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Cadernos de História da Educação

On-line version ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub Sep 13, 2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-128 

Artigos

Magistério Público no Brasil: remuneração e primeiros ensaios estatutários

Magisterio Público en Brasil: remuneración y primeros ensayos estatutarios

Jarbas de Paula Machado1 
http://orcid.org/0000-0002-7607-655X; lattes: 2700825021849547

1Universidade Estadual de Goiás (Brasil). jarbas.machado@ueg.br


Resumo

Este artigo discute a remuneração do magistério público no Brasil, identificada nas normas oficiais, considerando o período de 1759 a 1889. Trata-se de um ensaio de caráter documental e bibliográfico. Mostra que no período analisado não houve o reconhecimento da atividade docente com evidências que apontem para dignas condições salariais, principalmente para aqueles que se dedicavam às “primeiras letras”. Apesar disso, são apresentados elementos sugestivos de que nesse período tenham sido instituídas as primeiras normas estatutárias e de carreira para o magistério público regulado pelo Estado.

Palavras chave: Remuneração do magistério; Profissão docente; Valorização salarial; Carreira do magistério

Resumen

Este artículo discute la remuneración del magisterio público en Brasil, identificada en las normas oficiales, en el período comprendido entre 1759 y 1889. Muestra que en el período analizado no hubo el reconocimiento de la actividad docente con evidencias que apunte a dignas condiciones salariales, principalmente para aquellos que se dedicaban a las "primeras letras". A pesar de ello, se presentan elementos sugestivos de que en ese período se establecieron las primeras normas estatutarias y de carrera para el magisterio público regulado por el Estado.

Palabras clave: Remuneración del magisterio; Profesión docente; Valorización salarial docente; Carrera del magisterio

Abstract

This article discusses the remuneration of the public teaching profession in Brazil, identified in the official norms, in the period between 1759 and 1889. It shows that in the analyzed period there was no recognition of teaching activity with evidences that point to decent salary conditions, especially for those that were dedicated to the "first letters". Nonetheless, it is suggested that the first statutory and career rules for the public teaching profession regulated by the State were established in this period.

Keywords: Teacher remuneration; Teaching profession; Teacher salary increase; Teaching career

Introdução

A origem do trabalho docente no Brasil, com estreita vinculação com a civilização europeia, particularmente com a Metrópole portuguesa, data da chegada dos padres jesuítas em 1549. Segundo Azevedo (1963, p. 501) esse fato “não só marca o início da história da educação no Brasil, mas inaugura a primeira fase, [...] certamente a mais importante pelo vulto da obra realizada e sobretudo pelas consequências que dela resultaram para nossa cultura e civilização”.

A Companhia de Jesus, ordem religiosa de filiação dos jesuítas, ficara incumbida pela Coroa portuguesa e pela Igreja Católica, de “integrar as novas terras e os seus nativos ‘selvagens’ ao mundo cristão e civilizado, a serviço da Fé e do Império” (XAVIER, RIBEIRO e NORONHA, 1994, p. 40). Para manutenção dos serviços “civilizadores” da Companhia de Jesus no Brasil, além dos subsídios da Coroa portuguesa para instalação dos colégios e da “redízima”, que correspondia a 10% dos impostos cobrados na Colônia, para sua manutenção, pontua Monlevade (2000), que os jesuítas organizaram um sistema de autofinanciamento baseado principalmente na criação de gado na imensidão das terras do litoral brasileiro cedidas pela Coroa portuguesa e cuidadas pelo trabalho escravo indígena e africano, o que com o tempo desobrigou a Metrópole de sua responsabilidade para com a inauguração do que Azevedo (1963, p. 507) chama de “bases da educação popular”: defesa de que o trabalho dos jesuítas não se limitava à propagação da fé católica, mas que possuía também o caráter educativo secular e intentava contemplar a diversidade populacional da época1.

O financiamento, seja oriundo da Metrópole ou do sistema próprio de geração de renda, não se destinava à remuneração dos mestres-escola2, mas à manutenção e proliferação do sistema educativo/religioso. Até porque os jesuítas que se dedicavam ao ensino, de acordo com as regras emanadas do “Ratio Studiorum”, eram admitidos com a “condição de consagrar espontaneamente suas vidas ao serviço de Deus no ensino das letras”, tinham “voto de pobreza”, não eram remunerados pelo trabalho realizado e, portanto, não viviam de salários pagos por patrão público ou privado.

Certamente a ausência de remuneração dos professores e dos irmãos coadjutores que cuidavam do trabalho material, além do uso da força escrava para a lida nas fazendas de gado, dentre outros, propiciaram aos jesuítas a ampliação considerável de suas propriedades, chegando a significar “20% do Pib” da Colônia (MONLEVADE, 2000, p. 17), o que viria a ser objeto de interesse do governo Português como alternativa de capitalização de sua economia.

De acordo com Ribeiro (1993), por razões internas e externas Portugal não conseguiu avançar da etapa mercantil para a industrial do regime capitalista, chegando ao século XVIII com uma economia em franca decadência. As críticas tanto pelo atraso intelectual quanto pelo empobrecimento econômico recaíram “à conta dos religiosos que tiveram a direção exclusiva do caráter e educação nacionais” (AZEVEDO, 1963, p. 538).

Em 21 de julho de 1959 os jesuítas foram expulsos do reino português e de seus domínios como uma das principais medidas da reforma de Estado implementada pelo Marquês de Pombal, então ministro português. Para o governo a expulsão da Companhia de Jesus era necessária porque “a) era detentora de um poder econômico que deveria ser devolvido ao governo; b) educava o cristão a serviço da ordem religiosa e não dos interesses do país” (RIBEIRO, 1993, p. 33).

Quando o decreto do Marquês de Pombal dispersou os padres da Companhia, expulsando-os da Colônia e confiscando-lhes os bens, fecharam-se de um momento pra outro todos os seus colégios, de que não ficaram senão os edifícios, e se desconjuntou, desmoronando-se completamente o aparelhamento de educação, montando e dirigido pelos jesuítas no território brasileiro. [...] no momento de sua expulsão, possuíam os jesuítas [...] na Colônia, 25 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários, sem contar os seminários menores e as escolas de ler e escrever, instaladas em quase todas as aldeias e povoações onde existiam casas da Companhia. (AZEVEDO, 1963, p. 539).

