SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.21The metamorphosis of the school author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Cadernos de História da Educação

On-line version ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.21  Uberlândia  2022  Epub Sep 13, 2022

https://doi.org/10.14393/che-v21-2022-142 

Resenhas

Os diagramas do poder e a invenção de uma nação: a educação à margem e em meio do processo de independência

Diagrams of power and the invention of a nation: education on the margins and amid the brazilian independence process

Los diagramas de poder y la invención de una nación: la educación en los márgenes y en medio del proceso de independencia

Bruno Gonçalves Borges1 
http://orcid.org/0000-0002-3200-4909; lattes: 0019694073171774

1Universidade Federal de Catalão (Brasil). bruno_borges@ufcat.edu.br

LIMEIRA, Aline de Morais; CLEMENTE, Edgleide; GONDRA, José. Independência e Instrução no Brasil. História, Memória e Formação (1822-1972). Rio de Janeiro: Eduerj, 2022.


Nos dias de hoje, escrever uma resenha superou o objetivo de sumariar uma obra, de modo a favorecer ao público um panorama do texto antes que este pudesse ser lido por inteiro ou mesmo em parte. Não faz tanto tempo, os livros eram, na maioria das vezes, encontrados nas bibliotecas ou comprados em livrarias. A circulação e disponibilização em suporte digital propiciou um fenômeno desejado desde sempre, o acesso universal a um texto, o que se tornou possível graças aos mecanismos de busca e indexação digitais que repercutiram, diretamente, não apenas no consumo de obras, mas também na prática da pesquisa acadêmica. Obviamente, a introdução que fazemos aqui não tem o interesse em promover o debate em torno dos prós e contras aos textos impressos ou digitais ou mesmo do papel das resenhas nos periódicos contemporâneos, mas de simplesmente justificar nosso ponto de partida diante da tarefa de resenhar a coletânea Independência e Instrução no Brasil. História, memória e formação (1822-1972) que, diante do exposto, pode ser entendido como um ponto de partida descompromissado, experimental.

Ler um texto é capturar suas linhas de força e ao mesmo tempo ser atravessado por elas, de modo que pode haver uma sinergia (ou não) no encontro produzido entre o corpo leitor e o corpo lido do texto. A obra a que dedicamos esta resenha, sem dúvida, está entre aquelas que provocaram um bom encontro, para usar o termo spinozista1, pois aumentou nossa potência e provocou a necessidade entre outras coisas, de propor uma forma de expressão sobre ela, que se materializa nas linhas desta resenha.

A nossa aproximação aos textos que compõe a coletânea em questão foi possível graças ao trabalho cuidadoso de Aline de Morais Limeira, Edgleide Clemente e José Gondra, responsáveis por promover um primeiro sentido que emerge com as escrituras selecionadas para a obra e que comunica uma intencionalidade atual e necessária: a problematização do processo de Independência, ao contrário de um evento de Independência e, a produção de um inventário das práticas e políticas educacionais que permearam esse movimento, tanto na composição do fluxo, quanto nos influxos que ainda insistimos de chamar de eventuais diante uma história maior ou oficial.

Os organizadores da coletânea a dividiram em duas partes provocadoras. A primeira intitulada: O processo (in)acabado da emancipação e, a segunda: (ii) O dever de (des)lembrar. De pronto, advertimos que não vamos aqui descrever cada um dos capítulos, o que seria relevante, mas já feito brilhantemente na apresentação da obra. Ao percorre-los, deixamo-nos ser capturados por aquelas linhas de força comunicantes que exigiram o registro, sempre subjetivo, o que justifica o destaque a algumas partes e outras não, mas que, de algum modo, deve ecoar entre os leitores que também são afetados pela problemática proposta comum. Afinal de contas, trata-se da constituição do Brasil como nação independente, o que não está circunscrito a 7 de setembro de 1822, mas às relações de poder do período em questão e que chegam até nós, em 2022. Por isso, anunciamos, desde o título, a intenção em dedicar nosso olhar para a composição do diagrama das relações de poder na invenção do Brasil-nação.

Na antessala da comemoração do Bicentenário da Independência, a publicação da obra incorpora um elemento a mais na tarefa empreendida de problematizar o processo de invenção desta nação. Como ler um livro é sempre uma tarefa dada pelas condições presentes, não podemos ignorar que mesmo o ritual consagrado ao evento que é abordado em Independência e Instrução parece ganhar outra roupagem, talvez, uma mistura de dever nostálgico e desejo disruptivo, que se misturam na cena que compõe o ano de 2022, como vemos na exposição de José Gondra na introdução intitulada O fim de uma longa tutela lusitana:

No caso do Brasil, como pensar o hoje da emancipação, considerando as diversas medidas restritivas e de recolonização em curso, em escala planetária, na antessala da efeméride do bicentenário da independência política do Brasil? Que diferença podemos instaurar na compreensão e história deste acontecimento? (GONDRA, 2021, p. 28).

