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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-199 

Dossiê 3 - História Comparada do Ensino Secundário: renovação da historiografia por comparações, transições, massificações e traduções

A adequação do sistema de escolar às novas realidades socioeconómicas. A(s) reforma(s) do ensino liceal (1945-1968)

La adecuación del sistema escolar a las nuevas realidades socioeconómicas. La(s) reforma(s) en liceus (1945-1968)

1Universidade de Coimbra, Portugal. antonio@fpce.uc.pt

2Instituto Politécnico de Coimbra, Portugal. lmota@esec.pt


Resumo

O reposicionamento geoestratégico de Portugal no mundo do pós-guerra e as transformações na formação social portuguesa conduziram a alterações na política educativa, reconhecendo à educação um papel fulcral no crescimento económico, sustentado na teoria do capital humano. As preocupações centraram-se na formação de recursos humanos qualificados, na valorização do capital escolar e na promoção da planificação educativa. Analisa-se a evolução dos objetivos e da estrutura curricular dos liceus, incluindo a criação do Ciclo Preparatório do Ensino Secundário, convocando fontes escritas submetidas a análise documental, com recurso ao método crítico, e de conteúdo. As finalidades a atribuir ao ensino liceal revelam-se a questão central no sentido de os liceus promoverem a escolarização de um leque mais alargado de portugueses. Um processo que se concretiza com base na desigualdade de acesso à educação.

Palavras-chaves: História da Educação; Ensino Liceal; Pós-guerra; Sistema de Ensino Português

Resumen

El reposicionamiento geoestratégico de Portugal en el mundo de la posguerra y los cambios en la formación social portuguesa llevaron a cambios en la política educativa, reconociendo la educación como un papel clave en el crecimiento económico, apoyado en la teoría del capital humano. Las preocupaciones se centraron en la formación de recursos humanos calificados, la valorización del capital escolar y en la promoción de la planificación educativa. Se analiza la evolución de los objetivos y la estructura curricular de los liceos, incluyendo la creación del Ciclo Preparatorio para la Educación Secundaria, recurriendo a fuentes escritas sometidas a análisis documental, utilizando el método crítico, y de contenidos. Los fines que se atribuyen a la educación secundaria son el tema central en términos de los liceos que promueven la escolarización de una gama más amplia de portugueses. Un proceso que se materializa a partir de la desigualdad de acceso a la educación.

Palabras clave: Historia de la Educación; Educación Secundaria; De la posguerra; Sistema Educativo Portugués

Abstract

The geostrategic repositioning of Portugal in the post-war world period and the transformations in Portuguese social formation led to changes in educational policy, recognizing education as playing a key role in economic growth, based on the theory of human capital. Concerns were focused on the training of qualified human resources, on valuing school capital, and on promoting educational planning. The evolution of the objectives and curricular structure of lyceum secondary schools is analyzed, including the creation of the preparatory cycle for secondary education, calling for written sources submitted to document analysis using the critical method and to analysis of content. The purposes to be attributed to lyceum secondary education are the central issue in regard to lyceum secondary schools in promoting the schooling of a wider range of Portuguese people. It is a process that is carried out based on inequality of access to education.

Keywords: History of Education; Lyceum Secondary School; Post-War; Portuguese; Educational System

Introdução

A reconstrução económica da Europa ocidental no pós-guerra ocorreu sob a égide dos Estados Unidos da América, embasada numa lógica de um capitalismo liberal, norteada por valores de competitividade e de desenvolvimento, conferindo à educação um papel central para o crescimento económico, onde pontificou a teoria do capital humano que enquadrou os sistemas educativos das décadas de 60 e 70.

O reposicionamento geoestratégico de Portugal no mundo do pós-guerra e as transformações na formação social portuguesa conduziram a alterações na política educativa. O contributo da educação passa a ser predominantemente económico, estando subjacente uma preocupação com a formação de recursos humanos qualificados para o crescimento económico, com a valorização do capital escolar e a promoção da planificação educativa, visando a inserção de Portugal na dinâmica económica ocidental.

A presença de Portugal, neste contexto, na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) vai traduzir-se na sua participação no Projeto Regional do Mediterrâneo, um estudo que produziu a descrição quantitativa da estrutura escolar portuguesa na década de 50 e projetou a sua evolução até 1975, colocando a nu as carências do sistema de ensino português (PROJETO REGIONAL DO MEDITERRÂNEO, 1963; PROJETO REGIONAL DO MEDITERRÂNEO, 1964). No plano estritamente nacional, a veia planificadora encontra acolhimento, por exemplo, na inclusão, pela primeira vez, da educação e investigação no Plano de Fomento Intercalar (1965-1968) ou na criação do Gabinete de Estudos e Planeamento da Acção Educativa (PORTUGAL, 1965).