Segundo Ribeiro (1993, p. 33) “surge, com isso, o ensino público propriamente dito. Não mais financiado pelo Estado, mas que formava o indivíduo para a Igreja, e sim o financiado pelo e para o Estado”. Nesta nova perspectiva de ensino público há a demanda de um novo agente educativo: o professor público3 regulado e pago pelo Estado.

A partir do contexto supracitado problematiza-se o seguinte: como foram remunerados os professores públicos no Brasil no período compreendido entre 1759, marcado pela expulsão dos jesuítas, e 1889, fim do Império4? Que elementos estatutários relacionados à atividade docente podem ser evidenciados durante esse período?

Não é pretensão deste estudo, discutir a questão do trabalho docente no que se refere ao seu lugar no sistema capitalista, seja como profissão no sentido, por exemplo, de Enguita (1991), como proletarização no sentido, por exemplo, de Monlevade (2000) ou em outras vertentes intermediárias que se ocupam dessas análises. Pretende tão somente verificar como foi regulado e, sobretudo remunerado, o trabalho desses agentes do Estado que passam a compor a história da educação no Brasil.

A remuneração docente nas Reformas Pombalinas

De acordo com Azevedo (1963) a expulsão dos jesuítas do reino português não significou uma simples adequação ou substituição imediata do sistema de ensino. O encerramento das atividades da ordem foi radical, sem nenhuma proposta à altura que pudesse, pelo menos, amenizar sua ausência. Por outro lado, a crise gerada pela expulsão dos jesuítas provocou a aprovação de medidas que contribuíram para avanços na constituição de um ensino menos confessional, controlado pelo Estado. Para o exercício deste controle, o Alvará Régio de 28 de julho de 1759 criou o cargo de Diretor Geral dos Estudos, que deveria encaminhar os concursos públicos para professores régios e prestar contas diretamente ao rei, ao fim de cada ano, sobre o trabalho e o desempenho professoral. Também cabia ao diretor geral a concessão de licenças para o magistério público e particular. A ele todos os professores do reino estariam subordinados, inclusive sob pena de advertência, perda do cargo, multa e até degredo. Os mecanismos oficiais, não só de admissão, mas também de monitoramento e fiscalização do trabalho docente, remontam, portanto, a nomeação dos primeiros professores públicos controlados pelo Estado.

No que se refere à constituição de um estatuto do magistério público controlado pelo Estado, entendido como um conjunto de regras diretamente vinculadas à atividade docente, no Alvará de 28 de julho de 1759, que estabelece algumas normas para contratação de professores régios para as classes de gramática latina, grego e retórica, são apresentadas as primeiras contribuições. As principais, para o que interessa a este estudo, constam dos seguintes pontos:

11. Fora das sobreditas classes não poderá ninguém ensinar, nem pública nem particularmente, sem aprovação e licença do Diretor dos Estudos, o qual, para concedê-la, fará primeiro examinar o pretendente por dois professores régios de Gramática; e com aprovação deste lhe concederá a dita licença, sendo pessoa na qual concorram cumulativamente os requisitos de bons e provados costumes; e de ciência e prudência; e dando-se-lhe a aprovação gratuitamente, sem por ela ou pela sua assinatura se lhe levar o menor estipédio.

12. Todos os ditos professores levarão o privilégio de nobres, incorporados em direito comum, e especialmente no Código Título de professuribus et medicis. (Alvará de 28 de julho de 1759).

No entanto, conforme Azevedo (1963) só em 1772, ou seja, treze anos depois da expulsão dos jesuítas e das determinações do Alvará supramencionado é que uma ordem régia mandou estabelecer essas aulas (latim, grego e retórica) no Rio de Janeiro e nas principais cidades das capitanias. Segundo o autor,

Embora determinada pelo alvará de 1759 que criou em Portugal uma diretoria-geral de estudos, a fiscalização das aulas e escolas régias não começou a ser feita regularmente no Brasil senão a partir de 1799, já no crepúsculo do século XVIII, quando o governo português atribuiu ao Vice-rei a inspeção geral da Colônia, com o direito de nomear anualmente um professor para visitar as aulas e informar-lhe sobre o estado da instrução. (AZEVEDO, 1963, p. 542).

Para Monlevade (2000, p. 18) “de 1759 a 1772, o Brasil ficou sem escolas, salvas as aulas esparsas que alguns religiosos e leigos ofereciam sem sistema nem documento”, o que significa ao mesmo tempo situações precárias tanto no que se refere às condições de trabalho quanto no que se refere às condições de remuneração. Além disso, não obedeciam a determinação do Alvará de 28 de julho, com base no qual ninguém poderia ensinar fora das classes providas de professores régios licenciados pelo diretor geral de estudos.

é certo que, do ponto de vista formal, de organização, à “unidade de sistema” sucedeu a fragmentação na pluralidade de aulas isoladas e dispersas. Essa fragmentação de estrutura tornou-se tanto mais grave quanto o governo reformador não soube ou não pôde recrutar os mestres de que tinha necessidade, assegurar-lhe uma situação condigna, nem submetê-los a uma disciplina capaz de introduzir no pessoal docente a unidade necessária de vistas e de esforços. (AZEVEDO, 1963, p. 543) (grifo nosso).

Na Lei de 06 de novembro de 1772, na segunda etapa da reforma educacional do Marquês de Pombal, os termos do Alvará de 28 de julho de 1759 são ratificados, acrescentando-se às cadeiras de latim, grego e retórica, a de filosofia (ensino secundário). Aos Mestres de ler, escrever e contar (ensino primário) há a determinação de prestação de contas quanto à quantidade de alunos que atendiam, bem como do rendimento escolar de cada um deles. Esta determinação provavelmente estaria muito mais vinculada ao controle de quem pagar do que do monitoramento da aprendizagem dos alunos, pois contraditoriamente, Dom José, o Monarca na época, argumenta na referida lei, que não seria necessário todos terem acesso aos níveis mais elevados de instrução: “devem se deduzir os que são necessariamente empregados nos serviços rústicos e nas Artes Fabrís que ministram o sustento dos Povos, e constituem os braços e mãos do Corpo Político; bastariam às pessoas desses grêmios a instrução dos Parocos”.

Para o que se apresenta como componentes de uma provável gênese estatutária para o magistério público controlado pelo Estado, são pertinentes os seguintes trechos da Lei de 6 de novembro de 1772.

