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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub 13-Sep-2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-123 

Artigos

Barroco e educação em Portugal no Século XVII: Josefa de Óbidos

Barroco y educación en Portugal en el Siglo XVII: Josefa de Óbidos

Célio Juvenal Costa1 
http://orcid.org/0000-0003-1226-7805; lattes: 2010934096045670

Giovana Cardoso Versolatto2 
http://orcid.org/0000-0003-3965-5576; lattes: 9014936584453467

1Universidade Estadual de Maringá (Brasil). celio_costa@terra.com.br

2Centro Universitário de Maringá (Brasil). giovanaversolatto@gmail.com


Resumo

O objetivo deste artigo é identificar de que forma o Barroco contribuiu para educação de Portugal no século XVII, por meio das obras de Josefa de Óbidos. Nossa hipótese é que o Barroco tenha sido um dos elementos do processo educacional do período, por cumprir com o propósito formativo à época. Para isso analisamos algumas das obras da referida artista, com o propósito de investigarmos as premissas incutidas nas imagens, para identificarmos os artifícios de persuasão ou condução, que corroboraram para o processo educacional do fiel/súdito. Concluímos que os elementos estilísticos do Barroco, viabilizaram às obras de Josefa um caráter diretivo, que contribuiu para a condução dos fiéis/súditos à experiência e aprendizado da fé católica e, portanto, à perpetuação e conservação deste credo.

Palavras-chave: Barroco; Josefa de Óbidos; Educação no Século XVII

Resumen

El propósito de este artículo es identificar cómo el Barroco contribuyó a la educación de Portugal en el siglo XVII, através de las obras de Josefa de Óbidos. Nuestra hipótesis es que el Barroco fue uno de los elementos del proceso educativo de la época, para cumplir el propósito formativo de la época. Para ello analizamos algunas de las obras del referido artista, con el fin de investigar las premisas inculcadas en las imágenes, para identificar los dispositivos de persuasión o conducción, que corroboraron el proceso educativo de los fieles / sujeto. Llegamos a la conclusión de que los elementos estilísticos del barroco hicieron de las obras de Josefa un carácter orientador, que contribuyó a la conducta de los fieles / sujetos a la experiencia y el aprendizaje de la fe católica y, por lo tanto, a la perpetuación y preservación de este credo.

Palabras clave: Barroco; Josefa de Óbidos; La educación en el siglo XVII

Abstract

This paper’s aim is to identify in what way the Baroque contributed to the education in Portugal in the seventeenth century through the work of Josefa de Óbidos. Our hypothesis is that the Baroque was one of the elements in the educational process of that period because of its role in fulfilling the formative purpose of the time. To that end, we analyzed some of the referred artist’s works with the purpose of investigating the premises instilled in the images in order to identify her artifices of persuasion or guidance, which have corroborated with the educational process of the faithful/subject. We concluded that the Baroque's stylistic elements granted a directive character to Josefa's works, which contributed to guide the faithful/subject in their experience and learning of the Catholic faith and thus to the creed's perpetuation and preservation.

Keywords: Baroque; Josefa de Óbidos; Education in the Seventeenth Century

Introdução

A presente pesquisa é dedicada ao estudo da História da Educação em Portugal no século XVII por meio da Arte, estabelecendo o Barroco como um dos elementos do processo educacional do período. O estilo Barroco foi um movimento artístico que se desenvolveu no século XVII e abrangeu várias linguagens, como a música, a literatura, a arquitetura e a pintura. Nos concentramos no âmbito da pintura, que será fonte de investigação de nossa pesquisa, especificamente nas pinturas de Josefa de Ayala e Cabrera (1630 - 1684), mais conhecida por Josefa de Óbidos, pintora que se destacou na vila portuguesa de Óbidos.

Com o intuito de identificarmos de que forma, e se, o Barroco contribuiu para o processo educacional de Portugal no século XVII, objetivamos demonstrar o propósito formador desse período e analisar de que forma o movimento estilístico e as produções de Josefa de Óbidos influenciaram na formação do indivíduo português do século XVII. Considerando que, segundo Saviani (2013, p. 43-44), a educação está voltada à promoção do homem, pretendemos nos aprofundar na compreensão da situação do indivíduo do século XVII, para identificarmos o que significou essa promoção e de que forma o Barroco contribuiu com esse propósito.

Escolhemos a Arte para fundamentar o objeto de nossa pesquisa, pois a compreendemos como um dos elementos formadores da sociedade. Nesse sentido, consideramos um prejuízo ao conhecimento desassociar a arte da História da Educação, pois como afirma Barbosa (2012, p. 31), a imaginação é fundamental ao pensamento humano, seja em qualquer idade ou atividade, assim como, a arte é indissociável à imaginação, estabelecendo, portanto, uma estrita relação entre a arte e a cognição do pensamento.

Além disso, segundo pesquisa de Magalhães (1996, p. 438), embora a alfabetização dos súditos em Portugal tenha apresentado alguns avanços no século XVI, essa tendência reclinou até as duas últimas décadas do século XVII, houve “um período de quebra e estagnação, acompanhando uma crise generalizada nos aspectos económico, político e cultural [...] restringindo o ensino de latim nas pequenas vilas.”. Portanto, no período estudado (1630 - 1684), em Óbidos, que é uma pequena vila, presumimos que a população era constituída de maioria iletrada. Desse modo, compreendemos as imagens artísticas como um importante canal de transmissão dos princípios educativos.

Considerando também, que conforme Gombrich (2011), para Gregório Magno, no século VI, as imagens passaram a ser utilizadas no intuito de ensinar os preceitos religiosos, tendo em vista que, “muitos membros da Igreja não sabiam ler nem escrever, e que, para ensiná-los, essas imagens eram tão úteis quanto os desenhos de um livro ilustrado para crianças.” (GOMBRICH, 2011, p. 135). Em específico as obras do Barroco, como afirma Argan (2004, p. 7), pois “tinham um fim prático, político e religioso - ou melhor como a religião desaguava na política, o fim era simplesmente político”.

