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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-180 

Artigos

Mulheres, saúde pública e formação profissional na Era Vargas (1930-1945)

Mujeres, salud pública y formación profesional en enfermería en la Era Vargas (1930-1945)

Paulo Fernando de Souza Campos1 
http://orcid.org/0000-0001-8518-6921; lattes: 3541032756878810

Érico Silva Muniz2 
http://orcid.org/0000-0002-5543-4266; lattes: 6294815313176569

Isabela Candeloro Campoi3 
http://orcid.org/0000-0001-7081-3646; lattes: 8568342954658223

1Universidade Santo Amaro (Brasil). pfcampos@prof.unisa.br

2Universidade Federal do Pará (Brasil). ericomuniz@ufpa.br

3Universidade Estadual do Paraná (Brasil). isabela.campoi@unespar.edu.br


Resumo

A história da educação profissional em saúde permite localizar um movimento importante para a formação em enfermagem no Brasil. Durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) políticas públicas implementadas impunham a inclusão de mulheres no espaço público e a emergência da atuação de enfermeiros em todas as regiões, esse novo enquadramento formalizou o Programa de Enfermagem proposto pela Fundação Rockefeller ao Ministério da Educação e Saúde (MES) através do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Registros históricos preservados sobre o movimento remontam a mudanças decisivas na história da enfermagem, as quais, conduzidas por mulheres, impactaram poderosamente na educação profissional feminina.

Palavras-chave: História da Educação Feminina; História da Enfermagem; Estado Novo

Resumen

La historia de la education professionel en salud nos permite ubicar un movimiento importante para la formación en enfermería en Brasil. Durante el gobierno de Getúlio Vargas (1930-1945) las políticas públicas implementadas impusieron la inclusión de las mujeres en el espacio público y la emergencia de la actuación de los enfermeros en todas las regiones del país, cuya nueva centralidad formalizó el Programa de Enfermería, propuesto por la Fundación Rockefeller a lo Ministerio de Educación y Salud (MES) a través del Servicio Especial de Salud Pública (SESP). Los registros históricos que se conservan sobre el movimiento remontan a cambios decisivos en la historia de la enfermería que, liderada por mujeres, tuvieron fuerte impacto en la educación professional feminina.

Palabras-clave: Historia de la Educación Femenina; Historia de la Enfermería; Estado Nuevo

Abstract

The history of professional health education presents an important movement for nursing education in Brazil. During the Getúlio Vargas’s administration (1930-1945) public policies imposed the inclusion of women in the social space and the emergence of nurses’ role in all regions in the country. The above formalized the Nursing Program proposed by the Rockefeller Foundation to the Ministry of Education and Health (MES) through the Special Public Health Service (SESP). Historical documents on this movement reassemble decisive changes in the history of nursing, which, led by women, had a powerful impact on female professional education.

Keywords: History of Feminine Education; History of Nursing; New State

Introdução

O artigo remonta ao processo de inclusão de mulheres em postos de trabalho público gerados pela profissionalização da arte de cuidar/cuidado e propõe uma análise do impacto causado pelo Programa de Enfermagem proposto pela Fundação Rockefeller ao Ministério da Educação e Saúde (MES) através do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP) na formação e orientação profissional pós-1930. Em outras palavras, trata-se de observar a paisagem ampla de mudanças estruturais nas instituições de saúde que se estende ao contexto posterior àquele indicado pela historiografia oficial como “origem” ou “raiz” da profissionalização na área da saúde, vale dizer, a Reforma Sanitária de 1920, e avança para um movimento que redimensiona formação e orientação profissional na Era Vargas (1930-1945). Com essa base, intentamos dimensionar interesses governamentais como parte de um longo processo de valorização do exercício profissional em saúde, da profissionalização de mulheres, de sua inclusão no ambiente acadêmico e institucional durante o Estado Novo.

A ampliação dos serviços de saúde pública, ao evocar o processo de modernização do país, tornou-se uma condição irrecorrível para dimensionar o lugar histórico, social e profissional das mulheres. No caso desse artigo, observamos a formação de um grande contingente de trabalhadoras agregadas ao universo profissional da enfermagem, sobretudo, no que tange à compreensão da profissão como adequada às mulheres e ao caráter imperioso assumido pela profissão na manutenção da saúde global. O período analisado foi atingido por circunstâncias históricas específicas que transformaram o perfil profissional e elevaram o status da arte e da ciência do cuidado no Brasil, marcado pelos acordos bilaterais com os Estados Unidos intermediados pela Fundação Rockefeller (MOTT; SANGLARD, 2011; MOTA; MARINHO; CAMPOS, 2015; SOUZA CAMPOS, OGUISSO, 2013).

