, expondo a família a passar fome, dizendo: “Deus é grande” (PPSCENDI, 1935, p. 18-19).

A saúde se torna assim um grande dom vindo de Deus, e nós devemos conservá-la. Lustosa defende que somos livres para fazer escolhas de como viver, onde “a doutrina fatalista nega ao homem a liberdade; por isso, lhe é terrivelmente nociva e encerra monstruosa falsidade. Não digais nunca, amados filhos: “ Si tivér que adoecer, nada adianta evitar isto ou aquilo” (19). Lustosa assume realmente uma relação paternal com seus párocos do interior, é o que nos mostra o discurso revelado no impresso analisado.

2. Ciência e Religião na construção dos bons cidadãos e bons cristãos: um trabalho pastoral educativo voltado para saúde e cuidados com as crianças do interior paraense.

D. Lustosa, por meio da produção literária, também apresentou preocupação com as crianças do interior e em suas andanças observou que

Com as gerações novas, outros metodos poderao ser eficazes. As creanças que frequentam as escolas pódem aprender e - o que mais importa - assimilar bem os principios indispensaveis da higiene. Aprender apenas, conhecer tão só a teoria é muito pouco. É preciso que a creança assimilie de tal fórma os preceitos higiênicos que sinta necessidade de os pôr em pratica. E quantas crianças do inteiror desconhecem por completo a escola! Quantas outras frequentaram por tão pouco tempo que quase nada adquiriram! Mas, além das creanças, os adultos precisam e muito das normas de vida higienica e convence-los disso não é empresa facill (PPSCENDI, 1935, p. 13).

Assim, D. Lustosa (1935), nos revela a realidade do acesso a educação das crianças do interior do Pará, onde além de não conhecerem os preceitos da higiene, desconhecem por completo a frequência a escola. Esse desconhecimento pode se dar pelo fato de que a escola primária se tornou obrigatória numa constituição de âmbito nacional, um ano antes desse escrito (1934) e portanto, não havia escola para todos. Em certo momento da orientação pastoral, D. Lustosa (1935) relata que os homens do interior são ávidos por remédios, se tratam de enfermidades cujo foco está dentro de casa e novamente contaminam-se com germes. Além do que, tomam remédios por conta própria, caso um terceiro, assegure que sanará o mal pelo qual está acometido. O padre ressalta que é necessário medicar o doente, mas ensinar os conhecimentos da higiene é fundamental. D. Lustosa reitera ainda, que a ação educativa sobre esses cuidados transcendem a questão de caridade, são também grande obra patriótica, pois aquele que ama a pátria cuida dos seus filhos. Em relação a essa preocupação com a mortalidade de crianças que movimenta religiosos, psicológos, educadores e médicos durante o século XX, Alves explica que

com o advento da ciência moderna, começa-se a se preocupar com a mortalidade de crianças, ao produzir estudos referentes às descobertas da origem de muitas doenças, assim como de métodos preventivos e medicamentos para tratálas, e no caso da infância, especificamente, alguns pesquisadores começaram a produzir estudos voltados para esse seguimento social, os quais ser referiam à alimentação da criança, a saúde das mães, ao parto, às peculiaridades do recém-nascido, ao banho, às vestimentas e, sobretudo às pesquisas que se ocuparam das doenças que mais acometiam as crianças (ALVES, 2018,p.8).

D. Lustosa (1935) na seção casa, levanta a tese de que há diferenças entre pobreza e falta de higiene. Há a preocupação na escrita da sua Pastoral em explicar os termos científicos como profilaxia e antisséptico, fazendo questão de dizer que significa limpeza. Dessa forma, ao saber o significado real da palavra limpeza, poderá o homem do interior conservar a saúde, economizar com remédios e evitar doenças. Na limpeza interior, deve-se evitar animais domésticos dentro de casa, pois estes atraem moscas e mosquitos, “péssimo é o costume de cuspir no soalho. Muitas vezes creanças andam pelo chão, contraem doenças ao contato com esse pavimento infecionado. Evite molhar esse pavimento afim de conservar limpo” (PPSCENDI, 1935, p. 22). No que diz respeito aos cuidados externos à casa, D. Lustosa explica que é necessário “manter rigoroso asseio aos arredores da casa. Nada de detritos, lama infectada, de água estagnada nas proximidades. Si tendes animais domésticos acostumais a dormir afastados. Grande conselho para evitar o paludismo é este: nunca dormir sem mosqueteiro” (PPSCENDI, 1935, p.22).