O ensino formal em Portugal, como afirma Ferreira (2004, p. 59), era controlado pela Companhia de Jesus, fundada em 1534, mas que ao final do século XVI já possuía colégios em várias regiões de Portugal. Como a educação formal promovida nesse período era preponderantemente direcionada pelos jesuítas, devemos nos atentar ao propósito educacional pelo qual se orientavam. Ferreira (2004, p. 60), indica que “a ação dos jesuítas tinha em vista manter a preponderância da doutrina católica e os fundamentos culturais a ela associados e bastante abalados pelo livre-pensamento dos humanistas.”.

Nesse sentido, o Barroco agiu de acordo com os propósitos da Companhia de Jesus, ou melhor, ambos foram guiados pelo mesmo espírito, pelos mesmos propósitos, pois atuaram imbuídos da missão de preservar a fé católica e, conjuntamente, os interesses do clero e da coroa. A arte conseguiu, por meio da artificialidade racional e carga dramática, transpor significados aos fiéis e súditos, pois as pinturas barrocas eram diretivas, segundo Maravall (1997, p. 135), ou persuasivas, como trata Argan; sendo que para ele “persuadir significa solicitar e acreditar em algo que não está presente, mas que, apesar disso, se coloca no horizonte do possível.” (2004, p. 8).

Os fatores apresentados, nos autorizam a realizar uma análise na qual a educação, a arte e a história estão interdisciplinarmente em diálogo, a fim de valorizar os saberes e o conhecimento atrelado às atividades humanas. Além de possibilitar a compreensão acerca do Barroco, o movimento estilístico que por vias dramáticas, enaltecedoras, claro-escuristas, descomedidas, se manifestou como expressão de uma época e concomitante a isso, como indutor de condutas.

Josefa de Óbidas

Josefa de Óbidos nasceu em 1630, em Sevilha e faleceu em 1684, em Óbidos, onde morou a maior parte de sua vida. Segundo Serrão (1985, p. 3) foi estimável pintora de naturezas-mortas, cordeiros pascais, pinturas para culto doméstico, cobres e retábulos religiosos, além de gravurista. De acordo com Hatherly (2016, p. 101), a carreira de Josefa de Óbidos como pintora lhe concedeu notoriedade e durou 38 anos, de 1646 a 1684. Durante esse período a artista produziu mais de 100 obras, a maioria assinada e datada.

De acordo com Serrão (1985, p. 10), Josefa de Ayala e Cabrera é filha de Baltazar Gomes Figueira, português, nascido em Óbidos e de Catarina de Ayala Camacho Cabrera Romero, nobre andaluza. Eles se conheceram em Sevilha, em detrimento da carreira militar de Baltazar, que tivera curta duração, devido sua liberação para exercer o ofício da pintura. Voltaram de Sevilha para Portugal quando Josefa tinha cinco ou seis anos de idade, moraram em Peniche, onde Baltazar produziu algumas obras para as igrejas locais e depois até a morte de ambos, em Óbidos.

Ela nasceu em fevereiro de 1630, e no dia vinte deste mês foi batizada na paróquia de São Vicente de Sevilha. Segundo Serrão (1991, p. 19 e 25) foi apadrinhada por um célebre pintor sevilhano, Francisco de Herrera el Viejo, com cujo estilo barroquista vaporoso e solto nem a sua arte nem a de seu pai têm pontos de contato. Entre as muralhas medievais da vila de Óbidos, de acordo com Serrão (1985, p.10), a artista viveu sob o sopro marinho da várzea obidense e à calma de sua quinta da Capeleira, endereço onde residia.

Josefa de Óbidos, segundo Hatherly (2016, p. 101), foi para o convento de Santa Ana em Coimbra, entre 1644 a 1647, onde recebeu educação eclesiástica, mas optou por não seguir carreira freirática. Na época, mulheres1 que não se casassem ou fossem freiras, viviam sob “a guarda” dos pais, mas não foi o caso de Josefa, que se emancipou legalmente e viveu economicamente independente da família, por meio de seu trabalho artístico.

Serrão (1991, p. 22) afirma que seu pai e professor, Baltazar Gomes Figueira, faleceu em 1674 e depois disso, Josefa passou a viver em sua casa na Rua Direita, com sua mãe e suas duas sobrinhas, Josefa Maria e Luísa, filhas de sua irmã Antónia d’Ayala. Em 13 de junho de 1684, estando enferma, escreveu seu testamento e faleceu no dia 22 de julho do mesmo ano, deixando seus bens à mãe e às duas sobrinhas.

O Barroco como instrumento educacional

No intuito de avançarmos na análise das obras de Josefa de Óbidos e nelas verificarmos os princípios educativos que contribuíram à formação dos súditos de Portugal no século XVII, especificamente nos anos 1630 a 1684, nos quais a artista viveu, faz-se necessário elucidarmos o que compreendemos por educação. Segundo Saviani (2013, p. 43-44), a educação se destina à promoção do homem e tem sido assim em todas as épocas e, mesmo que os objetivos de formação sejam diferentes, a atenção ao homem é uma constante. Por isso, conhecê-lo profundamente deve ser uma preocupação central do educador.

que sentido terá a educação se ela não estiver voltada para a promoção do homem? Uma visão histórica da educação mostra como esta esteve sempre preocupada em formar determinado tipo de homem. Os tipos variam de acordo com as diferentes exigências das diferentes épocas (SAVIANI, 2013, p.43).

Quando tratamos dessa questão, somos expostos imediatamente a uma atividade humana, os valores - morais, espirituais, relacionais etc. -, que só podem ser entendidos por meio da realidade humana. E, por realidade humana, compreendemos todo o contexto no qual o homem está situado, ou seja, como relata Saviani (2013, p. 44), seu espaço e seu tempo. Sua dependência em relação à natureza e tudo o que existe independente da ação humana, como a fauna, vegetação, clima, espaço físico, enfim o meio natural, e, também, sua relação com o meio cultural, como a sua herança histórica, sua língua, costumes, tradições, condições econômicas, institucionais e governamentais. Essa inscrição do indivíduo no mundo, em um determinado período e território, é sintetizada por Saviani (2013, p. 44) como “situação do homem”.