Ainda que as bases teóricas da Enfermagem tenham desenvolvido o conceito de “enfermagem transcultural” (LEININGUER; MACFARLAND, 1993) - indicando que processos históricos, antropológicos, políticos, econômicos e sociais impactam na ação do cuidar/cuidado, prática e teoricamente - consideramos que o saber-fazer do enfermeiro, ainda hoje, é fortemente atrelado à formação técnica, ou seja, compreendido como auxiliar à ação médica. Esse impacto é redimensionado em relação à imagem que a profissão mantém com o gênero feminino, pois divulgada como apropriada para mulheres, desqualificando-as duplamente ao acenar para estruturas sociais de longa duração, que exaltam o masculino em detrimento de experiências vividas femininamente. O “ser enfermeira”, vinculado à “natureza” das mulheres, feminiza o cuidado (SILES-GONZALES, 1999, p. 307; HALLAN, 2000, p. 133).

O artigo propõe uma análise histórica do Programa de Enfermagem que emerge de políticas públicas de educação em saúde implementadas pelo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), mantido pela Fundação Rockefeller anexo ao Ministério da Educação e Saúde (MES), em decorrência de acordos bilaterais entre Brasil e Estados Unidos durante o Estado Novo (1937-1945). O ano de instalação do Programa tem como marco a construção da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), iniciada em 1940. O SESP, ao construir o prédio da EEUSP possibilita a emergência do espaço no qual se desenvolve o Programa na medida em que tecnicamente construído e planejado à formação e à renovação do campo profissional, como centro irradiador das mudanças em curso. Não por acaso, vinculada ao Hospital de Clínicas e anexa à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a escola se torna o epicentro do movimento associativo, que migra do Rio de Janeiro para São Paulo, assim como da divulgação acadêmica, redimensionada pelo corpo docente da EEUSP, que manteve como Consultora a principal enfermeira americana, Ella Hansenjaeger, nursing advisor que assina os relatórios periodicamente encaminhados aos Estados Unidos, os quais fundamentam a presente análise. A base material remonta ao conjunto documental caracterizado como Fundo SP - Saúde Pública, disponibilizado pelo Departamento de Arquivo e Documentação (DAD), da Biblioteca de História das Ciências e da Saúde, da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC-FIOCRUZ), Rio de Janeiro. Assim, ao destacar a formação profissional em Enfermagem pós-1930, o artigo evoca a educação profissional feminina, o lugar das mulheres no campo considerado prioritário na agenda universal em saúde - ontem e hoje.

Mulheres e espaço público: o acesso feminino à educação

Desde meados do século XIX, despontaram no Brasil figuras de destaque que reivindicavam uma maior participação das mulheres no espaço público. A luta pelos direitos das mulheres recrudesceu no contexto de instalação do regime republicano em 1889 e adentrou o século XX, quando, enfim, as mulheres conquistaram o direito de voto assegurado legalmente em 1932. Conforme aponta June Hahner (2003), ainda que paulatinamente muitas conquistas foram efetivadas, alguns marcos foram especialmente significativos nessa história, tais como a criação de Escolas Normais para o público feminino, a partir de 1835, e a criação de cursos específicos às mulheres da classe trabalhadora, no Liceu de Artes de Ofícios do Rio de Janeiro, em 1881.

Quanto à instrução superior, frise-se que, tradicionalmente, o “bacharelismo” deveria servir para preparar rapazes das classes favorecidas para profissões de prestígio, especialmente por meio dos cursos de Direito e Medicina. Foi apenas em 1879, com a lei de reforma educacional, que mulheres passaram a ser admitidas nas faculdades brasileiras. No entanto, a primeira matrícula feminina só se efetivou dois anos depois, portanto em 1881, no mesmo ano em que as duas primeiras médicas brasileiras se formaram nos Estados Unidos. O desempenho dessas pioneiras - Maria Augusta Estrela e de Josefa de Oliveira - suscitou o debate público sobre o acesso das mulheres ao ensino superior no país, permitindo que Rita Lobato se tornasse a primeira mulher a receber o diploma de medicina no Brasil, pela Escola de Medicina da Bahia, em 1887 (HAHNER, 2003, p.149). A partir de 1880, as meninas foram admitidas, não sem contestações, no Colégio Pedro II, escola secundária de prestígio no período imperial e que servia de modelo para as demais escolas secundárias existentes. De fato, apenas em 1907, duas jovens concluíram o curso secundário nesse prestigioso colégio. No mais, a educação secundária feminina se fazia quase que exclusivamente em colégios confessionais, católicos ou protestantes.

Certamente o acesso feminino à educação, mesmo garantido pela legislação, não significou a plena aceitação das mulheres da elite que ousavam atuar em áreas até então genuinamente masculinas. Um bom exemplo é que às vésperas da Lei de 1879 que garantiu a admissão das mulheres no ensino superior, discutiu-se na Assembleia Provincial de Pernambuco a capacidade intelectual das mulheres. Malaquias Gonçalves, conhecido cirurgião, afirmou que a fraqueza física e o cérebro anatomicamente inferior das mulheres lhes impediam o entendimento abstrato, os estudos sérios e o ingresso em profissões como a medicina (HAHNER, 2003, p.141).

