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Cadernos de História da Educação

versão On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub 13-Set-2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-88 

Artigos

A experiência de produzir fontes orais para a História das Instituições Escolares

La experiencia de producir fuentes orales para la Historia de Instituciones Escolares

Sônia Maria dos Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-7217-1576; lattes: 9281057859793276

Marisa Francisca Galdeano Marra2 
http://orcid.org/0000-0001-6998-2039; lattes: 1551189368445251

1Universidade Federal de Uberlândia (Brasil). soniaufu@gmail.com

2Universidade Federal de Uberlândia (Brasil). marisagaldeano@hotmail.com


Resumo

Como metodologia de pesquisa, a História Oral se projetou no ramo da história das instituições escolares, seja como guia da pesquisa, seja como forma complementar. Em parte, permite produzir fontes para realidades cujos registros materiais inexistem ou não foram encontrados. Essa metodologia orientou a pesquisa subjacente ao estudo a que este se filia; ou seja, uma dissertação de mestrado sobre uma escola confessional, o Externato Santa Teresinha. Essa metodologia não só ajudou a estruturar e desdobrar a pesquisa, como também ampliar o escopo das fontes. Nesse sentido, este texto relata a experiência de produzir fontes segundo a História Oral para tal pesquisa, por meio de entrevista a cinco colaboradores que participaram da história daquela instituição de ensino. A expectativa é que este relato possa ser pertinente e importante à reflexão sobre problemas que permeiam a produção de fontes orais e que inspire outros a usar a História Oral.

Palavras-chave: História das instituições escolares; Metodologia de pesquisa; Escola confessional

Resumen

Como metodología de investigación, la Historia Oral no se propuso como una rama de la historia de las instituciones escolares, como una guía de investigación, como una forma complementaria. En parte, nos permite producir fuentes para realidades cuyos registros no se han encontrado. Este método estaba orientado hacia una investigación o estudio subyacente que trata con filia; es decir, una disertación de maestría sobre una escuela confesional, lo Externato Santa Teresinha. Esta metodología no es solo para estructurar y desplegar la investigación, sino también para expandir o abarcar las fuentes. En este sentido, este texto cuenta la experiencia de producir segundas fuentes de Historia Oral para dicha investigación, a través de una entrevista a cinco colaboradores que participaron de la historia de esa institución educativa. Con suerte, esta historia demostró ser relevante e importante al reflexionar sobre temas que impregnan la producción de fuentes orales e inspiran a otros a usar la historia oral.

Palabras clave: Historia de las instituciones escolares; Metodología de investigación; Escuela confessional

Abstract

As a research methodology, oral history stands out in the history of school institutions, either as a research guide. In part, it allows making sources to study realities whose material records of the past are not available. This methodology guided the research underlying the study to which it text is linked, a master’s thesis on a Catholic school, the Externato Santa Teresinha. This methodology helped to structure and unfold the research, as well as to broaden sources scope. In this sense, this text reports the experience of producing sources according to oral history for such research, through an interview with five collaborators who participated in the history of that educational institution. The expectation is that this text may be pertinent and important to think of problems that permeate the production of oral sources and that it may inspire others to use oral history.

Keywords: History of school institutions; Research methodology; Catholic school

Introdução

A partir da década de 1990, a história da educação no Brasil entrou em um processo de renovação, ao menos no âmbito acadêmico. Nela, entram nomes como Saviani, Buffa, Nosella e muitos outros. Dentre as possibilidades de enfoque, a história das instituições escolares se projetou como uma das mais profícuas, pois permitiu abarcar linhas como a história da alfabetização, que passou a se encaixar no terreno das práticas escolares desdobradas nas instituições escolares. Mais que novos enfoques, tal renovação da história da educação supôs recorrer à interdisciplinaridade teórico-conceitual e metodológica, para que a escrita da história da educação pudesse ajudar a entender a educação no presente. Entender os cortes e as continuidades, as permanências e as transformações, as convergências e as contradições, as causas e as consequências, dentre outras possibilidades de compreensão histórica. Um elemento central na produção dessa história da educação são as fontes históricas.

Em que pese a possibilidade de haver registros, por exemplo, escritos e pictóricos do passado de dada escola que permitam situá-la no tempo e no espaço, com sujeitos e práticas, com relações pessoais, pedagógicas, administrativas, institucionais etc., nem sempre essas fontes permitem adentrar o cotidiano mesmo de funcionamento de uma escola, em especial o que acontecia em sala de aula e em espaços como o pátio; como eram as relações entre alunos e professores no processo de ensino e aprendizagem. Ante tal impossibilidade, a História Oral se projetou como metodologia de pesquisa que, mais que complementar outros métodos, passou a ser guia das investigações sistemáticas. Exemplo disso é o estudo a que este se filia. Trata-se de uma dissertação de mestrado sobre uma escola confessional cuja pesquisa se valeu, sobretudo, de procedimentos metodológicos da História Oral.

Essa metodologia ajudou a estruturar e desdobrar a pesquisa, além de fundamentá-la com outros tipos de fontes derivadas de contato com entrevistados. Assim, este texto vem apresentar a experiência de produzir fontes segundo a História Oral. A expectativa é que este relato de experiência possa ser pertinente e importante para a reflexão sobre problemas que permeiam a produção de fontes orais e que inspire outros a recorrer tal metodologia. A pertinência e importância - assim se espera - estariam no delineamento de níveis de generalização dos procedimentos metodológicos da História Oral; ou seja, de aplicação a situações de pesquisa similares àquela a que este texto se refere. Dito de outro modo, que a leitura deste relato possa ser útil para as práticas metodológicas da História Oral no campo da educação e da história das instituições escolares. O texto discorre sobre o processo de construção e execução das entrevistas com professoras e aluno. Apresenta-se o processo de produção das fontes orais; também o processo de localização de fontes documentais e pictóricas, suscitadas, apontadas e levantadas durante o processo das entrevistas.

O contexto da pesquisa

Este relato se filia à dissertação Histórias vivenciadas no Externato Santa Teresinha, 1942-1972, apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. A pesquisa de mestrado apresentada na dissertação foi orientada por Sônia Maria dos Santos. Seu enfoque foi em uma escola que funcionou no município de Araguari (MG), o Externato Santa Teresinha. Essa escola contribuiu para educar quem podia pagar - seja na cidade ou na região -, priorizando uma formação escolar de feição moral religiosa. Não por acaso, sua importância se projetou com a escolarização de gerações de filhos e filhas de numerosas famílias. O externato foi fundado em 1932, por Natalina Jardim Bronzo de Almeida, com a denominação de Colégio Santa Teresinha. De início, ofertou o ensino primário, cuja orientação curricular seguiu, com adaptações, o programa dos grupos escolares de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Em 1942, foi adquirido pelos padres do Colégio Regina Pacis, tendo passado por reformas em 1955, quando ficaram prontas as instalações, então modernas e de destaque na sociedade local. O externato foi desligado do Regina Pacis em 1972, quando se juntou à Congregação dos Padres dos Sagrados Corações. A partir de 1996, foi desmembrado desta e teve seu nome mudado para Associação Educacional Santa Teresinha. Como tal, foi desativado em 2008, e o prédio onde funcionava foi demolido em 2011, para dar lugar a um estacionamento de automóveis.

