Introdução
A motivação deste estudo2 se deve ao silenciamento ou esquecimento pela historiografia da educação sobre uma professora brasileira cega que desenvolveu e se engajou em diversas produções, ações, campanhas, mobilizações e representações institucionais nas esferas pública e privada, e em âmbitos nacional e internacional, pela educação e demais direitos dos cegos - Dorina de Gouvêa Nowill3. Um balanço da produção realizado pelas autoras no Portal de Periódicos da Capes, no Google Acadêmico e nos principais periódicos brasileiros dos campos científicos da História da Educação e da Educação Especial (CARDOSO; MARTÍNEZ, 2022) contribui para afirmar a escassez de publicações científicas dedicadas ao estudo em profundidade sobre seu itinerário e ações profissionais relacionados a um dos temas centrais de sua carreira, a educação dos cegos.
Já a pesquisa realizada na imprensa jornalística mostra que a maior parte das matérias publicadas e identificadas sobre Dorina destacaram a natureza filantrópica de suas atividades, qualificando-a como uma grande benemérita ou por sua capacidade de superação, pelo fato de ser cega, como nos exemplos: “A admirável Dorina, uma cega que vê” (CORREIO PAULISTANO, 1945, p. 19); “Um facho de luz dourada na escuridão” (CORREIO PAULISTANO, 1945, p. 19); “Figura de singular relevo excepcional, pelo fato de ter perdido a vista, contando apenas dezessete anos, num momento radioso da existência, ao concluir com brilho o seu curso ginasial” (JORNAL DE NOTÍCIAS, 1947b, p. 2); “Amiga dos cegos” (DIÁRIO DA NOITE, 1979, p. 4); além de destacá-la em promoções de chás e eventos sociais para angariar recursos. As matérias que apresentavam suas ações no âmbito da educação, costumavam também ressaltá-la como um exemplo de superação.
Mas, afinal, quem é Dorina para além da filantropia? Quais são as suas contribuições para a formação de políticas e de práticas culturais para a educação dos cegos? A partir dessas questões, este trabalho objetiva retomar as suas ações em seu ativismo4 e protagonismo pela educação dos cegos, para além da perspectiva restritiva da filantropia, ao identificá-la como uma intelectual criadora e mediadora. Suas ações diluem fronteiras ao se estenderem de São Paulo para o Brasil e, de forma multidirecional, para o contexto global.
Aspectos analíticos e metodológicos
Os campos da História Cultural, da Sociologia e da Antropologia têm uma tradição em pesquisas que priorizam a categoria do “Intelectual” no estudo de personagens, sendo, geralmente, mais destacadas as figuras masculinas reconhecidas como gênios na sua especialidade, que contribuíram para a constituição da dita cultura erudita, também por se caracterizarem pelo aspecto original de sua criação ou produção de bens culturais. Segundo Sirinelli (1998) o intelectual pode ser classificado entre criador e mediador cultural: “à primeira categoria pertencem os que participam de criações artística e literária ou no progresso do saber, na segunda juntam-se os que contribuem para difundir e vulgarizar os conhecimentos dessa criação e desse saber” (p. 261). Gomes e Hansen (2017) sublinham que nem todo mediador cultural é um intelectual mediador. As autoras reforçam que o intelectual mediador é um sujeito histórico, geralmente não reconhecido como tal, por ser um divulgador, uma pessoa comum, envolvida paralela ou exclusivamente com a produção de bens culturais, para a divulgação do conhecimento e de valores, sempre ligado a uma dimensão pedagógica e política, para um público abrangente.
Nota-se que as ações culturais de um mediador/divulgador já foram consideradas pelo corpo científico como algo mais simples, mais fácil, de repetição, de conhecimento “rebaixado”, o que acentuava uma hierarquia entre os intelectuais. No entanto, Sirinelli (1998) chama a atenção para o fato de que as elites da mediação cultural possuem um poder de influência. Nesse sentido, a divulgação do conhecimento não tem valor inferior à produção do conhecimento e dos saberes, ao contrário, possuem uma relação de interdependência (SIRINELLI, 1998). Além disso, cabe frisar que a formação acadêmica não é um condicionante para ser um intelectual e sim a prática cultural desenvolvida e a sua abrangência, que deve ser orientada pelos mesmos critérios de cientificidade e ética vigentes para a produção acadêmica (GOMES; HANSEN, 2017, GOMES 2020). Especificamente sobre o campo científico da História da Educação Brasileira, Xavier (2017, p. 473) alerta que em algumas pesquisas são encontradas perspectivas universalistas sobre o conceito de “intelectual” e reforça que, é necessário refletir e analisar sobre as “funções que [os educadores] desempenharam em suas trajetórias profissionais, [...] os lugares institucionais, sociais, políticos e culturais que eles ocuparam, [...] a contribuição de seus esforços”.
Uma sociedade machista e racista, como a brasileira, fortalece as barreiras para a identificação, o reconhecimento e a valorização de mulheres e negros como intelectuais (GOMES, 2020). Do mesmo modo, acrescenta-se que uma sociedade capacitista5, também, terá dificuldade em reconhecer pessoas com deficiência como intelectuais. Dorina de Gouvêa Nowill é reconhecida neste estudo como uma intelectual criadora e mediadora. Essa identificação se deve a uma série de ações sobre e para a educação dos cegos favorecidas por sua posição estratégica e seu engajamento para a produção de objetos culturais e para a circulação do conhecimento, principalmente por meio dos cargos que ocupou. Também, pelo seu comprometimento com a tradução de publicações para o português e/ou para o braille6, e pela sua influência e debates nos espaços público, privado, nacional e internacional, abrangendo um público ampliado, inclusive o não especializado, em uma dimensão política e pedagógica, vinculada a grupos e redes de sociabilidade e de apoio. Ainda, Dorina estava envolvida com a formação de profissionais, professores e técnicos, na área da educação e reabilitação dos cegos. Mulher e cega, Dorina era uma intelectual criadora e mediadora em favor dos cegos e das pessoas com visão “subnormal” - o que incluía a si própria. Na concepção de Alves (2019), a mediação e a criação são tratadas por Sirinelli como aspectos complementares, e não como opostos ou excludentes, podendo haver deslocamento “de prioritariamente mediador para engajado e vice-versa” (p. 48).