Na seção água, D. Lustosa explica que embora costume-se dizer que água é saúde e vida, em muitos lugares a mesma “veicula a morte”. Com esse alerta, inicia a seção e dissemina variados cuidados especiais com água no que tange aos benefícios alcançados com o processo de fervê-la, bem como com o armazenamento adequado em pote e até com a instalação e manutenção do poço, que deve ser longe da fossa e sentinas (PPSCENDI, 1935).

Ao escrever sobre os costumes, o padre dá visibilidade ao típico homem do interior, que ainda não teve acesso ao saber médico-científico. Em relação as crianças, é importante não as deixar levar as mãos à boca, a fim de evitar o contato com germes

Péssimo costume de certas pessôas de tocar a miude os labios com os dedos. Esses dedos podem levar-lhes á bôca germes de enfermidade, transmiti-los a outrem. Maximo cuidado devem ter os pais em conservar limpas as mãoes das creancinhas, já que estas com frequencia as metem na bôca. Beber água no concavo da mão, levar com ella o alimento á boca, sem lavar, é sempre imprudencia (PPSCENDI, 1935, p .27).

A precoupação de D. Lustosa demosntra que as crianças do interior careciam de uma missão pastoral que as incluísse, afinal estes pequenos serão os homens do futuro e necessitavam ser preparados com os cuidados corporais e espirituais adequados. Neste sentido, inferimos que a razão, religião e amorevolezza, tripé preventivo do sistema de educação de Dom Bosco, também esteve presente nessa missão encarada pelo Arcebispo Salesiano D. Lustosa. Onde: nos aspectos da razão temos a presença da ciência enquanto elemento importante que deve ser levado em conta nas orientações e instrução da saúde; A religião como elemento fundamental para romanizar e se fazer marcada no coração e na mente do bom cristão, bem como em suas práticas culturais; por fim a amorevolezza, que se materializa por meio do carinho e do cuidado que devemos ter conosco e com nossos pares. O padre tenta se aproximar ao máximo da realidade social da comunidade, dando exemplos de seu cotidiano, assim, é mais fácil incutir os conhecimentos que entende como necessário. Neste sentido, no exemplo abaixo onde trata sobre o convívio entre humanos e animais, argumenta que

Em primeiro lugar cumpre notar que os animaes também adoecera. Também entre éles ha molestias transmissiveis por contagio, ha epidemias que fazem tombar rebanhos, cardumes etc. Notemos ainda que, entre éles, o instinto de conservação se manifesta tambem por escrupulos semelhantes ao que nos sugere a ciencia. Dai, por exemplo, a um boi uma espiga de milho que já tenha tocado na boca de outro boi e éle a recusará. É de observar ainda que a natureza humana difere das dos brutos; e entre éles há diferença tambem da natureza. Aos urubús as carnes putefractas não causam infeccções; a lama é o habitat de varios animaes (PPSCENDI, 1935, p. 27).

Por tanto, aquele ditado popular que diz “Ai do bicho menor que o maior comer, ou o que não mata, engorda”, “cai por terra” e não pode ser praticado na visão de D. Lustosa. Essas observações nos remete a imaginar que o costume do homem do interior era criar animais próximo à suas moradias, facilitando a transmissão de doenças. Assim ele deseja que entendamos que a higiene faz parte da natureza do ser humano, orientada pelos princípios da ciência e que estabelece cuidados diferentes dos dispensados aos animais.

Floretsan Fernandes, grande sociólogo brasileiro do século XX, publica em “Mudanças Sociais do Brasil” (1979), relatos de viajantes pelo interior do Brasil, para mostrar as condições sócio-econômicas do país. Em um desses relatos, encontramos o autor de “Viagem Ao Tocantins”, médico do serviço de febre amarela da Fundação Rockefeller, Júlio Paternostro, afirmando que é espantosa o índice de mortalidade infantil no interior do Pará. Em 1935, em uma das suas viagens, constatou-se em Igarapé-Miri, que a mortalidade infantil era de 58% - de Janeiro a Março morreram 48 indivíduos, dos quais 23 eram crianças. Paternostro infere que a desnutrição e o desconhecimento da puericultura, associados aos surtos epidêmicos de malária, agem juntos, aumentando o índice de mortalidade entre crianças. (FLORESTAN FERNANDES, 2015).

No que tange aos cuidados com os utensílios domésticos: roupa, utensílios de cozinha, e lenços, D. Lustosa informa que estes são grandes focos infecção, dá exemplos práticos de como podem ocorrer essas infeccções, pautado em casos certamente presenciados por ele.