A educação, portanto, tem o papel de promover o homem e torná-lo conhecedor e transformador dos elementos de sua situação, nesse sentido, é atribuído ao homem uma tarefa:

Os valores indicam as expectativas, as aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de transcender-se a si mesmo e à situação histórica; como tal, marcam aquilo que deve ser em contraposição àquilo que é. A valoração é o próprio esforço em transformar o que é naquilo que deve ser” (SAVIANI, 2013, p.46).

Esse espaço entre o que é e o que deve ser, entre o valor e a valoração, segundo Saviani (SAVIANI, 2013, p.46), é vital à humanidade, sem o qual a razão da existência, seriam destituídos de sentido. Compreendemos que os objetivos da educação são equivalentes aos objetivos da necessidade humana, ou seja, em tornar real aquilo que é no que deve ser. Para Saviani “a definição de objetivos educacionais depende das prioridades ditadas pela situação em que se desenvolve o processo educativo” (2013, p.48). Quando uma situação tem estabelecida uma hegemonia, com princípios a serem perpetuados, os objetivos educacionais consequentemente serão compatíveis, no intuito de se legitimar a formação do homem segundo tais princípios.

Se voltarmos nossa atenção à situação de Portugal no século XVII, identificamos características prioritárias à formação do homem, assim como, as estruturas institucionais que alicerçavam esses objetivos. De acordo com Paiva (2004, p. 79-80), nesse período o Rei era o maior representante de Deus na terra e possuía a missão de auxiliar os seus súditos a ascenderem à salvação. Portanto, a vivência religiosa de todos era a sua incumbência. Uma ordenação designada por Deus, legitimada pela sociedade e, instrumentalizada pela Igreja. Nossa hipótese, portanto, é de que a arte contribuía com essa missão, por meio de princípios educativos compatíveis com os interesses reais.

Nesse sentido, Ferreira (2004, p. 58) afirma que o Estado e a Igreja não permitiam o desenvolvimento de conhecimentos que não fossem aprimoramentos de modelos consagrados, com a finalidade de reforçar a ortodoxia católica e de perpetuar as decisões de Trento. A Igreja, a Inquisição e a Coroa, se tornaram um tripé de sustentação ao objetivo do acrescentamento da fé católica e, agiram de tal modo, que repercutiu significativamente no âmbito da educação e da cultura. O Barroco sintetizou as consequências no âmbito cultural, como afirma Ferreira:

buscou-se impressionar pela exuberância dos elementos ou dos argumentos ou pelo dramatismo dos enredos ou das representações. O Barroco é a consequência estética dessa impossibilidade de se apresentar evidências ditadas pelo equilíbrio da razão porque traduz uma mundividência artística que se caracteriza sobretudo por querer cativar pela forma e pelo movimento, converter pelo aparato decorativo ou argumentativo, sugestionar pelo dramatismo das imagens ou a força das metáforas. (2004, p. 58).

Os Jesuítas foram incumbidos de uma missão educacional, e reverberaram a doutrina católica por meio da educação com o objetivo de formar tanto religiosa como intelectualmente a cristandade. Paiva (2004, p. 81) afirma que as escolas foram pensadas para atuar em nome da Igreja, a fim de ensinar a verdade e o caminho para a verdade e, conforme as alterações da realidade social, em que se cultivava a fé: “Era natural, pois, que o rei buscasse junto ao clero os meios de realização do ensino das letras, nos termos das novas exigências sociais.” (PAIVA, 2004, p.81).

Ferreira (2004, p. 60) afirma que o empenho em expandir as escolas jesuítas foi acompanhado por uma concepção pedagógica que, a partir de uma organização unitária, enquadrasse todas as escolas que possuíam pelo mundo. “Não há dúvida que os jesuítas conseguiram rapidamente organizar um sistema bem articulado e muito apropriado aos princípios ideológicos que os orientavam.” (FERREIRA, 2004, p. 61). A Companhia de Jesus agia com o objetivo de instituir escolas e, por meio delas, promover os princípios do Catolicismo.

A educação promovida pela Companhia de Jesus era sistematizada, conforme Saviani (2012, p. 83): “quando educar passa a ser objeto explícito da atenção, desenvolvendo-se uma ação educativa intencional, então tem-se a educação sistematizada.”. Em contrapartida, a atividade pictural, que ocorria no período Barroco em Portugal, seja por meio das obras de Josefa de Óbidos, ou por qualquer outro pintor do mesmo período, possuía princípios educativos assistemáticos, cujo objetivo final não era o de, no sentido estrito, educar, no entanto, educavam. Saviani também nos esclarece sobre esse formato de educação:

em todos os setores da sociedade: as pessoas se comunicam tendo em vista objetivos que não o de educar e, no entanto, educam e se educam. Trata-se aí da educação assistemática; ocorre uma atividade educacional, mas ao nível da consciência irrefletida, ou seja, concomitantemente, mas outra atividade, esta sim, desenvolvida de modo intencional (2012, p.83).

A Companhia de Jesus, de forma sistematizada, promovia, por meio de seu método de ensino, a doutrinação católica; a arte, por meio do Barroco, idem. Como consequência cultural da situação em que estava inserida, a arte educava, sem que esse fosse seu objetivo principal. As obras de arte eram encomendadas, especialmente, para sublimar as igrejas, mosteiros, conventos e, também, para elevar a corte e evidenciar as distinções sociais entre as classes que não tinham acesso às ornamentações.

A composição do século XVII, como esclarece Paiva (2004, 80), determinava que o corpo social obedecesse a uma dinâmica hierárquica, na qual como o rei era católico, todo o seu reino também deveria ser. Nesse sentido, compreendemos a relevância pedagógica da arte, que, por meio das imagens, contribuiu para os princípios educativos pretendidos: formar bons súditos cristãos, afinal “A única possibilidade, à época, era uma sociedade cristã” (PAIVA, 2004, p.80).

O Santo Ofício (como também era conhecido o Tribunal da Inquisição) cuidou para que as obras mantivessem temáticas sagradas, distantes da ameaça pagã e para que as ordenanças de Trento fossem cumpridas. Gonçalves (1990, p. 111), alega que a contrarreforma provocou alterações importantes na arte sacra, que conduziram a produção artística por um caminho diferente da arte renascentista, e responsabiliza o Concílio de Trento por essa reforma iconográfica.