Mesmo que tenha funcionado por mais de sete décadas, os registros históricos da existência do Externato Santa Teresinha e seu funcionamento mostraram ser escassos, em especial aqueles que documentaram sua gênese e suas atividades regulares dos anos 1940-70. No processo de transições administrativas, perderam-se não só os arquivos da escola, como também documentos avulsos, ou seja, não necessariamente arquivados. Dada a escassez - ou quase inexistência de documentos escritos (impressos e manuscritos) -, a possibilidade mais viável de recompor o passado do externato foi recorrer à memória de quem vivenciou diretamente seu dia a dia escolar naquele recorte temporal e pudesse contar sua história da escola. A entrevista com tais pessoas mostrou ser viável como forma de produzir fontes. Além disso, a entrevista permitiu valorizar as experiências de docentes e discentes dessa instituição escolar como importantes para entender o passado da educação no Brasil. Como disse Alberti (2004, p. 79), por meio dela, a “[...] investigação e a prática científicas se aliam e produzem resultados. É na realização de entrevistas que se situa efetivamente o fazer a História Oral”; ou a entrevista é o centro do trabalho com tal metodologia.

Com efeito, a História Oral se impôs como metodologia central para fazer a pesquisa de mestrado. A suposição foi de que procedimentos como a entrevista e demais diretrizes de tal metodologia criariam condições para abordar as pessoas a ser entrevistadas de modo a poder reconstruir, com elas, o contexto da docência e da discência no Externato Santa Teresinha; ou seja, reconstruir tempos e espaços, vivências e experiências, discursos e práticas, ações e processos, dentre outros atributos presumíveis no ensino escolar. Tal escolha, porém, impôs desafios. Um desafio foi encontrar e acessar documentos que dessem pistas úteis ao reconhecimento, à identificação e ao contato com possíveis informantes; sobretudo, foi desafiante achar pessoas em condições e com disposição para participar.

Usos da História Oral

Até pouco tempo atrás, fontes não documentais tinham pouca solidez na história acadêmica; ao menos, não tinham a solidez que têm os documentos manuscritos e impressos. Estes últimos tinham (se é que ainda não têm) prevalência sobre as fontes orais, por exemplo. Mas tendem a ser escassas, pois o papel, suporte mais comum dos documentos, é muito perecível e frágil, suscetível ao efeito da passagem do tempo, à água, ao fogo e às mãos humanas. Nesse caso, a recorrência à memória seria uma forma de suprir eventuais carências por fontes, assim como de complementar um rol de fontes para dar mais abrangência ao tratamento sistemático do objeto de estudo histórico (e não só). Relatos escritos com base na memória ajudariam, então, a reconstruir e interpretar o passado.

Halbwachs (1990, p.53) faz esclarecimentos sobre a noção de memória que cabem aqui. Segundo esse autor, a memória pode ser entendida como coletiva - seria o registro mnemônico do acontecimento que ocorreu na vida de um grupo - e como individual - seria o ponto de vista sobre a primeira, dependendo do lugar em que o indivíduo se encontra no grupo. Embora a memória coletiva seja formada pela reunião das memórias individuais, uma e outra não se confundem. As lembranças de um indivíduo ou de um grupo invocam fatos ocorridos em um passado comum, desde que os pensamentos de seus membros também concordem com os demais. Afinal, esquecimentos de determinada época podem significar a perda de contato com o que os cercavam. Assim, o testemunho de dados membros (os testemunhos confirmariam ou negariam o que já é sabido sobre dado acontecimento) pode ajudar na lembrança de passagens esquecidas, pois ao entrarem em contato entre si são capazes de se identificarem e, assim, fundirem acontecimentos passados.

O pensamento de Candau (2012) converge para tal distinção. Segundo ele, memória e identidade são interdependentes: não há uma sem a outra, assim como não há lembrança sem esquecimento. Mas só a memória possibilita as percepções de duração, continuidade ou ruptura, tanto quanto a ligação entre as etapas da vida de alguém só acontece quando se entende o significado sobre essa sequência temporal. Na interação social, o sujeito elabora, define e redefine sua identidade como construção social sucessiva; enquanto sua memória é a reconstrução infindável do passado. Por isso, a busca contínua pelos seus lugares está na junção entre as certezas do presente e as rupturas e ausências das marcas de identidade; assim sendo à História Oral importa mais o comum ao grupo, ainda que isso não signifique desvalorizar o individual.

Um trabalho fundado na História Oral se inicia com a elaboração de um projeto de estudo, em que memória, modos de narrar e identidade grupal dos entrevistados se vinculam. O projeto se desdobra no tempo presente, mediante o diálogo entre um grupo de pessoas a ser entrevistadas e alguém que se apresenta como entrevistador, para resultar na produção, no tempo presente, de um documento que se refere ao passado; produção de um registro pelo qual se pode entender, inferir e interpretar o pretérito; produção de uma fonte histórica.

Segundo Ferreira e Amado (2006), num estudo que adote a História Oral, esta tem de ser o centro; não complemento. Convém frisar que a recorrência a essa metodologia se faz importante para estudar um passado sobre o qual há poucos registros materiais e os quais não dão margem suficiente para reapresentar, compreender e interpretar o passado. Nessa lógica, a História Oral possibilita escrever a história daqueles e daquilo que supostamente não têm passado por falta de documentos e que, logo, seriam excluídos da escrita da história.

Bom Meihy (1994, p. 52) se refere a “contribuições fundamentais” da História Oral para validar a entrevista como fonte, sobretudo como documento para a pesquisa histórica, cuja escrita deriva de um texto que é a transcrição do que foi relatado nas entrevistas. Conforme Alberti (2004), a História Oral pode ser empregada em disciplinas diversas que se valem da entrevista com participantes selecionados para desenvolver uma pesquisa sistemática ou com testemunhas de dado acontecimento ou dada situação (a testemunha ocular). Assim, na condição de metodologia, a História Oral permite abordar o objeto estudado pelo ponto de vista da produção, no presente, de um documento escrito que vale como fonte.

Bom Meihy (1994, p. 52) esclarece que a História Oral como metodologia apareceu após a Segunda Guerra Mundial, ou seja, após o surgimento de tecnologia eletrônica que possibilitou criar e difundir gravadores de áudio portáteis. Dito de outro modo, o uso da História Oral como método de pesquisa se tornou possível em meados da década de 1960, com a possibilidade de gravar a fala e reproduzir a gravação na medida da necessidade. Poder ouvir e reouvir, com a possibilidade de pausar, retroceder ou avançar a gravação criou condições para que o relato gravado pudesse ser posto no papel em forma de escrita e ser lido como tal; ou seja, ser lido como documento.