Os aspectos da História Transnacional (RABELO; VIDAL, 2020; VERA; FUCHS, 2021) emergem à medida em que se adentra no itinerário profissional de Dorina Nowill. As suas ações não estavam limitadas à cidade nem ao estado de São Paulo, mas abrangiam outros estados brasileiros, além do circuito internacional, ultrapassando o fluxo unidirecional entre centro e periferia para um fluxo transnacional. O recorte temporal enfatiza as décadas entre 1940 e 1980, por ser o período de maior concentração das suas ações na educação dos cegos. A pesquisa é de natureza histórica e documental com análise crítica em fontes diversificadas, como correspondências (cartas e telegrama), documentos institucionais (ofícios e declarações) e periódicos (Diários Oficiais da União e do estado de São Paulo, jornais de notícias e revistas). Parte dessas fontes estão datilografadas em língua inglesa, pelo fato de terem sido localizadas em um acervo estadunidense. Em algumas destas, consta uma observação de que o documento original estava registrado em braille, tendo em vista que algumas correspondências foram trocadas entre pessoas cegas.
Os acervos brasileiros consultados foram o Centro de Memória Dorina Nowill (São Paulo) e a Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional. Ainda, foi consultado o acervo digital estadunidense, Helen Keller Archive, vinculado à American Foundation for the Blind (Nova Iorque). Os arquivos digitais, chamados “não-presentes”, jamais devem ser vistos como uma negação dos convencionais, mas como um meio de recuperação, preservação e ampliação do acesso aos documentos, de caráter complementar e não substitutivo. Contribuem para superar as barreiras entre pesquisas de países centrais e periféricos; ampliar o acesso a um maior número de pesquisadores e propiciar a interação entre instituições distantes, ao viabilizar a “desterritorialização do acervo” (CASTRO, 2017). Além das fontes mencionadas, consultou-se a autobiografia de Dorina de Gouvêa Nowill, gravada por ela, no formato de áudio em sessenta e seis fitas cassetes, cuja transcrição adaptada resultou na publicação de um livro, na versão impressa, sob o título “...E eu venci assim mesmo - Dorina de Gouvêa Nowill” (NOWILL, 1996).
Quem foi Dorina de Gouvêa Nowill?
Brasileira, paulistana, pessoa cega, professora, especialista em educação de cegos e ativista. Após concluir o ginásio (1935), Dorina foi surpreendida por uma hemorragia ocular, que a levou a perder a visão aos 17 anos de idade (1936). Aprendeu o sistema braille (1939) no Instituto de Cegos Padre Chico7. O primeiro livro que leu em braille, e a iniciou no sistema, foi Histoire de ma vie, de Helen Keller, escrito em francês. Nesse mesmo período, ganhou e aprendeu a utilizar a sua primeira reglete8.
Nos anos de 1940, por meio de Regina Pirajá9, Dorina foi apresentada à diretora da Escola Normal Caetano de Campos, Carolina Ribeiro, que a convidou e a admitiu no Curso Normal como ouvinte. A primeira reivindicação de Dorina pela integração social do cego, refere-se ao seu próprio requerimento, em braille, ao Ministro da Educação e Cultura, Gustavo Capanema, com a solicitação de sua licença ginasial10. A concessão da licença, por decreto especial, uma vez que não havia lei específica, a possibilitou prestar vestibular para a Escola Normal e tornar-se a primeira aluna cega em São Paulo a ser diplomada em um curso público regular de formação de professores. “Foi nessa época que se estabeleceram as bases de todo trabalho que eu viria a desenvolver. Foi nessa época que tudo nasceu”, destaca Dorina (NOWILL, 1996, p. 21). Enquanto normalista, sua opinião sobre o ensino e o contexto da educação dos cegos foi registrada em um jornal paulistano, ocasião em que ainda não contava com visibilidade e prestígio social:
No entender de muitos, para ensinar um cego, basta conhecer os pontos do braille. Isto, todavia, não passa de um grande engano. É necessária uma esmerada e completa formação psicológica e pedagógica, sem o que jamais será alcançado o objetivo visado. [...] Isto tudo é meu ponto de vista de estudante. Não sou ainda uma professora competente para fazer um julgamento e acho também que não se pode criticar sem repor qualquer coisa. Estando, porém, ao par destes assuntos, e tendo visitado as nossas melhores instituições para cegos, concluí que, por enquanto, devido a várias circunstâncias - não se pode realizar ainda no Brasil o que é executado com excelentes resultados na Argentina, na França, e nos Estados Unidos, onde há professores especializados, maquinários e recursos muito mais amplos (CORREIO PAULISTANO, 1945, p.19).
Perrot (1998, p. 108) afirma que a educação abriu caminhos para que as mulheres alcançassem a condição de intelectuais, sendo as Escolas Normais as primeiras “universidades das mulheres”11. Nesse sentido, o conhecimento e as vivências da Escola Normal propiciaram à Dorina o acesso a um espaço de formação intelectual, a uma “universidade”. Uma de suas experiências de estágio, com um grupo de normalistas, influenciou na criação da seção para crianças cegas da Biblioteca Infantil do Departamento de Cultura do município de São Paulo. A seção foi inaugurada em 1946, sob a direção imediata de Lenira Fracarolli e mediata do diretor do Departamento Municipal de Cultura, Mário de Andrade, onde eram oferecidos livros em braille, música e recreação12. Renomeada com o nome do escritor Monteiro Lobato, a biblioteca foi reconhecida como a primeira de iniciativa pública do Brasil a oferecer um serviço especializado aos cegos. Em 1947, em homenagem à Dorina, a seção braille recebeu o seu nome (FRACAROLLI, s/d13; JORNAL DE NOTÍCIAS, 1947b).
Dorina também contribuiu na mobilização para que voluntários transcrevessem para o braille, à mão, livros e cartilhas para crianças e adultos, a fim de organizarem uma biblioteca. As primeiras cópias foram realizadas nas instalações da Cruz Vermelha brasileira com voluntárias desta organização e de alunas do Instituto Caetano de Campos. Esse material produzido compôs, posteriormente, o acervo inicial da Fundação para o Livro do Cego do Brasil (FLCB), instituição criada em 1946, em ação conjunta entre Dorina e Adelaide Reis de Magalhães, com a finalidade inicial de transcrever livros para o braille e promover ações educativas. Nas palavras de Dorina, “o desespero de ter livros era tão grande, e o que mais faltava eram livros para educar os cegos” [...] “Eu estava cega, então as coisas estavam muito presentes e queríamos transformar as coisas para fazer com que os cegos pudessem se educar, aprender e estudar” (NOWILL, 2010, p. 185).