O Concílio de Trento compreendeu o valor pedagógico das representações plásticas e, segundo Gonçalves (1990, p. 112), estabeleceu algumas diretrizes, como: evitar a lascívia, a formosura dissoluta, a desonestidade e elementos que causassem confusão, desordem ou transtorno, e, ainda, que nada fosse visto de profano na casa de Deus. Além disso, todas as imagens elaboradas para o interior dos templos deveriam ser aprovadas por bispos. Portanto, a liberdade característica do Renascimento foi vetada e as temáticas tornaram-se cada vez mais repetidas, “começa a dar um relevo especial às cenas de milagres, da exaltação mística e do martirológico - cenas que se prestavam a uma função de catequese” (GONÇALVES, 1990, p.112).

Essas legislações eclesiásticas eram válidas para todos os países católicos e em Portugal não seria diferente. Segundo Gonçalves (1990, p. 112), no dia doze de setembro de 1564 o cardeal D. Henrique exigiu que os tribunais portugueses colaborassem com as execuções dos decretos tridentinos e que harmonizassem o direito canônico com o direito civil. De acordo com Gonçalves (1990, p. 113), para que as ordenações de Trento fossem incorporadas às práticas eclesiásticas dos bispados portugueses, tiveram que ser realizadas trinta e seis reuniões com os bispos.

Gonçalves (1990, p. 113) também afirma que, em Portugal, aparece em 1565 pela primeira vez, menção às regras do Concílio de Trento relacionadas à arte sacra, na Constituição do Acerbispado de D. João de Melo, de Évora, em seguida, em 1568, nas Constituições Extravagantes Segundas, do arcebispo de Lisboa e, em 1585, nas Constituições sinodais do Bispado do Porto. Em todas elas, as orientações são parecidas às prescritas em Trento, com uma diretriz a mais: “retirar dos seus lugares as imagens [...] envelhecidas” (GONÇALVES, 1990, p. 113), ou seja, deveriam ser retirados os quadros envelhecidos, cuja estética provavelmente correspondia a da Renascença; com isso, não temos como mensurar quantas obras deixamos de conhecer por conta dessa ordenação.

Alguns temas abordados antes do período tridentino passaram a ser proibidos e, com o tempo, foram desaparecendo da arte cristã. A ênfase à beleza do corpo humano e o nu como expressão do belo já não poderiam ser reproduzidos, pois contrariavam as ordens do Concílio de Trento e possibilitavam uma liberdade desmedida aos artistas. As imagens com a presença de Maria, mãe de Jesus, também foram bastante discutidas, esteve em pauta seu sofrimento na imagem do calvário, que não poderia ser desmedido - por ser uma mulher sábia -, mas também não poderia ser indiferente - pois amava o seu filho. Outro aspecto das imagens relacionadas a Maria, que promoveu certa inquietação, foram as obras que representavam a amamentação de Jesus, como afirmou Gonçalves “uma visão tão humana da Mãe de Jesus desagradou à Igreja pós-tridentina, sempre receosa da deturpação do divino” (1990, p. 117).

O Santo Ofício, portanto, preocupou-se em cumprir as determinações do Concílio de Trento, a fim de que o objetivo geral do clero e, consequentemente do Rei, se concretizasse. Em suma, trabalhava para o cumprimento do que compreendiam por vontade divina. Para isso, a fé católica não poderia sofrer alterações e nem ser abalada por heresias externas, seja dos protestantes, seja dos humanistas, e as instituições mantenedoras da fé estavam preparadas para dissolver as ideias dissidentes. A arte pertenceu a essa estratégia e, por isso, foi vetada quando se distanciava dos propósitos pré-estabelecidos, para que perpetuasse os dogmas da Santa Igreja Romana.

a função a que sempre esteve destinada a arte religiosa foi a de ser mediadora, instruindo e cativando os crentes pela lição fascinante. A Contra-Reforma mais não fez do que reactivar essa tradição, expurgando-a das infiltrações que o exacerbado culto do belo pagão nela tinha introduzido” (HATHERLY, 1991, p.73).

A doutrina religiosa preconizava que o indivíduo se afugentasse do pecado para alcançar a salvação, portanto, a missão do indivíduo do século XVII era árdua, aprimorar-se enquanto indivíduo para alcançar a salvação divina. Entendemos como tarefa árdua, pois para a cosmovisão cristã a natureza humana é pecaminosa e a busca pela santificação é uma luta contra a sua própria essência, marcada pelo pecado original de Adão e Eva.

Como pode ser elucidada pela passagem do apóstolo Paulo, na carta aos Romanos 7:19: “Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero” (BÍBLIA, 2002), que faz referência à luta constante do indivíduo com sua própria carne, para tornar-se digno de salvação. Em contrapartida, os pensamentos interpretados como heréticos advindos do Protestantismo, pregavam “sola gratia” (graça somente), ou seja, que a salvação seria alcançada mediante a graça divina, e não apenas pelas obras. Para entender essa concepção, novamente a passagem do apóstolo Paulo em sua carta aos Efésios 2: 8-9, “Pela graça sois salvos, por meio da fé, e isso não vem de vós, é o dom de Deus, não vem das obras para que ninguém se encha de orgulho.” (BÍBLIA, 2002).

Elucidamos isso, pois a contradição entre o estado atual, pecador - o que é - e o estado a ser alcançado, imaculado - o que deve ser -, reflete diretamente na estética do Barroco, principalmente quando observamos que, de um estado a outro, há o hiato do inatingível. Essa dinâmica pode ser notada no dramatismo das imagens, nos contrates constantes, nos exageros, na ênfase do sofrimento e, de forma geral, no espírito que o Barroco está imerso, e que Hatherly (1991, p. 73) afirma ser paradoxal: “Se a arte, em si, é uma forma de ilusionismo porque pinta o real mas não é o real, (ceci n’est pas une pipe!), para a concepção panreligiosa do Barroco nem sequer o próprio real (que é o mundo) é real, já que é apenas aparência de um outro, invisível, de que todo o visível é indício.”.