  1. Ordeno: que para o sobredito Provimento de Mestres se mandem affixar Editaes nestes Reinos e seus Dominios para a convocação dos oppositores aos Magistérios: E que assim se fique praticado no futuro em todos os casos de vacatura das Cadeiras.

  2. Item Ordeno: Que os exames dos Mestres que forem feitos em Lisboa; quando não existir o presidente se façam na presença de um Deputado, com dous Examinadores nomeados pelo dito Presidente [...] Nas Capitanias do Ultramar se farão os exames na mesma conformidade [...].

  3. Item Ordeno: Que todos os sobreditos professores, subordinados á Meza sejam obrigados a mandarem a Ella no fim de cada Anno Lectivo, as relações de todos, e cada um dos seus respectivos Discipulos dando conta dos Processos e morigeração Delles; para por Ella regular a Mesa as Certidões; que há de fazer expedir pelo seu secretário [...]

  4. [...]

  5. Item Ordeno: Que os Mestres de ler, escrever e contar sejam obrigados a ensinar não somente a boa forma dos carateres, mas também as regras geraes da Orthografia Portugueza [...] pelo menos as quatro espécies de Arithmética simples [...]

  6. [...]

  7. Item Ordeno: Que os particulares que puderem ter mestres para seus filhos dentro das próprias casas, como costuma succeder, seja permitido usarem da dita liberdade [...]

  8. Item Ordeno: Que as Pessoas, que quizerem dar Lições pelas pelas casas particulares, o não possam fazer antes de se habilitarem para estes Magistérios com Exames, e approvações da Meza; debaixo da pena de cem cruzados pagos da Cadeia pela primeira vez; e pela segunda da mesma condemnação em dobro, e de cinco annos de degredo para o Reino de Angola. (Lei de 6 de novembro de 1972).

Para subsidiar as despesas conseqüentes desta lei, a Carta Régia de 10 de novembro de 1772 institui regras quanto ao sistema de financiamento educacional criando o subsídio literário, sobretudo para o pagamento dos Mestres das primeiras letras.

  1. Mando que da publicação desta em diante fiquem abolidas, e extictas todas as collectas, que nos Cabeções das Sizas, ou em qualquer outros Livros ou Quadernos de Arrecadação, forão até agora lançadas, para com elas serem pagos, Mestres de ler, e escrever, ou de Solfa, ou de gramática, ou de qualquer outra instrução de meninos: Para daqui em diante pelos sobreditos títulos de ensino se não possa exigir dos Meus Vassalos, outra alguma contribuição, que não seja a que abaixo determino.

  2. Item, mando que para a dita applicação do mesmo ensino público, em lugar das sobreditas collectas até agora lançadas a cargo dos Povos; se estabeleça, como estabeleço, o único Imposto: a saber: Nestes Reinos, e Ilhas de Açores, e Madeira, de hum real em cada canastra de Vinho; e de quatro réis em cada canada de Agua-ardente; por cento e cessenta réis por cada pipa de Vinagre: Na América, e África de um real em cada arratel de carne da que se cortar nos Açougues, e nellas, e na Asia de dez réis em cada canada de Água-ardente das que se fazem nas Terras, debaixo de qualquer nome que se lhe dê, ou que lhe venha a dar. (Carta Régia de 10 de novembro de 1772).

A arrecadação do subsídio literário fica sob responsabilidade das Câmaras Municipais, “cujo produto deveria ser depositado, de quatro em quatro meses, na caixa geral das Juntas de Finanças a fim de ser utilizado no pagamento dos mestres e professores, nomeados para o ensino público (ALMEIDA, 2000, p. 38). Nota-se que o autor se refere a mestres (Mestres de ler, escrever e contar/primário) e a professores (regentes/secundário). É uma constatação importante, pois são dois grupos de professores com diferentes perspectivas tanto no que se refere ao prestígio social quanto no que se refere aos honorários percebidos. Afirma o autor que o professor, tinha emprego vitalício, e assim como o magistrado, era inamovível. “O titular da cadeira era, de certo modo, o proprietário dela e podia, em caso de doença, ser substituído por um suplente de sua escolha, desde que estivesse munido de um certificado de estudos da matéria ensinada. O próprio titular pagava seu suplente”. (ALMEIDA, 2000, p. 40).

Para os professores régios não havia um balizamento salarial. Há a constatação que a vinda da família real para o Brasil, 1808, tenha colaborado, dentre outros, para que os ordenados fossem significativos5, no entanto, diversificados. Um dos casos apresentados a seguir evidencia que no Brasil o soldo de um professor chegou a representar o dobro do que recebia em Portugal.

em 18 de agosto de 1809, como se deduz de um outro documento, o Pe. João Batista, bacharel, fora nomeado professor de Geometria. A carta de nomeação dizia: [...] com ordenado de 500.000 réis por ano. [...]

No dia 26 de agosto do mesmo ano, o Rei nomeou igualmente o Pe. René Boiret, professor de língua francesa, mediante 400.000 réis por ano. [...] O professor vinha de Portugal onde exercia as mesmas funções no Colégio Real dos Nobres, com soldo de 200.000 réis. [...]

Por uma carta real, registrada e conservada nos arquivos da Câmara Municipal, verifica-se que no dia 9 de setembro de 1809, o Pe. Jean Joyce, irlandês, foi nomeado professor de inglês, com ordenado de 400.000 réis por ano. (ALMEIDA, 2000, p. 42)

Enquanto isso, os Mestres de ler, escrever e contar6, Mestres régios, ou mestres leigos, na colônia, que nos termos de Azevedo (1963, p. 543), “[...] mostravam pelo geral, segundo testemunhos da época, não só uma espessa ignorância das matérias que ensinavam, mas uma ausência absoluta de senso pedagógico” continuavam sem ter, também por isso, nem prestígio, nem uma remuneração plausível. De acordo com Almeida (2000, p. 43), “esses institutores que começaram a ser recrutados não tinham, em geral, mais que uma breve instrução elementar e não haviam prestado exames [...]; cada um ensinava o que sabia, mais ou menos, imperfeitamente, e não se lhes podia exigir mais”. Apesar da determinação de que houvesse concursos para mestres, realizados diretamente por examinadores qualificados na presença de, no mínimo, um deputado, essa função foi outorgada aos religiosos da colônia como bispos, padres-mestres e capelães de engenho, “que se tornaram, depois da saída dos jesuítas, os principais responsáveis pela educação dos meninos brasileiros” (AZEVEDO, 1963, p. 543). De acordo com Almeida (2000, p. 46) “[...] em certos casos e sob o parecer do Desembargador do Paço, os curas ou capelães das paróquias nomeavam os institutores de sua própria paróquia. Era um meio de aumentar parte de seus ordenados [...] irrisoriamente módicos”.

