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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-201 

Dossiê 3 - História Comparada do Ensino Secundário: renovação da historiografia por comparações, transições, massificações e traduções

Refrações históricas e culturais nas transições educacionais recentes: o exemplo dos países europeus do antigo bloco socialista1

Historical and cultural refractions in recent education transitions: the example of the former socialist European countries

Refracciones históricas y culturales en las transiciones educativas recientes: el ejemplo de los países europeos del antiguo bloque socialista.

1Universidade de Tallinn (Estônia). ivorgoodson@gmail.com

2Universidade de Tallinn (Estônia). rain.mikser@tlu.ee


Resumo

Trinta anos após a queda do bloco soviético, ainda persiste uma retórica de diferenciação e polarização discursiva entre os padrões educacionais ocidentais e não ocidentais. Tal retórica ofusca uma semelhança potencial, ou homogeneidade, entre os diversos contextos dominantes e marginalizados. Variações regionais, locais e pessoais são prematuramente atribuídas a diferenças culturais fundamentais, embora muitas vezes mal fundamentadas. Procuramos apresentar e resumir preliminarmente os entendimentos existentes quanto à refração na educação e na pesquisa social. Usada esporadicamente, mas raramente definida, a metáfora da refração apresenta: (a) uma multiplicidade de pontos de vista como incentivo à pesquisa social; (b) um progresso científico não relativista como valor final para a compreensão da realidade social; (c) uma abordagem equilibrada em relação à homogeneidade e heterogeneidade na pesquisa social; (d) uma orientação substancialmente histórica para analisar a homogeneidade e a heterogeneidade. A educação nos países europeus do antigo bloco socialista permite demonstrar como são retoricamente exageradas a diferença e a heterogeneidade e como as variações podem ser abordadas de forma mais adequada por meio da análise de refrações.

Palavras-chave: Política educacional; História do currículo; Narrativas de vida e obra; Sistemas sociais

Abstract

Thirty years after the demise of the Soviet bloc, there still persists a rhetoric of differentiation and a discursive polarisation between the Western and the non-Western educational patterns. This rhetoric overshadows a potential similarity, or homogeneity, between the dominant and several marginalised contexts. Regional, local and personal variations are prematurely attributed to fundamental, if often poorly argued, cultural differences. We seek to introduce and to preliminarily summarise the existing understandings of refraction in education and social research. Sporadically used but seldom defined, the refraction metaphor appears to feature: (a) a multiplicity of viewpoints as an incentive for social research; (b) a nonrelativistic, scientific progress as an end value for understanding social reality; (c) a balanced approach towards homogeneity and heterogeneity in social research; (d) a substantially historical orientation towards analysing homogeneity and heterogeneity. Education in the former socialist European countries allows to demonstrate how difference and heterogeneity is rhetorically overstated and how variations can be more adequately addressed by analysing refractions.

Keywords: Educational policy; Curriculum history; Life and work narratives; Social systems

Resumen

Treinta años después de la caída del bloque soviético, aún persiste una retórica de diferenciación y polarización discursiva entre los patrones educacionales occidentales y no occidentales. Tal retórica eclipsa una semejanza potencial, u homogeneidad, entre los diversos contextos dominantes y marginalizados. Variaciones regionales, locales y personales son prematuramente atribuidas a diferencias culturales fundamentales, ahora muchas veces mal fundamentadas. Buscamos presentar y resumir preliminarmente las formas de entender existentes en relación a la refracción en la educación y en la investigación social. Usada esporádicamente, pero raramente definida, la metáfora de la refracción presenta: (a) una multiplicidad de puntos de vista como incentivo a la investigación social; (b) un progreso científico no relativista como valor final para la comprensión de la realidad social; (c) un abordaje equilibrado en relación a la homogeneidad y heterogeneidad en la investigación social; (d) una orientación sustancialmente histórica para analizar la homogeneidad y la heterogeneidad. La educación en los países europeos del antiguo bloque socialista permite demostrar cómo son retóricamente exageradas la diferencia y la heterogeneidad y cómo las variaciones pueden ser abordadas de forma más adecuada por medio del análisis de refracción.

Palabras-clave: Política educativa; Historia del currículo; Narrativas de vida y obra; Sistemas sociales

Introdução

Quando o comunismo como alternativa ideológica global ao neoliberalismo foi derrubado no final da década de 1980, reformistas neoliberais ocidentais sentiram-se livres para aplicar suas políticas a novos contextos e em todo o mundo (Tabulawa, 2003). Muitos teóricos passaram a ver a globalização como sinônimo de ocidentalização ou de uma homogeneização de forma mais ampla (Lawson, 2008). Tais processos mudaram a natureza de como as ideias educacionais de origem ocidental foram disseminadas em novos contextos. A prioridade anterior, relativamente neutra em termos de valor, de ensinar habilidades técnicas necessárias para o desenvolvimento econômico foi substituída por inculcar mentalidades consideradas necessárias para desenvolver a versão neoliberal da democracia (Tabulawa, 2003). Tais mentalidades, no entanto, são muitas vezes consideradas fundamentalmente diferentes dos sistemas de valores das culturas não ocidentais, sendo, portanto, uma manifestação do neocolonialismo ocidental e do imperialismo cultural (Guthrie, 2017; PhuongMai et al., 2009; Smail, 2014). A polarização discursiva entre as culturas “ocidental” e “não ocidental” parece ter aumentado.