Adelaide Reis de Magalhães assumiu a presidência desta fundação de 1946 a 1951. Dorina assumiu a presidência (1951- 2000) ao retornar de um período de estudos nos Estados Unidos da América (EUA), viagem, esta, a ser abordada adiante. Posteriormente, a FLCB estendeu suas atividades, com programas de reabilitação de deficientes visuais14; orientação de pais; criação de uma biblioteca circulante; profissionalização do cego; formação de professores e difusão do conhecimento e de práticas sobre e para educação e reabilitação de cegos por meio de cursos e eventos. As ações da FLCB se conectaram a uma rede de apoio e de cooperação internacional. Posteriormente, a instituição foi renomeada para Fundação Dorina Nowill para Cegos (1990).
Após diplomar-se na Escola Normal Caetano de Campos, Dorina iniciou a sua carreira como professora no Curso Primário do Instituto de Cegos Padre Chico. Além disso, participou de diversos cursos de formação com fundamentos em educação especial, principalmente com ênfase na educação de cegos, psicologia educacional, prevenção da cegueira, serviço social e legislação. Uma vez concedido o afastamento de sua atividade docente no Instituto de Cegos Padre Chico, Dorina junto com a amiga Neith Moura15 e com Regina Pirajá, participou do Projeto Especial para profissionais de cegos brasileiros, a fim de realizar uma viagem pedagógica. As bolsas foram concedidas pelo Departamento de Estado (EUA) e pela American Foundation for the Blind16, por intermédio do Institute of Internacional Education de Nova Iorque e da União Cultural Brasil-Estados Unidos. Uma bolsa foi destinada para o ano acadêmico no Teachers College (TC) da Columbia University, em Nova Iorque - EUA (maio de 1946 a julho de 1947), considerado um dos epicentros da internacionalização e de legitimação do campo educacional.
Desde as décadas de 1920 e 1930, educadores brasileiros já haviam sido enviados para se especializarem no Teachers College, financiados por governos estaduais e agências estadunidenses privadas, a exemplo de Anísio Teixeira, Ignácia Guimarães e Noemy Silveira Rudolfer. Enviadas por Francisco Campos, Benedicta Valladares Ribeiro, Lúcia Schimidt Monteiro de Castro17, Amélia de Castro Monteiro e Alda Lodi, se especializaram no TC (1927-1929) com a finalidade de atuarem na Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde também veio a atuar a educadora e psicóloga russa, Helena Antipoff (vinculada ao Instituo Jean-Jacques Rousseau (Genebra/Suíça)), a convite do próprio Francisco Campos, o então Secretário de Educação e Saúde Pública do Estado de Minas Gerais. A partir da criação do Instituto Internacional do TC (1923) ampliou-se o número de estrangeiros recebidos na instituição (WARDE, 2016; WARDE, ROCHA, 2018). O Teachers College se integrava a amplas redes ligadas, principalmente, à Educação Ativa - o Instituto Jean-Jacques Rousseau, incluindo o Bureau Internacional de Educação de Genebra; a New Education Fellowship (conhecida por Ligue Internationale pour l´Éducation Nouvelle nos países latinos), o Institute of Education da University College London - o que promovia ações e intenções que manifestavam ora parceria, ora rivalidade, além do internacionalismo educativo (WARDE, 2016; HOFSTETTER, 2017; RABELO; VIDAL, 2020; CARDOSO; MARTÍNEZ, 2021).
Outra bolsa de estudos concedida à Dorina foi destinada ao Michigan State Normal School para um curso de verão com o apoio da União Cultural Brasil - Estados Unidos (THE RECORD, 1946; JORNAL DE NOTÍCIAS, 1947a; SÃO PAULO, 1952; NOWILL, 1996). A despedida por amigos, alunos e representantes de instituições para cegos, realizada no aeroporto e na União Cultural Brasil-Estados Unidos foi noticiada pela imprensa jornalística: “Embarcaram, ontem, para os EE.UU, três professoras paulistas contempladas com uma bolsa de estudos”, destacando que “formavam, com Dorina, uma verdadeira equipe de trabalhadoras dedicadas aos cegos, cuja unidade devia ser mantida pelo melhor êxito da viagem de estudos” (DIÁRIO DA NOITE, 1946, p. 10).
Em palavras de despedida, Dorina destacou na imprensa jornalística, a necessidade e o seu comprometimento em promover a ampliação do nível cultural dos cegos, a partir dos conhecimentos que esperava adquirir no curso de especialização:
Nossa despedida é diferente, porque é uma mensagem de esperança. Nós voltaremos e haveremos de transmitir a todos os cegos todo o fruto dos esforços que despenderemos para conseguir o domínio dos meios que hão de colaborar pelo melhoramento de seu nível cultural. É preciso que se deixe aos cegos a liberdade de agir. Eles são, como sempre tenho repetido, porque julgo que isso é necessário, pessoas como as outras, que merecem viver a vida comum de todos os homens [...] criaturas que não são nem desgraçadas, nem gênios, [...] mas que necessitam de oportunidades e meios para a sua educação (DIÁRIO DA NOITE, 1946, p. 8, 10).
Dorina realizou ainda vários estágios e visitas em instituições públicas e privadas dedicadas à educação e à saúde dos cegos, inclusive, conheceu o ensino integrado de crianças com deficiência em escolas regulares, a exemplo de: State Commission for the Blind (New Jersey), Perkins Institute for the Blind18 (Boston, Massachusets), New York Institute for the Blind, Overbrook School for the Blind (Philadelfia), Canadian Institute for the Blind; New York Guild Jewish Blind. Nesse período, entre aulas e estágios, participou do Congresso do Conselho Internacional para Crianças Excepcionais, realizado no Canadá (NOWILL, 1996). A viagem pedagógica aos EUA, com a realização de cursos e estágios, marcou o início de uma formação continuada especializada e de sua profissionalização no campo da educação especial, sobretudo, para a educação dos cegos, abrindo portas para uma ascensão profissional, inclusive no âmbito público; para a inserção em redes de sociabilidade e de apoio; e para a mobilização de um circuito transnacional em favor dos direitos dos cegos.