Muitas vezes para dar uma prova de amizade mal entendida, não se exige, nem se permite que se lave o copo ou chícara que outra pessôa presente acabe de usar. Essa falsa demosntração de confiança deve ser combatida, com espírito de caridade. Pessimo costume é comerem duas pessoas no mesmo prato. Fazem-no em alguns logares do interior por camaradagem; mas quem póde saber si tem ou si seu companheiro de prato tem enfermidade contagiosa? As creanças tem grande receptividade; elas não se acham imunizadas como adultos contra molestia diversas. Entretanto essas creanças despreocupadas, sem suspeitarem siquér do perigo do contagio, não poucas vezes são vitimas da imprudencia, da falta de higiene dos mais velhos. Dão-lhes a beber do proprio cópo e permitem-nas comer do proprio prato. Ha nessa manifestação de afeto uma grande maldade objetiva posto que insconsciente. Quasi identico seria o caso de quem désse á creança um doce envenenado de bôa fé. Guie-nos a razão e não o sentimentalismo (PPSCENDI, 1935, p .29-30).

Nas práticas culturais estabelecidas podem se constituir os veículos de trasnmissão de doenças, D. Lustosa chama atenção para isso, orientando que laços entre conhecidos não devem ser realizados sem a prática da higiene. D. Lustosoa percebe que o sentido da não-higiene presente no imaginário do povo do interior é uma manifestação do afeto, e da não impugnância ao laço constituído entre os conhecidos, sendo este costume na realidade, uma grande maldade aos olhos do Padre, maldade esta que habita no inconsciente de cada pessoa que a pratica. Assim, adverte D. Lustosa, “Não ponhamos em risco a nossa saúde nem a dos nossos semelhantes, confiando imprudentemente em que talvez não suceda mal” (PPSCENDI, 1935, p.28). Sobre o lenço enquanto artefato que deve ser usado com prudência, haja vista que é um objeto perigoso e presente entre a comunidade.

Ha em vossa casa e está sempre convosco amado Filhos, um objeto perigoso. Entretanto não vos acautelais contra éle; tende-lo até no vosso bolso. É o lenço. Tendes receio da lepra? Pois o lenço do leproso é um perigo porque os germens da enfermiadde passam-lhe do nariz para o lenço. Tendes mêdo da tuberculose? O lenço de que se serve o tuberculoso provavelmente, contem os bacilos da molestia que quasi sempre lhe ataca os pulmões. Entre tanto se empresta com tanta facilidade o lenço já usado a outras pessoas, até ás creanças. Serve-se do lenço não limpo para envolver comestíveis, como frutas, pão. Agita-se o lenço jnunto ao rosto dos outros. Conserva-se longo tempo na mão esse lenço não limpo e ainda se considera limpa essa mão. Ninguem diga: “Eu posso fazer tudo isso porque, graças a Deus, nãotenho molestia que se possa transmitir” Deus o permita. Mas ha muita gente que se julga sã e não é. Pelas dúvidas, a prudência e caridade mandam tomar precauções aliás tão simples (PPSCENDI, 1935, p .31-32).

A criança, para D. Lustosa, necessita tanto das práticas de higiene, que mereceu destaque na seção A creança, onde são elencados diversos cuidados especiais dispensados à ela, pois a criança apresenta fragilidade, necessidade de ser conduzida no processo educativo e é um ser incapaz de se defender de todos esses agentes nocivos, ora apresentados em sua Carta Pastoral.

É merecedora de cuidados especiais da higiene a creança - ser delicado e incapaz de se defender por si mesma dos agentes veiculadores dos inimigos da saúde e da vida. Ensinam os medicos que o homem chegado a idade adulta, em geral, já venceu o embate de varias enfermidades que os foram assaltando nos primeiros anos de vida. A creança que não afrontou ainda o perigo desses assaltos é uma vida mais exposta. Seu organismo indefeso é um campo aberto. A inteligência e o carinho dos pais devem suprir oq eu falta ainda á defensiva dos filhos, na espécie humana (PPSCENDI, 1935, p. 33).

Sobre a necessidade orientação, proteção e cuidados maternos, citava inclusive que o ato da criança de levar a boca em mãos, é tão perigoso quanto deixar uma navalha ao alcance desta, advertindo sobre a perigo das verminoses.

Dom Lustosa ainda acrescenta que a criança não distingue entre o alimento e o veneno, por isso o cuidado materno deve ser contínuo, até mesmo evitando quedas e ferimentos que são vistos como graves perigos evidentes. E completa “se permite que ela leve a bôca um pedaço de pão que rolou pela terra, uma chave que andou em todas as mãos, uma moeda imunda. Quantas creanças têm o costume de chupar os dêdos e não obstante se descura a limpeza das suas mãozinhas!” (PPSCENDI, 1935, p.33-34).