É com este enquadramento e incorporando a euforia em torno da escola e do seu papel na construção social (FERNANDES, 1999), que se realizaram as reformas dos ensinos liceal e técnico, se procedeu a sucessivos prolongamentos da escolaridade obrigatória e, de algum modo na sequência, foi criado o Ciclo Preparatório do Ensino Secundário (CPES) (1967) e o Ciclo Preparatório da Telescola (1968).

O cenário confere uma certa normalidade às evidências de vontade política, pelo menos de uma certa classe política, em reformar o ensino secundário, expressa literalmente, através da nomeação, em 1944, de uma Comissão de Reforma do Ensino Liceal (ADÃO; REMÉDIOS, 2008). De igual modo, os posicionamentos públicos de diferentes deputados e deputadas na Assembleia Nacional vão no mesmo sentido, através de intervenções nos debates que se situam entre a discussão dos problemas de gestão e administração do ensino liceal - e.g., rede escolar, precariedade laboral, estatuto remuneratório (PORTUGAL, 1945, p. 250) (PORTUGAL, 1946, p. 960-961) - e um olhar mais sistémico evocando, expressamente ou não, a necessidade de reforma do ensino liceal que, pontualmente, se compagina com estoutras intervenções que oferecem um olhar mais integral e congruente da Educação Nacional - e.g., Couceiro da Costa (PORTUGAL, 1947d, p. 382-384), Afonso Ribeiro Cazaes, Maria Van Zeller ou Marques de Carvalho (PORTUGAL, 1947e).

A verdade é que em 1947 seria promulgada a reforma do ensino liceal (PORTUGAL, 1947a) e publicado, em simultâneo, um novo estatuto daquele nível de ensino (PORTUGAL, 1947b). O legislador evocou a urgência da decisão, eximindo-se de qualquer discussão na Assembleia Nacional e do parecer da Câmara Corporativa, em face do número significativo de críticas à estrutura curricular em vigor naquela época, reconhecendo o seu fundamento, e a necessidade de alinhamento com o, então designado, ensino técnico, sobre o qual se materializara uma reforma em letra de lei, no trimestre anterior (PORTUGAL, 1947c), mas cuja regulamentação ocorreria só, praticamente, um ano após a efetivação da reforma do ensino liceal (PORTUGAL, 1948).

Para desenhar os contornos da reforma o governo enunciou a(s) finalidade(s) e apontou o caminho identificando o estudo adequado aos seus propósitos. A constatação da diversidade de soluções adotadas no “Mundo” possibilitou ao legislador concluir que não existiam princípios, consensualizados ou não, que estribassem normas para uma reforma do ensino liceal. Evocando que se tratava de um nível de ensino para portugueses, considerou, o legislador, que o que viesse a ser estabelecido deveria ser o “mais consentâneo com a nossa índole, as nossas tradições e a nossa vida própria” pelo que, o melhor método seria, ao invés de estudar e conhecer o que se fez e fazia lá por fora, proceder ao “exame e observação dos resultados das experiências” nacionais, às quais, necessariamente, só se podiam aceder através da história do ensino secundário (PORTUGAL, 1947a, p. 879). Da análise do processo histórico educativo e do estudo das experiências de ensino liceal em Portugal, retiraria duas conclusões, a primeira, sustentava que os alunos, invariavelmente, saíam dos liceus sem preparação mínima para ingressar num curso superior universitário, a segunda, admitia que o seu perfil de saída, em termos de formação intelectual e de cultura de geral, era inadequado para ingressarem numa profissão. Considerações que concederam ao governo a margem de manobra necessária para atuar, não deixando de dizer ao que vinha:

Convirá rever o velho conceito das humanidades, em face das realidades do homem social moderno. Para educação integral dos espíritos que devem constituir um escol, não podem desprezar-se as humanidades clássicas. Estas, porém, não devem ser de estudo obrigatório para a grande massa da população, à qual terá de ministrar-se a cultura mais conveniente para que possa dedicar-se ao trabalho de que tem de viver. Às necessidades do homem de outros tempos sucederam necessidades de diferente ordem, e a cultura de que se carece para satisfação dessas necessidades é que constitui o humanismo de hoje (PORTUGAL, 1947a, p. 881).

