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Cadernos de História da Educação

versão On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-182 

Artigos

Trajetórias, intelectuais e a Antropologia no Brasil: Oswaldo Rodrigues Cabral e Sílvio Coelho dos Santos

Trayectorias, intelectuales y Antropologia en Brasil: Oswaldo Rodrigues Cabral y Sílvio Coelho dos Santos

Solange Aparecida de Oliveira Hoeller1 
http://orcid.org/0000-0003-3580-8440; lattes: 6507966351170581

Marilândes Mól Ribeiro de Melo2 
http://orcid.org/0000-0001-7970-1480; lattes: 7641170265582884

Maria das Dores Daros3 
http://orcid.org/0000-0003-3473-3096; lattes: 9237134434652070

1Instituto Federal Catarinense (Brasil). solange.hoeller@ifc.edu.br

2Instituto Federal Catarinense (Brasil). marilandes.melo@ifc.edu.br

3Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil). m.daros@ufsc.br


Resumo

Este texto objetiva compreender a institucionalização da antropologia no Brasil, por meio das trajetórias de dois intelectuais catarinenses: Oswaldo Rodrigues Cabral e Silvio Coelho dos Santos. A narrativa se desenvolve a partir das seguintes questões: Como se constituíram as trajetórias, quais aproximações e distanciamentos entre eles? Em que medida as suas ações no campo educacional, podem ser avaliadas como fatores de projeção para a institucionalização da antropologia, enquanto área específica? Em que proporção estes intelectuais podem ser tomados como produtores de capital simbólico, por meio do que propuseram e instituíram e que tensões derivaram disto? O percurso teórico-metodológico mobilizou os conceitos de trajetória, campo e capital na perspectiva de Pierre Bourdieu, compreendendo que as trajetórias são resultantes de um sistema de traços que pertencem a uma biografia individual ou de um grupo de biografias, objetivadas pelas relações que se estabelecem entre os agentes e as forças próprias dos campos.

Palavras-chave: Antropologia; Intelectuais; Trajetórias

Resumen

Este texto tiene por objetivo comprender la institucionalización de la antropología en Brasil, a través de las trayectorias de dos intelectuales oriundos de Santa Catarina: Oswaldo Rodrigues Cabral y Sílvio Coelho dos Santos. La narrativa se desarrolla a partir de las siguientes questiones: ¿Cómo se constituyeron las trayectorias de dichos intelectuales? ¿Cuáles fueron los acercamientos y distanciamientos entre ellos? ¿En qué medida podemos valorar sus acciones en el campo educacional como factores de proyección para la institucionalización de la antropología como área específica? ¿En qué medida podemos considerarlos productores de capital simbólico? ¿Cuáles tensiones derivaron de esto? El recorrido teórico-metodológico movilizó los conceptos de trayectoria, campo y capital, según la perspectiva de Pierre Bourdieu, entendiendo que las trayectorias resultan de un sistema de rasgos que pertenecen a una biografía individual o a un grupo de biografías, concretadas por las relaciones que se establecen entre los agentes y las fuerzas propias de los campos.

Palabra clave: Antropología; Intelectuales; Trayectorias

Abstract

The objective of this text is to understand the institutionalization of anthropology in Brazil, through the trajectories of two Santa Catarina intellectuals: Oswaldo Rodrigues Cabral and Silvio Coelho dos Santos. The narrative is developed in response to the following questions: How were the trajectories established, what are the approximations and distances between then? To what degree can their actions in the field of education be evaluated as factors of projection for the institutionalization of anthropology? To what degree can these intellectuals be considered as producers of symbolic capital, based on what they proposed and instituted, and what tensions were derived from this? The theoretical-methodological path used the concepts of trajectory, field and capital from the perspective of Pierre Bourdieu, understanding that trajectories result from a system of traits that belong to an individual biography or to a group of biographies, objectified by the relations that are established among the agents and the forces specific to the fields

Keywords: Anthropology; Intellectuals; Trajectories

Introdução

Este artigo objetiva analisar as trajetórias formativas e de atuação profissional de dois intelectuais brasileiros - Oswaldo Rodrigues Cabral e Sílvio Coelho dos Santos -, intencionando apreender as perspectivas antropológicas defendidas por eles, que contribuíram para a institucionalização da antropologia no Brasil, pela realidade particular do Estado de Santa Catarina.