Nesse contexto, além da Europa, os EUA eram tidos como um referencial de progresso, civilização, de ideias democráticas e de modernidade pedagógica e científica para a educação brasileira (CARDOSO, 2015; WARDE, 2016), passando a ser também uma referência, especificamente, para a educação dos cegos. O curso realizado no Teachers College por Dorina tornou-se um parâmetro para o Curso de Especialização em Ensino de Cegos do Instituto Caetano de Campos. Ainda, durante o curso normal, Dorina havia composto um grupo de estudos com oito normalistas19, que desenvolveu um método de ensino para crianças cegas a partir de uma experiência pedagógica no Instituto de Cegos Padre Chico. Em consequência, participou e contribuiu com a organização do Curso Experimental de Especialização de Professores para o Ensino de Cegos (1945), em nível médio, cuja primeira turma, a qual pertencia, teve a formação oficialmente reconhecida pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, com habilitação para atuarem em escolas regulares, ação inédita na América Latina, segundo Dorina (NOWILL, 1996).
Assim que retornou dos EUA, o curso foi integrado ao Instituto de Educação Caetano de Campos (IECC)20, como especialização regular (1948), sendo, nas palavras de Dorina, “um passo inicial, real, concreto e objetivo para que a educação de cegos se integrasse como um processo dentro da própria educação brasileira” (NOWILL, 1996, p. 26). Inicialmente, o curso foi coordenado pela professora Zuleika de Barros Martins Ferreira (1948-1955), com contribuições e orientações de Dorina, que posteriormente assumiu a coordenação do curso (1955-1966) devido à aposentadoria de Zuleika.21 Ao mesmo tempo, Dorina também integrou o corpo docente do curso, ao assumir a disciplina de Braille, enquanto Técnica de Educação do IECC, cargo este cujo exercício data desde 1947. O curso foi adaptado, sob a orientação de Dorina, para que tivesse o modelo curricular semelhante ao do curso do Teachers College. Inclusive, Noemy Silveira Rudolfer, professora de referência da área de Psicologia Educacional, também com formação pelo TC, participou do curso ministrando palestras (MARQUES, 2021). Ainda no IECC, enquanto Técnica de Educação, Dorina lecionou os conteúdos “Metodologia Especial para o ensino de cegos” e “Efeitos psicológicos da cegueira”.
A experiência nos Estados Unidos propiciou à Dorina a aproximação por meio do conhecimento e de vivências do discurso e da prática da integração social do cego22, o que influenciou diretamente na construção do seu pensamento e no direcionamento de sua prática profissional. Nesse sentido, foi uma influenciadora e intermediadora na criação da Secretaria de Educação de São Paulo do primeiro Serviço Especial para Educação Integrada de alunos cegos na escola regular; além da primeira unidade para produção de equipamentos para uso pessoal e profissional dos cegos e deficientes da visão; de cursos de formação de professores e especialistas em educação; de trabalhos para despertar o interesse da sociedade e de autoridades públicas acerca da importância do combate e prevenção da cegueira; da criação das classes Braille e do Serviço de Educação para os cegos-surdos (SÃO PAULO, 1976; 2003).
Articulações para a prevenção da cegueira, a reabilitação e a educação dos deficientes visuais
Ao retornar dos EUA (1947), Dorina participou pela FLCB da criação de uma ação permanente, a Campanha de Prevenção da Cegueira. Em conjunto com a FLCB, atuaram a Clínica Oftalmológica, da Escola Paulista de Medicina23; o Centro de Estudos de Oftalmologia e o Centro Acadêmico Pereira Barreto. O objetivo era divulgar instruções sobre a conservação dos olhos sãos e afetados, oferecendo serviços clínicos gratuitos. O jornal Diário da Noite (1947) registrou a distribuição da divulgação em espaços escolares, paróquias, associações culturais, sindicatos, revistas, além de artigos em jornais do interior (DIÁRIO DA NOITE, 1947).
Enquanto presidente da Fundação para o Livro do Cego do Brasil, Dorina inaugurou o Centro de Reabilitação de Cegos desta instituição, em 1962. Estiveram presentes, o Ministro da Educação, Darcy Ribeiro (1962-1963)24, o governador do estado de São Paulo, o cardeal Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta e o secretário da Educação do estado de São Paulo, Euvaldo de Oliveira Melo. Na ocasião, Darcy Ribeiro datilografou as primeiras letras de uma cartilha em braille, iniciando simbolicamente a impressão do material (CORREIO PAULISTANO, 1962, p. 3). Nesse período, Dorina também exercia a direção da Campanha Nacional de Educação dos Cegos, do Ministério da Educação e Cultura (CNEC/MEC), que ofereceu financiamento e orientação técnica a esse Centro de Reabilitação.
Posteriormente, foi criado o Centro de Treinamento para visão “sub-normal” (1974), uma inciativa privada, em sociedade, entre Dorina (coordenadora), Jurema Lucy Ventura (conselheira de reabilitação visual) e Armando Arruda Novais (médico oftalmologista), tendo por finalidade a prestação de serviços de treinamento através da utilização de equipamentos óticos; assistência médica; orientação pedagógica; treinamento de pessoal especializado; pesquisas no campo das humanas e das áreas técnicas, visando a reabilitação e aprimoramento pessoal, profissional e cultural dos deficientes visuais; ministração de cursos para a difusão das experiências e pesquisas. Para a realização desse trabalho, parte dos profissionais realizaram estágio na Light House, em Nova Iorque, EUA (SÃO PAULO, 1974; NOWILL, 1996).
O engajamento em processos de produção de bens culturais
A ação de Dorina na produção de bens culturais, para a divulgação do conhecimento e de valores para um público abrangente, ligado à uma dimensão pedagógica e política, é marcada pela inauguração de uma Imprensa Braille na FLCB, onde foram produzidas a revista Relevo, criada em 1950, com o objetivo de transcrever para o braille artigos publicados em revistas e jornais de todo o país e outras colaborações, além da Revista Relevinho, destinada às crianças cegas, esta última, orientada pela Editora Melhoramentos25 com a colaboração do escritor Francisco Marins. A imprensa braille completa - maquinários e papel específico - foi doada pela American Foundation for Overseas Blind, em conjunto com a Kellogg Foundation (1948). A produção, desde então, destinou livros para o Brasil e outros países de língua portuguesa (REVISTA DA SEMANA, 1949; NOWILL, 1996).
