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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub 13-Sep-2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-91 

Resenhas

Educação não escolar: Religiosidade e modos de fazer de uma curadora

Non-school education: Religiosity and ways of acting of a curator

Educación no escolar: Religiosidad y formas de actuacion de una curadora

Adriene Suellen Ferreira Pimenta1 
http://orcid.org/0000-0002-2641-993X; lattes: 4544619583854800

Mário Allan da Silva Lopes2 
http://orcid.org/0000-0001-6682-4633; lattes: 6657202929774206

Thaís Tavares Nogueira3 
http://orcid.org/0000-0001-9610-0679; lattes: 3745182308755855

1Universidade Federal do Pará (Brasil). adrienepimenta@gmail.com

2Universidade do Estado do Pará (Brasil). m.allanlopes@gmail.com

3Universidade do Estado do Pará (Brasil). thaistnogueira31@gmail.com

SOUSA, Márcio Barradas; ALBUQUERQUE, Maria Betânia B. Educação não escolar: Religiosidade e modos de fazer de uma curadora. Curitiba: CRV, 2021.


A obra é resultado da dissertação de mestrado defendida em 2015 no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará (UEPA). No livro, Márcio Barradas Sousa e Maria Betânia B. Albuquerque analisam os saberes e as práticas educativas cotidianas presentes no atendimento de pessoas submetidas às orações e tratamento de cura realizada por Odinéia dos Santos Barbosa, na comunidade quilombola de Abacatal, em Ananindeua, no Pará. Dona Dionéia, como costumava ser chamada, era conhecida como benzedeira que tratava os males espirituais provocados pelos seres habitantes das matas. Como aporte teórico metodológico os autores buscaram alicerçar-se nos pressupostos da história cultural, cuja abordagem historiográfica volta-se para a vida cotidiana, objetos e temas ligados à vida social dos homens e mulheres no tempo. Além disso, utilizaram-se do método da história oral e da técnica da entrevista semiestruturada, bem como características da pesquisa etnográfica.

Nesse movimento analítico os autores demonstraram o protagonismo de dona Dionéia e conferiram-lhe o status de exímia educadora ao revelar que esta, ao mudar de religião, criou uma metodologia própria de prática de cura ressignificando os processos educativos que utilizava no enfrentamento de doenças espirituais das pessoas que a procuravam. Nesse aspecto, tratava-se de processos educativos de natureza não escolar identificado pelos autores nas tessituras cotidianas das práticas de dona Dionéia e seus educandos, cuja relação era perpassada pelo processo de ensino e aprendizagem, na qual era mediadora de múltiplos saberes, disseminados pelo método da oração e da terapia de cura.

O prefácio intitulado “Corpo e cura: territórios da educação” de autoria do historiador Dr. Agenor Sarraf Pacheco, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA), nos faz refletir sobre o recente movimento em que estudos têm como protagonista o corpo pensado de forma interdisciplinar e intercultural. Destaca assim, importantes aspectos da obra que nos revela processos educativos outros, saberes outros e lugares outros de educar para além do espaço e do modelo escolar.

O livro está organizado em quatro capítulos, sendo o primeiro denominado de “Introdução”. Neste os autores nos revelam os caminhos da pesquisa realizada, bem como nos situam sobre outros aspectos debatidos ao longo da obra. Nesse capítulo demonstram nas tessituras do caminho teórico metodológico a ousadia de fazer uso de uma “história vista de baixo” (BURKE, 1992), que tem como protagonista uma mulher, benzedeira, moradora de um quilombo, que nessa obra deixa as margens e passa a ser pensada como uma cientista da educação, que vai se reconfigurando e se reinventando a partir dos domínios teóricos e práticos de suas sabenças.

No segundo capítulo intitulado “Abacatal: terra de saberes”, os autores destacam a identidade quilombola da comunidade. No primeiro ponto, tratam da herança histórica de formação da região e constituição da comunidade de Abacatal, informando sobre sua localização e apontando um espaço de tradições orais, percebidas nas narrativas e experiências de seus moradores. Nesse sentido, revelam, na comunidade de Abacatal, seus lugares de memória (NORA, 1993), apontando para o barracão da associação de moradores, as igrejas, o campo de futebol, a escola, as casas de farinha e os quintais. Tomando estes últimos como espaços de circulação de saberes, com um olhar mais preciso para o quintal de dona Dionéia. Aponta-se para o trânsito da utilização de recursos naturais produzidos na própria comunidade como fruto de um trabalho individual, em cada quintal, mas, também, coletivo quando se estende ao roçado da comunidade e seus ciclos de agricultura.