O percurso teórico-metodológico desta abordagem, procurou responder às seguintes questões: Como se constituíram as trajetórias de Oswaldo Rodrigues Cabral e Sílvio Coelho dos Santos, quais aproximações e distanciamentos entre eles? Em que medida as suas ações no campo educacional, podem ser avaliadas como fatores de projeção para a institucionalização da antropologia enquanto área específica, pelas atividades de ensino e pesquisa com as quais se envolveram? Como se estabeleceram as defesas e concepções de cada um, em relação à antropologia? Em que proporção estes intelectuais podem ser tomados como produtores de capital simbólico, por meio do que propuseram e instituíram e que tensões derivaram disto?

Para a investigação, foram mobilizados os conceitos de trajetória, campo e capital na perspectiva de Pierre Bourdieu. Bourdieu (2001) defende que as trajetórias são resultantes de um sistema de traços que pertencem a uma biografia individual ou de um grupo de biografias, objetivadas pelas relações que se estabelecem entre os agentes e as forças próprias dos campos. Este sociólogo pensa o campo como um microcosmo relativamente autônomo, com leis específicas e que funciona inserido no macrocosmo social. Compreender uma produção cultural não se resume, portanto, a referir-se ao conteúdo textual, ao contexto social e satisfazer-se em firmar uma relação direta entre eles. Bourdieu et al. (2004, p. 20) afirmam que “entre esses dois polos, muito distanciados, entre os quais se supõe que a ligação possa se fazer, existe um universo intermediário”, que ele chama de campo. Esse espaço é o universo no qual os agentes e as instituições ocupam posições diferenciadas e hierarquizadas que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência.

Ao tratar do campo literário, Bourdieu (1996, p. 292) defende que “diferentemente das biografias comuns”, uma trajetória “descreve a série de posições sucessivamente ocupadas pelo mesmo escritor em estados sucessivos do campo literário”, o que possibilita pensar no conceito de trajetória aplicado a outros campos: político, educacional, intelectual, entre outros, uma vez que, para Bourdieu “toda trajetória deve ser compreendida como uma maneira singular de percorrer o espaço social”.

De acordo com a posição ocupada pelo agente no interior do campo, é que são geradas as opiniões, as representações, os julgamentos sobre o mundo físico e social. Cada agente é reconhecido por sua trajetória social, seu habitus e sua condição. Nele - no campo - os agentes criam seu espaço e estabelecem relações objetivas. Tais relações determinam o que eles podem e o que não podem fazer (BOURDIEU, 2007).

Cada campo possui sua “lei fundamental”, seu nomos que lhe concede propriedade de distinção. Quando se aceita o ponto de vista que constitui um campo específico, fica totalmente impraticável assumir qualquer outro que lhe seja externo. As “teses” do campo não podem ser contestadas por se fundar em princípios legítimos de divisão que se aplicam a todos os aspectos fundamentais da sua existência. Essas “teses” definem o que se pode ou não pensar, o que é “prescrito” e “proscrito” e emergem como matrizes que não permitem produzir questões adequadas ao seu questionamento (BOURDIEU, 2007).

Os novatos que ao campo se agregam, levam consigo disposições previamente constituídas no interior do grupo familiar, socialmente situado e, portanto, gozam em hipótese, das suas exigências, sejam elas expressas ou tácitas, das suas pressões ou solicitações. Esses iniciantes são mais ou menos “sensíveis” aos sinais de reconhecimento e consagração que envolve uma contrapartida em termos de reconhecimento em relação à ordem que os confere. Existe uma forma originária de illusio que ligada ao investimento no espaço doméstico produz uma sublimação que, tacitamente, é exigida de todo recém- chegado. Esse modo específico de illusio, inerente ao pertencimento a um campo, leva a admitir que o jogo merece ser jogado, que ele vale a pena. Revela um “interesse desinteressado e interesse pelo desinteresse” (BOURDIEU et al., 2004. p. 30).

Bourdieu e Passeron (2014), na obra “Os herdeiros”, demonstram que a noção de capital desponta como herança cultural, privilégio cultural. O capital cultural é o produto garantido dos efeitos acumulados da transmissão cultural que é assegurada pela família e pela retransmissão cultural, garantida pela escola. Na escola, sua eficiência depende da importância do capital cultural diretamente herdado da família. Na obra “O senso prático” (BOURDIEU, 2009), o sociólogo mostra que semelhantemente à riqueza econômica, que só funciona como capital quando relacionada a um campo econômico, a riqueza cultural em todas as suas formas se constitui como capital cultural nas relações objetivas, estabelecidas entre o sistema de produção econômica e o sistema de produção dos produtores.