Convém dizer, à luz de Alberti (2004, p. 19), que o produto da História Oral não se pretende como verdade absoluta; antes, pretende-se como possibilidade de verdade. A história produzida com base em tal metodologia seria “uma variante do passado”; uma história possível, plausível, verossímil. Como sintetiza Alberti, “[...] não mais o passado ‘tal como efetivamente ocorreu’, e sim as formas como foi e é apreendido e interpretado”. O que parece ser válido para a história escrita segundo outras fontes.

A produção de fontes orais: meios e fins

Se a entrevista é a essência do trabalho com História Oral, sua gravação é a etapa sine qua non. É a possibilidade de usar o gravador de áudio em uma entrevista que permite falar em “produção de documento”, “retorno à fonte”, “montagem de acervos de depoimentos”, “autenticidade de trechos transcritos” e “análise de entrevistas” (ALBERTI, 2004, p. 112). As entrevistas registradas através de gravadores eletrônicos permitem falar na finalidade de produzir a fonte oral (ou o documento oral).

O uso do gravador de áudio1 pode produzir desconforto no entrevistado. Minimizá-lo, cabe ao entrevistador. Em parte, deve-se dar ao gravador só a atenção necessária; para isso, é preciso estar familiarizado com seu uso para que problemas técnicos não interfiram no andamento da entrevista. Além disso, garantir uma gravação que seja útil à produção de documentos requer tomar cuidados; por exemplo, testar o aparelho gravador antes e ter certeza de que não vai falhar por falta de energia; identificar a gravação: informar local, data e nomes no começo da gravação, tema a ser tratado e demais informações necessárias, como um tipo de cabeçalho antes das primeiras perguntas da entrevista (ALBERTI, 2004). O procedimento da identificação é central para o processo de organizar, classificar e transcrever as entrevistas tendo em vista a produção de um documento que vai ser lido como dados de pesquisa. Na sequência, inicia-se a entrevista com a primeira pergunta. Observa-se a necessidade de evitar falas superpostas, que possam dificultar o entendimento no momento da transcrição.

Segundo Alberti (2004, p. 121), existem maneiras de dirigir uma entrevista. Vão da condução pelo entrevistador até o relato livre, onde o gravador é ligado e se permite ao entrevistado falar livremente. Há o modo misto: o entrevistador ouve seu entrevistado, depois intervém, direcionando a discussão. É importante observar a formulação das perguntas a ser feitas. Têm de ser abertas, simples e diretas, de modo oportunizar guias ao entrevistado para que exponha seus pontos de vista (documentos da época e menções a fatos específicos podem ajudar ainda mais o lembrar). Outro fato a ser observado é que uma entrevista de História Oral é cheia de repetições, às vezes por causa do entrevistador, que pede mais esclarecimentos sobre o assunto, e do entrevistado, que pode ter uma visão cristalizada do tema.

Com efeito, em que pese a importância do gravador como forma de registro para a História Oral, a esta é imprescindível a entrevista; ou seja, a ação programada e direta que se desdobra entre entrevistador e entrevistado. Na relação pessoal com interação, a sensibilidade aparece como fundamental para ajudar a perceber a atitude e o desempenho do informante e aquilo que não é dito, mas que acompanha o dizer: o gestual, a postura, os maneirismos, as expressões faciais e dos olhos, o olhar... Tudo pode dizer muito ao pesquisador sobre o estado emocional que a rememoração pela entrevista desencadeia na subjetividade do entrevistado e que pode se expressar, por exemplo, em lágrimas, piscadas e suspiros.

A ativação da memória de alguém numa perspectiva de recompor (rever, reviver, recriar) o passado é ação que busca valorizar a história individual de cada entrevistado, respeitar suas experiências e sua individualidade. Realizar uma entrevista fundada na História Oral requer atenção máxima ao entrevistado, o máximo possível de interesse no que vai ser e foi narrado. É preciso considerar o contexto social do informante, pois lembranças e recordações se abrem à percepção analítica se forem contextualizadas, como diz Halbwachs (1990); a contextualização serve de base e ponto de partida para reconstruir a memória (relatar no presente lembranças do passado). Do contrário, tende a ser grande a probabilidade de que o entrevistado não se sinta à vontade o suficiente para discorrer sobre o assunto tratado com interesse, disposição, vontade e detalhamento, por exemplo.

Nesse sentido, entrevistador e entrevistado são protagonistas na História Oral como metodologia. São distintos. Dentre outros atributos, têm interesses, funções e fins diferentes no processo da entrevista. Mas são interdependentes: é preciso que haja o diálogo entre ambos. A relação entre entrevistador e entrevistado acontece entre pessoas diferentes, de opiniões diversas. Do diálogo entre ambos vai resultar a entrevista como produto da colaboração mútua (MEIHY; HOLANDA, 2017). Assim, o andamento devido do processo requer, além de respeito mútuo e adaptação a ritmos, o engajamento completo na reconstrução do passado, em que o entrevistador busca aprofundar e explorar a possibilidade da narrativa memorial, analisando-a e avaliando-a constantemente. Cada sessão de entrevista é oportunidade única. Ainda que o entrevistado seja o mesmo, cada vez que falar não vai ser da mesma forma.

À execução bem-sucedida de uma pesquisa que se vale da História Oral é necessário que o pesquisador/entrevistador tenha conhecimentos sólidos do objeto de estudo, que devem ser derivados de bases primárias e secundárias (ALBERTI, 2004). A fundamentação é importante para garantir, ao máximo, que o trabalho tenha sucesso em suas etapas, sobretudo nas iniciais, quando a inexperiência tende a afetar o tempo de desempenho. Estudos prévios sobre o tema a ser pesquisado e a definição clara de pontos que vão permear a entrevista ajudam a orientar os passos a serem dados, a exemplo da elaboração de roteiros e questionários individuais. É importante frisar: a pesquisa que utiliza a História Oral como metodologia se inicia na preparação de um projeto que escolhe um grupo de pessoas e da forma como as gravações serão conduzidas; predefinição do tempo de duração, do modo de transcrição do oral para o escrito e de quem fará a conferência da transcrição, dentre outros.

Produção de fontes orais na prática

O processo de construção e materialização das entrevistas à luz da metodologia da História Oral foi desdobrado com base no problema de pesquisa, que orientou a escolha dos assuntos e das tematizações a ser explorados, bem como o diálogo com os objetivos de estudo e questionamentos. Em sentido geral, as entrevistas buscaram a rememoração de vivências, experiências e práticas de sujeitos que participaram diretamente do cotidiano pedagógico do Externato Santa Teresinha no período aqui estudado.