A FLCB também produzia a revista profissional “Lente”, dedicada a professores, oftalmologistas e outros profissionais, inaugurada em 1957. Impressa em tinta, e durante um período também transcrita em braille, a maioria dos artigos publicados eram traduções da revista estadunidense The New Outlook for the Blind, da American Foundation for the Blind. À Dorina cabia redigir os artigos de abertura. Em 1971, Nowill contribuiu na constituição e integrou a Associação de Editoras de Ibero-América (Colômbia) sendo eleita presidente, neste ano, e reeleita em 1973. Em 1972, inaugurou na FLCB um centro de produção dos denominados “livros falados” (gravados em áudio) e uma biblioteca circulante com envio e empréstimo de livros para cegos de todo país.
Dorina, devido a um contratempo no retorno de uma viagem, não chegou a tempo para a inauguração, que contou com a presença de duas autoridades públicas: o Ministro da Educação e Cultura, Jarbas Passarinho, e o prefeito de São Paulo, Paulo Maluf, sendo que este último, segundo Dorina, teria concedido a verba para este projeto. Destaca que seu agradecimento público a essas autoridades era “sem nenhum interesse, apenas mostrando o fato de que através delas conseguimos muitas coisas” (NOWILL, 1996, p. 134). Nesse período, o ministro da educação era seu chefe imediato, já que ela dirigia a Campanha Nacional de Educação dos Cegos (1961-1973).
Segundo Dorina, investir na produção de livros braille era essencial, pois: “a educação, a leitura e a orientação constituem-se nos mais largos caminhos que levarão o cego à integração” (CORREIO BRAZILIENSE, 1980, p. 6). Na década de 1980, houve dois investimentos para otimizar a produção na FLCB. Um foi a inauguração da Imprensa Braille Eletrônica (1980), ocasião em que esteve presente João Figueiredo, presidente da República (1979-1985) e Paulo Maluf, governador do Estado de São Paulo (1979-1982). Na ocasião, Dorina agradeceu as presenças de Figueiredo e Maluf e “lembrou que as verbas municipais, estaduais e federais, [...] muito contribuem com sua entidade” (CORREIO BRAZILIENSE, 1980, p. 6). Nota-se a influência de Dorina no circuito político e a relação imbricada e planejada entre o público e o privado que marca o percurso da educação especial brasileira.
O outro investimento foi a inauguração de um sistema computadorizado de impressão braille (1984), noticiado na ocasião como inédito no Brasil, com capacidade de diminuir a impressão de um livro braille de 60 para 45 dias. “O professor João Antônio Zuffo, da Escola Politécnica da USP26 desenvolveu uma interface, que transforma o alfabeto em caracteres Braille e aciona uma impressora de matrizes”, triplicando a capacidade de produção de matrizes de metal por dia (JORNAL DO BRASIL, 1984a, p. 6). Os “livros falados”, que inicialmente eram gravados em fitas cassete, em 2002 passaram a ser gravados em CD e, em 2008, foi lançado o Livro Digital Acessível Daisy, formato internacional de acessibilidade de leitura.
Protagonismo e ocupação de espaços de circulação e difusão do conhecimento
“Prezado Mr. Boulter, venho informá-lo que já demos os primeiros passos para a visita da Srta. Keller ao Brasil” (NOWILL, 1952, tradução nossa). Assim inicia a carta de Dorina ao Boulter, Diretor de Campo da American Foundation for the Blind, para lhe informar que havia enviado um documento ao Palácio do Itamaraty27, no Rio de Janeiro, solicitando que o governo brasileiro considerasse a vinda de Helen Keller ao Brasil como uma missão oficial.
Helen Keller28, de nacionalidade estadunidense, era cega e surda, ativista social, sufragista, pacifista, feminista, escritora, conferencista mundial, membro honorário de várias sociedades científicas e organizações filantrópicas, e uma (re)conhecida militante pelo bem-estar social das pessoas cegas e surdo-cegas, além de conselheira de relações internacionais da American Foundation for the Blind (1924-1968), a mesma instituição que concedeu a bolsa de estudos à Dorina e com a qual, posteriormente, Dorina firmou parcerias.
Dorina a havia conhecido em Nova Iorque (1945), no período que em lá esteve para estudos, como ela mesmo narra: “Ela colocou o dedo sobre os meus lábios para perceber meu nome e de onde eu era. Repetiu com clareza: ‘Brasil’, e acrescentou: ‘Tenho um sonho: visitar o Brasil e a América do Sul”. Essa frase ficou-me gravada, e eu senti nesse momento que tudo faria para que ela realizasse esse sonho” (NOWILL, 1996, p. 38). Passados nove anos, Keller registrou sobre esse encontro com Dorina em um ensaio para o periódico The New Outlook for the Blind, momento em que abordou sobre sua viagem à América Latina: “Eu a tinha encontrado anos antes nos Estados Unidos em um Seminário de Home Teachers29, mas eu nunca teria imaginado que uma relação de amizade e profissional brotaria de um encontro casual” (KELLER, 1954, p. 134, tradução nossa). Em 1953, o Brasil recebeu a visita oficial de Helen Keller, durante a sua missão pela América Latina, por mediação de Dorina, ocasião em que a estadunidense participou de conferências e reuniões, e visitou instituições especializadas de educação e reabilitação nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo, neste último, acompanhada e com a agenda coordenada por Dorina30.
Após a sua visita ao Brasil, Helen Keller seguiu para o Peru, em continuidade à sua missão pela América Latina, onde recebeu um telegrama de Eric Boulter, Diretor de Campo da American Foundation for the Blind, com a notícia de que Dorina Nowill o havia informado sobre a condecoração da “Ordem do Cruzeiro do Sul” concedida pelo governo brasileiro à Helen Keller (BOULTER, 1953). Anos antes de sua vinda ao Brasil, a imprensa brasileira já identificava Dorina como a “Helen Keller brasileira” (JORNAL DE NOTÍCIAS, 1947b, p. 2).
Ainda nesse ano (1953), foi publicada uma lei no estado de São Paulo (L. 2.287/1953) que criou as Classes Braille31 nos cursos pré-primário, primário, secundário e de formação profissional em geral no estado, para a qual Dorina havia colaborado tanto na elaboração quanto na sua avaliação no período em que ainda era um Projeto de Lei. As Classes Braille já funcionavam em caráter experimental desde 1950 no Instituto Caetano de Campos, e a professora Zuleika e Dorina tinham a intenção de oficializá-las. Esse ano foi um momento propício para a aprovação dessa lei, já que que Carolina Ribeiro estava como secretária de educação do estado de São Paulo (MARQUES, 2021).