A representação de Cristo é utilizada a favor dessa premissa, como podemos analisar nas obras que demonstram o seu sofrimento. Carregadas de significado, geram um impacto intuitivo no observador, incutindo na consciência dos devotos uma noção de indignidade e, consequentemente, de dependência de Cristo, para que seja alcançado o perdão e, em sua decorrência, a salvação. A imagem com fundo escuro ressalta a pele clara de Jesus e proporciona um contraste, que evidencia o sangue e o significado intrínseco a ele.

Outro contraste importante pode ser ocasionado pelo exagero, pela exuberância e pelo esplendor dos monumentos arquitetônicos, dos detalhes pictóricos e das ornamentações. Tal contraste não está imediatamente atrelado a outro elemento visual, como no caso das tonalidades, mas está presente na realidade do observador que, ao se comparar à magnitude do Barroco, enxerga- se ínfimo, “porque nunca o superior se pode mostrar ao inferior directamente, sem o intermédio da imagem-símbolo” (HATHERLY, 1991, p. 73). Essa dialética não é refletida apenas no espectro religioso, embora também seja, mas ela está atrelada novamente ao inatingível: entre a divindade e o humano, entre a nobreza e a pobreza, entre os cortesãos e os mercantis, entre o Rei e o súdito, enfim, contrastes estruturais necessários à estratégia social do século XVII.

Na obra “O menino Jesus Salvador do Mundo” (figura 1), de 1673, há uma cercadura de flores recorrentes nas imagens de Josefa de Óbidos, em que Jesus aparece coberto com uma túnica de renda, almofada, sandálias estilizadas, globo embaixo dos braços, representando o mundo, enfim, um conjunto de elementos, que remetem a vida de uma criança nobre e não a vida de Jesus, filho de marceneiro, nascido em uma manjedoura. O esplendor, os preciosismos, o exagero dos detalhes, os atavios, fazem parte da estética barroca, que valorizam as personagens, ressignificando a consciência que o observador tem da figura representada, pois o Menino Jesus não podia parecer uma criança qualquer.

Fonte: SERRÃO, V. Josefa de Óbidos e o tempo Barroco. Lisboa, 1991, TLP - Instituto Português do Património Cultural, p. 191.

Figura 1 O menino Jesus Salvador do Mundo, óleo sobre tela, 95 x 116,5 cm, Igreja Matriz de Cascais, Josefa de Óbidos, 1673. 

Portanto, em cada caso, compreendemos “que a religiosidade, sincera ou imposta, se estendia a tudo constituindo um mundo imaginário tão palpável como o natural” (HATHERLY, 1991, p. 71), e que a educação em Portugal no século XVII esteve voltada à formação do homem e imbricada aos princípios religiosos educativos. Alicerçada pela Coroa e pela Inquisição, a educação se manifestou na cultura iconoclasta por meio da estética do Barroco, promovendo a arte catequética e, consequentemente, educativa. Constatamos, também, que o valor almejado, a salvação, repercute diretamente nas interpretações iconográficas do Barroco, proporcionando uma carga dramática às imagens, contrastes estratégicos e receitas pictóricas que amparavam os interesses da Igreja.

Análise das obras de Josefa de Óbidos e seus aspectos formadores

Além da análise isolada das obras de Josefa de Óbidos, o conjunto de suas pinturas também tem muito a ser explorado, pois as produções acompanham as fases da artista e também as tendências históricas que a arte testemunhou e/ou promoveu. Para esta pesquisa consideramos 98 obras, que correspondem a boa parte de produção conhecida da artista, reunidas para a exposição “Josefa de Óbidos e o Tempo Barroco”. Pretendemos verificar as temáticas e os elementos mais frequentemente representados nas obras.

Em suma, os elementos utilizados repetidamente, configuram não somente a estética da pintora, mas também, as tendências propriamente do Barroco, assim como, as temáticas escolhidas por Josefa. De todas as temáticas representadas por Josefa de Óbidos, a religiosa é a mais constante, pois são sessenta e sete pinturas e três gravuras de cunho religioso e vinte e sete pinturas e uma gravura com temáticas cotidianas. Para esquematizar as análises, dividimos os trabalhos que se destinam a relatar episódios religiosos em dois grupos: as obras de cenas narradas na Bíblia, que são trinta e cinco, e as obras de cenas de santos canonizados posteriormente, ao todo vinte e uma.

Para a análise, vamos considerar que a utilização de gravuras como modelos ou fontes de inspiração para a pintura foi uma prática universalmente generalizada durante a época barroca. Copiadas integralmente ou interpretadas, seccionadas e combinadas com outros motivos, as gravuras italianas, francesas e flamengas originaram centenas de quadros de todos os gêneros, que se encontram em todos os países ocidentais.” (SOBRAL, 1991, p. 51). Muito embora, Josefa tenha copiado muitas obras, sua produção possui uma visão plástica muito relevante. Cada obra ilustrava uma mensagem, pois, como já tratamos, a arte prestava-se a esse papel narrativo catequético.

Em contrapartida, o que as pinturas de natureza-morta pretendiam ensinar o que estava incutido ao retratar flores, frutas e doces?

Em que se incluía o costume de a tudo atribuir um significado oculto, é natural que muitas das obras que então se produziram fossem enigmáticas, hieroglíficas, emblemáticas, já que tinham por objectivo veicular uma lição escondida na aparência, a qual, não podendo ser verdadeiramente representada, podia sê-lo aproximadamente através da alusão e da alegoria. (HATHERLY, 1991, p. 71)

Concordamos com Hatherly acerca dos ilusionismos metafóricos inscritos nas pinturas barrocas, que tinham a tendência de revelar o superficial e, ao mesmo tempo, esconder significados enigmáticos. Contudo, as obras de natureza-morta elaboradas por Josefa assumem um feitio mais gracioso, decorativo, reflexo de sua singela forma de enxergar os elementos. Conforme Serrão, os Bodegones de Josefa de Óbidos - como é chamado pelos portugueses e espanhóis o gênero natureza-morta - “reflectem mais uma certa curiosidade descritivista do que, propriamente, elaborados edifícios de reflexão simbólica, para que aliás a própria clientela a que tais quadros se destinavam, não estava em geral, sensibilizada.” (SERRÃO, 1991, p. 40).