Muitas nações, culturas e territórios não se alinham bem com o vocabulário dicotomizante que prevalece no discurso da globalização da educação. Por vezes, construções geopolíticas como o “Ocidente” são incorretas em termos geográficos naturais (Perry, 2005). Da mesma forma, conceitos políticos como “soviético” tendem a ser aplicados diretamente para definir a educação em certos contextos, sem reconhecer as diferenças entre a retórica política e as práticas educacionais. Tal retórica, argumentaremos, enfatiza excessivamente a diferença cultural, ou a heterogeneidade, como ponto de partida da análise, sendo de natureza explicitamente hierarquizante. Ao contrastar os “estados centrais” ocidentais com aqueles observados como não pertencentes a esse grupo, os últimos são representados como sujeitos à transição cultural em direção ao que é chamado de democracia ocidental, mas que muitos autores consideram como sua versão ideológica neoliberal estritamente definida (Mincu & Horga, 2011; Phan, 2014; Silova & Brehm, 2013; Tabulawa, 2003). Tal busca ideológica pela homogeneidade tem consequências profundas, muitas delas levando a resultados contraditórios. Por exemplo, a busca de um modelo de “democracia ocidental” no Afeganistão está em desalinhamento com a cultura local, tendo resultado, de fato, no triunfo do Talibã. É necessário entender o processo pelo qual, ao buscar a uniformidade ideológica, culturas locais e nacionais resistem, redirecionam e reinterpretam a retórica homogeneizadora.

Tendo em mente tais tendências políticas, a pesquisa educacional deve abordar uma lacuna conceitual mais ampla: a escassez de conceitos e metodologias necessários para uma conta equilibrada entre homogeneidade e heterogeneidade cultural. Tal escassez tem consequências de longo alcance para a educação. Submetidos a uma retórica de diferenciação ideológica e simplificada que não é aceita internamente, os profissionais da educação de contextos marginalizados podem adotar mentalidades de resistência às iniciativas de reforma em geral. Isso, por sua vez, afeta seriamente o destino das iniciativas de reforma no âmbito global e nacional, dado que o sucesso ou o fracasso das iniciativas depende, em última análise, dos profissionais da educação. A justaposição de reformas ideologicamente homogeneizadoras e conhecimento baseado na prática está no cerne de um dilema político central. Com a compreensão de tal choque de perspectivas e apresentar ferramentas de diagnóstico para entender os processos de redirecionamento e reiluminação, fornecemos insights vitais para uma formulação de políticas mais esclarecida.

O objetivo deste artigo é introduzir e resumir preliminarmente o conceito de refração na educação e na pesquisa social. A ideia do processo de refração é que, tanto no passado como agora, as iniciativas globais geralmente não são adotadas diretamente em diversos contextos, mas também não são completamente ignoradas ou rejeitadas. Em vez disso, iniciativas globais são modificadas, redirecionadas e potencialmente transformadas, proporcionando variações espaciais, temporais e representacionais. Quando se trata de histórias, culturas e mentalidades, os estudos sobre a transição educacional não devem assumir nem a homogeneidade nem uma diferença total. Em vez disso, eles devem trabalhar no “espaço entre a reprodução idêntica e a heterogeneidade total” (Rieder 2012).

Primeiramente, delineamos a relevância da metáfora da refração na educação e na pesquisa social e apresentaremos alguns dos trabalhos anteriores mais pertinentes referentes à metáfora da refração. Em seguida, descrevemos a transformação da globalização desde o estágio de modernização econômica do período da Guerra Fria até o estágio neoliberal de homogeneização ideológica. Em seguida, introduzimos a representação da educação e dos professores nos países europeus do antigo bloco socialista como um caso de retórica de diferenciação excessiva. Finalmente, discutimos as perspectivas para abordar de forma mais adequada os processos de transição conduzidos no âmbito global, aplicando o conceito de refração. Por meio desse conceito, os pesquisadores sociais, ao longo de décadas, buscaram conceituar as complexidades entre homogeneidade e heterogeneidade. Não somos, portanto, os primeiros a usar a metáfora, tampouco somos originais ao afirmar que as construções geopolíticas são ideologicamente condicionadas e que as diferenças culturais são frequentemente superexpostas em detrimento de semelhanças interculturais e diferenças significativas no contexto de cada grupo cultural (Stables 2005). Entretanto, a continuação de tais práticas justifica nossa proposta heurística. Além disso, como decorre de nossa análise, os estudos anteriores sobre a metáfora da refração são esparsos e isolados. Pretendemos trazer uma visão mais abrangente das possibilidades de emprego da metáfora da refração. O contexto educacional dos países europeus do antigo bloco socialista é o mais relevante para demonstrar a necessidade relativa à análise das refrações. Observamos como as transições globais, como é o caso da virada neoliberal, retêm e perpetuam algumas das antigas construções geopolíticas diferenciadoras (como a divisão Oriente-Ocidente), ao mesmo tempo em que criam e ampliam novas construções (como a “soviética”).

Uma gênese da metáfora da refração

Nosso interesse nas conceituações existentes da metáfora da refração decorre do trabalho anterior de Goodson e seus colegas, que detectaram refrações de iniciativas de reforma educacional neoliberal em vários países (Goodson, 2010; Goodson & Rudd, 2016; Mikser & Goodson, 2018). Trabalhando com o projeto de pesquisa “Professional Knowledge in Education and Health” (“Conhecimento Profissional na Educação e Saúde”) (Profknow, 2002-2008), que cobriu sete países europeus, Goodson e outros notaram que diferentes períodos históricos e trajetórias específicas de países ou regiões geraram refrações significativas, homogeneizando as iniciativas de reestruturação (Goodson, 2010). Um projeto de acompanhamento liderado por Goodson na Estônia, focado nos países europeus do antigo bloco socialista, detectou refrações das percepções convencionais sobre as mentalidades dos professores com experiência socialista (Mikser & Goodson, 2018; 2020).