No limiar do século XX, as líderes feministas brasileiras enfrentaram desafios de diversos matizes: contestar a ordem estabelecida era refutar posições patriarcais de gênero, rígidas e bastante enraizadas. Nesse sentido, discursos político-institucionais buscavam “limitar as mulheres nas suas ações, desejos e emoções, naturalizando determinações históricas e socialmente estabelecidas” (SOIHET, 2006, p.26-27). Tendo como foco principal a trajetória e atuação de Bertha Lutz na conquista pelo sufrágio universal, Rachel Soihet (2006) mostra o longo e tortuoso caminho percorrido pelas mulheres envolvidas no processo que culminou com a conquista do direito de voto em 1932. A autora refere-se ao “feminismo tático” no que tange à atuação de Bertha Lutz, a principal representante do movimento sufragista brasileiro, no sentido de uma adequação das reivindicações dessas mulheres ao contexto, do não-enfrentamento direto, assimilando as rígidas noções do período: não atacando a instituição familiar como espaço de opressão feminina, por exemplo, como uma tática para serem ouvidos os seus anseios, algo muito próximo das ações femininas de liderança do Programa de Enfermagem, tanto em relação à condução local, realizada por enfermeiras brasileiras, quanto à consultoria indicada pela Fundação Rockefeller, cargo ocupado por Ella Hansenjaeger, a principal consultora do Programa de Enfermagem (SOUZA CAMPOS, 2015, p. 76)

A atuação de Bertha Lutz deu-se principalmente através da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), fundada em 1922. O debate sobre a participação das mulheres no espaço público mobilizou ativistas e o trabalho contínuo do movimento feminino em torno da FBPF que resultaria, na década seguinte, na extensão do voto às mulheres. Para a historiadora Branca Moreira Alves (1980, p.14), “as reivindicações deste grupo encaixavam-se no pensamento liberal burguês, considerando o sufrágio instrumento básico de legitimação de poder político e concentrando a luta no nível jurídico-institucional da sociedade”.

Entretanto, sob influência da ideologia da classe e do sexo dominantes, a atuação do movimento teve limites específicos, não propondo mudanças no funcionamento do sistema em suas relações de classe e de sexo, por exemplo (ALVES, 1980). Tal assertiva parece relativa se considerarmos que, naquele momento, o sufrágio universal era a principal bandeira de reivindicações das ativistas, ainda que não a única. Na medida em que o movimento ou feminismo tático, conhecido como a primeira onda feminista, reivindicava, além do sufrágio, o direito ao trabalho feminino e a igualdade civil entre homens e mulheres, estabelecia inevitavelmente mudanças nas relações entre os sexos, cuja distinção se amplia se tratada nas dimensões de raça e classe (COSTA, 1979; MOREIRA, 1999; GONZÁLES, 2019).

As ações lideradas por Bertha Lutz foram cruciais na medida em que, atuando em várias frentes - participação em jornais, colaborando em revistas, fundando associações femininas, organizando manifestações, pressionando membros do congresso e recebendo apoio de juristas - e contribuindo para a formação, durante as primeiras décadas do século XX, de um panorama constante e favorável junto à opinião pública, além de uma rede de apoio político e institucional que fizeram as mulheres vitoriosas na conquista do sufrágio universal. A emancipação feminina e a conquista da cidadania, exercida através do voto, enfim, a igualdade de direitos, foram bandeiras políticas importantes, que se esboçaram no cenário de reivindicações dos movimentos de mulheres no decorrer do século XX. Tais pautas foram somadas à da profissionalização como maneira para acesso aos cargos diretivos com poder de decisão.

Edith de Magalhães Fraenkel, primeira brasileira diplomada enfermeira nos Estados Unidos, nomeada diretora da nova escola de enfermagem de São Paulo, envolveu-se intensamente na campanha pelo voto feminino ao lado de Bertha Lutz (MANCIA; PADILHA, 2006, p.434). Tal aspecto sinaliza que o movimento encetado por enfermeiras brasileiras não estava distante ou em desalinho no que concerne às lutas femininas em prol da emancipação das mulheres no Brasil, vale dizer, ao feminismo tático. Ao contrário, a presente proposta, a partir de estudos anteriores, avalia que a Enfermagem na Era Vargas, redimensionada pelo SESP, propiciou mobilização social às mulheres e reconfiguração da identidade profissional, da formação de seu contingente, da importância que o saber confere ao desenvolvimento social - prenunciando à noção corrente de saúde global - ampliando a atuação política das mulheres, inclusive as negras (SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2013, p. 157). Recrutar e profissionalizar trabalhadores para o exercício profissional da enfermagem ampliou a inserção das mulheres no espaço público, especialmente com as novas dimensões da institucionalização e profissionalização do cuidado que o Estado Novo propiciou.

Os movimentos intelectuais desde o Império valorizavam, comumente, a ciência para o progresso criando uma nova categoria social: o cientista. Houve no fim do século XIX uma diversificação dos estudos científicos nas instituições brasileiras especialmente através do processo de especialização pelo qual passavam as escolas de medicina e engenharia (SÁ, 2006; DANTES, 2001). Como a historiografia das ciências brasileira tem mostrado, a produção científica no início do século XX era resultado da valorização de um novo conhecimento mais específico em detrimento da retórica ou de um antigo saber de caráter enciclopédico. Em meio ao processo de especialização, surgiram uma série de instituições públicas e privadas de ciências acompanhadas de revistas, museus, publicações, academias e associações profissionais correspondendo à fase de institucionalização da atividade científica (SÁ, 2006; p. 147).