No segundo tópico acerca das terras de Abacatal, os autores falam dos tempos de modernização como desafios e incertezas e destacam como o intercâmbio da comunidade com os grandes centros urbanos vem acarretando mudanças significativas nos seus modos de viver e se organizar. Assim, apontam para a forte influência de instituições governamentais como a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural - EMATER e Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - EMBRAPA, entre outras, que impactaram nos modos de vida de Abacatal, principalmente no que se refere às relações de produção e economia, destacando como esses organismos trouxeram outros saberes que se somaram ao conhecimento da comunidade, como aqueles voltados ao cotidiano do trabalho na agricultura. Mas, para além dessas trocas culturais e mudanças ocorridas, os autores revelam, nas narrativas de dona Dionéia, a preocupação com transformações degradantes em seu território, como o aumento no índice de violência, baixa qualidade nos serviços de saúde, falta de abastecimento de água e saneamento básico, pouco transporte público e vias de acesso esburacadas, além da carência de uma escola que possibilite a continuidade dos estudos dos moradores na própria comunidade. Além disso, afirma dona Dionéia, houve um aumento significativo no número de famílias que se mudaram para a comunidade, devido a casamentos dos filhos com pessoas de fora.

Os autores seguem discorrendo sobre como os saberes tradicionais resistem no território de Abacatal e despertam o interesse de pesquisadores que já apontavam, desde os anos 2000, para impactos ambientais devido à exploração indevida de recursos naturais pelo agroextrativismo. Assim, em meio a todos os desafios e enfrentamentos postos acerca dos problemas de Abacatal, os autores destacam aqueles relacionados à questão da saúde, pois, segundo dona Dionéia, esses direitos vinham sendo garantidos, ainda que minimamente, à comunidade, já que se somavam aos atendimentos das equipes de saúde a medicina da floresta e seus agentes, como parteiras e benzedeiras. Observa-se, então, que os saberes tradicionais se mantêm vivos a despeito de toda a influência do mundo globalizado e os autores apontam para as táticas (CERTEAU, 2009) como saber fazer da capacidade que a comunidade tem de se reinventar no cotidiano de seu arcabouço cultural.

No terceiro capítulo intitulado “Uma educadora a serviço da cura”, os autores discorrem sobre os aprendizados que obtiveram a partir do encontro com as narrativas de dona Dionéia, chamada por eles de cientista popular. Apontam ainda como o trânsito religioso de benzedeira para oradora marcou uma nova identidade à dona Dionéia e agregou o público a sua nova orientação religiosa. Assim, inserida em um contexto amazônico mágico-religioso, em que a benzeção, no contato com o sagrado, promove a cura, dona Dionéia revelou uma dimensão pedagógica, tornando o ato de benzer/orar educativo. Nesse sentido, os autores, partindo de sua trajetória de vida, discorrem sobre seu processo de formação na arte de curar e educar.

Dona Dionéia referia-se sobre pessoas com dons espirituais como parteiras e pajés, que fizeram parte de sua rede familiar, bem como de sua mãe que era médium de nascença, a qual recebia entidades para realizar curas. Afirmou que muito aprendeu com ela sobre benzedura em seu processo formativo do cotidiano. Os autores observam o forte papel da memória, de um passado vivido sendo chamado pelo presente (BOSI, 2003). Os saberes de dona Dionéia estão ancorados na sua memória que é individual, mas advinda das relações de um núcleo familiar, uma memória coletiva (HALBWACHS, 2003). Assim, ao recordar os trabalhos realizados por sua mãe, dona Dionéia engendrou um olhar sobre os referenciais mágico-religiosos apreendidos com seus familiares, sendo estes, os seus primeiros professores.

Outro traço destacado como formador na trajetória de dona Dionéia é a sua passagem pela igreja católica. Suas narrativas evidenciam o catolicismo presente na comunidade e como participava dos rituais católicos em atividades paroquiais e novenas, em que se contemplavam diversas rezas. Logo, nesse percurso, dona Dionéia passou a benzer pessoas dentro de sua casa. No entanto, uma série de acontecimentos como sonhos, premonições e adoecimentos, mudaram profundamente sua vida e sua relação familiar, incluindo sua prática de benzedura, o que a levou a realizar o trânsito religioso da igreja católica para a evangélica.