O modo que a pintora encara alguns temas, com sua ingenuidade sistemática, é observado por alguns críticos como uma forma de “pintar meninos como bolos”, com “uma religiosidade de rendinhas, glutona e ao fim e ao cabo sublime, na patética inocência.” (SERRÃO, 1991, p. 45 e 41). Em todo caso, embora tenha participado do Barroco em uma corte de aldeia, com um público pacato, as suas obras de natureza-morta, que representam 26% de sua produção conhecida, têm sim significados absortos. Devemos considerar, por exemplo, que segundo Naritomi (2007, p. 39), o ciclo da cana de açúcar estava em seu período áureo, o século do açúcar durou de 1570 a 1670 e, portanto, conceber pinturas de doces pode expressar uma mensagem significativa à época.

O açúcar representava riqueza, estava diretamente atrelado ao poder econômico e consequentemente, à ascensão da classe mercantil que passou a comercializar esse recurso. Inferimos, portanto, que possuir obras de natureza-morta com a representação de doces, poderia ser uma forma de comunicar a recém ascensão a um novo cenário financeiro e, por isso, a importância da fartura e da exuberância, além de serem cheias de preciosismos, exatamente como era o estilo de Josefa de Óbidos.

Analisaremos a seguir a obra “Natureza-Morta com Doces e Flores” de natureza-morta, que demonstra a relevância do açúcar para a artista e sua clientela. Enumeramos, nas obras, os elementos que pretendemos analisar, com o propósito de investigarmos os possíveis significados inscritos nos elementos representados. Faremos as análises sugerindo alguns significados, sem findá-los.

A maneira velada de tratar alguns assuntos, sem que a Inquisição ou a moral católica interferisse, era comum, como relata Hatherly: “Dissimilar solicitando a descoberta do dissimulo, eis o que fazem a poesia e a pintura de mensagem cifrada.” (HATHERLY, 1991, p. 73). Em todo caso, é uma interpretação possível e não uma sentença.

Fonte: SERRÃO, V. Josefa de Óbidos e o tempo Barroco. Lisboa, 1991, TLP - Instituto Português do Património Cultural, p. 205.

Figura 2 Natureza-Morta com Doces e Flores, óleo sobre tela, 85 x 160,5 cm, Biblioteca Municipal Anselomo Braamcamp Freire Santarém, Josefa de Óbidos, 1676. 

Fonte: Extraído de: SERRÃO, V. Josefa de Óbidos e o tempo Barroco. Lisboa, 1991.

Figura 3 Ilustração indicativa dos elementos da Obra Natureza-Morta com Doces e Flores de Josefa de Óbidos. 

O primeiro elemento enumerado, as ginjas (1), são um tipo de cereja mais ácida, elas são menos arredondadas que as cerejas normais e, por conta disso, e do sabor menos adocicado, possuem um significado menos gracioso. Hatherly (1991, p. 76 e 77) afirma que enquanto é atribuída às cerejas inocência, às ginjas é atribuído caráter de perfeição e sofrimento. O segundo elemento enumerado, são os “Ovos de Aveiro” (2), doce típico da região de Aveiro; guloseima composta por gema de ovo, açúcar e água, envolvido por uma massa que parece uma hóstia. Os enfeites ao redor dos “Ovos” são feitos com fitas, dando-lhes acabamento de joias.

Por tratar de joias, a Travessa de Prata com detalhes dourados (3) onde estão os doces, é incrivelmente detalhada, o brilho em alguns ângulos da travessa demonstra a habilidade da artista em iluminar pontualmente a obra. O doce (4) que possui uma casca semelhante a uma flor, pode ser a “Queijada da Graciosa”, com um recheio de leite e ovos (um padrão que se repete). Ao lado, há um doce comprido (5) que, devido a aparência, presumimos que seja o “Travesseiro de Sintra”, cuja massa folhada envolve o recheio de ovos e amêndoas.

Essa obra, como revela o título, não diz respeito apenas aos doces, mas também às flores, que têm significados importantes para o sentido das composições. Serrão (1991, p. 248) e Hatherly (1991, p. 82) nos ajudam a identificar tais sentidos inerentes à elas. Verificamos que uma das flores se repete nove vezes na pintura, a papoula (6), cujo significado é a tristeza. O ramalhete de flores, que quase se camufla ao fundo escuro da obra, é a flor de vinha (7), que significa bons intentos.

Ao lado da flor de vinha e bem pequena, podemos notar a flor malmequer (8), uma flor que passaria despercebida, devido ao seu tamanho, cujo significado é o sofrimento. O cravo (9), único e meio tímido, aparenta estar de costas para o observador, como se não quisesse ser percebido, significa desejo e afeição. Por último, a flor mosqueta (10), que representa formosura e a margarida amarela (11), misericórdia.

Pois a flor é frequentemente proposta como figura arquetípica da alma, como centro espiritual [...]. Se o emprego alegórico da flor é vastíssimo, o uso da simbologia floral, para fins laudatórios-místicos, é tão frequente no século XVII em todas as artes e letras que não é possível aqui dar sequer uma ideia da sua extensão. (HATHERLY, 1991, p. 79)

Após expor todos os significados e destacar alguns elementos, é possível gerar interpretações acerca da obra. Como vimos, a composição une: ginjas (perfeição e sofrimento), papoulas (tristeza), flores de vinha (bons intentos), malmequeres (sofrimento), cravo (desejo e afeição), mosquetas (formosura) e margaridas (misericórdia). Os significados reunidos podem expressar uma narrativa, que dialoga com outras obras.

Podemos iniciar a interpretação pelo Cravo, solitário e “tímido”, cujo significado é o desejo, considerando que se ele tivesse sido pintado na cor amarela significaria desconfiança e, se branco, castidade, mas foi colorido de vermelho, que significa desejo, logo, orientamos nossa interpretação nesse sentido. Na sequência voltamos nossa atenção às papoulas, que revelam tristeza, pois mesmo em meio a realização de outros prazeres, vinculados ao paladar, a presença do desejo que não é suprido promove tal sentimento, da mesma forma, o sofrimento, representado pela ginja e Malmequer. Em todo caso, a artista pede a misericórdia divina, ao pintar as Margaridas amarelas e revela por meio das Flores de Vinha, que tem bons intentos, mesmo que essas flores não estejam destacadas na composição.