Entretanto, quanto mais o potencial heurístico da metáfora da refração se torna visível, mais desconcertante parece que, embora o conceito tenha sido aplicado na pesquisa social várias vezes, nenhuma tentativa séria tenha surgido para desenvolver as aplicações sucessivas em uma estrutura conceitual e metodológica consistente para investigar transições sociais. Ao examinar as aplicações anteriores, pretendemos lançar as bases para tal consistência. Nesta fase, contudo, uma revisão sistemática quantitativa da literatura sobre a metáfora seria complicada por uma série de razões. Diferentes autores a elaboraram em diferentes graus de especificidade, alguns artigos incluindo apenas a “refração” em seus títulos, sem qualquer menção adicional. Às vezes também é incerto se a metáfora é utilizada para fins de pesquisa ou para fins literários, enquanto nos concentramos na pesquisa. Além disso, a literatura observada de diferentes autores continha poucas referências entre si, o que indica uma disjunção do estado atual de análise do conceito. Portanto, estruturamos o capítulo por diferentes autores e não por diferentes conceituações de refração.

A metáfora da refração é derivada da física, que marca o fenômeno em que uma onda de luz, som ou líquido muda sua direção ao passar obliquamente - isto é, em qualquer ângulo diferente de perpendicular ou paralelo - de um meio transparente para outro com densidade diferente (Considine & Kulik, 2008). A metáfora é mais frequentemente empregada para complementar o vocabulário epistemológico e metodológico anteriormente retirado da geometria e das ciências naturais. Weber (1949) associa a refração com a forma de um prisma. Ele sublinha a carga de valor cultural e a parcialidade da perspectiva do pesquisador:

Assim como sem a convicção do investigador com relação ao significado de fatos culturais particulares, toda tentativa de analisar a realidade concreta é absolutamente sem sentido, de modo que a direção de sua crença pessoal, a refração de valores no prisma de sua mente, dá direção ao seu trabalho (Weber, 1949, 82).

Weber (ibid) afirma que o vocabulário da análise histórico-cultural muitas vezes permanece ambíguo, porque é erroneamente assumido que o leitor precisa apenas sentir o que o historiador tem em mente. Weber considera indispensáveis as formulações conceituais precisas como meio de investigação, dado que as pessoas compreendem a realidade apenas por meio de uma série de modificações intelectuais. Sem conceitos precisos, um pesquisador “se limitaria ao aspecto formal dos fenômenos culturais, como, por exemplo, a história jurídica.” (Weber, 1949, 94). Tal condição significaria que um pesquisador seguiria involuntariamente o vocabulário conceitual predominante à mão e, assim, permaneceria, nas palavras de Weber, preso no reino do vagamente “sentido” (Weber, 1949, 94).

A associação de Weber da refração com um prisma é paralela ao argumento de Richardson contra a ênfase exagerada na triangulação na validação de descobertas de pesquisas empíricas (Richardson & St. Pierre, 2005). Richardson propõe a metáfora do cristal, caso em que a refração aparenta ser um processo interno:

Os cristais crescem, mudam e são alterados, mas não são amorfos. Os cristais constituem prismas que refletem as externalidades e se refratam dentro de si mesmos, criando diferentes cores, padrões e matrizes que se projetam em diferentes direções. O que vemos depende do nosso ângulo de repouso - não da triangulação, mas sim da cristalização” (Richardson & St. Pierre, 2005, 963).

Richardson descreve suas viagens com o marido por vários países para exemplificar o que ela chama de “práticas de cristalização”: a mesma realidade ontológica é “refratada […] (St. Pierre, 2005, 963).

O teórico cultural Alexander (1984) empregou o conceito de “refração cultural” para marcar o meio de três modelos típicos ideais de relações entre cultura e sociedade. O primeiro modelo, “especificação cultural”, assume a harmonia tanto no nível social quanto no cultural: diversos grupos no sistema social “especificam” padrões culturais de maneiras diferentes, mas tais agrupamentos de valores permanecem mutuamente consistentes e harmoniosos. O terceiro modelo, “colunização cultural”, assume o antagonismo fundamental em ambos os sistemas social e cultural e considera os agrupamentos de interesse como ocorrendo em “colunas culturais hermeticamente fechadas, espaços verticais entre os quais não há integração horizontal” (Alexander 1984, 292). O modelo provisório de “refração cultural” assume que os conflitos sociais realmente ocorrem, mas apenas no contexto de um sistema cultural relativamente integrado e compartilhado:

Nesse modelo, grupos e funções sociais conflitantes podem desenvolver e desenvolvem subculturas antagônicas e não apenas “especificações” culturais complementares. Porém, dado que tais subculturas ainda se baseiam em um sistema de valor integrado no nível cultural, permanece entre essas subculturas uma comunhão substancial, embora não reconhecida. Podemos chamar isso de modelo de “refração cultural…” (Alexander 1984, 292).

Alexander (ibid) pergunta retoricamente: “Por que refração? Porque podemos afirmar que diferentes interesses foram refratados por uma mesma lente cultural. O teórico da tradução Lefevere (1981; 1982) analisou as refrações nos estudos literários, com importantes inferências para a pesquisa social em geral. Ele define a refração da seguinte forma:

O trabalho de um escritor ganha exposição e influência principalmente por meio de “mal-entendidos e equívocos” ou, para usar um termo mais neutro, refrações. Os escritores e suas obras são sempre compreendidos e concebidos em um determinado pano de fundo ou, se preferir, são refratados por meio de um certo espectro, assim como sua própria obra pode refratar obras anteriores por meio de um certo espectro (Lefevere, 1982, 4).

Lefevere (1981) identifica amplamente a refração como uma “tradução”, evidente a partir de sua definição de “textos refratados”: “Textos refratados constituem […] textos que foram processados para um determinado público (crianças, por exemplo) ou adaptados para uma certa poética ou uma certa ideologia”. (Lefevere (1981, 72). A refração é crucial para permitir que os textos canonizados alcancem seu status de canonização, visto que um amplo reconhecimento é comumente alcançado apenas y por uma série de refrações pelas quais o texto passa ao aparecer como excertos em antologias escolares, seriados de TV ou outras formas de adaptação, contando inclusive com traduções para outros idiomas (Lefevere, 1981). A refração faz a mediação entre o sistema cultural original e o receptor (por exemplo, idioma ou faixa etária), dado que as traduções “naturalizam” o contexto original para o do sistema receptor - elas “tornam-no mais conforme com o que o leitor da tradução está acostumado” (Lefevere, 1982, 6). Diferentes espaços linguísticos estão em posições desiguais: as histórias da literatura mundial são em sua maior parte escritas com base no que está disponível em inglês, o que torna esse critério crucial para que certas histórias ganhem autoridade (Lefevere, 1981).