Nota-se que era uma lei avançada para a época, já na perspectiva da integração escolar em detrimento da segregação. Sem dúvidas, Carolina Ribeiro veio a integrar uma rede de apoio importante para Dorina, estabelecida desde o período em que estava no cargo de diretora da Escola Normal Caetano de Campos. Posteriormente, houve convênios entre a Secretaria de Estado dos Negócios da Educação e a FLCB para que esta coordenasse as ações com as Classes Braille e organizasse serviços escolares de educação e de ensino especializados para cegos e pessoas com visão subnormal (MAZZOTA, 2011). Destacam-se dois convênios da FLCB, firmados com a Secretaria de Estado de Educação de São Paulo. Um, desde 1949, para a criação de um departamento de educação de cegos, e outro, em 1960, assinado por Dorina, que designava a FLCB como “um órgão especial de estímulo, planejamento e orientação da rêde de unidades escolares de Educação e ensino especializado de cegos e amblíopes" (l. 5989/1960 - cláusula primeira), visando a execução da referida lei de criação das classes braille.
Dorina participou de diversas conferências e congressos no país e no exterior, inclusive, em vários deles, representando oficialmente o Brasil. O primeiro, o Congresso Regional de Braille de línguas hispano-portuguesas (1951) organizado pela UNESCO e realizado em Montevidéu/Uruguai. Entre outras, destacam-se também as participações no II Congresso Internacional de Educadores de Jovens Cegos, em Oslo (Noruega) (1957), e na edição de Boston (EUA) (1967). Dorina ressalta que os eventos promoviam o seu contato com educadores de diversos países e com o que de mais atual estava sendo discutido sobre a educação dos cegos mundialmente, além de a colocar em contato com uma rede internacional de educadores e especialistas na educação dos cegos, a exemplo do realizado na Noruega:
Eu tive a oportunidade de conhecer grandes educadores europeus. A minha formação especializada foi realizada principalmente nos EUA, embora meu orientador e supervisor fosse austríaco, [...] havia americanos, canadenses, pessoas de todos os países da Europa e da Índia. Tive uma visão global desse mundo tão diversificado de tipos de educação de cegos (NOWILL, 1996, p. 82).
A sua circulação em eventos institucionais e científicos era ampla. Participou de diversos eventos, entre eles, o I Congresso Internacional de Imprensa Braille de língua espanhola, em Buenos Aires (Argentina) (1966) (BRASIL, 1966); os Seminários sobre Infância Excepcional organizado por Helena Antipoff, na comissão de cegos (1951,1952,1953); o 3º Congresso Nacional dos Estabelecimentos Particulares de Ensino, organizado por Carlos Pasquale (1962), onde apresentou seu primeiro trabalho sobre Classes Braille e integração escolar; e nas Semanas Nacionais da Criança Excepcional. Em 1966, o MEC realizou o Seminário Preparatório para o 1° Congresso Nacional de Educação de Deficientes, com abertura no Instituto Benjamin Constant, o qual reuniu “especialistas no ensino aos deficientes da visão, da audição e fala, do aparelho locomotor e mentais” (BRASIL, 1967, p. 68). Dorina participou da organização dos grupos de trabalho32. No Simpósio sobre Ensino Integrado de Ciências (1968) Dorina apresentou o trabalho “A criança deficiente visual e a escola pré-primária”, cujo resumo foi publicado na Revista Ciência e Cultura da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) (NOWILL, 1968).
Também participou da Conferencia Latinoamericana sobre Educación de niños y jóvenes ciegos, em Bogotá, Colombia (1971); do I Seminário sobre Universidade e o preparo de pessoal especializado na educação e reabilitação do excepcional, como relatora, promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1973); do II Congresso Brasileiro de Educação Pré-Escolar, com o trabalho “A criança cega e deficiente visual na pré-escola” (1976); do I Seminário Brasileiro de Educação do Deficiente Audiovisual, como relatora (1977); do I Encontro de Educação Especial (Deficiência mental e deficiência visual) da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (1982); entre outros na área de prevenção da cegueira e profissionalização da pessoa cega. Além disso, organizou o Congresso Panamericano de Assistência e Educação de Cegos (1954); o Congresso e a Assembleia do Comitê Panamericano do Conselho Mundial para o Bem-estar do Cegos (CMBEC), em São Paulo (1954); o Congresso Mundial e a V Assembleia do CMBEC (1974); e o I Congresso Latinoamericano do CMBEC (1975), estes dois últimos realizados em São Paulo.
Compôs a comissão executiva da Campanha Nacional de Educação e Reabilitação dos Deficitários Visuais do MEC (1958-1960), vinculada ao Instituto Benjamin Constant, primeira política pública nacional de educação dos cegos. Em requerimento dirigido ao Secretário de Estado dos Negócios da Educação de São Paulo, Alípio Correa Neto, Dorina, enquanto Técnica de Educação de Cegos no Instituto de Educação Caetano de Campos, solicitou licença para desenvolver as atividades da Campanha: “Minha participação nessa comissão é como representante de São Paulo e como técnico no assunto, pois São Paulo já possui um lastro científico de alto padrão e pode contribuir para o desenvolvimento do trabalho em todos os outros Estados do Brasil” (NOWILL, 1958).
Em 1960, essa política foi reestruturada e renomeada para Campanha Nacional de Educação dos Cegos (CNEC/MEC), ocasião em que Dorina foi designada diretora executiva, uma mulher, cega, dirigindo a primeira política pública brasileira para educação dos cegos. “Para esse cargo, precisarei viajar muitas vezes para Brasília e para o Rio de Janeiro”, afirmou Dorina ao Diretor-superintendente do Instituto de Educação da Caetano de Campos, Raul Schwinden, ao solicitar, por ofício, dispensa de suas atividades para dedicação maior à Campanha (NOWILL, 1961).
Os campos científicos brasileiros da História da Educação e da Educação Especial, tradicionalmente, quase não desenvolveram estudos sobre a Campanha Nacional de Educação dos Cegos, o que gerou interpretações restritivas, no sentido de que a CNEC/MEC não teria sido um tipo de política pública33 e/ou de que não teria desenvolvido ações relevantes para a educação brasileira, considerando o contexto da sua vigência (o que certamente não exclui uma análise crítica da política e de suas limitações). Tendo em vista esta lacuna que Cardoso e Martínez (2019) aprofundaram o estudo sobre os seus objetivos, linhas de ação e convênios.