Para a primeira versão do relatório de qualificação da pesquisa de mestrado, foi possível entrevistar três pessoas: Altina Maria Barcelos, Eunice de Fátima Silva Bagliano e Chede Abud. Quanto à escolha dos entrevistados, foi observada a “[...] qualificação de quem se entrevista”, de modo que sua fala pudesse ter o “caráter testemunhal” necessário à produção de fontes orais (BOM MEIHY, 2017, p. 39). Noutras palavras, a escolha dos entrevistados seguiu o critério ter trabalhado ou estudado no externato. Afinal, seus relatos seriam as fontes principais para desenvolver a pesquisa.

Uma vez delineados os possíveis entrevistados, o passo seguinte foi contatar os futuros informantes para conseguir o aceite quanto a participar da investigação. Para tanto, houve esclarecimentos, em especial, sobre a metodologia - seus fins - e a importância da entrevista para que a metodologia pudesse ser aplicada. Buscando-se o máximo possível de sinceridade e transparência, foram esclarecidos e enfatizados não só a finalidade da pesquisa, mas também o respeito aos informantes. Nesse sentido, foi importante frisar a existência de um documento a ser assinado por cada entrevistado não só consentindo o uso acadêmico das entrevistas, mas também cedendo os direitos para usá-las em forma de publicação.

Firmado os consentimentos, foi necessário fazer um levantamento biográfico dos informantes como forma de preparação para a entrevista planejada. A ideia foi obter uma compreensão prévia mínima da vida pessoal, profissional e escolar; de peculiaridades individuais como condições físicas para falar seguidamente por mais de meia hora, inclinação a falar com disposição (engajamento e detalhamento na conversa), tom de voz, dicção e outros que se fizessem pertinentes ao andamento bem-sucedido de cada entrevista. Ainda no primeiro contato, foi acertada a ocorrência da entrevista planejada; também foram pedidos, a cada entrevistado, documentos (pessoais), fotografias e outros registros materiais para dar mais solidez ao processo de construir os dados dos entrevistados e - é claro - da pesquisa.

A entrevista seguiu um roteiro inicial geral para descobrir informações sobre a história do Externato Santa Teresinha. Os entrevistados podiam falar à vontade. Esse momento de fala gerou repetição excessiva; mas esta não foi nem um pouco desimportante. Foi útil como complemento e reiteração. Aberto e flexível, esse roteiro orientou a entrevista mais planejada, para que fosse conduzida sem esquecimentos. Outras perguntas surgiram na conversa no primeiro momento, de modo que puderam ser feitas depois em um roteiro individual.

A elaboração do roteiro individual surgiu do cruzamento entre roteiro geral e dados biográficos de cada entrevistado. Nesse momento, foi possível elencar particularidades de cada um e do que era comum ao grupo, de modo a dar abrangência ao conhecimento sobre o tema. Foi feito um roteiro de entrevista direcionado para obter dados da formação e atuação profissional dos docentes e das atividades estudantis no externato. Enquanto o primeiro roteiro foi o ponto de partida para ir a campo, o segundo ajudou a desdobrar e aprofundar.

Como o ambiente onde ocorre a entrevista pode influenciar na concentração, na qualidade das gravações e no tempo, dentre outros fatores, a escolha do local foi importante. Por opção dos entrevistados, as entrevistas ocorrem em suas respectivas residências. A duração variou em função da interação criada com cada entrevistado; mas duraram a média de uma hora a uma hora e meia de gravação. Era fundamental que o encontro não se tornasse cansativo nem fosse enfadonho para os informantes.

Com efeito, encerrar as entrevistas foi decisão guiada pelo fator tempo. Foram considerados o número-limite de dois encontros, o escopo dos assuntos e temas explorados: se todos os itens haviam sido abordados; se valia a pena voltar a pontos sobre os quais o entrevistado não quis falar em dado momento; se o assunto começou a se repetir em demasia; se todas as perguntas do roteiro haviam sido exploradas. Além disso, para um fechamento tranquilo, harmonioso e com transparência, uma retomada explicativa breve dos objetivos estruturantes da pesquisa ajudou a reiterar, para os entrevistados, o papel de cada um, ou seja, a medida de sua contribuição, e eventuais acréscimos ao que foi relatado. No último encontro, foi apresentada para ser assinada a carta de cessão de direitos, pré-elaborada. Antes, houve esclarecimento de que se tratava de documento de formalização burocrática, a ponto de exigir assinatura em duas vias para que nada se modificasse no conteúdo de ambas.

Foi preciso ter claro que a entrevista criaria um ambiente passível de fazer aflorar sentimentos e emoções que poderiam variar de pessoa para pessoa e interferir na rememoração como estímulo à fala ou ao silêncio. Em todo caso, tais sentimentos e emoções compõem o todo da expressão dos informantes e não poderiam ser relegados a segundo plano. A participação direta e engajada dos entrevistados nos diálogos se mostrou em seus estados emocionais durante a rememoração.

Houve momentos nas entrevistas em que o entrevistado se expressou de forma não apreensível pelo gravador, com lágrimas, gestos, feições, piscadas, suspiros, dentre outras. As circunstâncias que mais mudaram o estado emocional delas aludiam à lembrança do Externato Santa Teresinha e da formação profissional. O tom e o ritmo da conversa tendiam à nostalgia. Foi imprescindível respeitar ao extremo não só esses momentos - que eram, também, de silêncio reflexivo, conclusivo e rememorativo (busca na memória); mas ainda os momentos de fala, para não interromper o fluxo do relato e da exposição memorial. Esses momentos foram observados quando as entrevistas criaram a expectativa de elucidar partes da fala que, de imediato, pareciam ser pertinentes.

Caso se possa dizer que certa lembrança motivada por dado sentimento - como o de nostalgia - tenha inibido a voz dos entrevistados em esclarecimentos e recordações, por exemplo; também se pode dizer que o gravador teve efeito parecido no decorrer de algumas entrevistas. Houve quem, na hora da conversa, gesticulasse com a intenção de pedir que a entrevista fosse interrompida ou para dizer que certas falas não podiam ser gravadas em áudio. Nessas horas, foi preciso relembrar e esclarecer que seria feita a transcrição do relato e que uma cópia seria entregue a cada entrevistado para que pudesse ler, reler, rever, corrigir, alterar, suprimir, acrescentar... antes de dar o aceite. Foi frisado que só após o aceite seriam publicadas as entrevistas. Essa reiteração trouxe tranquilidade e confiança.

Uma vez acertadas as condições documentais e de realização das entrevistas, foi preciso definir a ordem em que ocorreriam. O critério adotado foi o grau de envolvimento de cada entrevistado com o Externato Santa Teresinha. Nessa lógica, a primeira entrevista foi com Altina Maria Barcelos, que trabalhou no colégio durante muitos anos como secretária; a segunda entrevista foi com Chede Abud, sobrinho de Maria Abbud e que foi criado por ela. A finalidade dessa escolha foi construir um arcabouço para estruturar a pesquisa.