Preocupações semelhantes ecoam no trabalho de Kennedy (2005), que estudou a formação de categorias de mercado. Kennedy descreve como as lentes da mídia refratam as histórias de acordo com as características de sua interface com seus públicos separados:

A ideia de refração da mídia se encaixa na física sugerida pela metáfora. À medida que as contribuições dos produtores para o discurso da mídia a influenciam sistematicamente, a imagem da demanda é orientada aos produtores que se destacam em cortejar a cobertura da mídia (Kennedy 2005, 222).

O teórico marxista moderno Roberts (2002; 2014) destaca a natureza histórica da refração. Ele aplica o conceito de “forma social”, um “modo de existência” abstrato que adquire significado apenas na totalidade de outras formas. Formas sociais como a lei, estado ou religião não existem independentemente, mas apenas em relação a outras formas que diferem delas ou as contradizem (Roberts, 2002). No curso da história, cada forma social se transforma e, portanto, reflete as mudanças históricas. Entretanto, também ocorre o processo oposto de refração, no qual as alterações dentro de cada forma interagem com outras formas, afetando assim uma totalidade ideológica, mas também mantendo sua própria identidade única:

É também o caso que para obter uma identidade ideológica qualitativamente distinta - para obter o status de uma refração - cada objeto deve simultaneamente se realizar como uma identidade ideológica por meio de sua interação com outras formas sociais (Roberts 2002, 101).

Roberts (ibid) sustenta que as refrações ocorrem e são analisáveis apenas durante um período prolongado de tempo. Mais recentemente, Roberts (2014) defendeu as vantagens da metáfora da refração sobre as da difração e da reflexão. A difração, particularmente como utilizada pelo fundador do realismo crítico, Bhaskar (1993), representa um avanço teórico significativo ao reconhecer que o mundo é diferenciado, mas unificado: embora possamos identificar alguns momentos determinantes de um sistema mais amplo, as formas fraturadas que eles produzem não pode simplesmente ser reduzidas a essas determinações originais (Roberts, 2014). Para Roberts, contudo, tal raciocínio exerce uma ênfase excessiva na diferença, em detrimento da semelhança original, ainda que ideal. Ele exemplifica seu argumento com a justaposição feita por a pesquisadora feminista, Haraway. Haraway favorece a difração em detrimento da reflexão, visto que a primeira faz diferença no mundo, enquanto a última “…apenas desloca o mesmo em outro lugar” (Haraway 1997, 16). Mais uma vez, Roberts destaca que a “diferença” é sempre representada nas formas de sua determinação original - um processo mental bidirecional compreensível em termos de refração:

Algo é, portanto, “diferente” apenas na medida em que ganha sua identidade por ser uma forma de um sistema dialético mais amplo do qual constitui um momento. Consequentemente, um objeto nunca simplesmente altera completamente sua identidade, como sugere a metáfora da difração, mas, pelo contrário, refrata um sistema interativo mais amplo do qual é parte integrante […].

Com base nisso, a metáfora alternativa, embora semelhante, da “refração” capta melhor os processos dialéticos […]. A “refração” não exagera o princípio da diferença em ação nas totalidades, mas garante sempre que a diferença seja trazida de volta à sua relação dialética com a unidade e a mesmice (Roberts, 2014, 8-9; itálico no original).

Roberts (2014) apenas uma vez menciona brevemente a contribuição de Rieder (2012), cujo trabalho sobre as redes sociais na internet, contudo, auxilia na compreensão da refração. Rieder observa que os comentários dos usuários (“tweets”) nas mídias sociais raramente se qualificam como relatórios factuais neutros, mas, em vez disso, “torcem” ou “refratam” o tópico de certa forma. Tais refrações não constituem meramente multiplicações de opiniões ocasionais, mas são evocadas por um conjunto limitado de ideias amplamente compartilhadas e culturalmente condicionadas: mesmo uma breve observação pode transmitir um significado complexo baseado em ideias e estereótipos compartilhados. Como muitos pontos de referência são compartilhados entre os intérpretes, a refração assume muito menos diversidade e heterogeneidade de opiniões do que inicialmente previsto:

Gostaríamos de propor a metáfora da “refração” como forma de pensar o espaço entre a reprodução idêntica e a heterogeneidade total. […]. …Como começamos a ver, as atitudes política e sistemas de coordenadas morais são amplamente compartilhados. Em vez da propagação de ondas em todas as direções sugeridas pela difração, a refração refere-se a uma mudança singular na direção de uma onda que passa por uma superfície, por exemplo, transferindo-se do ar para a água. Ao olhar para um lago, ainda podemos ver os peixes, mas nossa percepção de tamanho e posição é distorcida (Rieder 2012).

Os argumentos para o conceito de refração, contudo, não permaneceram incontestados. Inspirado pelos trabalhos de Richardson e Haraway, o pesquisador social e médico Saukko (2003) defende as vantagens emancipatórias da metáfora da difração sobre a da refração:

A difração, ao contrário da refração, refere-se não apenas a uma construção simbólica ou social da realidade […], mas entende a pesquisa como uma força que altera ou cria a realidade em termos simbólicos e materiais. Assim, se a refração se refere ao processo pelo qual a visão muda quando passa por um prisma, a difração se refere à maneira pela qual a luz, como força ótica e material, é transformada quando passa por um prisma (Saukko 2003, 27).