O padre afirma que são inimigos da creança aqueles que tomam consciência dos perigos iminentes frente a não higiene da creança e permanecem praticando comportamentos inadequados, colocando não só a vida da criança em risco, mas sua relação com Deus enquanto cristão. Nós cristãos temos o dever bíblico de cuidar de nossas crianças e não realizando este dever, desagradamos a Deus. Dom Lustosa ainda reitera “não permita que a creança ponha na cabeça chapéo de adultos, que use o lenço de outra pessoas, que beba ou coma restos de outrem. Tendes amôr aos vossos filhos? Seja verdadeiro, coerente, racional o vosso afeto” (PPSCENDI, 1935, p. 34).

Assim entedemos que os pais responderão diante de Deus sobre os cuidados dispensados as suas crianças. Tanto a saúde como a vida da criança tem grande importância para Deus, afinal ele que os presenteou com um filho. Sobre a prática cultural do beijo no rosto da criança, Dom Lustosa classifica esse gesto como “falsa prova de carinho” e completa “Devieis preferir que dessem em vez de um beijo, uma bofetada em vosso filhinho. Essa falsa prova de carinho póde ser uma punhalada á saúde dessa creança. A saliva é portadora muitas vezes, de germes perigosissimos”. (PPSCENDI, 1935, p. 34).

Há relatos ainda sobre o perigo das plantas expostas aos pequenos, e alerta que no interior ocorreu casos de crianças “vítimas da liamba, ou diamba: planta funestissima a saúde. Graças a Deus a zona é restrita”. A seção sobre a criança é finalizada dando ênfase ao lugar que o padre deseja que a criança e sua famíla ocupe na Amazônia, qual seja, pessoas conhecedoras e praticantes dos saberes morais, dos bons costumes e da conservação da saúde. E assim conclui mostrando que os cuidados da saúde firmados em bases científicas, também devem fazer parte da formação do corpo, do espírito e da mente na sociedade moderna, católica, da década de 1935.

Concluiremos este capítulo como precedente, apontando a moralidade da vida, os bons costumes, para a conservação da saúde. Quis Deus que os profanadores das leis da moralidade, tivessem, em regra geral, ao menos parte de seu castigo, nesta vida, com saúde avariada. Tendes filhos? Repitamo-lo ainda uma vez: conservai-os puros, que , além das bençãos de Deus, lucrarão na saúde corporal e mental (PPSCENDI, 1935, p.38).

Considerações Finais

O Impresso “Pastoral em prol da saúde corporal e espiritual dos nossos diocesanos do interior”, trata sobretudo, dos cuidados especiais às crianças, detalhando o universo hostil no qual as crianças do interior viviam. Aborda ainda, sobre a disseminação da higiene como um elemento do processo educativo na comunidade e propagação sobre a importância da procura pelos tratamentos de saúde em bases científicas, incentivando a desconstrução da doutrina fatalista constituída até então nesse universo do pensamento social interiorano e condenando a prática de automedicação.

A publicidade desta obra nas igrejas e escolas, possui a intenção de disseminar um novo projeto educativo adotado por D. Almeida de Lustosa, qual seja, romanizar os párocos do interior por meio não só da religião, mas das práticas de higiene, uma vez que na visão deste padre, um corpo frágil e sem saúde não possui virtude para realizar as atividades do bom cristão. Assim, em linguagem simples, temos orientações detalhadas de educação e saúde, a fim de evitar a mortalidade entre crianças, jovens e adultos, por moléstias como cólera e paludismo (malária), males frequentes na capital e interior em 1935.

Ao colocar esse impresso em circulação na capital e principalmente interior do Pará, busca-se constituir nos pais a cultura de assumir uma posição coerente e racional em relação ao afeto com sua criança, e que estes possam ensiná-las os cuidados com a higiene e as consequências da não-higiene. A inteligência e o carinho incorporados por meio dessas práticas educativas de defesa, prevenção e proteção da criança, fortalecem toda a comunidade e seu pastorado enquanto Arcebispo de Belém entre 1931 a 1941.

Todos esses cuidados fazem parte de um projeto maior, onde é necessário salvar as crianças e comunidades pobres, mantê-las fortes e saudáveis, dar-lhes um destino útil e cercado dos bons costumes da moral, para que possam contribuir no progresso da obra salesiana e do catolicismo no Pará.

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1A transcrição da fonte histórica foi realizada respeitando o português escrito da época, ou seja da maneira como foi registrada na leitura oficial.

Recebido: 28 de Julho de 2021; Aceito: 15 de Outubro de 2021

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