Bourdieu distingue espécies de capital. De acordo com Valle (2008, 104-105), dentre eles figuram o capital social, que está relacionado à durabilidade de uma rede de relações ou ao pertencimento a um grupo estável, no qual o indivíduo pode mobilizar suas estratégias e multiplicar seu capital de origem. O capital econômico como um fator de poder, possível de ser utilizado para reconverter uma parte desse capital em outras espécies de capitais, estando ligado ao econômico, no sentido estrito. O capital cultural constitui-se de saberes, competências e outras aquisições culturais. Ele expõe as desigualdades de desempenho dos agentes de acordo com suas classes sociais de origem. O capital linguístico que implica a variedade linguística do grupo dominante e se impõe como marca de prestígio: qualifica o modo de falar e de se expressar dos dominados. O capital escolar que emerge como exemplo da distribuição distinta dos vários capitais e contribui para a legitimação e a reprodução das posições no espaço social e o capital simbólico, que por sua vez, é representado pela acumulação do prestígio e das honras. Esse capital marca as diferenças e reafirma a distinção entre as classes sociais.

Os intelectuais Oswaldo Rodrigues Cabral e Sílvio Coelho dos Santos: trajetórias que se entrecruzam

Bourdieu (2001) afirma que a posição de um determinado agente no espaço social pode ser definida pela posição que ele ocupa nos diferentes campos, ou seja, na distribuição dos poderes que atuam em cada um deles, sobretudo ao que se refere ao, capital econômico - nas suas diferentes espécies -; o capital cultural; o capital social; e também o capital simbólico, geralmente chamado de prestígio, reputação, fama que é a forma percebida e reconhecida como legítima das diferentes espécies de capital. Outrossim, com a sacralização dos intelectuais, o autor indica para a “(...) História Intelectual uma premissa metodológica crucial: não separar a história das ideias, das ideologias, do pensamento da história dos seus produtores”. Diante dessas circunscrições teóricas, importa demarcar aspectos das trajetórias dos intelectuais - Oswaldo Rodrigues Cabral e Silvio Coelho dos Santos - em destaque neste artigo.

O intelectual catarinense, Oswaldo Rodrigues Cabral, nasceu em 1903, na cidade de Laguna, (SC). Envolveu-se em diversas atividades ligadas às áreas da medicina, política, história, jornalismo, folclore, antropologia, educação, algumas delas rendendo-lhe títulos honoríficos ou frutificando em trabalhos publicados. Foi Deputado Estadual (1947/54), presidente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (1954).

Oswaldo Rodrigues Cabral, graduou-se em medicina pela Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (1929) e foi diretor do Hospital Municipal de Joinville (SC); dirigiu a Assistência Municipal de Florianópolis; Chefe do Serviço de Saúde e Pronto Socorro do Serviço de Defesa Passiva Antiaérea, em plena 2ª Guerra Mundial; Presidente da Seção da Cruz Vermelha em Santa Catarina; 1º Tenente do Corpo de Saúde do Exército Nacional; Membro da Liga Nacional; médico clínico do Clube de Funcionários Públicos Civis e do Hospital de Caridade (IAPC); além de clinicar em consultório próprio (SOUZA, 1993).

Publicou vários livros na área de sua especialização e na área de Folclore. É autor de A medicina teológica e as benzeduras (1950), Vocabulário do consultório médico (1951), A medicina caseira (1952), A respeito dos corações e dos pão-por-Deus (1949), Os santos nas lendas marítimas catarinenses (1950), Os açorianos (1951), Antigos folguedos infantis de Santa Catarina (1982) e Contribuição ao estudo dos folguedos populares de Santa Catarina (1953). Oswaldo Rodrigues Cabral pretendia publicar uma obra em cinco volumes sobre A história política de Santa Catarina durante o Império. Poucos anos antes de falecer desistiu de escrever o livro, pois antevia a dificuldade de publicar uma obra tão grande, mormente por já ter passado por dificuldades na publicação do seu Nossa Senhora do Desterro, em quatro volumes. Com a morte de Oswaldo Rodrigues Cabral, Sara Regina Poyares dos Reis, sua sobrinha, ficou com os originais inacabados, faltando escrever 17 anos, os últimos do Império (Oswaldo Rodrigues Cabral escrevera até 1872). Sara o concluiu e organizou sua edição, cujo o . O lançamento da obra aconteceu em outubro de 2004.