Saukko (ibid) afirma ainda que, enquanto a refração visa transmitir realidades múltiplas e, assim, contribuir para a ciência e a sociedade pluralistas, a difração visa não apenas uma ciência e política pluralistas, mas também igualitárias.

Globalização: da modernização econômica à homogeneização ideológica

Nesta seção, delineamos a gênese da retórica da diferenciação que as políticas neoliberais de globalização têm empregado para justificar a implementação da ideologia da homogeneização.

Adam Smith, teórico moderno da globalização, alertou que, embora os mercados mundiais estivessem se expandindo enormemente, diferentes regiões são afetadas de formas muito diferentes por essa transição, com os países europeus tirando vantagem de sua superioridade política e econômica (Smith, 1776/2007). Tal observação permaneceu amplamente válida, embora as formas pelas quais a homogeneidade global é buscada e as relações assimétricas de poder mantidas tenham mudado dramaticamente (Rizvi et al., 2006). A tradição ocidental moderna sempre manteve o capitalismo e o sistema político democrático liberal como inseparáveis e tentou erradicar ideologias e práticas alternativas nos países em desenvolvimento. Entretanto, conforme argumenta Tabulawa (2003), ocorreu uma grande mudança na década de 1980. O paradigma da modernização da globalização, formulado na década de 1950, atribuiu prioridade causal ao crescimento econômico, assumindo que o aumento da prosperidade levará gradualmente à democracia liberal nos países em desenvolvimento. As inferências educacionais extraídas do paradigma da modernização eram mais técnicas do que políticas ou culturais: a educação enfocava habilidades, conhecimentos e atitudes consideradas necessárias para que um indivíduo contribuísse para o desenvolvimento econômico (Tabulawa, ibid).

Na década de 1980, a relação causal entre capitalismo e democracia liberal foi invertida: a democracia passou a ser vista como uma pré-condição para o desenvolvimento econômico (Tabulawa, 2003). A rivalidade do comunismo não mais à vista, a globalização foi fortemente associada ao neoliberalismo e tornou-se mais explicitamente ideológica, visando erradicar sistemas de valores indígenas supostamente não democráticos e culturalmente enraizados nas nações em desenvolvimento. Para alcançar este objetivo, a educação foi vista como a ferramenta primária (Tabulawa, 2003).

Pesquisadores que trabalham a partir da perspectiva neocolonial rotularam tal virada como o “neocolonialismo educacional” ocidental (Phuong Mai et al., 2009), “imperialismo cultural” (Guthrie, 2017) e “modelo ‘tamanho único’” (Smail, 2014). Os autores acentuam uma oposição diametral entre as epistemologias e práticas das culturas ocidentais e, por outro lado, não ocidentais, especialmente na Ásia e na África (Guthrie, 2015; 2017; Phuong Mai et al., 2009). A heterogeneidade radical é defendida em termos de “guerras culturais” (Guthrie, 2015) e “a luta e o direito de ser diferente” (Phuong-Mai et al., 2006). É evidente o reconhecimento de que muitas ideias educacionais promovidas pelo Ocidente também têm suas próprias origens em outros lugares (Phuong-Mai et al., 2009; Smail, 2014). Além disso, as ideias educacionais foram trocadas entre as culturas ocidental e não ocidental muito antes de sua recente propagação pelos reformistas ocidentais (Schweisfurth, 2015). Sabe-se também que as práticas progressistas promovidas pelo Ocidente não são tão comuns nos próprios países ocidentais (Phan, 2014). Entretanto, com esse conhecimento em mãos, é ainda mais notável que a retórica da diferenciação não apenas prevaleça, mas, como demonstraremos a seguir, capture novos territórios e desenvolva novos vocabulários.

A educação nos países europeus do antigo bloco socialista: a retórica da diferenciação

Embora as diferenças sempre tenham sido consideráveis entre os países europeus do antigo bloco socialista (Birzea, 2008), o discurso internacional adotou uma ima relativamente fixa com relação à educação no modelo soviético e seus efeitos no longo prazo. Até o final da década de 1980, a educação nesses países estava sujeita a um estrito controle governamental central, o que deixava pouco espaço para discutir publicamente ideias contrastantes sobre questões educacionais mais amplas (Erss et al., 2014). Isso supostamente teve um impacto negativo duradouro na mentalidade dos professores. Como observaram Mikser e Goodson (2020), os professores na antiga Europa socialista são regularmente retratados como aderentes a um sistema de valores totalitário, sem iniciativa individual, responsabilidade, tolerância e respeito pela diversidade, com orientações recebidas de cima para baixo, uma compreensão fragmentada do currículo e práticas de ensino ultrapassadas.

Além de uma série de descrições empíricas, a narrativa de “atraso cultural” dos professores socialistas experientes foi conceituada e perpetuada dentro e fora desses países. Servindo intencionalmente ou acidentalmente à agenda da globalização neoliberal, tais conceituações muitas vezes tendem a sofrer de impetuosidade, generalização excessiva e uma atenção insuficiente a correntes históricas mais profundas sob as condicionalidades regionais e nacionais. A razão por trás disso é dupla. Enquanto as antigas nações socialistas eram geralmente impacientes quanto a imitar o que percebiam como modelos “ocidentais”, os países ocidentais, por sua vez, careciam do interesse necessário quanto a essas condicionalidades históricas. Krastev e Holmes (2019) notoriamente denominam o período de transição do final dos anos 1980 e início dos anos 1990 na antiga Europa socialista como a “Era da Imitação”. Conforme explicou Krastev em uma entrevista recente: “De onde vem essa falta de curiosidade? Vem do fato de que, quando você está vivendo na Era da Imitação, você só sabe o que eles querem ser, nas não como eles estão fazendo agora” (Krastev & Roberts 2020, 278).