Este período é um marco no itinerário profissional de Dorina, pois é quando inicia sua carreira pública em nível nacional e é reconhecida pelo prêmio “Mestra do Ano” (1961), escolhido por representantes de entidades de classe do professorado e autoridades do ensino primário e secundário do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 1961). Nos 13 anos enquanto diretora da CNEC/MEC (1961-1973)34, Dorina organizou diversos congressos de educação especial, como: o Simpósio de Educação Especial, em Brasília (1963); o I Congresso Brasileiro de Educação de Deficientes Visuais (CBEDV), em São Paulo (1964); o II CBEDV, em Brasília (1968), quando foi criada a Associação Brasileira de Educadores de Deficientes Visuais, da qual fez parte; e o III CBEDV (1971), no Rio de Janeiro (CARDOSO; MARTÍNEZ, 2019). Já sob à organização da Associação Brasileira de Educadores de Deficientes Visuais, Dorina participou do IV CBEDV, em Curitiba, Paraná (1975); do V CBEDV, em Florianópolis, Santa Catarina (1986), e do VII CBEDV, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul (1993).
Chamam a atenção o prestígio e a influência política de Dorina, tendo em vista a sua longa permanência ininterrupta na gestão pública da CNEC/MEC (1961-1973), mesmo diante de um contexto de instabilidade política, sobretudo, durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985), quando ocorreu diversas sucessões de suas chefias no Poder Executivo: sete presidentes da república e quinze ministros da educação35. Vale destacar que Dorina, como outros gestores públicos, participou de curso de formação da Escola Superior de Guerra36.
Ainda durante a sua gestão na CNEC/MEC foram estabelecidos diversos convênios com secretarias de educação dos estados brasileiros e universidades. Como exemplo, a convite do Serviço de Educação de Excepcionais da Secretaria de Educação de Cultura do Paraná, em conjunto com o 1.º ano de Pedagogia da Universidade Católica do Paraná, ministrou o Curso de Extensão Universitária “Aspectos da Educação do Excepcional” com ênfase na deficiência visual (DIÁRIO DO PARANÁ, 1970, p. 8; CARDOSO; MARTÍNEZ, 2019).
Tendo em vista uma política de integração social do excepcional, incluindo o superdotado, em 1971, havia sido criado pelo Departamento de Ensino Complementar do MEC um grupo-tarefa (GT) para implementar um sistema de ensino; apresentar uma proposta orçamentária; levantar informações e dados sobre a realidade do excepcional no país; analisar a possibilidade de implantar programas de ensino nas regiões cujo atendimento fosse mais precário e estabelecer condições estruturais para a implantação de um órgão que concentraria a ação e a política de programas assistenciais. Dorina integrou esse GT de especialistas da área de educação, sob a gerência de Sarah Couto César (da Campanha Nacional de Deficientes Mentais do MEC - CADEME/MEC)37 (CORREIO BRAZILIENSE, 1971, p. 11; CARDOSO, 2018).
Em consequência das ações desse GT, em 1973 foi criado o Centro Nacional de Educação Especial do MEC (CENESP/MEC) e foram extintas a CNEC/MEC e a CADEME/MEC. O CENESP continuou e ampliou as ações das Campanhas extintas. Enquanto presidente da FLCB, Dorina também firmou convênios com o CENESP.
Dorina participou ativamente do movimento associativo por meio de organizações representativas dos cegos em âmbito nacional e internacional, como o Conselho Mundial para o Bem-Estar dos Cegos (vice-presidente de 1964 a 1969 e de 1974 a 1979; e presidente de 1979 a 1984), que, conforme seu relato (NOWILL, 1996), a levou a visitar 27 países, participar e organizar diversos encontros e congressos e ser a primeira mulher a exercer a presidência desse Conselho. Além deste, integrou o Conselho Brasileiro para o Bem-Estar dos Cegos (membro fundadora) (1954); o Conselho Internacional para a Educação de Deficientes Visuais; o Conselho Mundial de Braille; a União Latinoamericana dos Cegos, e a União Mundial dos Cegos. Também fundou e presidiu a Associação de Editoras para Deficientes Visuais da Ibero-América (ADEVIA) e foi copresidente, junto com Helen Keller, do Comitê Panamericano de Oftalmologia.
As práticas culturais que Dorina desenvolveu e sua abrangência se estenderam e se vincularam à Organização das Nações Unidas (ONU). A sua participação neste e nos demais espaços era significativa porque levava a sua representatividade enquanto mulher cega e enquanto representante das pessoas cegas e, especificamente, das meninas e mulheres cegas. Para exemplificar, em defesa da eliminação da discriminação contra meninas e mulheres com deficiência, Dorina compôs a delegação brasileira na Assembleia da ONU, no Ano Internacional da Mulher, no México (1975), ao lado de Maria Alice Silva (Secretária Geral do Ministério do Trabalho) e Berta Lutz, uma das fundadoras da Federação Brasileira do Progresso Feminino (1922) e da Associação Brasileira de Educação (1924). Em comemoração a esse ano, Dorina foi uma das 10 mulheres homenageadas pelo Conselho de Mulheres do Brasil, pelos trabalhos em relação à integração feminina no processo de desenvolvimento sócio-político e econômico do país.38
Posteriormente, em 1980, na Assembleia Geral da ONU, Dorina apresentou o seu trabalho “A contribuição das pessoas deficientes na sociedade através da participação plena”. Nessa Assembleia Geral da ONU definiu-se 1981 como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes, sob o tema “Participação plena e igualdade” em todos os aspectos da vida da sociedade e no desenvolvimento da sociedade onde elas vivem, sendo a igualdade no sentido de condições de vida iguais a de outros cidadãos da mesma sociedade e ao igual compartilhamento da melhoria das condições de vida resultantes do desenvolvimento social e econômico (SÃO PAULO, 2011). Representando a FLCB, Dorina compôs a Comissão Estadual de São Paulo de Apoio e Estímulo ao Desenvolvimento do Ano Internacional das Pessoas Deficientes.39 Em 1981, participou da Conferência Mundial sobre Ações e Estratégias para Educação, Prevenção e Integração, da UNESCO (Torremolinos, Espanha), e da Comissão de redação do documento da conferência, a Declaração de Sundberg, representando o Brasil.
Por decreto presidencial, foi designado um Comitê Nacional para Educação Especial (1985), com a finalidade de “traçar a política de ação conjunta, destinada a aprimorar a educação especial e a integrar, na sociedade, as pessoas portadoras de deficiências, problemas de conduta e superdotadas”40; realizar um estudo sobre as prioridades e meios de se promover a universalização dos direitos das pessoas “portadoras de deficiência”; além de elaborar um plano nacional de atendimento, considerando também a limitação de dados estatísticos no Brasil. Esse Comitê indicou a transformação do CENESP em Secretaria de Educação Especial, que ocorreu em 1986. Também como resultados dos trabalhos desse Comitê, no mesmo ano foi criada a Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE)41.