Mesmo com todas as evidências de precariedade vivenciadas pelos agentes educativos, sobretudo dos Mestres de ler, escrever e contar, há argumentos de que as “Aulas Régias” tenham representado um avanço na constituição da profissão docente.

Estatisticamente, não há dúvida de que a cobertura de matrículas pelas escolas jesuíticas tenha sido maior, embora não haja dados rigorosos em que se basear. Entretanto, se o assalariamento é uma relação de trabalho mais avançada que a sobrevivência por rendas de relação escravista ou servil, as aulas régias propiciaram um avanço. E avanço significativo, por situar o ensino como uma política pública, mesmo limitada na quantidade e seguramente inferior no alcance de qualquer meta qualitativa. Tentemos entender o processo como evolução histórica rumo à constituição de uma categoria autônoma de magistério público. (MONLEVADE, 2000, p. 18-19)

Não resta dúvida de que a gênese e evolução da atividade docente no Brasil, realizada por um agente público controlado pelo Estado, passa pelo exercício das “Aulas Régias”7. As principais normas “ensaiadas” no período, que nortearam (ou deveriam nortear) o contrato público do professor com o Estado, portanto representando uma espécie de estatuto formal, são: i) Proibição da atividade de ensino público ou particular sem aprovação e licença do Diretor Geral dos Estudos. A licença deveria ser conquistada por meio de exames públicos8; ii) Concessão do privilégio de nobres, inclusive incorporação no Código Título de professoribus et medicis9; iii) Admissão por meio de concurso público na presença de autoridade competente e de especialistas da área; iv) Obrigação dos professores prestarem contas dos alunos ao fim de cada ano para emissão de certidão pela Mesa; v) Determinação aos Mestres de ler, escrever e contar para que fossem ensinadas as regras gerais da ortografia portuguesa e pelo menos as quatro operações fundamentais de aritmética; vi) Permissão para que particulares pudessem contratar, por sua conta, mestres para seus filhos. Mesmo nesses casos os mestres não estariam isentos da obrigação dos exames públicos; vii) Determinação de conseqüências severas para quem insistisse em ensinar sem a devida licença10; viii) Remuneração paga pelo Estado e financiamento exclusivo, via subsídio literário11; e ix) Vinculação vitalícia de empregabilidade12.

Porém, mesmo que considerados os ensaios para a constituição de um estatuto pautado nas duas etapas da reforma (1959 e 1972), e que dão suporte tanto à argumentação de Monlevade (2000) quanto à de Nóvoa (1999) para compreensão do período como evolutivo do ponto de vista da profissionalização ou pelo menos funcionarização da atividade de ensinar, no Brasil isso foi praticamente despercebido, sobretudo no que se refere ao ensino primário. Segundo Almeida (2000, p. 59) “não se pode dizer que o governo tenha ficado indiferente à instrução primária, longe disso, mas as medidas tomadas, os decretos emitidos, as leis promulgadas permaneciam letra morta para a maior parte do país”. Nesta direção, o regime de aulas, a distância entre o Diretor Geral de Estudos e os mestres, a ausência de inspeção e principalmente a lentidão em qualquer intervenção, dentre outros, sejam conforme Azevedo (1963, p. 545), “razões pelas quais a ação reconstrutora de Pombal não atingiu senão de raspão a vida escolar da Colônia”.

A inércia que afetou o aspecto de remuneração docente durante o período das “Aulas Régias”, com rara exceção de algumas nomeações a cadeiras isoladas do ensino secundário, em especial após a chegada de Dom João VI na Colônia, não poderia ser considerada pela ausência de experiência do governo português no que tange à organização escolar e à constituição de estatutos capazes de regular e ao mesmo tempo remunerar os agentes educativos. Em 18 de maio de 1816, do Palácio do Rio de Janeiro, Dom João VI aprovou o Estatuto para criação do Colégio Militar da Luz em Lisboa13. Embora a manutenção desta unidade não fosse exclusivamente realizada pelo tesouro real, o Estatuto, no que se refere à forma e conteúdo, pode ser considerado uma referência desse tipo de documento para aquele período. A remuneração dos professores, conforme mostra a Figura 1, a seguir, variava de acordo com a disciplina ministrada. De modo geral, professores substitutos recebiam apenas metade do que recebia um professor titular.

Fonte: Alvará de 18 de maio de 1816.

Figura 1 Tabela de ordenados do corpo instrutivo do Colégio Militar da Luz. 

Conforme já abordado, a função docente dos professores régios era vitalícia e quando o titular era impossibilitado de atuar pagava um substituto com o próprio ordenado. No caso do Colégio Militar da Luz, os docentes que por motivos de doença não pudessem mais lecionar eram jubilados e continuavam sendo pagos pelo Estado. Apenas como referência, para efeito de comparação, a Figura 2, em anexo, mostra quais eram os ordenados dos empregados do Estado Menor do Colégio Militar da Luz.

Fonte: Alvará de 18 de maio de 1816.

Figura 2 Tabela de ordenados dos empregados de apoio do Colégio Militar da Luz. 

De acordo com o citado documento, com exceção do mordomo, os empregados de apoio recebiam ordenados menores do que os dos professores. Já os membros do Estado Maior, que era o corpo administrativo do colégio, tinham remuneração conforme disposto na figura 3.

Fonte: Alvará de 18 de maio de 1816.

Figura 3 Tabela de Ordenados dos Empregados no Estado Maior do Colégio Militar da Luz.  

As proposições imperiais a partir de 1827

A introdução das escolas mútuas14 no Brasil representa um modelo diferente de organização das atividades de instrução pública. A primeira escola nesse modelo parece ter sido criada na Paróquia de Sacramento nas dependências da Escola Militar no Rio de Janeiro. De acordo com Almeida (2000, p. 57), “sua fundação deve-se ao Ministro da Guerra e os salários do institutor foram fixados em 500.000 réis anuais, quantia elevada para o seu tempo e para o emprego”. No entanto, ressalta o autor, tratava-se da nomeação de uma pessoa especialista no assunto e provavelmente tenha sido seu introdutor no Brasil.