Ao convocarmos o conceito de diagrama, fazemos isso com o intuito de adentrar ao profícuo debate que o livro promove em torno da revisão crítica do acontecimento denominado Independência e procuramos enxergar nele, uma complexa disposição de dispositivos educativos, a maioria datada do período em questão, mas outros que ecoam essa problemática de modo a provocar uma crítica que se faz necessária ainda hoje. No fim, o que fizemos foi colocar no mesmo plano tanto as críticas ahead of act quanto aquelas que se ocuparam da construção a posteriori do imaginário social em torno do ato, evidenciando a atualidade do acontecimento em questão.

Foucault (2014) evoca o conceito de diagrama em Vigiar e punir e Deleuze (2013, p. 44) o retoma tanto na obra que faz sobre a filosofia de Foucault, como em outros escritos em que o conceito passa a compor o pensamento deleuziano de modo autônomo. O diagrama é o “mapa das relações de força” e é produzido a partir da cartografia composta pela disposição das forças em um determinado plano.

A invenção de uma nação segundo o diagrama da Independência visa problematizar a educação que ao mesmo tempo pode ser localizada à margem e no interior desse processo. Aliás, esse paradoxo não é nosso. Foucault o apresenta em Segurança, Território e População ao falar das populações que passam a ser alvo da recém criada polícia, os vadios ou marginais, que apesar de serem identificados à margem da sociedade, estavam no centro da atenção estatal.

Em linhas gerais, no nosso caso, a educação, como revelam os diferentes capítulos de Independência e Instrução, não foi mero reflexo dos exercícios de poder, tampouco, corroboraram ingenuamente nesse processo, mas compôs, continuamente e, de modos variados, o mapa de forças que igualmente produziu o evento em questão.

Se, como disse Deleuze (2013, p. 129), “cabe ao diagrama atualizar-se no arquivo” sendo que “atualizar-se é ao mesmo tempo, integrar-se e diferenciar-se”, tal procedimento parece ser perceptível em Independência e Instrução quando, na primeira parte da obra, localizamos a discussão em torno da emancipação, conceito dubio, que pode significar tanto a autonomia política (Brasil se liberta de Portugal?) quanto a identitária (a nação se inventa a partir do quê?), ou ainda, uma emancipação intelectual (livrar-se da tutela alheia). A obra se atualiza, nos termos deleuzianos, na medida em que coloca essa emancipação em confronto com a ideia de “processo” e já o anuncia de modo problematizador como “(in)acabado”. Igualmente, em o “Dever de (des)lembrar”, encontramos o mesmo objetivo na medida em que o dever, verbo no infinitivo e que inspira uma moral coercitiva que propaga os valores de qualquer nação nascitura, compõe com “lembrar”, ação repetitiva que visa o estabelecimento de um conjunto de verdade que é relativizado ao implicar a possiblidade/necessidade de revisitar e promover rupturas em um processo cristalizado que não leva em conta todas as forças que o compuseram.

O arquivo, em ambas as partes da coletânea, é configurado a partir dos elementos trazidos à cena pelos diferentes capítulos que a compõe, ressaltando o aspecto da suposta marginalidade dos agentes educadores, bem como, rompendo com o seu consenso conformador, o que indica, na composição do diagrama, a localização de focos de resistência entre as forças que produziram o acontecimento chamado Independência.

Ao tratarmos dos arquivos, não podemos deixar de mencionar a riqueza com que os autores dos capítulos, bem como os organizadores na abertura de cada uma das partes, selecionaram imagens, recortes documentais, fotografias e produziram elementos visuais diversos como tabelas e gráficos de modo a favorecer uma imersão ao campo de análise comum que atravessa toda a obra. Não são meras ilustrações, mas composições que possibilitam uma análise do documento/monumento na dinâmica complexa que ela exige, levando-se em conta o fluxo que vai de um ao outro em cada um dos objetos de investigação, inquerindo, parte a parte, de um longo processo que ainda se efetua.

Ao abordarmos a questão das temporalidades do livro, podemos dizer que Independência e Instrução é composto por três tempos mais um (3+1) e, ao fazermos tal afirmação, não ignoramos o período de 1822-1972, indicado no subtítulo da obra. Este período se exprime nos três tempos delineados não pelas datas, mas pelos eventos, fatos, materialidades de uma época ou o conjunto de ações que foram cuidadosamente tratados pelos autores e autoras dos textos que compõem a coletânea.