Os autores discorrem sobre como ocorreu a conversão de dona Dionéia a outra religião, após ter enfrentado situações extremas de dor e perdas de familiares. Dona Dionéia teve um sonho com sua mãe a encorajando a mudar os rumos de sua vida. Foi com narrativas envoltas de mensagens bíblicas de cunho apocalítico que dona Dionéia adentrou a religião evangélica, encarando esse movimento de mudança como condição para melhorar a vida. Tempos depois, apresentou a proposta de levar uma igreja evangélica para a comunidade, reafirmando e ressignificando seu papel de curadora, porém, negando por muitas vezes sua identidade de benzedeira. Assim, os autores apontam que o trânsito religioso foi também um trânsito de ideias e a reelaboração de suas práticas de cura em oração.

Diante dessa dinâmica, os autores afirmam que dona Dionéia teve a formação de uma complexa identidade cultural e que seus saberes seguem forjados nas tradições de seus antepassados, nos aprendizados com sua família e em sua reinvenção na igreja evangélica. Dona Dionéia mistura rezas católicas cristãs, benzeduras, exorcismo elementos do pentecostalismo em sua pedagogia do cotidiano, revelando os múltiplos saberes e as contradições que marcam o universo da cura.

No capítulo quatro, intitulado “Sabedoria popular e benzedura: premissas para um processo educativo”, os autores partem da ideia de que a sabedoria de dona Dionéia, adquirida historicamente através dos seus antepassados, além daquelas absorvidas no seu próprio modo de viver, apontam para um processo educativo único, assim como a benzedura também se configura nesse mesmo sentido. Percebe-se ainda que essas premissas educativas interferiram diretamente no modo de viver de dona Dionéia e consequentemente nas práticas exercidas por ela em vários aspectos de sua vida na região do Abacatal.

Os autores fazem um passeio histórico necessário para se compreender como a medicina vem sendo compreendida no decorrer dos séculos. É interessante perceber que em certo momento, os conhecimentos da floresta e das orações passados por gerações, foram sendo apropriados pelo eruditismo, de tal modo que essa erudição tentou (e ainda tenta em alguns casos) levar as medicinas paralelas a uma marginalização social, cultural e terapêutica. Importante destacar nesse sentido que o saber medicinal popular está muito atrelado a cultural local da região. A partir das premissas de dona Dionéia na comunidade do Abacatal, podemos elucidar alguns aspectos educativos bastante promissores, por exemplo, na feira do Ver-o-Peso em Belém, no Pará, que abarca um conjunto de conhecimentos dos mais diversos.

A procura pela medicina paralela, como aponta os autores, não foi erradicada do contexto histórico, cultural e social das sociedades, ainda que em algumas regiões isso pareça ser muito mais evidente, como é o caso da região amazônica. É notável que, por mais que alguns discursos negativos tenham se formado em torno da medicina paralela, como aquele de que é utilizada por pessoas que não possuem um grau de formação acadêmico elevado, atribuindo assim falta de conhecimento, percebe-se que essa medicina é muito utilizada por pessoas dos mais variados níveis acadêmicos e sociais. É muito comum na região amazônica as pessoas serem dotadas de algum tipo de conhecimento que “a minha avó dizia...”. Isso é bastante evidenciado pelos autores.

Destaca-se também que é através dos processos de migração do rural para o urbano, durante o período de industrialização do Brasil (a partir de 1930), que se tem uma grande movimentação de saberes e práticas populares em diversas regiões brasileiras, e com isso acontece a aproximação de diferentes sujeitos sociais com a medicina paralela ou medicina popular. Para exemplo os autores trazem as práticas de atendimentos humanizados para com os doentes, com a intenção de enfrentar o sofrimento, que eram exercidos por grupos pentecostais e umbandistas. Ora, mais uma prática apropriada pela medicina entendida como erudita, que se chama de “Cuidados Paliativos”. Isso nos mostra que esses saberes continuam circulando entre os sujeitos, ainda que a medicina concebida como erudita tenha grande força e seja muito utilizada, a medicina paralela ou popular não foi erradicada e tem lugar de destaque no dia a dia do povo amazônico.