Se no método individual ou simultâneo o professor era o agente de ensino, no método mútuo (utilizado por mais de 20 anos), os alunos com melhor desempenho são os monitores responsáveis por essa função. Conforme Lesage (1999, p. 12) “os monitores não constituem senão um dos elementos fundamentais do novo método. Mas no nível das práticas, eles são o elemento essencial ou, segundo a fórmula de Maurice Gontarde, o agente obreiro do método” (grifo do autor). Segundo Azevedo (1963), numa escola primária, de 500 alunos, por exemplo, em vez dos doze professores necessários para doze classes, cada uma de 40 alunos, mais ou menos, não seria preciso mais que um professor, que descarregaria em 50 alunos de melhor aproveitamento o ensino dos restantes distribuídos em decúrias. As escolas mútuas são, portanto, do ponto de vista econômico uma alternativa barata de custeio da instrução pública para o período. Ironicamente, “Muito e depressa e sem custo: o ideal para o Brasil” (PEIXOTO apud AZEVEDO, 1963, p. 564).

Provavelmente pensando numa organização escolar baseada no método de Lancaster, Dom Pedro I aprovou a Lei de 15 de Outubro de 1827. Nela o Imperador determina que “Em todas as cidades, vilas e lugares populosos, haverão as escolas de primeiras letras que forem necessárias” (Art. 1º). Ao mesmo tempo dá autonomia aos Presidentes das províncias para marcarem o número e onde as escolas seriam criadas, podendo para tal extingui-las em um lugar e remover os Professores para outros lugares, dependendo do tamanho da população.

A Lei de 15 de Outubro de 1827, determina as regras que, certamente, constituíam referência estatutária de vinculação entre o professor e o Estado.

Art. 3º Os presidentes, em Conselho, taxarão interinamente os ordenados dos Professores, regulando-os de 200$000 a 500$000 anuais, com atenção às circunstâncias da população e carestia dos lugares, e o farão à Assembléia Geral para aprovação.

[...]

Art. 7º Os que pretenderem ser providos nas cadeiras serão examinados publicamente perante os Presidentes, em Conselho; [...]

Art. 8º Só serão admitidos à posição e examinados os cidadãos brasileiros que estiverem no gozo de seus direitos civis e políticos, sem nota na regularidade de sua conduta.

Art. 9º Os Professores atuais não serão providos nas cadeiras que novamente se criarem, sem exame de aprovação, na forma do Art. 7º.

Art. 10 Os Presidentes, em Conselho, ficam autorizados a conceder uma gratificação anual que não exceda à terça parte do ordenado, àqueles Professores, que por mais de doze anos de exercício não interrompido se tiverem distinguido por sua prudência, desvelos, grande número e aproveitamento de discípulos.

Art. 13 As Mestras vencerão os mesmos ordenados e gratificações concedidas aos mestres.

Art. 14 Os provimentos dos Professores e Mestres serão vitalícios; mas os Presidentes em Conselho, a quem pertence a fiscalização das escolas, os poderão suspender e só por sentenças serão demitidos, provendo interinamente quem substitua. (BRASIL, 1827)

Algumas dessas regras, sobretudo as que se referem ao pagamento dos professores são fruto das discussões realizadas na constituinte de 1824, que deixava clara a precariedade com que os mestres eram remunerados e a necessidade, consequentemente, de melhorar-lhes os ordenados.

É a primeira vez que a possibilidade de mulheres atuarem oficialmente na instrução pública aparece na legislação, e pelo menos no que diz respeito à legalidade, seus ordenados deveriam ser os mesmos dos mestres. No entanto essa regra era viciosa na origem uma vez que a própria definição de uma banda remuneratória variando de 200$000 a 500$000 anuais poderia justificar a diferenciação salarial. Outro aspecto a ser observado é a utilização dos termos “professores” e “mestres”. Nas “Aulas Régias” essa questão foi tratada com distinção: estes eram os mestres de ler, escrever e contar que atuavam no ensino primário, enquanto aqueles eram os professores de cadeiras de disciplinas especificas relativas ao ensino secundário. Por se tratar de uma legislação específica para o ensino primário parece ser a partir daí, mesmo que de maneira confusa, que também os mestres de ler, escrever e contar ou mestres das primeiras letras passam a ser denominados oficialmente de professores.

A banda de 200$000 a 500$000 anuais como remuneração dos professores não mudava muito o que já vinha sendo feito com relação aos professores do ensino secundário que em geral já percebiam vencimentos maiores. No entanto para os institutores das primeiras letras representava, pela primeira vez, um padrão mínimo de remuneração, um piso e um teto remuneratório.

A admissão a uma das cadeiras (ou titularidade em uma escola mútua), de acordo com a Lei de 15 de Outubro de 1827, deveria ser feita por via de exames públicos, tendo como critérios a nacionalidade brasileira, regularidade dos direitos civis e políticos, a regularidade na conduta e conhecimento do método de Lancaster, cabendo aos Professores que não tivessem a necessária instrução deste ensino, irem instruir-se “em curto prazo e à custa dos seus ordenados nas escolas das capitais” (Art. 4º). Os professores que quisessem atuar em uma segunda “cadeira” deveriam prestar novo concurso. Isso remete ao entendimento de que a duplicidade da jornada de trabalho do professor era permitida e até necessária frente à escassez de mão de obra “qualificada”. A lei supramencionada determinava ainda que os Presidentes, em Conselho, poderiam conceder aos professores, uma “gratificação de desempenho” de até um terço do ordenado levando em consideração: o “efetivo exercício” de no mínimo doze anos ininterruptos, “sua prudência, desvelos, grande número e aproveitamento de discípulos”15.

Com base na Lei de 15 de Outubro de 1827 é possível observar, dentre outros, que foram aprovadas as seguintes normas, que constituíam um estatuto do magistério embora não recebesse esse nome: i) Remuneração anual variando entre 200$000 e 500$000 anuais; ii) Nomeação a partir de exame público tendo como perfil ser brasileiro(a), estar em gozo dos direitos civis e políticos, não possuir nota na regularidade de sua conduta; iii) Possibilidade de atuação, mediante exame público, em mais de uma cadeira; iv) Possibilidade de receber “gratificação de desempenho”; v) Paridade salarial entre mestres e mestras; vi) Provimentos vitalícios ressalvada a sujeição à fiscalização dos Presidentes das províncias, que em Conselho, poderiam determinar a demissão do professor.