A passagem é, a todos os títulos, paradigmática (e significativa) sobre a finalidade da educação e o papel do ensino liceal a partir de meados do século XX, em Portugal. Pelo menos na narrativa oficial e de forma explícita, a oferta educativa dos liceus passava a ser menos exclusivista, i. é, os seus destinatários passam a incluir, além do escol, os outros filhos de portugueses, pelo menos, de alguns, dado que não devemos perder de vista que a escolaridade obrigatória ainda se quedava no ensino primário e existia, paralelamente, a via do ensino técnico. A abertura dos liceus a novos setores da sociedade portuguesa, como que anunciando a massificação - “a grande massa da população” -, emergia no contexto de tentativa de articulação da oferta formativa do ensino liceal com as necessidades do mercado de trabalho - “a cultura mais conveniente para se dedicar ao trabalho de que tem de viver”. Aparentemente, o lugar e o papel que se ocuparia no setor produtivo, a que não era alheia a posição na hierarquia social, servia de critério ou era pelos menos considerada para as opções a adotar no plano de estudos (disciplinas, conteúdos). Na verdade, a finalidade e os objetivos que se atribuíam aos cursos geral e complementar do ensino liceal, a par dos destinatários, e do seu destino, das duas ofertas educativas, vão determinar as tomadas de decisão do legislador quanto à duração dos estudos, na questão do regime de ensino e na gestão das disciplinas.

A duração do curso liceal manteve-se nos sete anos para não adiar a entrada na vida ativa (PORTUGAL, 1947a), mas retoma-se a estrutura de 1931 na distribuição de anos pelos cursos geral - com a divisão em dois ciclos - e complementar (PORTUGAL, 1932), num debate que tem como pano de fundo a procura de uma correspondência ao desenvolvimento dos adolescentes. Na verdade, a reforma de 1947 não encerrou uma questão que parece longe de estar esgotada, atente-se na recente resolução da Assembleia da República que indicou ao atual governo português a “realização de um estudo com vista à viabilidade da reestruturação dos ciclos de ensino substituindo a atual partição em quatro ciclos” e que, simultaneamente, se averiguassem eventuais “alterações e impactos” daí resultantes (PORTUGAL, 2019, p. 1542).

O curso geral, com a duração de cinco anos, visava, fundamentalmente, “o desenvolvimento harmónico e gradual das faculdades do aluno” e que a massa da população, para mobilizar uma expressão do diploma, obtivesse, um “certo grau de cultura”, pelo que o que se deveria ensinar, nestes primeiros cinco anos do ensino liceal, seria o “útil e necessário, como saber, como exercício mental e como elemento de formação” adequando à formação social e ao espectro de profissões que seria expectável que viesse a desempenhar, cumprindo o desígnio do “humanismo de hoje” (PORTUGAL, 1947a, p. 881). Já o 3º ciclo, obtido o “grau conveniente de cultura geral” e compreendido como ensino pré-universitário, teria como finalidade ministrar conhecimentos, contribuindo para a aquisição de “sólidos conhecimentos basilares” dos estudos de eleição dos alunos (PORTUGAL, 1947a, p. 882).

A escolha do regime de frequência foi uma consequência, em larga medida, da finalidade e dos objetivos estabelecidos para cada curso. Claramente, pelo menos no entendimento do legislador, os propósitos do curso geral beneficiavam com o estudo de um conjunto de disciplinas em simultâneo e das conexões que estas estabeleciam entre si, contribuindo mesmo para diminuir os riscos de fadiga desde que se atendesse à graduação do trabalho exigido e de acordo com a natureza e importância da disciplina. Nesta perspetiva adotou-se o regime de classe obrigando a uma reflexão e gestão do número de disciplinas, bem como sobre os seus programas. Ad contrarium, no 3º ciclo e considerando os objetivos estabelecidos, optou-se pelo regime de disciplina acompanhado da redução do seu número, “limitando-se àquilo que é fundamental para os estudos que os alunos pretendam iniciar, e o número de lições nas disciplinas que são novas é aumentado” (PORTUGAL, 1947a, p. 883).