Altina Maria Barcelos - doravante Barcelos - foi a primeira pessoa contatada na busca por informações sobre a escola e tendo em vista a possibilidade de fazer indicações de outras pessoas e de documentos. Esse contato ocorreu nos primórdios da decisão de estudar historicamente o Externato Santa Teresinha. Depois, houve um segundo contato para ver se ela poderia conceder uma entrevista à luz da História Oral para falar da escola, registrar informações que ela havia passado no primeiro contato e acrescentar outras. De início, ela hesitou, justamente, pelo desconforto da gravação em áudio. Após esclarecimentos, concordou em falar. Foi, então, agendada a data para o segundo encontro. Barcelos preferiu sua residência como local da entrevista, pois cuida de uma irmã doente, de modo que não pode se ausentar por muito tempo.

Numa tarde de sábado, Barcelos falou pela primeira vez ante o gravador. Relatou memórias do Externato Santa Teresinha, sobre como e quando começou a trabalhar e suas funções. Afirmou a data de fundação da escola e mencionou o nome dos responsáveis. Referiu-se à diretora Maria Abbud, que ocupou a direção por muitos anos. Disse como esta foi escolhida para dirigir a instituição e falou da morte dela. Aludiu ao funcionamento da escola, à metodologia utilizada, aos eventos comemorados e - com muito pesar - ao fechamento. A entrevista de Barcelos não só esclareceu pontos obscuros sobre certos acontecimentos relativos à escola, como também deu mais direcionamento para os desdobramentos da pesquisa.

O entrevistado seguinte foi Chede Abud - doravante Abud. Parente próximo da diretora, Maria Abudd, ele foi aluno do Externato Santa Teresinha. Ao entrar em contato com Abud, foi marcada entrevista em sua residência, em uma noite do meio da semana, conforme sua disponibilidade. Em sua entrevista, ele falou de Maria Abbud: origens e composição da família, formação acadêmica e religiosa, homenagens recebidas na cidade, doença e morte. Contou sobre o funcionamento do externato. Referiu-se à venda e ao seu encerramento. A entrevista foi importante porque informou muito da biografia da diretora.

Em seguida, veio a entrevista com Eunice de Fátima Silva Bagliano - doravante, Bagliano. Nos contatos para fazer o convite para participar da pesquisa, ela aceitou de pronto! Mais que isso, após responder a questionamentos mais genéricos, indicou duas professoras que trabalharam no Externato Santa Teresinha no período estudado e que, talvez, pudessem falar também: Maria Angélica Diniz Póvoa e Lêda Maria Borela Diniz Póvoa. Bagliano contou que conviveu com os Abbud desde pequena, de modo que falou da chegada da família a Araguari e de suas peculiaridades. Também disse que, aos 12 anos de idade, trabalhou no externato, de início como servente, depois na secretaria, enfim, como auxiliar da professora regente. Relatou que, após se graduar no magistério, passou a trabalhar como professora na prefeitura de Araguari. Ela se lembrou dos anos e das séries atendidos e da metodologia utilizada. Ainda enumerou professoras e alunos. O exercício de recordar não escondeu as saudades dela daqueles tempos.

A entrevista com Bagliano foi construída com base em laços de confiança estabelecidos com solidez. Não por acaso, exemplificou a máxima, ao menos na História Oral, de que cada sessão de entrevista com o mesmo entrevistado é única; cada relato não será dado da mesma forma. Com efeito, na primeira entrevista, a entrevistada disse que ajudava as professoras do Externato Santa Teresinha, mas não falou com clareza que não havia trabalhado como docente; foi na segunda, após ficar mais confiante, que disse claramente que, mesmo sendo habilitada, nunca “pegou uma sala de aula no Externato Santa Teresinha” porque era servente. Supostamente, como professora, não seria vista com bons olhos por pais de alunos. A entrevista foi relevante como acesso à formação e atuação profissional de Bagliano, sobretudo às práticas de ensino do externato.

No mesmo dia em que Bagliano indicou o nome de Maria Angélica Diniz Póvoa para ser entrevistada, foi feito o contato com ela. Póvoa se prontificou a contribuir para a pesquisa de tal modo, que o encontro foi marcando para a semana seguinte ao contato, em sua residência. Durante a entrevista, ela disse que sempre estudou no “Colégio das Irmãs”, desde os primeiros anos do primário até o curso normal. Lembrou com saudades desse tempo. Seu relato informou que, após concluir o magistério, ela começou a trabalhar no Externato Santa Teresinha como professora, além de ingressar no curso de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araguari. Ao final da graduação, casou-se e mudou-se para Brasília, onde não exerceu a docência. Durante a entrevista, ao ser questionada sobre o conhecimento de outras professoras que trabalharam no externato no mesmo período, indicou sua cunhada, Lêda Maria Borela Diniz Póvoa, doravante Borela.

Dada a possibilidade de ter mais uma entrevistada, foi feito o contato com ela a fim de falar da pesquisa e convidá-la a participar. Borela ficou receosa de início. Disse que iria pensar e que faria contato depois. E fez, por telefone, para marcar a data da entrevista em sua residência. O receio inicial deu lugar à abertura, pois ela buscou documentos de época em seu acervo pessoal e fez anotações para enriquecer a entrevista. Contou que estudou no Externato Santa Teresinha durante dois anos (primeiro ano atrasado, primeiro ano adiantado) e lecionou depois. Também estudou no Grupo Escolar Raul Soares, onde cursou o restante do primário até a conclusão do secundário, para, então, fazer o curso normal no “Colégio das Irmãs”. Ao mesmo tempo, começou a trabalhar no externato, como professora. Logo depois ingressou na faculdade de Pedagogia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araguari. Finda a graduação, começou a trabalhar como docente nessa faculdade, onde ficou por 26 anos como docente de Psicologia, Sociologia Geral e Sociologia da Educação. Embora houvesse um roteiro para a condução da entrevista, Borela quis contar sua história cronologicamente, o que se mostrou produtivo porque facilitou não só a organização de seu relato, mas também - e sobretudo - a compreensão de sua trajetória.

Como se lê, as entrevistas aconteceram de forma mista. Isso quer dizer que em dado momento as entrevistadas puderam falar livremente, em outros falaram com mais direcionamento. Uma consequência foi o excesso de repetição de conteúdos, embora caiba ressaltar que mesmo a redundância foi importante, pois às vezes vinha com complementos ao que foi dito antes, às vezes apontava discrepâncias. Cada entrevista pôde ser lida e relida em função das particularidades de cada entrevistado, mas sem que se perdesse o sentido de memória coletiva; ou seja, de um grupo de sujeitos que, em seu campo de prática social, tiveram experiências de natureza similar, vivências e impressões parecidas em relação a espaços, pessoas, práticas, objetos e acontecimentos ocorridos numa mesma instituição escolar e em circunstâncias de ensino, aprendizagem e administração escolar. Além disso, para ajudar na recordação de detalhes, houve tomada de notas durante as entrevista (sobre nomes próprios, gestos, expressões e outros) para ajudar na compreensão da gravação mediante a relembrança de informações importantes no momento de passar os relatos orais para a forma escrita. As gravações foram registradas em arquivos digitais que pudessem facilitar ao máximo seu arquivamento, sua organização e seu manuseio (escuta) em programas de computador como o editor de texto Word.