Uma forma popular de conceituar as transições tem sido desenvolver “modelos de periodização”. Ao descrever as mentalidades mutáveis das pessoas, diversos autores distinguiram entre diferentes formas, ou modos sequenciais de estágio, de transição. Kozma e Polonyi (2004) afirmaram que a era socialista criou uma distância entre a Europa Ocidental e Oriental grande o suficiente para ser chamada de “lacuna cultural”: “Considerando que não apenas o conhecimento e a informação, mas também os valores, normas e padrões de comportamento diferem, os europeus orientais provavelmente têm uma cultura que é diferente da do Ocidente” (Kozma & Polonyi, 2004, 473). Birzea (2008) argumenta que, enquanto a transição política e econômica foi relativamente bem-sucedida e rápida na antiga Europa socialista, há um estágio específico e mais duradouro de transição cultural, que pode ser realizado ao longo de cerca de uma geração, ou 25 anos, e que envolve a mudança de valores, atitudes, competências, relações sociais e estilos de vida. Tal visão de “atraso cultural” permeia mais ou menos explicitamente muitos estudos sobre a educação e professores dos países europeus do antigo bloco socialista e é ainda mais perpetuada em documentos e regulamentos de políticas (para uma análise crítica, ver Mincu & Horga, 2011; Mikser & Goodson, 2020). Tal descrição é ainda mais atraente para as partes políticas interessadas, visto que os professores são frequentemente considerados como os principais detentores de responsabilidade por uma inovação educacional de sucesso. Silova e Brehm (2013) resumem a lógica de como a “ocidentalização global” funciona nos professores “pós-socialistas”:

Aos olhos do público, os professores personificavam o sucesso (ou o fracasso) que as transições educacionais pós-socialistas pretendiam alcançar. Esperava-se, portanto, que os professores rejeitassem as “antigas” práticas de ensino (geralmente associadas a abordagens centradas no professor predominantes no passado socialista) e, em vez disso, adotassem “novas” metodologias ocidentais de ensino e técnicas de gerenciamento de sala de aula que se concentravam na aprendizagem centrada na criança. Eles ficaram sujeitos a uma infinidade de novas políticas e às atividades nacionais e internacionais de formação em serviço e desenvolvimento profissional. Suas vidas profissionais não mais lhes pertenciam, mas eram regidas por “normas” que circulavam globalmente referentes a currículos, livros didáticos, exames e métodos de ensino (Silova & Brehm, 2013, 56).

Uma implicação clara dessa descrição é que palavras-chave, tais como “socialista”, “soviético” e “oriental”, foram expandidas para além de seu significado original, sendo aplicadas, muitas vezes sem muita argumentação, para denotar uma diferença cultural substancial, sujeita à homogeneização da intervenção política. Podemos distinguir provisoriamente as principais dimensões dos vieses subjacentes à retórica da diferenciação: espacial, temporal e representacional. Na prática, é evidente que tais dimensões estão interligadas.

A dimensão espacial significa conceitos geográficos, como pontos cardeais que são ampliados e distorcidos para marcar discriminações geopolíticas. Esta é obviamente a dimensão mais debatida, criada muito antes da Guerra Fria. Conforme argumenta Wolff (1994), a ideia da Europa Oriental como o primeiro modelo de subdesenvolvimento da Europa Ocidental moderna nasceu durante o período iluminista. A Europa Oriental geopolítica passou a ser considerada como uma “zona tampão” entre o Oriente e o Ocidente - “Europa sem ser Europa” (Wolff, 1994, 7). A era da Guerra Fria reforçou e perpetuou essa imaginação e suas conotações culturais. Conforme argumenta Perry (2005, 269), “o Ocidente é visto como tolerante, progressista, eficiente, ativo, desenvolvido, organizado e democrático, ao passo que o Oriente é visto como intolerante, corrupto, passivo, subdesenvolvido, caótico e antidemocrático”. Perry também demonstra como essa visão viola as realidades geográficas: “Praga fica geograficamente a oeste de Viena, embora muitas pessoas considerem a Áustria como um membro do “Ocidente” e a República Tcheca como membro do “Oriente” (Perry 2005, 269). Mais seriamente, as distinções espaciais podem ofender e enganar quando motivadas a discriminar grupos sociais cuja heterogeneidade interna pode ser substancialmente maior do que sua distância de outros grupos. Generalizações como “europeus orientais” são exemplos desse tipo.

A dimensão temporal/histórica envolve casos em que as transições são observadas a partir de uma perspectiva de tempo excessivamente curta, enquanto são negligenciados ciclos de reforma mais longos e continuidades. Goodson (2005, 106) chama esse fenômeno de trabalho com “noções instantâneas de contexto social e tempo”. É primeiramente perceptível nesta dimensão que o símbolo da “Europa Oriental” não foi inventado pela primeira vez como uma reação ao surgimento do bloco soviético na Europa. Trata-se, em vez disso, de uma construção secular que foi refratada pelas novas realidades pós-Segunda Guerra Mundial. A linha histórica de crítica também aparece na noção de Mincu e Horga (2011) de que, embora a passividade dos professores na Romênia seja rotineiramente atribuída aos legados socialistas, o problema de fato se assemelha a outros países com uma longa tradição de forte controle estatal sobre a educação, como como é o caso da França e da Itália. Da mesma forma, Mikser e Goodson (2020) afirmam no contexto estoniano que diversos pressupostos curriculares básicos que são geralmente atribuídos às mentalidades socialistas herdadas dos professores, na verdade, representam um conjunto de princípios pedagógicos muito mais antigos e historicamente consistentes. Vale a pena citar o trecho da entrevista com um professor estoniano:

É difícil dizer qual é exatamente o tempo de um determinado princípio [curricular]. Provavelmente, alguns princípios são consideravelmente mais antigos do que os princípios da era soviética… Porém, eles [diretores no final da era soviética] exigiam certas coisas que também eram exigidas na época soviética. Chamavam-lhe “educação clássica” e “escola clássica”. Havia matérias escolares a serem estudadas e regras a serem seguidas […]. Se você não disser que tudo era ruim na era soviética, você é um inimigo! (Mikser & Goodson, 2020, 51-52).