As opções enunciadas chamam à coação o número de disciplinas, especialmente no curso geral que, para mais, vira reduzida a sua duração em um ano. Neste sentido, o legislador, depois de afastar a possibilidade da existência de disciplinas de opção, em nome da uniformidade e de uma definição de essencial, prévia ao interesse de famílias e alunos, para “a satisfação das necessidades comuns da vida, ou prosseguirem estudos” (PORTUGAL, 1947a, p. 882). O essencial implicava reduzir a variedade de disciplinas a estudar em simultâneo, bem como emagrecer os programas em todas as matérias consideradas não fundamentais. A diminuição da variedade de disciplinas deveria ser acompanhada por uma ponderação do trabalho e do esforço dedicado a cada uma. A fadiga não afetaria o aluno e este assimilaria o que se pretendesse ensinar-lhe se, num ano, num conjunto de sete ou oito disciplinas, só tivesse de aplicar um esforço particular no estudo de duas ou três. Ao nível dos programas, antecipava-se a redução em disciplinas como a geografia, a história e as ciências naturais, ao contrário da matemática, útil ao exercício intelectual e ao poder de raciocínio, e das línguas. Neste sentido a revisão e simplificação dos programas focalizou-se nas capacidades dos alunos e levou em linha de conta a experiência de docência (PORTUGAL, 1948, p. 1081):

Procurou-se, sobretudo, que nos programas do curso geral as simplificações tomassem maior vulto, com o intuito de se conseguir que eles se acomodassem à capacidade receptiva dos alunos e traduzissem não tanto o que estes devem aprender como o que podem aprender na idade em que frequentam os cinco primeiros anos do liceu.

O resultado, aparentemente, deve ter ficado aquém do desejado dado que, seis anos mais tarde e exatamente com a mesma fundamentação, a experiência do exercício docente, e argumentação, acomodar os programas à capacidade dos alunos, o legislador volta a publicar programas do ensino liceal (PORTUGAL, 1954). De igual modo se constata que a questão higiénica - e.g. a fadiga - esteve presente nos debates em torno da reforma do ensino liceal, pelo menos até ao início do primeiro lustro da década de cinquenta, questionando-se a sobrecarga de trabalho - em razão da extensão e profundidade dos programas e do enciclopedismo do plano de estudos - as pedagogias consideradas de tipo totalitário (PORTUGAL, 1948) ou a ausência de tempo livre (GERSÃO, 1948).

Na discussão da problemática do excessivo número de disciplinas, o legislador considerava natural que surgisse “o problema do ensino do latim no curso geral” (PORTUGAL, 1947a, p. 882). Instado pela necessidade de reduzir o número de disciplinas compaginada com os propósitos do curso geral e o caldo cultural das transformações em curso, retirou-se a disciplina de latim do curso geral, o que pode ser considerado como o resultado lógico, remetendo-a para o curso complementar e intensificando o seu ensino, introduzindo-se, aí, o grego. Simultaneamente, na distribuição das línguas vivas, além da materna, o alemão, à semelhança do latim, passa a integrar apenas o elenco de disciplinas do 3º ciclo do ensino liceal e, em ambos os casos, apenas para alunos que se destinem às Faculdades de Direito e a alguns cursos das Faculdades de Letras. Ao invés, o francês, lecionado ao longo de cinco anos, e o ensino do inglês, apenas no 2º ciclo do ensino liceal, integram o elenco de disciplinas do curso geral dos liceus.

A problemática do lugar e significado das humanidades, em geral, e do latim e do grego, em particular, no currículo liceal tornou-se a questão central do debate, eventualmente, acicatada pela proposta do novo humanismo eivado de um certo utilitarismo e pragmatismo, mas de igual modo por algo aparentemente implícito. Na realidade, como observámos, apenas uma parte do escol teria, na sua passagem pelo liceu, acesso a uma formação humanista clássica, dado que, mesmo no curso complementar, somente os alunos com destino aos cursos de direito e a alguns dos ministrados na faculdade de letras, teriam no seu currículo latim e grego. O debate foi tão pujante que permaneceu no espaço público durante a década de sessenta. Numa tentativa de síntese, a argumentação e discussão do conjunto de textos e artigos compulsados pode arrumar-se em três vertentes: i) a questão centrada na análise programas (PAVÃO JR., 1951; ALMEIDA, 1956; SOARES, 1956; ALMEIDA, 1958); ii) o valor formativo das humanidades e da cultura clássica (FREIRE, 1947; ALMEIDA, 1956; SOARES, 1956; ANDRADE, 1959; SANTOS, 1960); iii) questionamento das opções de política educativa (GERSÃO, 1948; SOARES, 1956; DURÃO, 1959).