Fontes orais: materialização e fins

Transformar a fala em escrita - passar o texto do estado oral ao gráfico - é procedimento central na metodologia da História Oral, ou seja, na pesquisa aqui descrita. Esse processo foi feito logo após cada entrevista para aproveitar o frescor das lembranças de como foi o encontro e enriquecer a etapa de transcrição. Segui-se a sugestão de, antes de começar a transcrição, ouvir trechos para familiarização com a fala gravada de cada entrevistado. O processo demorou. Antes da transcrição, cada entrevista foi ouvida em sua totalidade e com pausas após certas falas para aferir a qualidade da gravação e clareza da dicção; para ouvir a construção de raciocínios até o final, sem antecipar conclusões de pensamentos, dentre outros pontos. Então teve início a transcrição propriamente dita, com atenção à entonação e ao ritmo da fala para que a pontuação pudesse organizar a apresentação do relato sem descaracterizar elementos como ênfase no tom, cortes e suspensão de pensamentos mediante frases inconclusas, suspensas no fluxo do relato; enfim, para que não se suprimissem falas. O processo de ouvir a gravação e digitar o texto foi permeado por pausas para ler e reler as anotações feitas durante o diálogo das entrevistas.

Uma vez pronta a transcrição de cada entrevista, veio a etapa de conferência da fidelidade entre áudio e arquivo de texto, ou seja, entre fala e escrita, para averiguar discrepâncias. A etapa se desdobrou mediante a escuta do áudio simultânea à leitura da transcrição. Essa conferência confirmou nomes, datas, fatos e referências, a fim de que a transcrição não ficasse com erros factuais nas informações dadas. A consulta a dicionários, enciclopédias e obras de referência ajudaram a garantir mais exatidão ao texto transcrito. Isso porque eventuais enganos, sobrenomes, codinomes e apelidos citados por cada entrevistado foram transcritos como tais e explicados em nota de rodapé corretiva, quando foi o caso. Igualmente, essa etapa demorou, porque foi permeada por pausas para ajustes, mudanças, correções e acréscimos a fim de deixar a transcrição em condições de ser lida com fluência. A primeira leitura da versão com modificações validou essa condição de clareza (também trouxe à mente a lembrança de mais detalhes dos encontros com os entrevistados).

As transcrições apresentaram a uniformidade e padronização necessárias à escrita, inclusive convenções como cabeçalho, menção ao nome dos falantes e a despedida. Foi preciso lançar mão de certas marcações para preencher as falhas, fazendo uso de símbolos que indicam interrupção de gravação, ênfases, silêncio, risos, emoção, trechos lidos e enunciados incompletos. Essa necessidade se impõe porque as entrevistas vão ser publicadas em meio a uma sociedade fundada na escrita formal e no papel (ou sua representação digital) como medida do que seja um documento. A fala espontânea, por mais que seja guiada, ainda tende a ser desvalorizada como documento. É como se a condição de fonte de dados pressupusesse características da fixidez e estabilidade, a exemplo de uniformização ortográfica, pontuação, interpolação de explicações, sinônimos, desdobramentos de siglas, indicação de datas e inclusão de complementos etc. Além disso, são desejáveis não só a exatidão cronológica, mas também a seriação temporal como elementos de estruturação do conteúdo da rememoração dos entrevistados. Em geral, a elaboração dos roteiros responde pela forma de organização do relato; ainda que a espontaneidade de fala e o fluxo da memória e da conversa tendam a pôr em xeque eventuais expectativas de que tudo vá “sair conforme o script”.

Cabe retomar o argumento de que até os anos 1990 o uso de fontes orais não era praxe em meio a historiadores. Supostamente, não eram confiáveis do ponto de vista de ser fiéis à realidade objetiva a que se referiam. Logo, não serviam à reconstrução do passado. Justificava-se que a história deveria ser escrita segundo documentos oficiais e de época, de forma objetiva. Com efeito, a metodologia da História Oral pressupõe lidar com o tempo presente - ou seja, com informantes que estão vivos e relembrando sua história no presente. Nessa lógica, as fontes orais podem ser entendidas como fruto das lembranças que alguém se dispôs a relatar; como elaborações verbais de experiências que entraram para o repertório da memória de quem, porventura, teve de contar sua história e cuja expressão oral as renova à medida que novas experiências se acrescem ao que foi acumulado e repertoriado como recordação. Como dizem Ferreira e Amado (2006, p. 15), as fontes orais “são fontes narrativas” sobre o passado produzidas no presente, como são narrativos os textos que relatam dada história. Assim, elas teriam um caráter de ficção, de invenção de um universo.

Por outro, também a leitura de tais fontes tende a ser distinta conforme o repertório de experiências de quem as lê. É provável que, por exemplo, as entrevistadas docentes leriam as entrevistas das colegas com uma capacidade de apreensão distinta daquela subjacente à leitura dos relatos feita nesta dissertação; justamente porque o repertório de lembranças delas é o de quem experimentou, na prática cotidiana, o contexto reconstruído por cada entrevista(da).

A transcrição foi submetida aos respectivos entrevistados para que lessem e fizessem ajustes, correções, mudanças, cortes e o que mais considerassem como necessário para assinar o “Termo de consentimento livre e esclarecido”, que autoriza a publicação das entrevistas. Com o aceite de uso e as fontes orais em mão para desdobrar a pesquisa, era chegado o momento de relê-las analiticamente numa abordagem histórica e considerando a subjetividade em torno de sua produção e os meios empregados na passagem do oral ao escrito.

A leitura histórico-analítica das entrevistas como fontes históricas visou, então, apresentar uma compreensão de dado recorte do passado do Externato Santa Teresinha com base na história que foi contada pelos entrevistados - seja pessoal, seja coletiva - que se depreende do contexto relatado. Embora se possa pensar em um grau de subjetividade na origem de tais fontes, como se fosse uma visão muito pessoal, convém dizer que importa extrair delas o elemento simbólico, cultural; o qual, dada sua natureza, não estaria restrito a um entrevistado, mas permearia a história de vida contada por todos os entrevistados. Nesse sentido, caso se possa dizer que as fontes orais se distinguem de outras formas documentais em razão de sua distância do fato histórico - diferentemente de documentos de época produzidos para ser escritos -, também se pode dizer que se assemelham, porque, dos documentos escritos e de época, interessa extrair, também, o elemento simbólico, cultural, sobretudo o elemento contextual, não dito etc.