O primeiro tempo, o ahead of act é o momento em que as forças majoritárias tencionam o advento do acontecimento (e a resistência é impelida a igualmente tensionar o campo). Trata-se de uma produção que exigiu a composição dessas forças localizadas iminentemente antes e logo depois ao evento e, ainda que nessa relação, sobressaiam, na construção histórica, o discurso das forças que respondem pelo Estado, ela precisa ser estendida aos outros polos da relação e, daí, a preeminência da instrução, que precisa criar a memória nacional e ao mesmo tempo forma(tar) um povo que precisa desde então se identificar e ser identificado como nação.

Os segundo e terceiro tempos, são as dobras do primeiro. Eles se configuram na medida em que a memória-nação é produzida e, para dar destaque à contracapa de Marcelo Caruso, tal produção ocorre, justamente, por meio dos “ecos educacionais” que imbuíam os movimentos separatistas latino-americanos, fazendo com que eles fossem anunciadores de um “projeto político-pedagógico” de nação. Assim, a segunda parte da coletânea se ocupa da fabricação da lembrança nacional e como ela é uma tarefa escolar que não apenas educa as crianças, mas a sociedade como um todo, como, por exemplo, por meio das festividades cívicas abertas à comunidade.

Por sua vez, o quarto tempo é, na verdade, o tempo do acontecimento. O acontecimento Independência, como é dito na apresentação da obra e, especialmente, no capítulo 1, não é circunscrito a 7 de setembro de 1822, nem mesmo ao aludido dia em que se comemora anualmente nas escolas brasileiras essa data. O acontecimento é a atualização, a efetuação de um ideal, uma virtualidade que se materializou naquele momento histórico e, que, continuamente, é confrontado quando olhamos para dentro de nós e procuramos entender como chegamos a ser o que somos. Não foi por acaso que o conceito foi grafado em itálico todas as vezes que apareceu na introdução do livro. Ele marca, como é registrado no próprio texto a influência de Foucault e Deleuze na concepção de tempo e de história, na qual se inscreve o acontecimento que não é simples evento, mas a convergência de possíveis que emerge segundo o diagrama de poder que se compõe em determinadas formações históricas.

Mais uma vez, a apresentação de José Gondra nos inspira a exemplificar nossa abordagem. A presença das diferentes temporalidades da obra e o objetivo que atravessa essa composição, permeada pela influência foucaultiana, faz com que sejamos convidados a “...indagar o que estamos fazendo de nós, neste presente, considerando as relações com os outros, com os aparatos institucionais, com os diversos saberes”, que segue na apresentação do modo como isso é possível: “...a tarefa de pensar o hoje como diferença na história implica indagar como nos constituímos em sujeitos, nas relações estabelecidas com os saberes, poderes e consigo mesmo” (p. 28), o que, ele mesmo anuncia ser a proposta de uma ontologia histórica de nós mesmos conforme previu Foucault no seu empreendimento investigativo.

O destaque final que fazemos do livro é a sua constante vigilância diante do intento contemporâneo de estabelecer um tribunal que colocaria no banco dos réus a História com h maiúsculo ou oficial, a fim de, pretensamente, fazer emergir as históricas com h minúsculo e no plural. Apagar a história oficial, demolir seus monumentos, talvez seja estratégia dessa própria história que se infiltra como tática de “resistência” no desejo de se produzir uma história inclusiva. No fim, correríamos o risco de revestir-nos do mesmo autoritarismo e nos prestar ao apagamento das pistas e das provas da existência de um mundo excludente. No diagrama de poder, todas essas forças estiveram na composição das relações, em que, sob as óticas da forma(ta)ção ou da resistência configuraram o que chamamos de Brasil hoje. Cabe a nós, empenharmo-nos na produção de arquivos, na revelação de fontes para que todas essas forças tenham a merecida presença discursiva. A invenção do Brasil é uma tarefa em curso e pudemos perceber isso, no rigor e na diversidade de abordagens que Independência e Instrução propiciaram a nós.

Referências

DELEUZE, Gilles. Foucault. trad. Cláudia Sant’Anna. rev. Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2013. [ Links ]

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. trad. Raquel Ramalhete 42 ed. Petrópolis: Vozes, 2014. [ Links ]

LIMEIRA, Aline de Morais; CLEMENTE, Edgleide; GONDRA, José (Orgs.). Independência e Instrução no Brasil. História, Memória e Formação (1822-1972). Rio de Janeiro: Eduerj. 2022. [ Links ]

1Para saber sobre o conceito de encontro, sugerimos: SPINOZA, B. Ética. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. Ou, ainda, a leitura que faz Gilles Deleuze do conceito spinozista que pode ser encontrada em DELEUZE, G. Espinosa, Filosofia Prática. Trad. Daniel Lins; Fabian pascal Lins. São Paulo: Escuta, 2002.

Recebido: 21 de Maio de 2022; Aceito: 17 de Junho de 2022

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons