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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-200 

Dossiê 3 - História Comparada do Ensino Secundário: renovação da historiografia por comparações, transições, massificações e traduções

Instrumentos de Poder. O poder afetivo do design de som no ensino de música nos Estados Unidos1

1University of Wisconsin-Madison (United States). noahkarvelis@gmail.com

2University of Wisconsin-Madison (United States). thomas.popkewitz@wisc.edu


Resumo

O ensino de música nos Estados Unidos tem cada vez mais focado na criatividade do aluno e em práticas como improvisação. Enquanto tais práticas e mudanças são frequentemente conceitualizadas como reformas flexíveis e inclusivas na formação de diferentes tipos de crianças, historicamente o currículo tem pouco a ver com música e, em vez disso, se preocupa em domar as incertezas no que se refere à supervisão de crianças. Examinamos aqui a pedagogia Orff-Schulwerk aplicada ao ensino de música, considerada uma reforma progressista que enfatiza improvisação e criatividade. Explorando brevemente a produção da Orff-Schulwerk na República de Weimar e o seu translado e tradução para os EUA pós-Guerra, consideramos o currículo como (in)formado por uma pesquisa psicológica sobre racionalidade, escolha e criatividade. O foco incide sobre o sistema de raciocínio incorporado ao currículo como princípios geradores de tipos desejáveis de pessoas em um futuro estável e seguro, relacionados às narrativas de salvação - princípios distintos na República de Weimar e nos EUA. O posicionamento móvel das pessoas no currículo Orff-Schulwerk e os instrumentos de sala de aula usados para o aprendizado de som são, segundo nossa argumentação, práticas de governar o corpo e a alma. A fabricação e mapeamento no currículo musical estão relacionadas com os tipos de populações requeridas e são evidência dos desejos progressistas que simultaneamente distribuem diferenças.

Palavras-chave: Ensino de Música; Sociologia Política do Conhecimento; Alquimias; Exclusões

Abstract

Music education in the United States has increasingly focused upon student creativity and practices such as improvisation. While such practices and changes are often conceptualized as flexible, inclusive reforms about making kinds of children, historically the curriculum has little to do with music and is instead concerned with taming uncertainty in the governing of child. We examine the Orff-Schulwerk pedagogy in the teaching of music, thought of as a progressive reform which emphasized improvisation and creativity. Exploring briefly Orff-Schulwerk’s production in the Weimar Republic as it travels and translated into the post-war United States, we consider the curriculum as formed through psychological research about rationality, choice, and creativity. The focus is on the system of reasoning embodied in the curriculum as generating principles about desired kind of persons in a stable, secure future related to salvation narratives- principles different in the Weimar Republic and US. The shifting design of people in Orff-Schulwerk curriculum and classroom instruments for learning of sound are, we argue, practices in governing of the body and soul. The fabricating and mapping in the music curriculum is about kinds of populations required as evidence of the progressive desires that simultaneously distributes differences.

Keywords: Music education; The political sociology of knowledge; Alchemies; Exclusions

Resumen

La educación musical en Estados Unidos se ha centrado cada vez más en la creatividad de los alumnos y en prácticas como la improvisación. Aunque tales prácticas y cambios se conceptualizan a menudo como reformas flexibles e inclusivas sobre la creación de tipos de niños, históricamente el currículo tiene poco que ver con la música y se preocupa más bien por domar la incertidumbre en el gobierno del niño. Examinamos la pedagogía Orff-Schulwerk en la enseñanza de la música, considerada como una reforma progresista que hacía hincapié en la improvisación y la creatividad. Explorando brevemente la producción de Orff-Schulwerk en la República de Weimar en su viaje y traducción a los Estados Unidos de la posguerra, consideramos el plan de estudios como formado a través de la investigación psicológica sobre la racionalidad, la elección y la creatividad. La atención se centra en el sistema de razonamiento incorporado en el plan de estudios como generador de principios sobre el tipo de personas deseadas en un futuro estable y seguro relacionado con las narrativas de salvación, principios diferentes en la República de Weimar y en Estados Unidos. El diseño cambiante de las personas en el plan de estudios de la Orff-Schulwerk y los instrumentos de clase para el aprendizaje del sonido son, argumentamos, prácticas de gobierno del cuerpo y del alma. La fabricación y el mapeo en el plan de estudios de música se trata de tipos de poblaciones requeridas como evidencia de los deseos progresistas que distribuye simultáneamente las diferencias.

Palabras clave: Educación musical; Sociología política del conocimiento; Alquimias; Exclusiones

Introdução

A paisagem do ensino de música nos EUA no período pós-Guerra, particularmente no fim da década de 60, é marcada por uma reflexão do que significa ensinar música nas escolas. Eventos como o Simpósio Tanglewood de 1967, que se encarregou de conceitualizar o ensino de música, e o Projeto de Currículo Musical de Manhattanville, que precisou de um estudo de quatro anos para redefinir os princípios fundamentais da música e seu ensinamento, são exemplos dos esforços estadunidenses de produzir novas visões sobre o ensino de música. Ainda assim, esses eventos simplesmente não desenvolveram um desejo espontâneo de reimaginar o currículo musical. Em vez disso, desenvolveram-se a partir de noções de incerteza do pós-Guerra, que era educacionalmente enxergado e construído de modos específicos nos Estados Unidos (e.g., Popkewitz, Petterrson & Ksiao, 2021). Em se tratando de ensino de música nos EUA, por exemplo, o Simpósio Tanglewood abordou uma revisão do currículo para responder às tensões raciais e revoltas urbanas, bem como a retórica interna da ameaça do comunismo. Aqueles presentes falaram sobre o novo currículo como uma resposta para a incerteza e a imperatividade de que a educação operacionalizasse a ideia de que “o futuro dependerá do que você faz e diz aqui” (Choate, 1968, p. 33).

Os esforços de reforma do Simpósio Tanglewood eram baseados em noções pós-Guerra de criatividade, as quais enxergavam a criança criativa como a criança-cidadã desejada que estabeleceria um futuro nacional seguro e próspero. Um currículo central que incorporava essa criança desejada era a pedagogia “Orff” ou Orff-Schulwerk. Originária da República de Weimar no começo do século XX e baseada no uso de um xilofone anteriormente pouco conhecido, o “xilofone Orff-Schulwerk”, e de seu currículo correspondente, Schulwerk: Musik fur Kinder, a Orff-Schulwerk concentrou-se na ideia de ativar a criatividade inerente das crianças nos EUA. Atualmente, é uma das pedagogias mais comuns no ensino de música em nível primário.

Este artigo se volta à Orff-Schulwerk para entender como as ideias em torno da incerteza e do futuro se incorporam no design de objetos como o currículo de música e os xilofones de salas de aula. Além disso, traça os modos como tais ideias se conectaram com noções de criatividade e se operacionalizaram por meio da ciência cognitiva nos EUA pós-Guerra. Para tal, este artigo considera como se torna possível o evento que é a Orff-Schulwerk, isto é, indaga-se: como essa pedagogia, enraizada nas noções da cultura alemã e pautada no uso de instrumentos inspirados pelos elementalismo Bauhaus e do gamelão Javanês, com membros fundadores do Partido Nacional-Socialista Alemão, se torna uma das pedagogias de ensino de música mais comuns nos EUA do século XXI? Para desenvolver tal compreensão, este artigo segue abordagens de estudos de currículo preocupadas com a alquimia ou tradução do conhecimento em objetos escolares,2 estudos esses que intelectualmente revisam as noções de Foucault sobre história do presente e eventualização como “uma quebra da autoevidência” (Foucault, 1991, p. 76). Movemos a Orff-Schulwerk de um lugar de suposta “naturalidade” e “bondade” na produção de crianças criativas para indagar sobre as condições de inteligibilidade, “redescobrindo as conexões, os encontros, os apoios, as estratégias e tudo mais, que em determinado momento estabelecem o que subsequentemente se considera como autoevidente, universal e necessário”.

Este artigo historiciza o desenvolvimento da Orff-Schulwerk nos EUA, focando principalmente a segunda metade do século XX, quando gradualmente se tornou um lugar comum nos debates nas conferências de ensino de música realizadas pelas associações profissionais estadunidenses e foram publicados livros de métodos especificamente voltados para professores estadunidenses. Essa historicização, no entanto, se interessa menos pelos indivíduos por trás das associações, conferências e livros. Este artigo tampouco se interessa em definir uma “origem” clara; pelo contrário, seguindo Foucault, é de interesse central a “pluralização das causas” (Foucault, 1991, p. 76), olhando-se para várias ideias, espaços e tempos enquanto se considera como a Orff-Schulwerk se produziu de modos específicos nos EUA em relação às conceitualizações de primitivismo, criatividade pós-Guerra e acessibilidade do corpo, dentre outras ideias. Para tal, esta história foca o design da pedagogia e os instrumentos desenvolvidos em novas formas em vários lugares, discursos e eventos no pós-Guerra. Com base em pesquisas que consideram, por exemplo, o design de escolas em relação ao discurso (Ogata, 2013) de criatividade do pós-guerra e a produção de afeto por meio do design das escolas (Sobe, 2018), este artigo centraliza o design como um elemento vital da escolaridade, o que torna visíveis as epistemologias e ontologias dentro da alquimia do currículo (Popkewitz, 2004). No processo, o artigo posiciona a história do design dos xilofones Orff-Schulwerk, as mudanças nas abordagens do design da pedagogia Orff-Schulwerk ao longo do pós-guerra e o design contemporâneo das aulas Orff-Schulwerk de organizações como a American Orff-Schulwerk Association como um arquivo através do qual tais entendimentos podem ser desenvolvidos.

Por meio desse foco no design, a Orff-Schulwerk se mostra não apenas preocupada com o desenvolvimento de habilidades de improvisação ou com a acessibilidade de um xilofone de madeira. Argumentamos que o xilofone Orff-Schulwerk opera como um objeto desenhado sob determinado sistema de razão que se torna visível num pós-Guerra relacionado à (ir)racionalidade, à escolha, à criatividade e à possibilidade de “governar de longe” a alma e o corpo (Turner, 2013). No processo, a psicologia cognitiva, em vez da música, torna-se a arquitetura por meio da qual o currículo é desenvolvido. A prática da Orff-Schulwerk está ligada a construções de qualidades psicológicas idealizadas, como a criatividade reunida em imagens e narrativas de pertencimento coletivo e a distribuição de diferenças no pós-Guerra. Essa mudança na abordagem estadunidense à pedagogia Orff-Schulwerk permite que esta se localize dentro de muitos dos desejos dos EUA e suas formas de ensino de música tanto naquela época quanto agora, na esperança de produzir crianças-cidadãs confiantes e criativas que presumidamente podem desenvolver um futuro certo e estável para a nação.

À medida que a Orff-Schulwerk fabrica essa criança idealizada, também produz seu oposto. Suas práticas, como este artigo traça, estão preocupadas em fabricar diferenças e promulgar a governança em resposta a tais diferenças. A Orff-Schulwerk atua no presente, mas como uma tecnologia antecipatória das potencialidades do futuro. A criatividade torna-se uma prática governante relacionada a um futuro instável por meio da produção de tipos de pessoas desejadas e criativas para a segurança e a harmonia imaginada.

Começando na sala Orff-Schulwerk contemporânea estadunidense e, em seguida, viajando de volta para a República de Weimar, onde a Orff-Schulwerk foi originalmente desenvolvida, este artigo torna visível como esse processo é executado. O rastreamento desse processo desenvolve, em última instância, compreensões sobre como a pedagogia Orff-Schulwerk utilizada nas escolas em todos os EUA, produz ideias que têm pouco a ver com música, ao mesmo tempo que mapeia essas ideias em populações específicas, mobilizando o som como forma de governar de novas maneiras na era pós-Guerra. Além disso, oferece uma visão sobre os modos como o ensino de música pós-Guerra e a ciência cognitiva ajudaram a criar o ensino de música como uma tecnologia distinta interessada em cultivar estados afetivos específicos (e.g., sentir em vez de ser criativo) por meio do design de objetos como o currículo e os xilofones.

A Orff-Schulwerk Contemporâne, Design de Som e Afetividade

A American Orff-Schulwerk Association (AOSA) afirma: “Nas salas de aula da Orff-Schulwerk, as crianças começam com o que fazem instintivamente: brincar! Imitação, experimentação e expressão pessoal ocorrem naturalmente à medida que os alunos se tornam músicos confiantes e solucionadores criativos de problemas para a vida toda” (O que é Orff-Schulwerk?, s.d.). O conhecimento pedagógico é organizado como um processo de improvisação dos alunos com os xilofones, envolvidos em movimentos corporais e aprendizagem por repetição. Por meio disso, afirma a AOSA, a criança naturalmente se torna mais confiante e criativa à medida que desenvolve habilidades intelectuais, sociais, emocionais e estéticas (Mais sobre Orff-Schulwerk Schulwerk, s.d.).

Para mostrar como esse processo é realizado em sala de aula, a AOSA disponibiliza um vídeo: “Uma sala de aula Orff-Schulwerk em ação” [https://aosa.org/about/what-is-orff-schulwerk/]. No início do vídeo, uma turma de 14 crianças está dançando, com os xilofones Orff-Schulwerk dispostos na parte de trás de uma sala aberta. A professora descreve uma pedagogia aberta na qual o próprio movimento e as crianças têm a oportunidade de criar suas próprias melodias para que os alunos “libertem” sua criatividade intrínseca. Conforme o vídeo avança, vemos crianças envolvidas nos elementos improvisados da pedagogia Orff-Schulwerk em uma sala pequena. Com as crianças improvisando com seus xilofones individuais, a professora pergunta: “Vocês têm que manter o mesmo ritmo?” Essa professora responde à própria pergunta, “Sim.” e então indaga: “Tem de ser oito batidas?” Desta vez, com um aluno, a professora responde de novo “Sim” e reitera esses “parâmetros” de música enquanto acrescenta que a improvisação deve também começar e terminar na mesma nota em todo o grupo.

O vídeo então muda para a professora explicando a razão para o que eles se referem como “parâmetros”: “Nós os organizamos com parâmetros nos quais já sabemos que eles serão bem-sucedidos”. A pedagogia reúne o desenvolvimento de habilidades importantes para os estados afetivos - não simplesmente emoção, mas “as forças (intensidades, energias, fluxos etc.) que se registram em/dentro/através dos corpos para produzir e moldar experiências pessoais/emocionais” (Dernikos et. al., 2020, p. 5). O registro de ensino de música está desenvolvendo a confiança para compartilhar o próprio trabalho e “se sentir bem-sucedido”. Seguindo isso, 14 alunos se envolvem em uma improvisação notadamente unificada enquanto a professora marca a batida da música em um único e grande xilofone na frente da sala. A performance soa como se nenhuma nota sequer estivesse fora de lugar. Imediatamente após o pequeno exercício, a professora comenta animada: “Agora vocês soam como se estivessem mais confiantes!”.

O que é interessante nesse exemplo e na AOSA como um todo é o foco repetitivo no afeto do currículo e nos sentimentos das crianças, e não simplesmente nas habilidades e na estética musical. É repetidamente afirmado que a criança não deveria simplesmente se tornar um músico mais habilidoso ou desenvolver conhecimento musical, mas, sim, sentir de uma maneira particular. Como a professora diz no vídeo, as crianças deveriam se sentir bem-sucedidas, criativas e confiantes. Para produzir tais sentimentos, a ação dos alunos (bem como a da professora) é colocada com “parâmetros”, nos quais a expressão criativa limita quais notas podem ser tocadas, quando começar, quando terminar e com qual nota iniciar e finalizar. Esses parâmetros são falados a partir de um ambiente projetado onde os alunos não falharão, onde podem se sentir capazes de tocar o xilofone artística e criativamente. O estado afetivo resultante não é uma questão de ser criativo, mas, sim, de sentir e se entender como uma pessoa criativa e bem-sucedida.

Historificando o Design de Som da Pedagogia Orff-Schulwerk como Fabricação de Tipos de Pessoas

A estruturação da aula, a organização da experiência e a relação das atividades físicas da criança ao tocar o instrumento têm menos relação com a música propriamente dita e mais com os desejos de potencialidades na produção de tipos de pessoas. O improviso e os parâmetros desenvolvidos na sala de aula funcionam como uma economia afetiva no governar o corpo e a alma. É para isso que nos voltamos agora, esse governar e os princípios que ordenam o comportamento da criança. Falamos sobre esse fazer de tipos de pessoas porque ele envolve duas nuances da noção de fabricação: ficções no currículo sobre os desejos de quem as crianças devem ser, bem como práticas de sala de aula e seus modelos de currículo e ensino que devem concretizar o fenômeno de criatividade e improvisação - a materialidade.3 Hacking (2007) abordou filosoficamente essa dupla qualidade de fabricação como um nominalismo dinâmico ou realismo crítico.

Conforme detalha Spitz (2019), essa forma estruturada de improvisação chamada “parâmetros” é exclusiva da Orff-Schulwerk desenvolvida nos EUA. Esse uso de parâmetros na Orff-Schulwerk fez parte do movimento de padrões curriculares dos EUA da segunda metade do século XXI. Foi um esforço mais geral para introduzir teorias de gestão para maior eficiência e eficácia na educação e, de forma mais geral, em políticas públicas e instituições de bem-estar social. Mas essa noção de parâmetros como padrões requer entendê-los como uma rede de práticas históricas nas quais seus princípios culturais são produzidos. Parte dessa rede é o design da Orff-Schulwerk desenvolvido na República de Weimar, que viaja e se traduz no currículo dos EUA.

Na recém-formada República de Weimar, na década de 1920, o compositor Carl Orff, ao lado da educadora de dança Dorothee Günther, desenvolveu o que seria conhecido como a pedagogia Orff-Schulwerk e o seu principal instrumento, o xilofone Orff. Integrada mais tarde pelo ex-aluno que se tornou educador da Orff-Schulwerk, Gunild Keetman, o qual ajudou a popularizar a Orff-Schulwerk ao longo da década de 1950, a pedagogia focava o desenvolvimento da criatividade inata que Orff e Günther acreditavam que todos os seres humanos, incluindo as crianças, tinham. Günther, valendo-se de sua formação na cultura corporal alemã e no feminismo, também deu um foco no movimento como forma de desenvolver ainda mais um espírito humano moderno que se pensava que ajudaria a concretizar o potencial do humano moderno (Toepfer, 2005; cf. também Geuss, 1996; Koselleck, 2002; Horlacher, 2015). Orff conceituou o papel da música de maneira semelhante, inspirado pelo movimento Gebrauchsmusik em desenvolvimento, que enfatizou a composição amadora como uma forma de alcançar propósitos fora do valor estético normativo da música e incutir o orgulho nacional (Spitz, 2019).

O currículo conceituava a arte como o desenvolvimento do indivíduo moderno e ideal e localizava o primitivismo4 como uma forma de realizar o desenvolvimento infantil. No trabalho de Orff, as crianças eram vistas como similares às pessoas primitivas. Günther via, por exemplo, as danças tribais como uma expressão primitiva para as crianças se envolverem de forma significativa. As formas musicais primitivas posicionavam a criança pequena nessa lógica normativa de desenvolvimento e de hierarquias sociais. O primitivismo, muitas vezes referido como “elementalismo”, ressoa de perto os métodos alemães de pedagogias táteis da Bauhaus (Dussel, 2021). A ideia do humano foi abraçada como natural e inerentemente criativa, e essa criatividade foi desenvolvida através do envolvimento com os elementos fundamentais da arte. Para Orff, isso era incorporado pelo que ele via como povos e períodos primitivos, cuja arte utilizava tambor, canto e movimento (Spitz, 2019). Era aqui que as crianças desenvolviam suas capacidades artísticas.

A ideia de primitivismo foi integrada ao design dos instrumentos Orff-Schulwerk. Partindo do desejo de primitivismo, os instrumentos foram estilizados a partir dos instrumentos do gamelão javanês, criados com jacarandá brasileiro, que se pensava ser uma madeira exótica e primitiva. Os movimentos corporais do currículo capturavam essa lógica de desenvolvimento da primitividade. As barras do xilofone eram unidas simplesmente por uma corda que percorria o instrumento, feito à mão (Velásquez, 1990).

No currículo da Orff-Schulwerk, a certeza teleológica dada ao desenvolvimento social foi emaranhada com a incerteza com que foi nomeada a criatividade dentro da hierarquia do desenvolvimento da criança e com que se inscreveu um continuum de valor que diferenciou normativamente o eu civilizado. A criança começaria no fundamento elementar e primitivo, e, por meio da instrução, sua alma e seu corpo eventualmente se exteriorizariam como totalmente desenvolvidos, modernos e contemporâneos. A trajetória era semelhante à teoria da recapitulação do desenvolvimento criada no século anterior.

Padronizando o Novo Xilofone Orff-Schulwerk

Superficialmente, as viagens dos xilofones Orff-Schulwerk parecem estabelecê-lo nos EUA como um objeto material e não como uma montagem cultural. Ainda assim, esse não é exatamente um instrumento que entra nos EUA como objeto educacional. Isso é evidente nas qualidades físicas dos xilofones. À medida que a Orff-Schulwerk se torna cada vez mais popular, sua fabricação alemã é substituída por produtos comerciais produzidos por empresas como a Studio 49 e a Sonor. O xilofone Orff-Schulwerk mantém as barras de jacarandá “primitivas”, mas é modificado para incluir barras removíveis. Essa mudança não foi meramente mecânica, mas sim relacionada com a construção epistêmica da música como uma prática de governar. De acordo com o vídeo da AOSA, as barras removíveis possibilitavam que o professor removesse as “notas erradas”. As barras estavam fora da assinatura ou escala chave de um exercício musical de dada classe; como, então, elas produziam sons discordantes e “ruins” quando tocadas, remover totalmente as barras era remover as notas “ruins” para afetivamente gerar sentimentos de ser criativo e artístico. Mas essa noção de sentir e ser criativo não estava totalmente relacionada com a música; incorporava narrativas e imagens do cidadão idealizado nos EUA pós-guerra, como exploramos nesta seção.

Em 1960, as barras removíveis dos "xilofones alemães" Orff-Schulwerk se tornaram uma característica mencionada no amplamente lido Music Educators Journal (Krone, 1960). Tornaram-se um ponto de venda central para instrumentos musicais similares e estavam diretamente ligadas ao desenvolvimento dos estados afetivos (Fig. 1). A propaganda celebra como a nova versão do ensino de música serve para a criança aprender a harmonia por meio de registros de sensibilidade para sons produzidos no xilofone. O novo xilofone permite ao professor acompanhar as crianças sem erros e dá a oportunidade para a criança desenvolver confiança.

Tradução: Agora é a NOVA MÚSICA!... // COM HARMONIA ENTRANDO NO PROGRAMA DESDE O INÍCIO.

Fig. 1 Um anúncio de 1968 na revista Music Educators Journal 

A elaboração do currículo se preocupa com o afeto, não em desenvolver uma criança criativa, mas, mais do que isso, uma criança que se sente criativa dentro de um espaço de segurança. A remoção de “notas erradas” e a estruturação da prática improvisada são feitas por meio de parâmetros estabelecidos, definindo notas de começo e término, assim como ritmos. Como o vídeo da AOSA mostra, a estruturação do espaço do agir “musicalmente” cria a ordem necessária para que a criança se sinta criativa como um critério de experienciar o sucesso. O design acessível do instrumento é reunido e conectado como os parâmetros do currículo a partir do momento em que o design do currículo se torna um problema de engenharia. Isso é para garantir a produção de um som esteticamente agradável. A engenharia de se sentir confiante e criativo é trazida nas práticas mundanas da criança tocando o xilofone com uma baqueta de lã para produzir um som “bom”. A resposta afetiva desejada parecia ser garantida pelas condições de sua produção!

Essa mudança no design na forma estruturada de improvisação da Orff-Schulwerk fornece um meio para explorar como os padrões de movimento se conectavam e formavam uma dobra nas matrizes culturais e sociais. Dentro dos EUA, por exemplo, as (re)visões do currículo se relacionavam ao cultivo de um estado afetivo desejado que incorporava ideias filosóficas da criança-cidadã e que estava relacionado com o excepcionalismo estadunidense e seu cosmopolitanismo das potencialidades enfatizado nas reformas do pós-guerra.5

A colocação de “parâmetros” na prática de improvisação e a remoção literal da possibilidade de uma “nota errada” engendram um espaço escolar e produção de som como uma forma de construir pessoas através do afeto mediante criação de um sentimento de confiança e criatividade. Tais ideias não estão simplesmente relacionadas com a música, mas, mais ainda, com as formas de se conceber a insegurança percebida nos EUA do pós-Guerra e a criança criativa como a criança-cidadã idealizada e desejada que um dia poderia trazer segurança para a nação. É um agir no presente, mas apenas em antecipação do futuro.

Como a Pedagogia Orff-Schulwerk Parou de Se Preocupar em Formar Crianças Criativas e Confiantes: A Ciência Social do Pós-Guerra

A materialização dessa resposta afetiva é, em certo sentido, paradoxal. Claro, não é difícil de imaginar a eliminação da possibilidade de sons ruins como uma ajuda para representar a afetividade de se sentir um artista bem desenvolvido e uma pessoa confiante e criativa. No entanto, o paradoxo reside na noção de desenvolver a criatividade através da eliminação de notas erradas, criando fundamentalmente limites para a (impossibilidade da) paleta de expressão e escolha musical. Como, então, a pedagogia Orff-Schulwerk dos EUA gerenciou os estados afetivos de alguma forma relacionados com a estrutura cognitiva da pedagogia a fim de criar condições culturais como a criatividade?

Sugerimos que essa adaptação distinta da pedagogia Orff-Schulwerk se baseia intensivamente na ciência cognitiva do pós-Guerra. Como detalham Erickson et al. (2013), ao longo da era do pós-Guerra, a ideia de razão e racionalidade humana foi reimaginada. O que Erickson et al. (2013) chamam de “racionalidade da Guerra Fria” se torna cada vez mais um modo de pensar sobre a mente e a racionalidade humana. Em tal conceitualização, a racionalidade humana se torna fundamentalmente questionada, à medida que formas algorítmicas como a racionalidade nas relações entre entradas (inputs) e saídas (outputs) se tornam dominante. Essa conceituação relacionava-se com teorias anteriores que concebiam a vida social como racional e que não mais poderiam ser defendidas diante das atrocidades cometidas nas últimas décadas e na Guerra Mundial.

Começaram a surgir teorias nas ciências sociais que conceituavam os seres humanos como fundamentalmente irracionais. Como sugere Hunter Heyck (2012), “os cientistas sociais da virada do século [XX] em diante argumentavam cada vez mais que o comportamento humano foi fortemente influenciado por crenças e hábitos não racionais, principalmente pela religião e pelas tradições culturais locais” (Heyck, 2012, p. 101). Em resposta, cientistas sociais começaram a tirar seu foco dos seres humanos, compreendidos como “aqueles que escolhem”, e voltá-lo para a noção de “escolha”. O problema das ciências sociais era controlar a escolha para garantir um comportamento racional. O problema da ciência se tornou controlar a irracionalidade por meio do governar todas as práticas de tomada de decisões e escolhas. A racionalidade humana foi repensada, por meio de uma abordagem algorítmica, como “episódios e tarefas complexas analisados em passos simples e sequenciais” (Erickson, et. al., 2013, p. 3), ignorando a irracionalidade da mente humana.

A organização do processo de “ser racional” estava ligada às ideias do cidadão desejado. Na era pós-Guerra, assim como apontado por Cohen-Cole (2014), a criatividade se tornou uma característica definidora de tais conceitos do cidadão desejado e racional que, como se esperava, seria capaz de garantir uma “vida boa” e estável para os EUA. Como aponta Heyck (2012, p. 111), o pensamento do pós-Guerra em torno da escolha impactou essas ideias, particularmente em relação a como a criatividade foi conceituada e as tentativas de cultivá-la foram projetadas:

Para as ciências da escolha, a criatividade envolvia a geração de novas alternativas a partir das quais aquele que escolhe poderia fazer seleções (tornando-se uma espécie de processo de metasseleção), e as emoções eram tanto premissas dadas (como valores ou preferências) a serem inseridas nos processos de decisão (como especificações de parâmetros, digamos) ou quanto intrusões que causam um curto-circuito nos processos normais de decisão (para o bem ou, mais comumente, para o mal)...

O que Heyck e Erickson tornam visíveis são as maneiras usadas pela ciência social do pós-Guerra para dar foco à estruturação de espaços de ação. A escolha é realizada dentro de um ambiente projetado que limita a intrusão da irracionalidade humana. A criatividade foi, paradoxalmente, uma das distinções para domar a irracionalidade. Para desenvolver a criatividade, de acordo com a visão da ciência social do pós-Guerra, era fundamental limitar escolhas através da razão, enquanto a criatividade fornece suas possibilidades.

Essas condições históricas estão incorporadas no projeto estadunidense dos instrumentos e da pedagogia Orff-Schulwerk. Como mostram o vídeo AOSA e os textos discutidos anteriormente, limitar a escolha torna-se a maneira pela qual a criatividade é executada. Restringir coisas como ritmos, notas iniciais e finais, duração da improvisação, e até mesmo remover fisicamente as notas “erradas” torna-se cogitável não por meio de ideias sobre música. Em vez disso, é possível em relação às noções pós-Guerra de irracionalidade e ao problema da governabilidade, de modo que que a criatividade, a racionalidade e a escolha se tornam fenômenos sociais a serem administrados. Remover notas erradas e colocar parâmetros na prática musical é uma forma de administrar a irracionalidade como sendo racional. Os erros são sensíveis como práticas a serem removidas para garantir e engendrar as condições assumidas como necessárias para o desenvolvimento desejado da criança-cidadã.

No entanto, esse gerenciamento de irracionalidades também é implica a fabricação de um tipo de criança que não existia. A Orff-Schulwerk preocupa-se com o desenvolvimento de modos particulares de sentir e compreender a si mesmo, nos quais as expectativas das experiências de sentir-se criativo e bem-sucedido recebem registros como estados afetivos. As formas como esses estados afetivos foram compreendidos dentro das psicologias cognitivas foram fundamentais para conferir ao currículo Orff-Schulwerk estadunidense seu foco pedagógico. Como Danziger (1997) demonstra, a forma como uma pessoa se entende e se expressa, muitas vezes conceituada através da psicologia da personalidade, tornou-se um foco de preocupação no período intra e pós-Guerra. Cada vez mais, o domínio da expressão e da autocompreensão de uma pessoa tornou-se intimamente emaranhado em conceituações do potencial de prosperidade pessoal e nacional, bem como de degeneração. A personalidade tornou-se “o local onde as sementes de futuros problemas individuais e sociais foram lançadas e germinadas” (Danziger, 1997, p. 127).

Assim, para a Orff-Schulwerk, intervir e mudar o senso de identidade e expressão de alguém era agir sobre o futuro no presente para antecipar as potencialidades dos indivíduos e do corpo social mais amplo da nação. O local de intervenção, para a psicologia da personalidade do período intra-Guerra (e.g., Dollard & Davis, 1944; Murphy, 1947), eram muitas vezes as condições ambientais - por exemplo, a casa - conceituadas como fatores-chave no desenvolvimento da personalidade e dos estados emocionais do ser. Controlar e projetar ambientes tornou-se assim uma maneira de cultivar estados afetivos específicos e formas de autoexpressão (e.g., sentir-se criativo), e tais modos de sentir e entender a si mesmo tornaram-se diretamente vinculados a noções de desenvolvimento, degeneração e (in)certeza.