Tal institucionalização consolida-se com a criação das primeiras universidades na década de 1930 ainda que, como indica Lima (1999), a atividade científica no Brasil já se realizava em meio aos institutos e academias, antecedendo, portanto, à criação das universidades. As ciências biomédicas têm um protagonismo destacado nessa história, médicos-cientistas assumiam crescentemente o paradigma microbiológico pasteuriano e respaldavam de autoridade instituições. Destaque para o Instituto Soroterápico Federal, que em 1908 passaria a chamar-se Instituto Oswaldo Cruz (IOC). A partir do trabalho de Oswaldo Cruz e associados, médicos, filantropos, políticos e sanitaristas ganharam notabilidade em meio aos primeiros anos republicanos problematizando a saúde da nação brasileira e os meios existentes para a intervenção que a ciência médica poderia propor - a exemplo do que ocorria em São Paulo, nominada como cidade-laboratório (MOTA; MARINHO; CAMPOS, 2001, p. 14)

Com base nas leis e decretos promulgados, periódicos e relatórios médicos do período, é possível observar barganhas, negociações e debates sobre a situação da saúde no país, destacando a institucionalização de políticas e diretrizes em âmbito nacional como uma significativa expansão da ação do Estado brasileiro (HOCHMAN, 1998, p. 17). A saúde realizou uma inédita penetração de poder no interior e o movimento pró-saneamento dos sertões, apoiado pelas elites políticas, constituiu parte da materialidade do desenvolvimento do Estado. O papel dos atores sociais e os rumos das suas decisões relacionam-se ainda com a dinâmica federativa das políticas de saúde existentes à época, observando que os poderes locais estabeleceram pactos diferenciados com a União. No caso, intermediados pela Fundação Rockefeller.

Saúde pública e formação profissional feminina pós-1930

A defesa da ocupação do território e a modernização do país sustentavam a política de Getúlio Vargas (1930-1945) e o movimento pelo saneamento denota um primeiro ciclo de estatização da política de saúde no Brasil Republicano. Em um primeiro estágio, marcado pela ordem estabelecida em 1891, instaurou-se uma espécie de poder coercitivo da autoridade sanitária. O segundo estágio (1910-1930) significaria uma continuidade nos acúmulos despóticos do Estado, mas nesse momento combinados com um aumento do poder infraestrutural, principalmente a partir da década de 1920 (HOCHMAN, 1998). A interdependência social ajuda a compreender a dinâmica das relações estabelecidas entre os indivíduos daquela sociedade. Observando as instituições e as decisões tomadas no período, percebe-se a forma que as políticas sociais adquiriram na formação da rotina de saúde pública nas sociedades e estados capitalistas modernos (MUNIZ, 2013). Essa interdependência era reconhecida e defendida pelas propostas dos sanitaristas e pelas lutas políticas que tentavam convencer o poder público da importância de combater as “doenças que se pegam”, destacando o perigo que elas representariam para toda a sociedade (HOCHMAN, 1998, p. 42).

Ao longo das décadas de 1930 e 1940 o tema das endemias rurais permaneceu na agenda da saúde pública brasileira. Através da ação dos Serviços Nacionais (agências especiais focadas na ação contra determinadas doenças) e MES as doenças do interior foram pesquisadas, denunciadas e classificadas no país. As políticas de saúde no período do primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) caracterizaram-se pela criação de um novo aparato estatal para sua gestão. Um aspecto marcante das políticas de saúde pública pós-1930 foi justamente o fortalecimento do poder público que possibilitou o incremento das atividades de combate às endemias (FONSECA, 2007).

A historiografia sobre a saúde pública no período observou que esse novo aparato gerou um aumento da atenção dispensada a algumas das endemias rurais no Brasil (FONSECA, 2007; HOCHMAN; FONSECA, 2000; BRAGA; PAULA, 2006; CAMPOS, 2006). O papel da saúde na mudança de vida das populações rurais fez parte do projeto político-ideológico do Estado brasileiro pós-1930. Assim, a criação de burocracia pública e de instituições duradouras e permanentes que se encarregavam da administração da saúde simbolizou esse outro momento de institucionalização vivido nos anos 1930 e 1940 (FONSECA, 2007).

A execução do Programa de Enfermagem do SESP evoca essa historicidade. Os registros desse processo trazem à tona o novo espaço social construído para a formação profissional, notadamente a Escola de Enfermagem da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, instituição que abriga o novo modelo de ensino proposto e construído como propagador da enfermagem em novas dimensões para todo o Brasil. Sem desconsiderar as relações oblíquas encetadas pela política de Getúlio Vargas durante o Estado Novo (1937-1945), o Programa, ao evocar mulheres como prerrogativa de formação de um novo contingente de trabalhadores da saúde em âmbito nacional, de instrução de quadros profissionalizantes para o desenvolvimento de ações de saúde como fator de primazia na condução da nova ordem política e social brasileira pós-1930, desvela um processo de mudança radical na experiência feminina no Brasil.