O crescimento exponencial dos alunos a frequentar os liceus, bem como, de algum modo, a assunção, por parte do legislador, de alargamento da base de recrutamento de discentes e consequente redefinição das finalidades do ensino liceal, especialmente, no curso geral, adquire expressão no espaço público por via do nível e rendimento do ensino liceal, bem como dos seus alunos, por vezes articulada com a problemática da orientação vocacional, emergindo mesmo uma proposta de reconfiguração e unificação do 1º ciclo, considerado preparatório, dos ensinos liceal e técnico (ALMEIDA, 1954; ALMEIDA, 1955a; ALMEIDA, 1955b; ALMEIDA, 1955c; ALMEIDA, 1955d; SOARES, 1955a; SOARES, 1955b; SOARES, 1955c).

Atente-se que o número de alunos inscritos no ensino secundário liceal triplicou entre os anos letivos de 1950-1951, com 48485, para 155445, em 1966-1967. Numa análise mais fina, o curso geral dos liceus, 1º e 2º ciclo, triplicou o número de discentes, enquanto o 3º ciclo, viu aumentar o número de alunos quatro vezes e meia. Em 1969 frequentavam o ensino liceal 258937 alunos, sendo que 31005 estavam inscritos no 3º ciclo. Uma realidade que, ainda que não escamoteável, deve ser temperada com o facto de, em 1966-1967, os alunos inscritos no ensino liceal representarem apenas 17,4% do total daqueloutros inscritos na instrução primária (891082) e 17,5% dos alunos que tinham “entrado” para a escola primária quatro anos antes, em 1962-1963.

O racional da argumentação sobre o rendimento dos alunos no ensino liceal, parte do conceito de “nível mental do aluno” (ALMEIDA, 1955a) e defende que apenas 25% dos alunos a frequentar o ensino liceal possuem o (tal) nível mental para obterem resultados satisfatórios. Problema que, de acordo com o conjunto de artigos que aqui se convocam, se rastreia aos anos vinte do século XX e cuja razão de ser reside no processo de seleção dos alunos. A seleção, na perceção de Pinho de Almeida, radica na finalidade que se atribui aos liceus e, ao arrepio da política educativa adotada pela tutela da Educação Nacional em 1947, o professor sustenta que aos liceus cabe, tão só, formar o escol nacional, todos os outros filhos dos portugueses, na sua perspetiva, encontrariam nas escolas técnicas uma “cultura” mais adequada à sua futura profissão (ALMEIDA, 1955c). O contributo da educação para o desenvolvimento e a massificação da escolarização não são, nesta perspetiva, propriamente questionados, o que efetivamente se trata é de salvaguardar os liceus para uma certa elite. A sua interpretação-proposta depende da eficácia da orientação vocacional, nesta perspetiva considera o adiamento da seleção para a idade dos 12 anos como positiva e avança com a ideia de transformar o ciclo preparatório do ensino técnico, criado em 1948, em ciclo preparatório do ensino secundário - técnico e liceal -, neste último caso, eliminando o 1º ciclo do curso geral dos liceus, acompanhado de um eficaz dispositivo de orientação vocacional. Tomadas de decisão que solucionariam, no argumento de Pinho de Almeida, questões candentes como o fraco rendimento do ensino secundário, o excesso de alunos e melhorava duplamente a qualidade de trabalho dos docentes, pela redução do número de alunos por turma e, simultaneamente, cingindo a heterogeneidade de nível mental ao nível da turma e, consequentemente, da sala de aula (ALMEIDA, 1955d).

Em 1967, doze anos mais tarde, comummente rececionado como um reforço decisivo para o alargamento da escolaridade obrigatória e um passo no processo de massificação da educação, no quadro de uma visão retrospetiva do processo histórico educativo, foi criado o Ciclo Preparatório do Ensino Secundário (CPES), resultante da fusão do ciclo preparatório do ensino técnico e do 1º ciclo do curso geral dos liceus, cuja finalidade compaginava fornecer uma formação geral adequada ao prosseguimento de estudos com a observação dos alunos para a sua orientação nas escolhas académicas subsequentes (PORTUGAL, 1967). O legislador fixava assim os 12 anos de idade como o momento para a tomada de decisão sobre estudos sequenciais e, nestes dois anos, tinha o ensejo de esbater obstáculos à orientação escolar, e.g., a diferenciação de métodos, culturas.