Contudo, essas normas, que poderiam corresponder, no mínimo a indícios da gênese de constituição estatutária na relação professor primário/Estado, parecem não garantir uma valorização padronizada para a época, que mantinha não só entre os professores das primeiras letras, mas entre estes e os professores secundários, uma significativa diferenciação salarial. Enquanto os professores primários percebiam ordenados anuais baseados na banda de 200$000 a 500$000, com tendência para um “piso” de 300$000 (VIEIRA, 2007), os titulares das cadeiras de estudos secundários, menos penalizados, ampliavam seus ordenados que “variavam de 500.000 a 800.000 réis por ano” (ALMEIDA, 2000, p. 63).

O Decreto nº 4, de 20 de junho de 1834, por exemplo, “approva os ordenados marcados pelo Presidente em Conselho da Provincia de Goyaz aos Professores de varias cadeiras de primeiras letras” conforme a lei de 15 de outubro de 1827, no entanto mantêm o método individual, nos seguintes termos:

Art. 1º Fica aprovado o ordenado de 200$000, marcado pelo Presidente da Provincia de Goyaz em Conselho aos Professores das cadeiras de primeiras letras pelo methodo individual das povoações do Porto Imperial, Cavalcanti, Carmo, Carolina e Palma: e assim também o de 240$000 ao de S. José de Tocantins, e ao de Flores, todos da mesma comarca de S. João das Duas Barras. (BRASIL, 1834a)

O decreto supramencionado foi um dos últimos oriundos do poder central nesse período e para essa finalidade, pois a Lei nº 16, de 12 de agosto de 1.834, conhecida como Ato Adicional de 1834 (BRASIL, 1834b), dá às províncias autonomia para legislar “sobre a instrução pública” (Art. 10, §2º), bem como sobre a criação e supressão da maioria dos empregos municipais e provinciais incluindo competência para estabelecer os respectivos ordenados (Art. 10, §7º). Conforme Monlevade (2000), com este ato adicional a lei de 15 de outubro de 1827 perde sua vigência imperativa e consequentemente a “banda” de ordenados fica comprometida, ficando a partir de então para cada província, a competência de determinar a remuneração dos professores do ensino primário e secundário. Em muitos casos as cadeiras eram criadas, mas não eram ocupadas em função da falta de professores aptos para desenvolver a função. Para Almeida (2000), isto era justificado pelo fato de que se tratava de uma carreira penosa, de baixa remuneração e sem o prestígio social merecido.

Desde 1772, mestres e professores puderam experimentar os primeiros ensaios de uma relação estatutária, que por mais insuficientes que fossem para garantir uma digna remuneração, representaram, pelo menos no papel, evolução na regulação da atividade junto ao governo que naquele momento figurava-se de forma centralizadora, com tendência para padronização das regras gerais. Pelo contrário, o Ato Adicional de 1834 representou a vitória das tendências descentralizadoras, dominantes na época e “suprimia de golpe todas as possibilidades de estabelecer a unidade orgânica do sistema em formação que na melhor das hipóteses [...] se fragmentaria numa pluralidade de sistemas regionais” (AZEVEDO, 1963, p. 566). Estes “sistemas” regionais passaram a legislar sobre a instrução primária e secundária regulando as relações estatutárias com os professores.

Castanha e Bittar (2012), ao discutir o papel dos professores no período imperial, apresentam evidências de que algumas províncias acataram as normas anteriormente estabelecias e aperfeiçoaram suas legislações. Para os autores não é possível afirmar que a descentralização do ensino tenha significado ausência total de unidade, principalmente no que ser refere ao trabalho dos professores. Os documentos analisados pelos autores e expostos com riqueza de detalhes, apontam para um alinhamento das províncias analisadas, nos principais aspectos estatutários do magistério. No entanto, não ignoram a precariedade que envolvia o trabalho docente na época, descrito da seguinte forma por Almeida (2000, p. 101):

Se há uma função que exige, às vezes, uma grande moralidade, uma instrução sólida, uma vocação especial e um devotamento contínuo é certamente a do professor público, do educador da juventude. Mas aqueles que reúnem todas estas qualidades, em um grau mais ou menos elevado, têm necessidade de ter uma existência assegurada, para si e para sua família, e de serem cercados de toda espécie de consideração pública que une a posição mais ou menos abastada do homem à sua independência relativa. É contrário à equidade que seus esforços os confinem à miséria ou ao menos a uma privação, a uma penúria que os desconsidera aos olhos de todos e aos seus próprios.

Com base no estudo de Castanha e Bittar (2012) relacionamos algumas das principais regras que nortearam a relação dos professores com os empregadores provinciais16 e da corte, as quais passamos a apresentar.

A admissão passava pelos exames públicos, que em alguns casos incluíam aulas práticas diretamente no ambiente escolar. Sobre a idade para ingresso, a lei de 15 de outubro de 1927 exigia que o candidato estivesse em pleno gozo de seus direitos políticos o que se tinha aos 25 anos de idade. As províncias, carentes de adeptos ao magistério passaram a exigir apenas a maioridade comum, ou seja, 18 ou 21 anos. Para o concurso o professor deveria apresentar o atestado de maioridade e moralidade atestado pelo pároco, chefe de polícia, e em alguns casos outras autoridades, inerente ao período dos três últimos anos. Outra exigência comum era que o candidato professasse a fé católica, o que perdeu força a partir da década de 1870.

Nos casos em que o candidato apresentasse habilitação em escolas normais ou em cursos superiores do Império havia a dispensa dos exames públicos. Caso contrário, ainda em conformidade com o modelo da Lei de 15 de outubro de 1827, o candidato era submetido a uma banca que deliberava pela reprovação, aprovação como professor interino ou como professor efetivo. Nos dois primeiros casos o professor poderia solicitar, dentro de um determinado tempo, outra avaliação.

O “estágio probatório” passou a fazer parte do processo de admissão. Tudo indica que ocorreu pela primeira vez na província do Rio de Janeiro a partir de 1849. De modo geral era exigido um período de experiência de 3 a 5 anos.