Contudo, os informantes de uma pesquisa fundada na metodologia da História Oral são importantes, também, para localizar e acessar outros documentos passíveis de serem usados como fonte complementar. Essa importância se projetou, por exemplo, na entrevistada Barcelos. O procedimento inicial de ida a campo em busca de fontes foi, justamente, procurar por alguém que pudesse dar informações sobre o externato. Sabia-se que ela havia trabalhado na instituição por muito tempo, por isso o primeiro passo foi procurá-la a fim de sondar as possibilidades de contribuição. Esse contato primeiro foi uma conversa informal registrada apenas pela memória e por notas breves; o fio condutor foi a história do Externato Santa Teresinha: suas origens e fatos de sua história; também sobre lugares que poderiam conter documentos e informações úteis para escrever a história dessa escola. Com prontidão e disponibilidade, ela deu informações importantes para localizar, além de pessoas - cabe frisar -, documentos e fotografias que se mostrariam úteis ao desenvolvimento e à sustentação da pesquisa aqui descrita. Além disso, houve entrevistado que concedeu acesso a seus arquivos pessoais, como fotografias do acervo da família da diretora Maria Abbud.

Da oralidade à documentação: história cultural e fontes documentais e iconográficas

Com efeito, a possibilidade de encontrar documentos históricos não orais para concretizar a pesquisa exigiu buscar outros suportes históricos conceitual-metodológicos. Recorremos à abordagem chamada história cultural. A história cultural “[...] tem por principal objetivo identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler” (CHARTIER, 2002, p. 16-7). O dar-se a ler de tal realidade ocorreria, em grande medida, por formas simbólico-materiais de representá-la, seja escritas, manuscritas ou iconográficas, por exemplo. Ela postula uma “história vista de baixo”, uma história das opiniões e experiências do povo e de mudanças sociais, história da parte do povo que durante muito tempo foi excluída: pobres, analfabetos, mulheres, crianças, negros, loucos e outros. Com efeito, essa história de viés francês promoveu uma “[...] ‘revolução documental’ que mantém com a história nova relações ambíguas” (LE GOFF, 1990, p. 17): as fontes foram ampliadas - podem ser orais e visuais, documentos impressos e manuscritos etc. - e passaram a comportar um olhar particular, em que o relativismo cultural está presente na escrita e nos objetos da história.

Como esclarece Chartier (2002, p. 20), a representação pode ser entendida como acesso - por exemplo, ver - a algo ou alguém que está ausente como realidade física, objetiva, palpável. A fotografia de uma pessoa, então, seria um tipo de representação que faz presente o ausente, ou seja, que o revive na memória e que motiva sua expressão verbal, dentre outras possibilidades. Convém frisar que a representação do objeto não é objeto representado; a estátua ou o busto de alguém em praça pública não é esse alguém. Além disso, ainda segundo Chartier (2002), a representação pode ser entendida como relação simbólica entre o objeto visível e o seu significado moral, a exemplo da imagem do leão simbolizando o imposto de renda, o que permite caracterizá-lo em relação a outros símbolos.

Além disso, conforme Prost (2008, p. 75), o historiador em seu fazer passou a ir a campo com questões, com questionamentos, também com hipóteses, pois nessa vertente de estudos históricos francesa a história não seria a enumeração pura e simples, cronológica e descritiva, para ficar nesses atributos. “As questões ocupam uma posição decisiva”. É função dessa atitude questionadora que o historiador vai procurar e tratar suas fontes, a fim de extrair esclarecimentos necessários para responder a seus questionamentos ou comprovar suas hipóteses. Isso, porém, não significa que suas fontes sejam esgotáveis, que não aceitariam outras análises e interpretações; que não se submeteriam a outros questionamentos. A utilidade de cada uma estaria, justamente, na medida do questionamento, ou seja, da pertinência, plausibilidade e viabilidade da resposta.

Essa descrição contextual de pressupostos da história cultural aponta a base conceitual sobre a qual foram considerados os documentos encontrados, de início, conforme informações dadas pela entrevistada Barcelos. Graças a sua memória, veio à tona o nome Superintendência Regional de Ensino de Uberlândia, que poderia ter arquivados documentos do externato na Escola Estadual Rainha da Paz, de Araguari. A consulta a essa instituição levou a documentos do Externato Santa Teresinha e do Colégio Regina Pacis (ao qual pertenceu o externato em dada época, convém lembrar). O resultado dessa busca foi o acesso a informações sobre o Santa Teresinha que seriam importantes para reforçar a base da pesquisa.

O passo seguinte foi procurar a Escola Estadual Rainha da Paz, onde estão arquivados documentos do Externato Santa Teresinha. A direção da escola se prontificou a ajudar. Para tanto, foi acionada a bibliotecária da escola, que informou a existência de arquivos. Estavam em uma sala de aula inativa, onde encontravam depositados documentos do Colégio Regina Pacis, além de mesas e cadeiras quebradas, peças de computador obsoletas.2

Contudo, os documentos do Externato Santa Teresinha não ficavam guardados no mesmo lugar onde estavam os do Colégio Regina Pacis; ou seja, os materiais foram encontrados sob uma rampa onde ficam guardados produtos de limpeza da escola, dentro de quatro armários escolares, em caixas de papelão próprias para escritório. Contêm diários de classe, livros de ponto, certificados em branco, boletins, carnês de pagamento de mensalidade, ficha de avaliação, correspondências diversas e outros documentos, registros de ex-alunos, recibos; mas sem nenhuma organização formal aparente, como sequência cronológica. Isso dificultou a consulta para eventual uso na pesquisa aqui descrita, ainda que não fossem documentos relativos ao período estudado.

A busca seguinte ocorreu no Arquivo Público Dr. Calil Porto, em Araguari, onde há fotografias, recortes de jornal e livros com edições do jornal Gazeta do Triângulo do período 1932-70. Também foram encontradas fotografias de: missa, primeira comunhão e festas, de professoras, alunos e colégio. Mas têm pouca identificação ou informação de período, autoria da fotografia e dos eventos registrados. Foram dois meses de pesquisa intensa, nos quais se encontraram informações diversas que contribuíram significativamente para a pesquisa.

À guisa de síntese

Tendo em vista a lógica de que a História Oral possibilita escrever a história daqueles e daquilo que supostamente não têm passado - dos “excluídos da história” -, a pesquisa com tal metodologia fez virem à tona histórias que, de outro modo, ficariam latentes, à mercê de alguém que se dispusesse a evocá-las pela memória a ser contadas. Com efeito, a pesquisa de campo sobre o Externato Santa Teresinha projetou sujeitos que participaram do processo histórico da escola e cujas lembranças se tornaram elemento central para sustentar e desenvolver a investigação aqui apresentada. Suas memórias permitiram derivar um olhar para suas representações e a construção de uma identidade como partícipe das práticas escolares ocorridas no externato no período aqui estudado. Sobretudo, suas memórias ajudaram a recriar acontecimentos importantes não só da atuação docente e da escola, mas também de um contexto mais amplo - a sociedade da Araguari - que corriam o risco de se perderem no espaço e no tempo; de ser esquecidos ou ignorados.