Em terceiro lugar, a retórica da diferenciação inclui uma representação tendenciosa de narrativas distinguíveis em diferentes níveis sociais. Isso é o que chamamos de dimensão representacional. O conflito geralmente aparece entre a narrativa sistêmica, que inclui o enredo das principais transições, conforme descrito em documentos de políticas estaduais, pesquisas e meios de comunicação, e, por outro lado, as narrativas pessoais e profissionais que aparecem nas histórias de vida de profissionais individuais. Nessa linha de crítica, Kitaevich (2014), no contexto georgiano, argumenta que, ao desenvolver narrativas coletivas sobre a transição educacional, o âmbito do estado está fortemente super-representado em detrimento de profissionais individuais. Uma abordagem monopolística da história, legitimada por documentos curriculares nacionais, ofusca as narrativas pessoais e profissionais dos professores sobre as reformas educacionais (Kitaevich, 2014). Mincu e Horga (2011) argumentam que, na Romênia, os professores perceberam as influências negativas da era socialista como consideravelmente mais suaves do que foi percebido pelos servidores da área da educação. Mincu e Horga (ibid) também argumentam que, a partir do início dos anos 2000, os professores percebem sua autonomia como sendo cada vez mais restrita pela burocracia estatal. Os professores, portanto, não apenas percebem, como também periodizam as iniciativas de reforma de forma diferente da narrativa sistêmica promovida pelo Estado. A última descoberta foi confirmada por resultados semelhantes da Estônia (Mikser & Goodson, 2020). Fatalmente, a dimensão representacional também se revela pelo fato de que, como um símbolo, a “Europa Oriental” foi introduzida pela primeira vez por representantes fora dos territórios do que a noção pretendia capturar. Só mais tarde foi a mesma incluída e refratada nas conceptualizações desenvolvidas pelos próprios representantes dessas nações.

O efeito combinado desses vieses tem sido uma retórica de diferenciação excessiva e, em muitos casos, uma ênfase exagerada nos aspectos negativos quando se discute a educação nos países do antigo bloco socialista. Conforme argumenta Perry (2005), as descobertas empíricas que falam a favor desses países, como o alto desempenho dos alunos em testes internacionais de aproveitamento, são, em geral, negligenciadas, assim como muitas semelhanças históricas com os países da Europa Ocidental (ver também Mincu & Horga 2011).

Discussão: a refração como um dispositivo heurístico para explorar as transições sociais

As aplicações existentes da metáfora da refração, embora inconsistentes, sugerem um terreno comum para explorar as transições sociais sem unilateralidade retórica e de forma equilibrada entre homogeneidade e heterogeneidade.

Nossas observações primeiro nos levam a imaginar uma postura epistemológica geral da análise de refração. Por razões morais, concordamos com o argumento de Saukko (2003) para a ciência igualitária. Diferentes pontos de vista devem, de fato, ser igualmente reconhecidos como um incentivo para a pesquisa social. É importante, contudo, distinguir entre o igualitarismo na ciência como meio e como valor final. Os autores apresentados em geral aparentam apoiar o igualitarismo como um meio, embora como um valor final, os mesmos defendem uma compreensão mais cientificamente fundamentada da realidade social. Isso fica evidente no apelo de Weber por formulações conceituais precisas e em seu reconhecimento da parcialidade da perspectiva do pesquisador. Isso também fica evidente no trabalho de Alexander em busca de uma correção analítica da relação entre cultura e sociedade, na detecção de equívocos de Lefevere na interpretação de textos literários e na preocupação de Roberts e Rieder com relação à exagerada ênfase na diferença na interpretação da realidade social. Tais autores consideram uma análise de refração um empreendimento não apenas moral, mas também cognitivo para corrigir representações populares que não correspondem adequadamente à realidade. Eles visam prevenir e mitigar um uso indevido ideológico, embora muitas vezes inconsciente, de conceitos e dicotomias habituais. A investigação da refração aparenta não ser um empreendimento reducionista, relativista e meramente perspectivo, mas uma iniciativa embasada epistemologicamente para um melhor conhecimento.

Um valor notável da metáfora da refração aparenta residir na consideração entre a homogeneidade e a heterogeneidade, ou a diferença. As diferenças, uma vez manifestadas, tendem a ser distorcidas e expandidas além de sua base autêntica de diferenciação. Este é claramente o caso da tese do “atraso cultural”, aplicada aos países do antigo bloco socialista, quando os conceitos políticos e geográficos são estendidos para denotar valores, normas e padrões de comportamento das pessoas. Atraentes e populares, tais associações já são refratadas do significado original desses conceitos e são afetadas por refratores espaciais, temporais e representacionais que formam, nos termos de Weber, o “prisma da mente [do pesquisador]” e o vagamente “sentidos” (Weber, 1949). A essência refratada de tais extensões torna mais importante o apelo de Weber por formulações conceituais precisas. Não aparenta ser mero acaso, portanto, que vários autores, notadamente Alexander, Roberts e Rieder, situem explicitamente a refração como um meio entre dois extremos, conceitos dicotomizantes que são muito mais difundidos nos discursos habituais do que a refração.