Estas interpretações possíveis, e muitas outras, são geradas pelo espectro mitificador do Barroco, mediante os contrastes e exageros, pelos tratados que incutem significados aos elementos da natureza e propriamente pela censura de determinados assuntos. Em suma, são quadros decorativos, que revelam a importância de um produto - açúcar -, a tendência social de uma época - a ascensão mercantilista - e que, ao mesmo tempo, são educativas, por elucidarem temáticas religiosas e também enigmáticas, por conterem mensagens intimistas. Estas pinturas decorativas, não podem ser consideradas de menor importância para a arte, pois ao fim das análises, oferecem muito mais que o testemunho de uma época.

Analisaremos, por fim, a obra “Calvário”, uma pintura icônica, tanto para o portfólio de Josefa de Óbidos, quanto para o Barroco. A obra, assim como em praticamente todas as pinturas da artista, não possui planos profundos - com perspectiva - e conta com um fundo extremamente escuro. Nesta, em específico, presumimos que haja um propósito para isso, além de promover os contrastes entre claro e escuro, faz referência ao momento da morte de Jesus, que é descrito biblicamente como um período que a terra esteve encoberta por trevas: “Desde a hora sexta até a hora nona, houve treva em toda a terra.” (BÍBLIA. Mateus 27:45, 2002). Em todo caso, há um raio de luz, que vem do alto, por isso, os mantos e Cristo estão iluminados.

Fonte: SERRÃO, V. Josefa de Óbidos e o tempo Barroco. Lisboa, 1991, TLP - Instituto Português do Património Cultural, p. 222.

Figura 4 Calvário, óleo sobre tela, 160x174 cm, Santa Casa da Misericórdia de Peniche, Josefa de Óbidos, 1984. 

Iremos analisar separadamente as personagens da obra, para verificarmos os possíveis sentidos incutidos em suas representações. A narrativa bíblica conta-nos, no evangelho de Mateus 27:56 (BÍBLIA, 2002), que no ato da crucificação estavam presentes algumas mulheres, e no evangelho de Lucas 23:49 (BÍBLIA, 2002) afirma-se que estavam presentes todos os amigos de Jesus. Elucidamos isso, pois a escolha de Josefa de Óbidos em representar três personagens ao redor da cruz - Maria, Maria Madalena e João - demonstra uma seleção com possíveis propósitos, que não tenha necessariamente partido dela, pois, como tratamos, muitas das pinturas eram elaboradas a partir de gravuras, ou propriamente de outras pinturas.

Consideramos que nesta seleção há uma pretensão, pois, as pinturas barrocas não poupam elementos cênicos e onde poderia ter um grupo de pessoas, foram selecionadas apenas três figuras a serem representadas. Dessa maneira, é incutido no imaginário do devoto que o episódio tenha ocorrido apenas com a presença das três personagens, cada qual com sua representatividade. Nas figuras a seguir, exemplificamos a forma pela qual costumamos ler as imagens. Segundo Dondis (2000, p. 81), observamos as imagens de acordo com a forma que lemos os livros, da esquerda para a direita, e valorizamos a parte superior da imagem, nesse sentido, acompanharemos essa sequência para descrição das personagens.

O primeiro elemento que ressaltamos na figura de Maria é o seu manto azul, que está associado à sua imagem devido uma convenção cultural, que possibilitou que o adereço em sua cabeça a diferenciasse das representações das mulheres comuns. O manto azul, faz referência a Arca da Aliança, que por ordenança de Deus, quando transportada deveria ser coberta com um tecido azul. Como ambos, tanto Maria quanto a Arca da Aliança, carregaram a presença de Deus, foi feita essa alusão atrelando a imagem de Maria ao manto azul. A simbologia do manto também faz referência à obediência de Israel no cumprimento dos mandamentos divinos, característica que também pode ser atribuída à Santa Maria.

Como citamos anteriormente, a intensidade do sofrimento da Virgem aos pés da cruz foi pautada nos tratados do Santo Ofício. Segundo Gonçalves (1990, p.119), a Santa não poderia sofrer de forma desmedida, por conta da sensatez atribuída a ela e, nem tão pouco, deixar de sofrer, por conta do amor que designava a seu filho. Por isso, sua feição é serena, de devoção e piedade e não está aos prantos como Maria Madalena - embora escorra uma lágrima de seus olhos - e nem perplexa como São João. Como a obra é muito escura não conseguimos verificar os detalhes da representação, mas identificamos o halo acima de sua cabeça, que representa sua santidade e a posição de suas mãos, que demonstram intercessão. O seu rosto figura uma mulher jovem, embora tivesse um filho de 33 anos, mas compreendemos a intenção de Josefa, de aludir uma imagem graciosa para cativar os observadores.

Presumimos que João esteja na obra, pois a ele foi conferido a personificação do devoto que ama a Deus. O seu símbolo enquanto discípulo mais amado, evoca a possibilidade dos fiéis se relacionarem com Cristo, por isso podemos observar que entre as três personagens, ele é o único que parece estar em movimento, cuja ação demonstra uma possível aproximação/toque.

O seu manto possui uma coloração vermelha vibrante e chama mais atenção que o sangue que emana de Cristo. Enquanto Santa Maria e Maria Madalena dividem metade da tela, Josefa concedeu a São João toda a outra metade, todavia, a artista representa o seu halo com menos iluminação, para demonstrar que ele é inferior a Santa Maria. O cabelo comprido de São João faz parte do “receituário” de Josefa de Óbidos, que adorna de maneira feminil todos os elementos que tem oportunidade. Percebemos algumas lágrimas na face perplexa do Santo e uma feição de sofrimento, exemplificando a maneira pela qual o devoto deve suceder se exposto à possibilidade de perder o seu Salvador.

Ao passo que São João pode personificar o fiel temente a Deus, Maria Madalena, que foi prostituta e recebeu o perdão de Jesus, personifica o fiel que precisa da misericórdia e consequente perdão divino. Ela é uma das personagens que melhor expressa a devoção, a penitência e a obra redentora de Jesus. “Arrependida, dramática e perdida no seu amor a Cristo, ela é um dos emblemas da Igreja catequética barroca, exemplum supremo da infinita capacidade acolhedora do catolicismo.” (SOBRAL 1991, p. 55).