Para receber o título de vitaliciedade as regras ficaram mais rigorosas. Já não bastava mais apenas ser aprovado no concurso. As autoridades se queixavam de que ao ser aprovado no concurso o professor deixava de se envolver com sua própria aprendizagem colaborando para agravar a precariedade do ensino. Nesse sentido, a partir de 1870, para receber o título de professor vitalício, após o estágio probatório, o professor teria que provar ser assíduo, dedicado, zeloso no ensino, conceituado, conduta ilibada, ser “capaz de aprovar 10% dos seus alunos a cada ano” e não exercer outra função remunerada. Aos professores vitalícios era concedida a vantagem da aposentadoria17, inclusive proporcional, dependendo da situação. A aposentadoria integral era concedida aos 25 anos de trabalho, porém sem as gratificações. O professor era incentivado a permanecer em atividade por meio de adicionais em seus ordenados, que após os 30 ou 35 anos de trabalho, eram incorporados na aposentadoria.

Alguns regulamentos previam gratificações por tempo de serviço, mas condicionadas à qualidade do trabalho do professor. Outros gratificavam os professores levando em consideração, por exemplo, a frequência e a aprovação dos alunos. “Havia também auxílio para o aluguel de casas e escolas ou casas-escola”.

A citação documental utilizada por Castanha e Bittar (2012, p. 13) revela algumas das exigências atribuídas aos professores a partir da segunda metade do século XIX:

Art. 1º O professor público deve: § 1º Procurar por todos os meios infundir no coração de seus discípulos o sentimento dos deveres para com Deus, para com a Pátria, pais e parentes, para com o próximo e para consigo mesmo. O procedimento do Professor, e seus exemplos são o meio mais eficaz de conseguir este resultado. § 2º Manter o silêncio na escola. § 3º Apresentar-se ali decentemente vestido. § 4º Participar ao Delegado respectivo qualquer impedimento, que o iniba de desempenhar seus deveres. § 5º Organizar anualmente com o mesmo Delegado o orçamento da despesa da respectiva Escola para o ano financeiro seguinte. § 6º Remeter no fim de cada trimestre um mapa nominal dos alunos matriculados com declaração de freqüência e aproveitamento de cada um, e no fim do ano um mapa geral compreendendo o resultado dos exames, e notando dentre os alunos os que se fizerem recomendáveis por talento, aplicação e moralidade. Estes mapas serão organizados, segundo modelos impressos remetidos pelo Inspetor Geral. Art. 2º O Professor só poderá usar na sua Escola dos livros e compêndios, que forem designados pelo Inspetor Geral. Art. 3º O Professor Público não pode: § 1º Ocupar-se em objetos estranhos ao ensino durante as horas das lições, nem empregar os alunos em seu serviço. § 2º ausentar-se nos dias letivos das Freguesias, onde estiver colocada a Escola, para qualquer ponto distante, sem licença do Delegado respectivo, que só a poderá conceder e por motivo urgente, até três dias consecutivos. § 3º Exercer profissão comercial, ou de indústria. § 4º Exercer nenhum emprego administrativo sem autorização prévia do Inspetor Geral. (BRASIL. Portaria de 20 de outubro de 1855, p. 345).18

Além disso, cabia aos professores: “acompanhar os alunos à missa aos domingos e dias santos, fazer a limpeza da escola, cuidar dos móveis e utensílios, entre outras” (CASTANHA e BITTAR, 2012, p. 13).

Castanha e Bittar (2012) ressaltam que na maioria das províncias o ordenado anual dos professores variava entre 200$000 e 400$000, mas pontuam haver registros de professores interinos que ganhavam menos de 200$000, o que somado a atrasos constantes no recebimento, às exigências provinciais, o baixo prestígio e a carestia, afastava os candidatos à atividade docente.

Para ilustrar melhor comparamos o salário dos professores da Corte com outras profissões. Em 1858, o salário de um mestre-de-obras era de aproximadamente 1:280$000, de um mestre-carpinteiro 1:100$000, já o simples carpinteiro recebia 730$000. Em 1865, o salário de um soldado da polícia militar era de aproximadamente 460$000 e, em 1873 um guarda urbano recebia 720$000. (HOLLOWAY, 1997, p. 160, 163 e 218, apud CASTANHA e BITTAR, 2012, p. 17).

Nesse contexto, “a situação dos instrutores tornou-se crítica e a autoridade fazia eco aos seus clamores, publicando em seus relatórios oficiais que ao mestre de escola faltava-lhe o necessário para suprir sua situação de penúria e privações” (ALMEIDA, 2000, p. 100).

Os regulamentes, em geral, determinavam que os professores, que por negligência ou má vontade, desleixassem o seu emprego, instruindo mal os alunos e outras faltas do gênero, teriam dentre outras, as possíveis penalidades: admoestação do inspetor paroquial, repreensão das autoridades competentes, suspensão do exercício ou vencimento, multas variando de 50$ a 60$000 e demissão.

A regulamentação e regulação contratual dos professores durante o Império tomaram rumos diferenciados em cada uma das províncias, principalmente pelo caráter descentralizador adotado pelo Ato Adicional de 1834. Essa descentralização não foi capaz de garantir aos professores nem estatuto, nem remuneração digna, sobretudo se pensados como possibilidades de abrangência nacional. Esse cenário permaneceu, sendo inclusive ratificado na chamada Primeira República, a partir de 1889. Para Azevedo (1963, p. 607):

Em nenhuma época do século XIX, depois da Independência, se prepararam e se produziram acontecimentos tão importantes para a vida nacional como no último quartel desse século em que se verificou o primeiro surto industrial, se estabeleceu uma política imigratória, se aboliu o regime da escravidão, se iniciou a organização do trabalho livre e se inaugurou, com a queda do Império, a experiência de um novo regime político.

Contudo, no que se refere à regulação estatutária do trabalho docente, em especial do professor primário, não foram observados registros que apontem para algum tipo de avanço. Ressalva-se que no final do século XIX a emergência dos grupos escolares criados a partir da junção de escolas isoladas, propiciou aos seus professores algum tipo de prestígio social e melhores perspectivas de remuneração, que em muitos casos, era determinada levando em consideração a localização da unidade escolar, a quantidade de alunos atendidos e os indicadores de frequência e aprovação. No entanto a oferta do ensino primário, em geral, permaneceu acontecendo em escolas isoladas, marcada tanto pela precariedade das condições de trabalho quanto pelas limitações de formação e remuneração docente.

Considerações finais

As reformas pombalinas regulamentadas em 1759 e 1772 demandaram para o Império português, um novo tipo de agente educativo, que a partir de então deixou de ser exclusivamente o religioso para ser também atividade desenvolvida por Mestres de ler, escrever e contar e de Professores contratados e controlados pelo Estado.