Uma consideração equilibrada entre a homogeneidade e a heterogeneidade cultural - uma “refração cultural” (Alexander 1984) - pode ser exemplificada por uma descoberta recente de que as diferentes trajetórias de políticas curriculares na Inglaterra e na Estônia nas últimas décadas tiveram efeitos notavelmente semelhantes no profissionalismo dos professores (Erss et al., 2014). Quando o pesquisador toma regularidades gerais - ao invés de peculiaridades contextuais - como ponto de partida de sua análise, muitas “diferenças” ostensivas, embora marcantes, aparecem como meras refrações de movimentos mundiais mais gerais e compartilhados. Por um lado, a política curricular raramente consiste apenas em uma “especificação cultural”. Conflitos ocorrem entre formuladores de políticas e professores na Inglaterra e na Estônia, e geram subculturas profissionais conflitantes, como a “evasão política” ou a “resistência dentro da acomodação” (Erss et al., 2014; Perryman et al., 2011). Por outro lado, tais conflitos e suas refrações específicas de cada país ocorrem em um contexto amplamente compartilhado da democracia ocidental e dificilmente podem ser caracterizados como antagônicos como, por exemplo, aqueles entre a burguesia e a aristocracia hereditária durante a queda do Antigo Regime francês (ver Alexander, 1984).

Da mesma forma, Roberts (2014) e Rieder (2012) demonstraram como a diferença e a heterogeneidade assumidas são muitas vezes perspectivas e vinculadas a interesses, em vez de substanciais ou racionais. Do nosso contexto, uma atribuição automática de características de “educação clássica” aos legados especificamente soviéticos, criticada pelo supracitado professor estoniano (Mikser & Goodson, 2020), serve como um bom exemplo para tal diferenciação tendenciosa.

Investigar a homogeneidade e a heterogeneidade culturais revela-se um empreendimento essencialmente histórico, que exige que o pesquisador se abstenha de uma aplicação automática de conceitos temporais ou espaciais dados como certos e de atribuir variações regionais, locais ou pessoais mecanicamente a tais conceitos fixos. Uma consideração cuidadosa da perspectiva do tempo parece ser um pré-requisito para evitar qualquer confusão entre diferença e refração (ver Goodson, 2005). Além disso, a analisar refrações também significa estar atento às questões de propriedade da história, ou o que Weber (1949) chama de “história jurídica”. Aqui, as refrações ocorrem em torno da questão: a história de quem goza de uma posição privilegiada? Do nosso contexto empírico, um exemplo claro de associações históricas refratadas é a observação de Kitaevich (2014) sobre uma confiança desproporcional na narrativa sistêmica promovida pelo Estado, quando as transições educacionais são conceituadas. Da mesma forma, as histórias são refratadas quando traduzidas de um sistema cultural para outro. O raciocínio de Kennedy (2005) e Lefevere (1981; 1982) indica que, no que diz respeito às relações entre contextos culturais dominantes e não dominantes, a refração consiste em um processo de mão dupla. Por um lado, as ideias vindas dos contextos dominantes são sempre refratadas nas mentalidades dos profissionais de espaços não dominantes. Entretanto, tão importante é a forma como essas mentalidades refratadas e os resultados da reforma são relatados nos meios de comunicação de prestígio, principalmente na língua inglesa (ou seja, em jornais acadêmicos), são novamente refratadas pela “naturalização” dos textos de acordo com as percepções anteriores dessas audiências. Por exemplo, mesmo quando permitido pelas descobertas empíricas, o “tradutor” deve ser cuidadoso ao afirmar que muitos professores socialistas experientes eram de fato mais criativos e proativos - caso houvesse uma razão para suspeitar que tal afirmação pode ser muito conflitante com as percepções anteriores dos leitores.

Finalmente, comentaremos a noção de Saukko (2003) de que, enquanto a refração se refere apenas à construção simbólica ou social da realidade, é a difração que genuinamente entende a pesquisa como uma força emancipatória para mudar a realidade em termos simbólicos e materiais. Entretanto, há muito se sabe que os regimes políticos sempre cuidam de como suas ações são definidas simbolicamente. Além disso, demonstramos acima como os símbolos refratados de “oriental”, “socialista” e “soviético” afetaram significativamente os profissionais da educação, inclusive materialmente, com certas mentalidades e práticas sendo premiadas pelas políticas neoliberais ao passo que outras foram desvalorizadas e degradadas. O fato é que o potencial emancipatório da metáfora da refração ainda não foi reconhecido.

Conclusão

Nosso objetivo neste artigo foi apresentar e resumir preliminarmente as conceituações existentes de refração em educação e pesquisa social, a fim de mitigar os efeitos potencialmente nocivos da polarização simbólica. Para contrabalançar a retórica da diferenciação excessiva, a refração visa evitar práticas nas quais seja prematuramente descartado um considerável grau de similaridade e homogeneidade, que somente no curso de processos sócio-históricos seriam refratados. Diferenças sem dúvida existem, podendo ser iluminadas e ampliadas, mas, mais frequentemente do que se percebe, as mesmas tendem a ser refrações históricas e culturais de aspirações humanas semelhantes.

Um passo necessário para os pesquisadores educacionais consiste em desenvolver a refração em um dispositivo metodológico que reúna as perspectivas até então separadas e forneça diretrizes para estudar a interação entre homogeneidade e heterogeneidade em suas alterações temporais, espaciais e representacionais. Acreditamos que o estudo da refração fornecerá ferramentas de diagnóstico essenciais para um modo mais esclarecido de formulação de políticas. Em concordância com Kennedy (2005), ressaltamos que a metáfora da refração tem seus limites e não deve ser exagerada. Ao contrário das refrações físicas e ópticas, uma refração social nem sempre ocorre de maneira previsível - afinal, essa é a essência de toda resposta social. Isso, contudo, torna mais desafiador o estudo do sutil, mas poderoso, fenômeno social da refração.

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1Publicado originalmente em inglês, sob o título, Historical and cultural refractions in recent education transitions: the example of the former socialist European countries, no British Journal of Educational Studies (v.71, p.99-116, 2023). DOI: https://doi.org/10.1080/00071005.2021.2024138. Versão em português publicada com a permissão da Taylor & Francis Ltd, http://www.tandfonline.com, em nome da Society for Educational Studies. Versão em português de Arabera Traduções.

Recebido: 30 de Novembro de 2022; Aceito: 28 de Fevereiro de 2023

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