Como apontado, a história da saúde nesse contexto apresenta como um dos principais acontecimentos a ampliação dos serviços de saúde pública existentes. O enfrentamento da questão implicava redimensionar o exercício profissional “da enfermeira”, pois estava limitado aos grandes centros urbanos, organizado a partir de um contingente reduzido, elitizado e ilustrado pela narrativa construída em torno do espaço formador por excelência da enfermagem brasileira no início da década de 1920, cujas prerrogativas conflitavam com a política populista que se instaurava, inclusive, como parte das mudanças do status profissional em curso (BARREIRA, 1997; SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2013).

A emergência populista e intervencionista de Getúlio Vargas, presidente da República, impunha novas diretrizes ao desenvolvimento social do Brasil ao promover políticas públicas que incluíssem grupos diferenciados no mundo do trabalho urbano. A especial atenção para os trabalhadores da enfermagem se dava pela capacidade de inserção da parcela feminina na esfera do trabalho, questão de peso no que se refere à instauração de um novo padrão de relacionamento político entre elites dominantes e classes subalternas, historicamente pautadas na opressão e no descaso. Ocupações criadas a partir da fundação e ampliação de instituições públicas como hospitais, postos de saúde e programas de saúde, urbana e rural, exigiam formação em grande quantidade de trabalhadores preparados para a atuação na rede pública de assistência médico-hospitalar, campo propício e capaz de responder às demandas das mulheres, então eleitoras.

A inclusão de mulheres no trabalho urbano favorecia potencialmente aos propósitos encetados pelo “pai dos pobres”. Abrir possibilidades para o gênero em um campo profissional considerado socialmente adequado ao universo feminino referendava o discurso da positividade do trabalho/trabalhador, cujas ações incidiriam na saúde das populações e as projetavam socialmente como emancipadas, tal como propunha o sufrágio universal reconhecido em 1932. Os resultados esperados produziriam não somente visibilidade ao estadista, mas legitimariam a proposta de governo voltada para as massas, do mesmo modo, fortaleceriam o ideal nacionalista de desenvolvimento e proteção social em período sintomaticamente recoberto pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Não por acaso, a política de massas e o estilo de governo de Getúlio Vargas reverberavam nas ações de Darcy Vargas, que inaugurou o primeiro-damismo no Brasil, sobretudo, ao fundar a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Como assinala Ivana Simili, “formar um front interno composto por mulheres dispostas a trabalhar pela vitória do país foi um dos eixos da mobilização desencadeada por Vargas” (2008, p. 135).

Um aspecto importante para nossa análise é observar a inovação inicial trazida com as alterações nas estruturas de atenção à saúde a partir da década de 1930. Com o fim da Primeira República, pode-se identificar a formação de uma política de maior pretensão nacional, estando dividida em dois setores: a saúde pública mais geral; e a medicina previdenciária (BRAGA; PAULA, 2006, p. 52). Anos mais tarde, a análise do modelo inaugurado no primeiro governo Vargas indicaria o papel do governo central logo após o fim da Primeira República e como o mesmo minimizou o problema do “excesso de federalismo”. A nova estrutura não representou, no entanto, uma completa ruptura nem sequer grande distinção entre práticas e ideias do período pré-1930, houve apenas uma maior ação centralizada em nível federal. Segundo Fonseca (2007), as iniciativas de saneamento e outras já existentes não teriam sido interrompidas, tendo somente sofrido acréscimo de algumas instituições que buscaram centralizar e normatizar as ações da administração (FONSECA, 2007, p. 20).

As responsabilidades pela saúde pública ficaram divididas entre o MES e o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), o que levou a área de saúde a uma nova relação de poder entre a esfera federal e os governos locais. Iniciava-se outro estágio do processo de nacionalização da saúde pública no Brasil, com a maior tentativa por parte do Estado de controlar as doenças ao longo do território. Nesse período, importante reforma foi empreendida pelo ministro da educação e saúde pública Gustavo Capanema, onde em uma primeira etapa, em 1937, definiu-se o papel centralizador da política de saúde do governo Getúlio Vargas; e em 1941, dando sequência às mudanças, foram criados os Serviços Nacionais de controle às grandes endemias rurais e a outras doenças (CASTRO SANTOS, 1985). É importante destacar que essas medidas, ao mesmo tempo em que foram centralizadoras, dialogaram com uma série de ideias em debate em eventos acadêmicos nacionais e internacionais, como as conferências panamericanas de saúde, tendo convivido com os primeiros consórcios com agências e instituições estadunidenses (FONSECA, 2007).

A enfermagem marcou posição de destaque no conjunto das mudanças processadas na medida em que o progresso requerido incluía o bem-estar social do povo brasileiro. O estatuto assumido pela enfermagem redirecionou serviços realizados por visitadoras e educadoras sanitárias, ampliou o campo da atuação profissional no serviço público, especialmente em instituições criadas e mantidas pelo governo. As novas perspectivas no âmbito da clínica médica, da administração pública ou programas governamentais redimensionavam as representações, práticas e apropriações da enfermagem tanto em relação à visibilidade social, quanto à necessidade de trabalhadores na área.