Ao lado de Maria Madalena há um recipiente, que faz referência a um frasco de perfume, que ela derramou aos pés de Jesus, dias antes da crucificação e em seguida enxugou com os cabelos. Tal demonstração de amor é interpretada como uma devoção que foge do convencional, uma entrega desmedida, que demonstra a sua gratidão, por ter recebido a remissão de seus pecados. Na obra, sua postura prostrada, agarrada aos pés da cruz, com lágrimas escorrendo em seu rosto, demonstra sua intensidade. Atitudes que encenam a forma pela qual o observador deve se relacionar com o divino, com intensidade, devoção e entrega. Ela não possui um manto e halo sobre sua cabeça, elementos que a santificariam, presumimos que a intenção da pintora era a de ilustrar aos fiéis que todos têm acesso à Jesus e não apenas os Santos.

Se analisarmos a sequência das personagens, conforme expomos: Maria em primeiro, João em segundo e Maria Madalena em terceiro - pois nesta pintura não estamos focando na figura central, que é Jesus -, observamos que as nuances de sofrimento vão aumentando conforme o nível de corruptibilidade da personagem representada, como se o sofrimento fosse inversamente proporcional ao nível de santidade.

Essa possível interpretação da obra, é um dos exemplos de princípio educativo promovido por meio da estética (Barroca) e da narrativa (bíblica) utilizadas na pintura, que embora não tenha a pretensão de educar cumpre esse papel, proporcionando sentidos no espectador. Uma vez que, o objetivo religioso era o de persuadir os fiéis a viverem em retidão, segundo as narrativas bíblicas, cujo acesso era viabilizado por meio das pinturas, interessa que realizemos uma análise da mensagem que é transmitida por meio da obra, para além dos aspectos evidentes, mas também incutidos, cuja dramaticidade possui potencial diretivo.

Maravall (1997, 258) afirma que o mundo nesta época era uma luta de opostos, e que o Barroco vive no centro dessas oposições, nas diferentes mentalidades religiosas e nas disputas pela soberania econômica e política, enfim, todas as polaridades que impulsionam o Barroco a ser, como o conhecemos, intermediário de duas racionalidades, resultado das contradições do riso e do pranto, do estado atual (corruptível) e do estado desejado (incorruptível), proporciona uma carga dramática.

A carga dramática que a obra promove é proporcional ao acontecimento que ela representa, o ato redentor de Cristo é elementar para a cosmovisão católica. Os propósitos incutidos nas diretrizes da Igreja Católica, giram em torno do sacrifício de Jesus, que proporcionou, aos que nele cressem, a possibilidade da salvação. Como ressaltamos anteriormente, a salvação em Portugal no século XVII, é a finalidade almejada pelos fiéis, que os reis, com a colaboração da Igreja, tinham a função de zelar.

Os princípios educativos incutidos na narrativa ilustrada pela obra não são enigmáticos, como nas pinturas anteriores, eles são clarividentes: constrangem o observador, despertam piedade, sentimento de culpa e de indignidade. O sofrimento de Maria, João e Maria Madalena, ao redor da cruz, são modelos de como o fiel deve sentir o martírio, como afirma Hatherly (1991, p. 73), a arte recorria “a alegorias e parábolas para descrever a relação do visível com o invisível transcendente.”.

Muito embora a temática seja trabalhada frequentemente, a obra convoca a atenção do fiel, considerando principalmente que ela é colocada na igreja, um ambiente propício à contemplação. O ambiente dirige o fiel a uma experiência de temor e, consequentemente, a uma reação dialética, que fomenta a reflexão e a mudança de conduta. Os relatos bíblicos, retratados pictoricamente, são semelhantes aos sermões enunciados: têm o propósito de promover uma reação na realidade do devoto. Como naquele período o indivíduo era súdito e fiel, sem que esses espectros fossem separados, a arte educava religiosamente para que a situação social fosse perpetuada.

Considerações finais

Vimos, portanto, que a cada obra analisada são reveladas premissas que têm o propósito de ilustrar uma verdade religiosa e, que, por fim, educam. Analisamos, também, que mesmo as obras de cunho decorativo têm muito a contribuir na leitura da época que investigamos, assim como, podem conter mensagens cifradas, que revelam a maneira pela qual os artistas se expressavam. Verificamos, também, que a maioria das pinturas derivam de gravuras, que muito contribuíram para perpetuar os princípios hegemônicos, as fórmulas pictóricas, as alegorias do catolicismo e de maneira geral, o movimento Barroco. E, por fim, que a estética barroca, imersa nos contrastes, exageros e paradoxos, persuade o fiel/súdito a uma revisão de seus atos, em busca da salvação, de acordo com os princípios educativos almejados pela situação da reforma Católica.

Em suma, o Barroco esteve atrelado a uma atitude ressoante em seu espectador, isso porque, os aspectos formais deste movimento, como vimos anteriormente, possuem características diretivas, que conduzem o espectador. Nesse sentido, quando expusemos a compreensão de Saviani (2013, p. 43-44) acerca da educação, que se destina à promoção do homem, tal qual os objetivos institucionais dominantes. Compreendemos que o Barroco tenha contribuído para a educação do homem do século XVII, pois possibilitou que fosse promovido nestes, as características desejadas à sua formação. Aspirava-se a propagação e a conservação da fé Católica, objetivos que foram incutidos nos indivíduos do Seiscentos. Por fim, ao analisarmos as obras de Josefa de Óbidos, constatamos possíveis princípios educativos, especialmente de sentido religioso.

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1Serrão (1991, p. 45) afirma que era incomum no século XVII a prática profissional da pintura por mulheres. No entanto, haviam algumas mulheres, na Espanha há o exemplo de Luísa Roldán, Jesualda Sánchez e Josefa Sánchez. Em Flandres, são conhecidas Clara Peeters, Judith Leyster e Louise Miollon. Em Portugal, haviam casos menores que o de Josefa de Óbidos, das freiras Maria dos Anjos e Joana Baptista.

Recebido: 14 de Agosto de 2021; Aceito: 25 de Outubro de 2021

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