Dorina integrou essa comissão, ao lado de outros nomes atuantes na educação especial como Sarah Couto Cezar e Olívia da Silvia Pereira (LANNA JUNIOR, 2010). “Eu fiz parte da primeira equipe que criou a CORDE. Eu fui chamada pelo Ministério da Educação, e começamos com uma reunião, e depois outras, preparando os documentos na CORDE. [...] de modo que participei de todo esse movimento. Nós tínhamos mesmo vontade, um sentido de brasilidade, de querer contribuir para o País” (NOWILL, 2010, p. 187). Para Dorina, “o importante é isto: a vivência! E nós só damos vivência ao cego se ele puder estudar nas mesmas escolas que os não cegos” (NOWILL, 2010, p. 186).
Em 1987, recebeu da Presidência da República a Ordem do Mérito Educativo. Durante o seu itinerário profissional, recebeu diversos títulos e homenagens concedidos e endossados por instituições públicas e privadas, nacionais e internacionais, que denotam o reconhecimento público de suas ações e demarcam caminhos para identificar e percorrer as possíveis redes de sociabilidade e apoio as quais estava vinculada. As posições ocupadas por Dorina foram estratégicas para promover ações políticas e a circulação do conhecimento marcando uma fluidez de fronteiras para o contexto global.
Dorina faleceu em 2010 após uma parada cardíaca. As homenagens permaneceram após sua morte, como o 11º Prêmio USP de Direitos Humanos (post mortem) (2010)42; a inauguração de um Totem em galeria tátil na Pinacoteca de São Paulo (2010); a Comenda Dorina Nowill (2015), pelo Senado Federal, que na primeira sessão homenageou a própria Dorina e vem sendo concedida a pessoas consideradas relevantes na defesa das pessoas com deficiência no Brasil; e o lançamento do Documentário - “Dorina - Olhar para o mundo” (2016).
Considerações finais
A retomada do itinerário profissional e das ações pedagógicas e políticas de Dorina de Gouvêa Nowill, apresentados neste artigo, permitem inferir algumas considerações. Ponderações pontuadas neste estudo poderiam justificar o desconhecimento ou o não reconhecimento acadêmico de suas contribuições para a educação especial, sobretudo para a educação dos cegos e a sua quase invisibilidade na historiografia da educação brasileira, principalmente, no lugar em que foi categorizada neste artigo, no de intelectual criadora e mediadora. Uma delas, seria o fato de Dorina ter sido uma pessoa cega cuja imagem estava enfaticamente associada à filantropia. Além disso, se por um lado a sua formação em nível médio na conceituada Escola Normal Caetano de Campos - um espaço que pode ser reconhecido naquele contexto como uma “universidade das mulheres”, isto é, de formação de mulheres intelectuais - a elevava a um lugar social privilegiado à sua época, por outro lado, o fato de não ter desenvolvido uma carreira acadêmica de nível superior no Brasil pode ter contribuído para sua invisibilidade no meio científico enquanto intelectual da educação brasileira. A sua formação, contudo, não a impediu de se especializar no ensino de cegos em universidades dos Estados Unidos, nem de firmar parcerias com universidades brasileiras, públicas ou privadas, enquanto diretora da Fundação para o Livro do Cego do Brasil ou por meio de cargos públicos.
Apesar desse silenciamento ou esquecimento no âmbito científico, a sua ampla experiência na educação dos cegos por meio da formação em instituições de ensino estadunidenses; da organização e participação de eventos científicos e institucionais nacionais e internacionais; da sua participação na direção de organizações internacionais representativas dos cegos; da direção executiva por 13 anos de uma política pública, a Campanha Nacional de Educação dos Cegos; do apoio e da participação na elaboração de projetos de lei; contribuíram para a sua visibilidade e engajamento tanto nacional quanto internacional, que envolve a sua inserção e a construção de uma rede de sociabilidade e de apoio, em dimensões política e pedagógica, diluindo fronteiras, de São Paulo para o Brasil e em percursos multidirecionais em âmbito global.
Reafirma-se, no entanto, que um intelectual não se forma, e não existe, sem uma rede de sociabilidade e/ou de apoio. Sem dúvidas, as viagens pedagógicas de Dorina construíram caminhos para essas redes nacionais e internacionais a qual estava integrada e propiciaram uma abertura de possibilidades que favoreceram: a circulação do conhecimento e de valores, a divulgação de práticas culturais sobre e para as pessoas cegas e com visão subnormal, envolvendo um público ampliado; a produção e mediação de bens culturais; a construção e o estabelecimento de ações políticas; e o levantamento de verbas e de subvenções públicas. Para alcançar esse fim, é notório o empenho de Dorina, a partir de uma posição privilegiada, em interagir e mobilizar pessoas cegas, profissionais da educação e da saúde, instituições, grupos associativos, órgãos públicos e organizações privadas, de diferentes regiões do país e de outros países.
Sua representação é significativa não apenas porque ela era uma especialista na educação dos cegos, mas, sobretudo, pela representatividade que carregava enquanto pessoa cega e mulher, sendo pioneira nesses espaços, considerando esta perspectiva. A presença de autoridades públicas nos eventos promovidos por Dorina demonstra o seu prestígio e articulação no circuito político. É notória a recorrente negociação entre o Estado e as instituições privado-filantrópicas, em ambas direções. A relação público-privado, marca forte, frequente e tensa dos circuitos da educação especial brasileira, até os dias atuais, são observadas e precisam ser analisadas considerando os contextos cultural, social, político e econômico de cada época, bem como suas relações de permanência e suas consequências para o período estudado e para os seguintes.
Nota-se que a formação especializada de técnicos e professores, com métodos específicos para a educação dos cegos, era uma estratégia para a difusão e a circulação do princípio da integração social e escolar do cego (na rede regular de ensino) que Dorina defendia, com a perspectiva de modificar as práticas sociais e a cultura escolar brasileira. Por fim, o trabalho aponta para outros desdobramentos e tensões que merecem ser aprofundados, interpretados e problematizados, oferecendo subsídios para uma pesquisa mais ampla em desenvolvimento pelas autoras.