Não por acaso, a prontidão que cada entrevistado demonstrou como participante da pesquisa pode ser lida como indício do desejo de contar sua história porque se trata de um assunto muito particular e marcante para cada; símbolo de uma etapa de vida. Se a escola se trata de algo central para a pesquisa - associa-se ao objeto de estudo -, não é menos importante para os entrevistados. O relato de Bagliano apresentou um tom saudoso ao se referir às emoções e aos sentimentos que o relembrar daqueles tempos evocava nela; ou seja, lembrar dos tempos em que estudou e trabalhou no Externato Santa Teresinha era algo que a movia internamente, que a tirava de certo estado de espírito porque mexia com as emoções dela. Assim, cada relato foi importante, também, para contar histórias pessoais, buscar memórias, organizá-las em um fluxo e deixar fluir a fala, cada qual a seu modo.

Em que pesem as singularidades de cada entrevista, de cada entrevistado, o ponto de vista que se delineou sobre o Externato Santa Teresinha derivou de uma memória coletiva na medida em que as falas de cada informante convergiram para um fio condutor, a um processo histórico. Ao falarem do externato - estrutura física, práticas de ensino, aulas de ensino religioso, currículo, datas comemorativas etc. -, foi possível perceber entrelaçamento das falas; perceber que, quando o enfoque era história de cada - confirmando uma coerência e convergência de percepção e assimilação das atividades e do cotidiano escolares que se associa com a ideia de uma memória coletiva - foi possível inferir dos relatos a natureza do externato como instituição escolar. Era uma escola particular e confessional. A oferta de bolsas de estudo teve pouco efeito na visão de que era uma escola que funcionou seguindo a lógica de que a seleção era indício de prestígio: quanto menos acessível ao público geral, mais acessível à elite econômica de Araguari, que desejava se distinguir na sociedade pelos seus símbolos, a exemplo da educação numa escola de prestígio social.

Contudo, as entrevistas permitiram inferir que tal prestígio não foi maior que a inadequação pedagógica. O ensino no Externato Santa Teresinha era considerado tradicionalista, como sugere o uso do método silábico e da Cartilha da Infância. Daí que dos anos 1990 em diante a abertura de escolas particulares não confessionais com a promessa de inovações educacionais levou à redução gradativa do corpo discente do externato até seu desaparecimento da paisagem urbana, aquela que seu prédio outrora caracterizou.

Não foi sem indícios de tristeza que os entrevistados falaram dessa etapa final, sobretudo as professoras que participaram diretamente do processo histórico do Externato Santa Teresinha, seja como discente, seja como funcionário. O vínculo que estabeleceram com a escola tinha um nível elevado de envolvimento. Trabalhar nessa escola era uma possibilidade associada a relações e contatos sociais, ou seja, a indicações. As professoras, por exemplo, eram convidadas. Não por acaso, permaneciam por longo tempo. Quando deixavam a instituição, era por motivos particulares. Também se exigia formação no magistério central. As docentes que atuaram no externato fizeram o curso normal no Colégio Sagrado Coração de Jesus - “Colégio das Irmãs” - então o único estabelecimento a oferecer tal curso na cidade e região, de modo que recebia moças de outras cidades.

Formar-se e atuar em escolas vinculadas a Igreja Católica é um elemento central para entender e escrever a história do Externato Santa Teresinha, pois aludem ao contexto educacional maior em que se enquadrava a educação em Araguari, sobretudo a particular. No período estudado, o debate sobre a educação experimentou momentos de efervescência, justamente, pelo embate em torno da escola pública e particular; ou seja, da ação educacional do governo de um Estado laico e da tentativa de restabelecer um poder sobre a educação destituído pela declaração de que o Brasil seria um Estado laico após a proclamação da República e que tal Estado teria a educação pública como pauta central.

Referências

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BOM MEIHY, José Carlos Sebe. Definindo História Oral e Memória. Cadernos CERU, N. 5, Série 2, 1994. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/cerusp/article/view/83299/86330. Acesso em: 17 ago. 2017. [ Links ]

BUFFA, Ester. História e filosofia de instituições escolares. In: ARAÚJO, J. C. S.; GATTI JÚNIOR, D. (Org.). Novos temas em história da educação brasileira: instituições escolares e educação pela imprensa. Campinas: Autores Associados, Uberlândia: ed. da EDUFU, 2002. [ Links ]

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PROST, A. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. [ Links ]

Fontes orais

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BARCELOS, A.M. Araguari, MG, 24 de fevereiro de 2018. Mp3 (66 minutos). Entrevista concedida a mim na residência da entrevistada. [ Links ]

BAGLIANO, E.F.S. Araguari, MG, 7 de abril de 2018. Mp3 (62 minutos). 16 de fevereiro de 2019. Mp3 (86 minutos). Entrevistas concedidas a mim na residência da entrevistada. [ Links ]

BORELA, L.M.D.P. Araguari, MG, 21 de fevereiro de 2019. Mp3 (100 minutos). Entrevista concedida a mim na residência da entrevistada. [ Links ]

PÓVOA, M.A.D. Araguari, MG, 18 de fevereiro de 2019. Mp3 (30 minutos). Entrevista concedida a mim na residência da entrevistada. [ Links ]

1É importante que o entrevistador anote o nome completo de pessoas citadas, como também palavras ditas de forma pouco clara. Caso seja conveniente, pode-se interromper a gravação para pedir ou fazer esclarecimentos sobre expressões ou apontamentos expostos pelo entrevistado. Igualmente, deve-se deixar para o final a conferência de nomes, palavras e expressões desconhecidas utilizadas no decorrer da entrevista. Logo após ser encerrada a entrevista, convém usar o caderno de campo para anotar impressões aproveitando que o evento e o relato ouvido ainda estão frescos na memória. Também é conveniente que tais anotações sejam feitas com um mínimo de sistematização para que possa apontar contribuições do relato ao andamento da pesquisa, às etapas, aos temas etc. Dito de outro modo, convém que o pesquisador vá anotando impressões primeiras, inferências, associações e comparações, passagens literalmente convergentes para os pontos da pesquisa, e assim por diante.

2Como diz Buffa (2002, p. 28): Todos os que têm alguma experiência com a pesquisa em arquivos conhecem as precárias condições em que eles se encontram. Caixas com documentos importantes misturam-se a restos de cortinas, carteiras quebradas e muitos ácaros. Essa é mais uma razão para pesquisar a história das instituições escolares e tentar preservar o que ainda resta de nossa memória educacional.

Recebido: 14 de Julho de 2021; Aceito: 24 de Outubro de 2021

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