Fortalecida pela possibilidade de inserção de um número significativo de mulheres nas ocupações criadas pelo serviço público, a reconfiguração da enfermagem brasileira transformava o discurso político em prática. Ampliação de hospitais e de redes assistenciais de saúde mantidas pelo governo resultaram em aumento potencial de número de leitos, acompanhadas por mudanças tecnológicas e renovação de infraestrutura médico-hospitalar fundadas na importação de aparelhos, medicamentos e outros produtos da indústria norte-americana. Noções de higiene e saúde foram alinhadas ao discurso patriótico e nacionalista propícios ao momento histórico vivido (COSTA, 1985).

Além disso, ganhava campo a expansão de um viés mais pedagógico no exercício das políticas de saúde em detrimento de práticas mais coercitivas que tinham, por exemplo, na figura do guarda sanitário um dos seus emblemas. Ou seja, os ensinamentos de saúde exercidos no lar através de lições de higiene e visitas domiciliares passavam a ocupar a agenda do Estado e, nesse processo, a atuação de mulheres profissionais de saúde foi essencial (MUNIZ, 2014). Lina Faria (2006) argumenta que esse processo limitava a participação de mulheres a algumas profissões específicas, porém, no caso da enfermagem, ele também contribuiu para inclusão das mulheres no mercado de trabalho formal e para organização de uma carreira profissional que logo se estabeleceria de maneira independente, com suas próprias demandas e sindicalização autônoma.

Neste contexto histórico a saúde deveria alterar comportamentos e práticas cotidianas em associação direta com as noções de ordem e progresso, valores que levariam o país ao civilismo e à modernidade reverberada pela política de boa vizinhança. Getúlio Vargas se beneficiava dos acordos estabelecidos para promover ajustes políticos e militares durante o Estado Novo, pois o imaginário da guerra representava a enfermagem como ação patriótica, nacionalista, benfazeja, similar ao reverberado pelo americanismo no qual a modernidade requerida se espelhava (SEITENFUS, 2003; ALVES, 2002). O fortalecimento de uma rede médico-assistencial para o caso de invasão ou proverbial conflito beligerante impunha a manutenção de um exército de trabalhadores preparados para a atuação no front interno como reitera Ronei Cytrynovicz (2002, p. 233).

Deste modo, é possível considerar que o american way of life rompeu o antigo padrão de referência social (TOTA, 2000). O controle sobre as classes subalternas via legislação trabalhista e estrutura sindical, atrelados ao Estado autoritário, redimensionava o serviço público com a criação de novos cargos, os quais foram assumidos por uma elite tecnoburocrata cooptada pelo inchamento do aparato administrativo (PESAVENTO, 1994). Assim, é importante considerar que os baixos índices de alfabetização no Brasil durante as primeiras décadas do século XX, a formação de novo contingente de trabalhadores, a qualificação dos serviços de saúde existentes e a formação de um quadro permanente de servidores públicos (que suprissem a demanda nacional), geravam condições singulares para o sucesso da política varguista.

Tal programa amparava as classes subalternas ao inseri-las na vida social a partir da inclusão nas frentes de trabalho criadas pelo Estado, que assim poderia controlá-las. Francisco Weffort (1978) analisa a política brasileira do período como produto de um longo processo de transformação social, instaurado a partir da chamada Revolução de 1930 e manifestado de dupla forma, vale dizer, como estilo de governo e política de massas, posicionamento reiterado por Ângela de Casto Gomes (1996). A conjuntura política vivida no Estado Novo estreitava interesses comuns que uniam formação profissional e modelo norte-americano de vida e trabalho. A inserção das massas no mundo do trabalho, através da enfermagem, referendava a política de boa vizinhança estabelecida entre Brasil e Estados Unidos, pois valores estadunidenses de saúde e trabalho seriam disseminados em território nacional por intermédio de programas governamentais, intercâmbio de pessoas e entrada massiva de produtos farmacêuticos e médico-hospitalares importados dos Estados Unidos (ANTUNES, 1991; RIBEIRO, 1993; PORTER, 2004; MOTA; MARINHO, 2011).

Um dos aspectos cruciais para a ancoragem da enfermagem no discurso político era a recriação das representações existentes, ou seja, era necessário operar uma desconstrução do capital simbólico forjado na década de 1920 para a profissão e sua principal personagem, a enfermeira, fortemente arraigado no imaginário social. A proposta encetada pela Fundação Rockefeller de realinhamento da formação profissional chancelava poderes governamentais na medida em que o antigo modelo de profissionalização cerceava a inclusão de mulheres negras em escolas de enfermagem e impedia a inserção de homens na profissão, algo diametralmente oposto à política varguista.

Programa de Enfermagem: as novas dimensões da profissão

No Estado Novo, os acordos bilaterais firmados entre Brasil e Estados Unidos incluíam melhoria da qualidade de saúde das populações. Programas de saneamento e assistência derivados desse processo exigiam, ao mesmo tempo, formação de um contingente profissional capacitado para gerenciar problemas existentes, tanto na assistência direta quanto na administração dos serviços de saúde como coletas, exames, formação profissional e auxiliar, técnica, em todo o território nacional. A demanda gerada pela ampliação da assistência médica tornava factível a inclusão de um número significativo de trabalhadores no mundo do trabalho urbano, o que favorecia a manutenção política e o fortalecimento da imagem de liderança de Getúlio Vargas (LEVINE, 2001).

O Programa de Enfermagem pautava-se no efeito demonstração (CASTRO SANTOS. FARIA, 2010), vale dizer, replicação do modelo de formação e assistência em saúde a partir de um núcleo irradiador que, como destacado, emerge de São Paulo, deste modo, atingindo diferentes regiões do país, fortalecendo o processo de construção das políticas públicas de saúde provocadas pela aliança Brasil-Estados Unidos. A proposta visava ampliar o número dos trabalhadores da enfermagem, diminuto no contexto histórico em análise, assim como perceber dinâmicas regionais e diversidade social do brasileiro para, desse modo, criar redes de serviço médico-assistenciais capazes de qualificar o novo profissional a replicar conhecimentos adquiridos nas diferentes e longínquas regiões do Brasil, destacadamente, São Paulo (SOUZA CAMPOS; CARRIJO; CAMPOI, 2020).

Para que o Programa de Enfermagem atingisse os objetivos esperados, era necessário formar profissionais oriundos dos mais distantes estados brasileiros. Conhecedores das dificuldades sociais enfrentadas pelas populações de seus locais de origem, profissionais de todas as regiões do país poderiam ser capazes de disseminar novas técnicas a serem administradas em conformidade com as realidades locais, como o que foi preconizado no Amazon Program. Ou seja, a mudança em operação diversificava a origem social das enfermeiras não mais fundada na elitização anteriormente estabelecida, nesse sentido, considerada politicamente ultrapassada e restritiva (SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2013).

A história da enfermagem revela que as poucas profissionais existentes, basicamente mulheres, eram rapidamente absorvidas por hospitais de grandes centros urbanos ou escolas de formação profissional e auxiliar como professoras, consultoras, orientadoras em cursos de curta duração que proliferavam em decorrência da Segunda Guerra Mundial. A realidade reverberava a formação de um novo corpo de trabalhadores, tal como propunha a política varguista no Estado Novo, em específico, por considerar a nova sociedade que emergia como “uma coleção de grupos diferenciados e organizados hierarquicamente segundo o papel produtivo ou econômico que desempenhavam” (LEVINE, 2001, p. 51).

A elitização da enfermagem nacional - proposta na década de 1920 como reinvenção de tradições nativas contrárias ao modelo preconizado como ideal - se opunha à política nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio Vargas. Ao redimensionar a realidade sócio sanitária em diferentes regiões do Brasil, com especial atenção às regiões norte e nordeste, o Programa de Enfermagem possibilitava a criação de novas frentes de atuação no mundo do trabalho, no caso, potencialmente na esfera do serviço público, pois ao imprimir caráter de urgência à qualificação de trabalhadores da saúde, o SESP propiciou que novas frentes de trabalho fossem abertas, cuja apropriação traduzia a visibilidade social do estadista. As leis sociais de amparo e assistência, que reordenavam a vida pública durante o Estado Novo, respondiam às demandas expressas nas reivindicações de organizações políticas, sindicalistas e mutualistas, elevando sobremaneira os ideais populistas de Getúlio Vargas (LEVINE, 2001). Deste modo, é possível questionar: como as mulheres que fizeram parte desse processo se apropriaram das mudanças que redimensionaram a enfermagem e o lugar da mulher na vida pública como professoras universitárias, cientistas, diretoras de unidades com atribuição específica dentro da organização do Estado, agentes públicas que dirigiram e compuseram órgãos voltados para o cumprimento de uma atividade estatal?

Estabelecido para ser uma agência temporária de guerra, o SESP existiu durante 48 anos e teve como prioridade a atenção à saúde pública, em especial, a formação e qualificação profissional de médicos, engenheiros e enfermeiros. Políticas públicas de saúde foram empreendidas junto às populações do interior do Brasil com o objetivo precípuo de combater endemias no chamado sertão brasileiro, construir redes de unidades sanitárias e outros equipamentos de assistência médica em regiões distantes dos grandes centros urbanos. Não por acaso, em espaços sociais nos quais os norte-americanos mantinham bases aéreas como os estados da Bahia e do Pará. Para tanto, acordos previam a criação de escolas de enfermagem, hospitais e centros de saúde, auxílio financeiro às escolas existentes, fomento de estudos pós-graduados no Brasil, Estados Unidos e Canadá, aprendizado da língua inglesa e manutenção de consultoras da Fundação Rockefeller nos principais núcleos de formação profissional existentes.