É esse pensamento que conectou os estados afetivos e o design de ambientes particulares à criação dos tipos desejados de pessoas, o que ajuda a entender como diferentes práticas de afeto e estruturação cognitiva formam uma matriz de práticas para a interioridade, a autocompreensão e o sentimento da criança nas construções pedagógicas da Orff-Schulwerk.

Fabricando Diferenças e Governança Sonora à Distância

O sistema de raciocínio que ordenou e classificou a Orff-Schulwerk, como argumentamos, mapeou tipos específicos de pessoas que o currículo deveria ativar. Esses tipos de pessoas eram invenções incorporadas ao currículo, em vez de descrições empíricas ou derivadas empiricamente “do que é”. A criança desejada, porém, também incorpora o seu oposto, a geração do “outro” no currículo. Essa relação de normalidade/patologia no currículo pode ser vista como gestos duplos de inclusão e exclusão, gestos de esperança para criar as potencialidades da criança para a saúde geral e a prosperidade do futuro (Popkewitz, 2022). O gesto de esperança engendrou temores dentro de suas construções dos fenômenos dos perigos e populações perigosas. Estas últimas eram tanto um espaço de redenção no currículo quanto um espaço de exclusão e abjeção.

Até aqui nos debruçamos sobre o tipo de criança cujas potencialidades consubstanciavam a antecipação do sucesso e do bem-estar futuro e captavam os desejos de pertencimento coletivo e de progresso nacional. Com esse gesto de esperança estavam seus outros, o tipo de criança que sai dos limites da normalidade. A política social e educacional e a pesquisa orientada para a reforma desenvolvem novos conjuntos de distinções e a criação de novos tipos de pessoas como fenômenos de seus “Outros”, distinções de diferença, resgate e abjeção expressas frequentemente no foco da educação urbana dos pobres, populações afro-americanas e latino-americanas nos EUA, mas também das populações rurais, como as categorias socialmente desfavorecidas e psicológicas de “falta” vinculadas em noções de falta de motivação e baixa autoestima (Popkewitz, 2021).

Esses gestos duplos de inclusão e exclusão foram incorporados na Orff-Schulwerk. Uma edição de 1969 do Music Educators Journal publicou dois artigos sobre temas redentores para dois tipos de pessoas: um sobre “a criança excepcional” e outro sobre “a criança urbana”. As diferenças corporificadas por esses tipos de crianças separavam o normal do patológico, este último como uma narrativa de redenção que simultaneamente excluía e abjetava.

Bevans (1969), em “The Exceptional Child and Orff-Schulwerk”, explicou como o currículo é particularmente adequado para a criança “excepcional” por causa da flexibilidade conferida à criança com “deficiência múltipla”. O currículo evita as práticas repetitivas de outros currículos e, notavelmente, “barras com notas desnecessárias podem ser removidas para minimizar combinações discordantes” (Bevans, 1969, p. 43). A flexibilidade da instrução permite oportunidades para expressar a criatividade inerente das crianças, ao colocar a “criança multideficiente” em um ambiente adequado para ela. A possibilidade de erros foi eliminada e elas podem ter a oportunidade de encontrar sucesso e se reconhecer como criativas. A aprendizagem do xilofone foi uma estruturação afetiva particular do eu, em que a criança “excepcional” e “criativa” gerou “pensamentos e sentimentos” que a tiraram de um estado de “existência egoísta” e, em vez disso, desenvolveu uma autoimagem “saudável e realista”, pela qual se redimem e se veem como membros criativos da sociedade (Bevans, 1969, p. 127).

Ao lado de “The Exceptional Child and Orff-Schulwerk” está o artigo “Orff-Schulwerk and the Urban Child” (Mittleman, 1969). Aqui, a “criança urbana” é apresentada como a criança que

aprendeu a viver o agora. Ela não sabe o que vai acontecer em dez minutos. A casa pode pegar fogo, a polícia pode vir, ou talvez nada aconteça. Ela não consegue pensar no passado. Ela deve se lembrar de que a mamãe gostaria de poder se mudar para uma casa onde não houvesse ratos. Essa criança não tem experiência em pensar. Apenas vive e reage. (Mittleman, 1969, p. 41-42, ênfase no original)

A criança urbana é aquela que vive em condições patológicas que vão contra a ordem, a harmonia e as estabilidades que definem a criança bem-sucedida e criativa. É uma espécie de pessoa abjeta por falta de experiência e capacidade de pensar e resolver problemas. A Orff-Schulwerk torna-se um local redentor ao governar o corpo por meio do desenvolvimento de sensações físicas particulares e os afetos por meio do som e do movimento, em oposição à linguagem e - em um afastamento interessante da criança "multiplamente deficiente" - à repetição. Compete ao currículo acessar o corpo urbano envolvendo-o repetidamente por meio do cultivo de um ambiente onde “[a criança] não pode evitar ser envolvida. Não pode falhar. Não pode porque seu corpo está envolvido” (Mittleman, 1969, p. 43). A criança é colocada em um ambiente projetado onde as sensações físicas devem materializar a sua criatividade intrínseca.