A orientação escolar consistiria na observação sistemática de cada aluno, muito especialmente nas suas “reações aos estímulos dos diversos conjuntos lectivos” (PORTUGAL, 1967, p. 3) que integravam o plano de estudos do CPES:

O conjunto A, a formação espiritual e nacional que visava a valorização humanística, a tomada de consciência da origem e valor da comunidade nacional, a implantação dos valores religiosos como base para uma prática moral. A iniciação científica, conjunto B, tinha como finalidade despertar interesse pela compreensão de fenómenos naturais e iniciar na prática de investigação experimental. Desenho e Trabalhos Manuais eram o par de disciplinas que integravam o conjunto C, da formação plástica, perseguia o desenvolvimento da sensibilidade promovendo o cultivo das representações estéticas e das atividades plásticas, com “iniciação no domínio dos materiais e na utilização e coordenação das forças naturais (PORTUGAL, 1968, p. 1343).

Expectava-se que a observação, dotada de uma certa sistematicidade, permitisse facultar informação útil, a alunos, pais e tutores, que facilitasse a escolha dos estudos subsequentes, bem como a resolução de problemas de ordem pedagógica e educacional, da responsabilidade de professores e pais e tutores, salvaguardando-se que a informação partilhada consistia em recomendações ou conselhos não estando por isso em causa a livre escolha da carreira escolar. Com os serviços de orientação escolar organizados por turma, a informação sobre cada aluno constava dos respetivos processos individuais.

Uma estrutura que tinha, no topo da pirâmide, um conselho de orientação escolar, composto pelo diretor, subdiretor, os professores de Moral e Religião, dois outros professores e pelo médico escolar, a quem estava cometida a direção dos serviços de orientação, orientar os serviços em casos duvidosos, autorizar a consulta a laboratórios psicotécnicos ou de higiene mental e dar parecer “sobre a escolha dos compêndios, livros de texto e material didático e sobre os métodos de ensino, na medida em que interessem à orientação escolar” (PORTUGAL, 1967, p. 3).

Notas finais

As reformas dos ensinos liceal, que aqui mereceu especial atenção, e técnico, as etapas de progressivo alargamento da escolaridade obrigatória e a criação do CPES, procuram atender à formação de recursos humanos qualificados, de valorização do capital escolar e promover a planificação educativa.

A apreensão cabal deste processo exige a compreensão das transformações do pós-guerra e a acelerada construção europeia norteada pela crença no desenvolvimento económico e no papel da educação para atingir tal desiderato, onde instituições internacionais como a OCDE de forma crescente desempenham uma ação não despicienda, e no plano interno, das profundas alterações estruturais sem precedentes experienciadas neste período (ROSAS, 1994).

Os responsáveis pela Educação Nacional enfatizam três questões, tais como a duração dos estudos, o regime de frequência e o número excessivo de disciplinas que, de alguma maneira, opacizam a problemática central, a da(s) finalidade(s) que se atribuía, ou pretendia atribuir, ao ensino liceal e, na base das quais, de resto, se tomaram as decisões para a resolução de cada uma das questões enunciadas. Finalidades que ensaiam uma adequação às novas realidades, tanto no plano nacional como internacional, com a expectativa de que os liceus cumprissem o desígnio de promover a escolarização de um leque mais alargado de portugueses. Um processo, contudo, que se realiza com base na desigualdade no acesso à educação, facultando o curso geral aos que acedessem ao ensino liceal e reservando o curso complementar para um escol que teria por finalidade o acesso à universidade, espaço onde a seleção social, inclusivamente, se sobrepunha à seleção de género (NUNES, 1971). Circunstâncias que embasam a progressiva afirmação de um humanismo sustentado numa cultura eivada de um utilitarismo e pragmatismo em detrimento do que podemos definir, para facilidade de narrativa, de humanismo clássico, com as implicações e consequências observadas no plano de estudos do ensino liceal.

Preocupações de eficácia do sistema, com ligações à ideia de capital humano, e de reconhecimento da importância da orientação vocacional compaginaram-se com a vontade de preservar os liceus do processo de massificação, conservando-os como escolas de formação da elite (do escol), ao invés, a generalidade das crianças destinar-se-ia ao ensino técnico. Do processo emergiu, a montante, o CPES com a incumbência de se constituir no espaço dileto de seleção, dotado com um serviço de orientação vocacional a quem cabia recolher e disseminar a informação junto dos atores, famílias, professores e crianças.

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Recebido: 30 de Novembro de 2022; Aceito: 28 de Fevereiro de 2023

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