Além de implantar sistemas de água e esgoto, o SESP estabeleceu convênios com estados e municípios para construir, normatizar e expandir benefícios da saúde pública, conferindo ao movimento o pioneirismo das políticas públicas do Brasil republicano no que concerne a todo o Estado brasileiro, não obstante, como sugerido, abriu frentes de trabalho na administração pública a profissionais da saúde e uma plêiade de técnicos e auxiliares. Como parte de suas atividades, normatizou procedimentos, contratou e expandiu uma burocracia importante para a organização dos serviços de saúde e formação de mão de obra qualificada em educação sanitária como previsto na agenda panamericana de saúde estabelecida na era Vargas (COSTA, 1985; CAMPOS, 2006).

A presença de consultoras norte-americanas em diferentes espaços educacionais objetivava alinhar a nova orientação profissional e proporcionar a instauração das novas dimensões da enfermagem brasileira, como ocorreu com Ella Hansenjaeguer, a principal delas, designada pela Fundação Rockefeller para, em parceria com Edith de Magalhães Fraenkel, Maria Rosa Sousa Pinheiro, Glete de Alcântara, Clarice Ferrarini, entre outras, redimensionar antigas bases da educação profissional em enfermagem no Brasil (SANNA, 2003; ROCHA, 2005; SOUZA CAMPOS, 2015).

A proposta encetada pelo Programa de Enfermagem contemplava pretendentes à carreira de enfermagem com bolsas de estudo, cujo termo de outorga conferia auxílios necessários à formação profissional, manutenção pessoal e acadêmica, passagens de ida e volta às que não residissem nas localidades das escolas apoiadas pelo SESP, entre outros benefícios exigidos pelos deslocamentos de bolsistas provenientes das diversas regiões do Brasil. Em contrapartida, exigia-se prestação de serviços por, no mínimo, dois anos nos locais de origem de cada bolsista. Desse modo, seriam formadas equipes organizadas para serviços de saúde, monitoramento de programas governamentais e administração de clínicas, hospitais e centros de saúde, ao mesmo tempo, replicação de conhecimentos adquiridos em centros formadores apoiados pelo SESP; estratégia fundada no princípio administrativo da assistência de enfermagem americana (CASTRO SANTOS; FARIA, 2010; SOUZA CAMPOS; OGUISSO, 2013).

A manutenção de bolsistas legitimava investimentos no campo ao inserir um novo contingente no mercado de trabalho e reconfigurar serviços de assistência à saúde, em específico, às populações que viviam em regiões do interior do Brasil. O efeito demonstração, originalmente proposto pela Fundação Rockefeller, orientava a nova formação profissional, cujos incentivos fundavam e mantinham espaços educacionais voltados para a finalidade proposta. Desse processo, a Escola de Enfermagem de São Paulo emerge como o núcleo irradiador da enfermagem para o Brasil (CARVALHO, 1980).

Diante desse quadro, a nova configuração da enfermagem profissional se coaduna com a política do Estado Novo. A carta constitucional de 1937, que conferiu ao Presidente da República poderes para nomear interventores nos Estados e governar através de decretos-lei, centralizava decisões e execuções dos mais diferentes interesses político-governamentais nas mãos do presidente. Assumidas como ordens de Estado, no caso, como promotora da saúde pública, a reforma administrativa, no que concerne aos interesses deste estudo, instituiu, sob direção do MES, o Departamento Nacional de Saúde (DNS) e outros órgãos executivos de ação direta em substituição ao antigo Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), criado por Carlos Chagas na década de 1920 (OGUISSO; SCHMIDT, 2010). Como resultado, a formação em enfermagem rompia definitivamente com o antigo modelo de educação e orientação profissional.

Considerações finais

A formação de políticas públicas voltadas para a saúde durante o Estado Novo incide sobre o desenvolvimento da ciência no Brasil. O processo histórico de saúde global lança luzes sobre a importância capital do Programa de Enfermagem como movimento que incorpora significativamente as mulheres no mundo do trabalho e que atribui ao gênero poder de decisão, comando e liderança em relação à formação de um contingente de trabalhadores públicos em todas as regiões do país. A nova formação redimensionou a saúde pública e ampliou o status da enfermagem, significativamente representada por mulheres.

Nesse processo, a americanização implantou novo padrão de ensino à enfermagem no Brasil, redimensionou a identidade profissional, redefiniu bases curriculares e permitiu que homens e mulheres negras ocupassem novos lugares sociais ao inserir novas disciplinas no histórico escolar que não constavam no antigo padrão, ao redimensionar o lugar da enfermagem no mundo social, institucional e acadêmico.

A perspectiva de uma nova enfermagem para o Brasil criou ambiente propício à efetividade do discurso nacionalista e desenvolvimentista mantido pelo Estado Novo. Nesse processo, a Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo assumiu lugar de destaque, tendo sido construída para essa finalidade, pelo SESP. Assim, a profissionalização do cuidado, como prioridade no governo de Getúlio Vargas, se revela singular para a construção de espaços propostos para e por mulheres, ao mesmo tempo, traduz o exercício profissional da enfermagem como fundamental à saúde global, pois as doenças não conhecem fronteiras.

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Recebido: 30 de Maio de 2022; Aceito: 09 de Agosto de 2022

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