Os autores apontam que existem diversos agentes de cura na Amazônia e a dona Dionéia encontra-se entre estes sujeitos, com as práticas de benzedeira, podendo chamá-la de uma verdadeira cientista popular. Os autores destacam a importância da natureza neste movimento de cura, nessa relação da natureza com os sujeitos, que imbrica o conhecimento de si, do outro e do meio ambiente que nos cerca. Esse aspecto nos leva a compreender a relação psicológica entre o benzedor-curador e os enfermos, o que interfere diretamente no processo de cura. Nesse contexto estão envolvidos a crença, a confiança na cura e consequentemente no benzedor. Esses saberes populares são frutos de intensas trocas culturais que se dão no contexto social. Com isso os autores elucidam que os saberes culturais estão diretamente ligados à experiencia sociocultural dos sujeitos, nos mais diversos espaços sociais.

Esses saberes culturais se materializam na estrutura pedagógica percebida nas práticas da dona Dionéia: diálogo, orações e terapêuticas. O diálogo era um momento do encontro inicial, onde o enfermo compartilhava suas dores e sofrimentos. Por outro lado, dona Dionéia escutava com atenção e também utilizava do momento para partilhar sua fé em Deus através da evangelização. Na oração, através da fé tanto do enfermo quanto da curadora, buscava-se através das palavras a cura para o sofrimento, em uma mistura de ditos evangélicos e católicos. Após o diálogo e a oração, chegava o momento das terapêuticas. Dona Dionéia estava munida dos mais diversos saberes que utilizava para receitar os tratamentos para tosse, diarreia, problemas do fígado, vômito, entre outras doenças. Não podemos deixar de mencionar os tratamentos para doenças espirituais, como o mau-olhado (inveja que causa mal no outro).

Os saberes necessários às terapêuticas que a dona Dionéia possuía são definidos pelos autores nos seguintes eixos: saberes ambientais, saberes medicinais, saberes religiosos e saberes corporais. Nos saberes ambientais temos o conhecimento dos frutos, plantas e ervas utilizadas pela curadora para a produção de fármacos naturais, que ensinava também para os enfermos. Os saberes medicinais consistem na capacidade de reconhecer possíveis sintomas dos enfermos e realizar diagnósticos físicos ou mentais, inclusive indicando medicações alopáticas, por exemplo. Os saberes religiosos se constituem partir da vasta caminhada religiosa exercida por dona Dionéia, desde a convivência no catolicismo e os conhecimentos de cosmovisões africanas e indígenas, até sua chegada ao pentecostalismo. Reunindo esses diferenciados saberes religiosos, ela exercia suas práticas de cura. Os saberes corporais consistiam no uso da voz, na imposição da mão, arrepio, a fabricação da terapêutica, a leitura da Bíblia. Toda a corporeidade presente no contexto da cura, também é destacada pelo próprio “paciente” que tem seu corpo tocado e curado, além de levarem esse aprendizado em diante, para outros corpos, outros sujeitos.

Por fim, este livro se torna uma obra importante a compor a escrita da história cultural da região amazônica e mais especificamente da comunidade do Abacatal. Dona Dionéia constitui-se como um sujeito histórico que por muito tempo ficou aquém dos debates acadêmicos e sendo assim, eram irreconhecíveis na sua própria cultura, como alguém dotada de saberes, experiencias, práticas e ensinamentos próprios e únicos, advindos dos saberes religiosos, ambientais, medicinais e do corpo, como já mencionado anteriormente. Neste movimento educativo apontado pelos autores na obra, observamos que curadora e enfermos, se conhecem, trocam experiencias, recriam e difundem saberes muito particulares. A obra em questão aponta para pesquisas futuras dentro do campo da religiosidade, educação e história, levando-se em conta cada sujeito singular que existe nesta vasta região amazônica, que assim como dona Dionéia, exercem influências importantes no modo de cuidar da saúde do corpo e do espirito, seja no rico ou no pobre, no católico, no protestante, no umbandista, ou em outras cosmovisões, os quais têm papel fundamental na construção sociocultural e medicinal da região.

Referências

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. [ Links ]

BURKE, P. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. [ Links ]

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazes. 16. ed. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2009. [ Links ]

HALBWACHS, Maurice. Memória individual e coletiva. In: HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução: Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2003. p. 29-70. [ Links ]

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História - Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História, São Paulo, n.10, p.7-28, dez.1993. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101. Acesso em: 14 jan. 2014. [ Links ]

Recebido: 19 de Outubro de 2021; Aceito: 14 de Novembro de 2021

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