No período de 1772 a 1834 as atividades dessa nova “categoria” foram nacionalmente reguladas a partir dos documentos oficiais do Estado tendo como norte o Alvará Régio de 1759, que teve pouca repercussão na Colônia, a Lei de 6 de novembro de 1772 e a Lei de 15 de outubro de 1827. Se por um lado este conjunto de leis não conseguiu garantir ao professorado, sobretudo aos Mestres das primeiras letras, uma remuneração condizente com o prestígio que a atividade deveria representar, por outro há de se reconhecer, que pelo menos na regulamentação, são evidentes os aspectos que caracterizam as primeiras normas estatutárias do trabalho docente público no Brasil. Dentre outros, é possível observar a tentativa de se normatizar a admissão, o trabalho e a remuneração dessa categoria.

Com o Ato Adicional de 1834, junto com a descentralização do ensino primário e secundário é outorgada às províncias a normatização do trabalho docente. Mesmo sendo possível averiguar certo alinhamento em alguns regulamentos provinciais, a descentralização dificultou maiores avanços que fossem pensados, não a partir do potencial econômico de cada região, mas das particularidades que tornavam semelhantes e fundamentais o ofício de ensinar. Por se limitar às condições de arrecadação local a remuneração do professor público controlado pelo Estado manteve-se, com raras exceções, na inércia degradante dos primórdios em que surgira a partir de 1759. Além disso, a partir de 1834, o professorado passa a conviver com as exigências cada vez maiores dos regulamentos: maior rigor nos processos de admissão, normas específicas para obter o título de vitaliciedade, período probatório, gratificação por desempenho, previsão de duras penalidades, etc. Tudo isso contrastando com as péssimas ou inexistentes condições de formação, precariedade das condições de trabalho, baixa remuneração e com a latente demanda de mais e mais vagas no ensino público. Este foi o cenário característico da transição do modelo Imperial para o Republicando e certamente, está mantido em muitos aspectos, até os dias atuais.

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1Sobre a posição, às vezes “ambígua” de Fernando de Azevedo a respeito da ação jesuítica no Brasil, ver Favoreto e Galter (2006).

2Título citado por Azevedo (1963, p. 507) se referindo à legitimidade com que seria atribuído ao Padre José de Anchieta. Segundo o autor, com o mesmo sentido de “educador” e “protetor e apóstolo dos índios”.

3Considerando, por exemplo, a descrição de Azevedo (1963) sobre a atividade jesuítica no processo “civilizador” do Brasil colônia poderia se afirmar ser esta uma atividade desenvolvida por professores públicos. A diferença é que o professor público pós Pombal estabelecerá relação contratual com o Estado Português, implicando dentre outros, na obrigação de sua remuneração. Nóvoa (1999) se refere a este agente educativo como professor público “controlado pelo Estado”.

4Para o que se refere ao objeto analisado neste estudo a Proclamação da República não representa um evento que altera imediatamente as condições existentes à época. O recorte tem o objetivo de situar a discussão tendo como limite o fim do período Imperial.

5Há que se ressalvar, porém, que naquele contexto a instalação da elite portuguesa na colônia demandava a inauguração ou melhoria de vários serviços, dentre eles os educacionais. Isso não significa que todos os professores régios tenham sido agraciados pela “benevolência real” nem tão pouco que as contratações eram suficientes para atender a todos os súditos indiscriminadamente.

6Os termos “Mestres de ler, escrever e contar”, “Mestres régios”, “mestres leigos” e posteriormente “institutores” e “professores primários” são utilizados por Azevedo (1963), Almeida (2000) e Monlevade (2000) como sinônimos para indicar quem atuava no ensino primário, que à época se reduzia à alfabetização e ao ensino das quatro operações fundamentais da matemática.

7Segundo Monlevade (1997, p. 24), as “Aulas Régias” vigoram no Brasil de 1772 a 1822.

8Itens i e ii: Alvará de 28 de junho de 1759.

9“Isto significava ganhar um título de distinção social e política, que trazia vantagens na ascensão social, além de garantir certos privilégios, como a isenção de determinados impostos, a possibilidade de ocupar postos destinados à nobreza, a exclusão de penas infames, ou ainda o privilégio de não ir para a prisão. Na relação das honras concedidas aos súditos, cabia à categoria dos letrados, constituída por doutores, licenciados e bacharéis formados, o grau de nobreza ordinária, que era o mais baixo”. (CARDOSO, 2010, p. 60). Para a autora “O decreto de 14 de julho de 1775 reforçou essa distinção, ao estabelecer que os professores régios tinham direito ao Privilégio de Homenagem, em razão da nobreza do seu emprego” (CARDOSO, 2002, apud CARDOSO, 2010 p. 60).

10Itens iii a vii: Lei de 6 de novembro de 1772.

11Item viii: Carta Régia de 10 de novembro de 1772.

12Almeida (2000, p. 42).

13A unidade não era mantida apenas pelo tesouro real. Parte do orçamento vinha da “contribuição” dos militares, o que se justificava pela exclusividade de seus filhos no acesso à instituição.

14Ver Bastos e Filho (1999).

15Já nessa época existia uma política de intensificação do trabalho docente baseada em artifícios meritocráticos.

16Nem todas as regras apresentadas se aplicavam em todas as províncias. Como cada uma tinha autonomia para legislar sobre o assunto, havia diferentes, mas não distantes, regras para contratação e controle do trabalho docente.

17Conforme citado anteriormente, a concessão de aposentadoria aos professores já fazia parte do “Estatuto do Colégio Militar da Luz” em 1816, aprovado por D. João VI. Só nas últimas décadas do período imperial começa a ser implantada no Brasil.

18Além disso, de acordo com o artigo 6º “A escola deve estar sempre na maior limpeza e asseio, fazendo o Professor varrer a casa pelo menos uma vez no dia, lavá-la duas vezes cada mês, e conservar abertas as janelas o maior espaço de tempo que fora possível”. É importante destacar que os dispositivos contidos no Regimento Interno das escolas da Corte, de 6 de novembro de 1883, continuaram praticamente os mesmos. Cf. BRASIL. Decisão n. 77, 1883, p. 77-8. (Nota dos autores)

Recebido: 13 de Outubro de 2021; Aceito: 11 de Fevereiro de 2022

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