Se o compararmos com o elementarismo da Orff-Schulwerk de Weimar, que conceituava a criança por meio de noções de desenvolvimento orgânico inspiradas na Bildung, o currículo dos EUA incorpora um tipo diferente de criança como objeto do governar. O discurso fisiológico se preocupa em acessar o corpo por meio do som. A Orff-Schulwerk não era mais uma prática preocupada com a improvisação “livre” e o movimento dos corpos como uma forma de libertação em um processo Bildung de se tornar na República de Weimar. Em vez disso, a criatividade era inerente à “natureza” da criança, e sua potencialidade seria possibilitada pelo currículo por meio do design.

A Orff-Schulwerk é uma prática e tecnologia para redesenhar as interioridades, a alma e o corpo da criança. Em toda essa literatura e programas, há um sistema de raciocínio no qual as noções de primitivismo, criatividade, escolha e fracasso mapeiam populações específicas e, mais especificamente, suas almas e corpos. Por exemplo, posiciona-se a “criança urbana” como um corpo diferente das potencialidades dadas como criatividade na música. É uma criança sem capacidade de raciocínio e para quem a mera repetição física e a sensação corporal acessam e redesenham interioridades. Não se fala sobre o medo de não intervir nos corpos e nas almas dessas crianças. Esse medo é de degeneração, o estado de irreflexão e falta de capacidade criativa.

O Estudo da Escolarização, Suas Disciplinas Escolares e a Política do Conhecimento: Algumas Conclusões

De interesse primário deste artigo foi a maneira como a improvisação dentro da Orff-Schulwerk se tornou fortemente estruturada nos EUA e preocupada com a produção do estado afetivo do sentir: a criança que é confiante, bem-sucedida e criativa. Esse tipo de criança, cuja improvisação e cultivo da afetividade foi o problema de design da pedagogia Orff-Schulwerk, tanto como instrumento quanto como método, reteve certos elementos de seu design “primitivista” original que foi (re)visto no currículo dos EUA na segunda metade do século XX. Buscamos explorar o design dos instrumentos Orff-Schulwerk e o seu currículo no ensino de música como um caso da escola e das suas disciplinas enquanto uma prática de governar que implica gestos duplos. Foi um gesto de produzir uma criança “progressiva” ou “flexível”, uma espécie de criança ligada a noções imaginárias das potencialidades que a educação deve produzir, algo que pouco tem a ver com o interesse assumido delas, como a música.

A alquimia da Orff-Schulwerk teve múltiplas trajetórias. A tradução da música em ensino de música foi para formar tipos de pessoas em diferentes tempos/espaços. Porém, essa construção de tipos de pessoas foi produzida e mobilizada não apenas como práticas preocupadas com inclusão ou mudança. Seus temas de salvação também envolviam redenção, exclusão e abjeção; são registros sobre pessoas que se sobrepunham no currículo mesmo que se utilizassem conceitos aparentemente exclusivos um do outro.

Ressalta-se que essa alquimia não se preocupava com o presente, mas sim com o futuro. O objeto da Orff-Schulwerk era a interioridade da criança que incorporava ideais filosóficos de um futuro antecipado. Na intervenção para criar crianças “excepcionais”, “criativas”, desejadas, o currículo torna-se um “ator” material da antecipação presente das potencialidades de um tipo de pessoa que corporificava um raciocínio comparativo que distribuía diferenças.

Vale notar que esses modos de pensamento em torno da diferença e o foco nos estados afetivos não são relíquias históricas. Embora a Orff-Schulwerk retenha, assim como a própria Orff originalmente imaginou e praticou, um interesse predominante no ensino e no acesso a crianças pequenas, também persiste o foco nas populações racializadas. Trabalhos recentes se basearam nessas noções, usando até mesmo a linguagem exata da “criança urbana” como forma de pensar sobre o valor e o potencial da Orff-Schulwerk em intervir sobre a interioridade e os afetos de crianças de populações específicas - por exemplo, para posicionar a Orff-Schulwerk como uma forma de aprendizagem socioemocional na “sala de aula urbana” (Pitt-Smith, 2017).

Reconhecer essa relação do passado com o presente é uma forma de abrir espaço para se pensar como se imaginam as disciplinas escolares, seus modelos de atuação e as possibilidades de reimaginar a potencialidade da escolarização em romper com seu próprio modo de governar. A Orff-Schulwerk e sua história são um caso de escolarização e produção de tipos de pessoas, diferenças e distribuições de diferenças, e as formas como elas são produzidas nessa pedagogia por meio de ideias pouco tem a ver com música.

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1Versão para o português por Babel Traduções. E-mail: babel@ileel.ufu.br

2Este artigo contribui com vários estudos existentes (cf. Lesko, 2001; Popkewitz, 2008; Popkewitz, & Kirchgasler; Diaz; Ligia López, 2017; Yolcu, 2019; Zheng, 2019).

3Essa noção de fabricação em estudos sociais e educacionais é debatida em Popkewitz, 2020.

4Essa noção de arte e criatividade governando a alma e o corpo no currículo também foi historicamente incorporada na constituição da educação artística. Cf. Martins, 2015, 2017, 2018.

5Esse imaginário é explorado em, por exemplo, Cohen-Cole, 2014; Heyck, 2015; Solovey & Cravens, 2012; na educação, cf. Lesko & Niccolini (2017); Popkewitz, 2021.

Recebido: 30 de Novembro de 2022; Aceito: 28 de Fevereiro de 2023

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