Identificado, muitas vezes, como mais atuante e participante em campos voltados à antropologia, à história, à saúde, ao folclore, dentre outros, e menos como um intelectual inserido nas discussões voltadas ao campo educacional. Todavia, localizar este intelectual também no cenário da educação se justifica por meio da abordagem aqui estabelecida, uma vez que é, sobretudo, deste lugar - campo educacional - que Oswaldo Rodrigues Cabral, juntamente com outros sujeitos, estabeleceu ações que tiveram reflexos na institucionalização da antropologia, enquanto área específica.

Oswaldo Rodrigues Cabral possui incursões bem demarcadas nas discussões educacionais, que se entrecruzam com outras áreas de seu interesse. O início de sua atuação profissional, deu-se após a formação adquirida na Escola Normal Catarinense (1919) e aos dezesseis anos passou a lecionar em escolas primárias nas cidades de São Francisco do Sul e Joinville (SC). Entretanto, esta atuação foi interrompida, pois se matriculou na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (RJ), concluindo o curso em 1929.

Nesse percurso de formação está outra inserção na área educacional em articulação com a área da medicina, em especial, ao que se refere à temática da higiene. Cita-se a participação desse intelectual na I Conferência Estadual do Ensino Primário, ocorrida em Santa Catarina, em 1927, quando ainda era acadêmico do curso de medicina. Oswaldo Rodrigues Cabral inicia a tese (n. 39), sob o título “O ensino de noções de hygiene nas escolas publicas do Estado de Santa Catharina”, na Conferência, citando os objetivos gerais da escola primária, fundamentado nas conclusões aprovadas no Congresso da Instrucção Primária efetivado em maio de 1927, em Minas Gerais. Quanto aos objetivos elencados no evento citado por Cabral, estavam:

Extinguir o analphabetismo, ministrar noções de hygiene, formar o caráter dos alumnos e dar-lhes educação cívica. Os valores, actividades e ideaes da escola primária consistem na formação do povo instruído, sadio, operoso, normalismo e solidário a ordem e ao progresso da Patria (SANTA CATHARINA, 1927, p. 412).

Outro fator que demarca o interesse de Oswaldo Rodrigues Cabral pela educação é identificado por sua decisão de ampliar o tema tratado na Conferência citada, efetivado na these - Problemas educacionaes de hygiene - para sua aprovação no curso de medicina, em 1929. Nesta tese, trata de modo mais abrangente as questões relativas à higiene dos catarinenses e, ao mesmo, tempo alerta para as impossibilidades de se ver efetivadas as medidas preventivas, neste aspecto, destacando a escola primária também como lócus privilegiado para isto (CABRAL, 1929).

Outras argumentações feitas por Cabral apoiavam-se nas ideias de Belisário Penna e de Amaury Medeiros , personagens ligados à área médica, política e educacional brasileira, que defendiam os preceitos sanitários e da higiene para o Brasil. Além das referências nacionais, Cabral (1929, p. 31) assinalou a presença daquele que intitulou de um “(...) especialista americano nestes assumptos” de higyene: “Dr. Thomas Wood ”.

Outra ação que espelha o interesse de Oswaldo Rodrigues Cabral pelos assuntos e temas ligados à educação, pode ser avaliada na obra Os jesuítas em Santa Catarina e o ensino de humanidades na província, publicada em 1940, em ocasião do 4º centenário de fundação da Companhia de Jesus. Esta publicação fez parte das propostas do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, do qual este intelectual participou intensamente. Também de modo intenso, Oswaldo Rodrigues Cabral dedicou-se aos ofícios da medicina e da área da saúde e, em 1952, novamente as áreas da medicina e da educação se entrecruzam na trajetória deste intelectual. Iniciou como livre docente na cadeira de Medicina Legal, naquela que seria a futura Universidade Federal de Santa Catarina.

Souza (1993) comenta que, nessa instituição de ensino, Cabral firmou sua atuação junto à Faculdade Catarinense de Filosofia, incorporada à Universidade Federal de Santa Catarina; lecionou a disciplina de História de Santa Catarina (1958); provisoriamente, História da Arte (1960) e, no mesmo ano, foi nomeado para Diretor da Seção de Documentação Histórica e Cartográfica. Em 1961 foi transferido da Cadeira de Antropologia Cultural para a de Antropologia e Etnografia e, em 15 de setembro, foi eleito e tomou posse como Diretor da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras. Foi um dos idealizadores e fundadores do Instituto de Antropologia (atualmente, Museu Universitário da UFSC).

O intelectual Sílvio Coelho dos Santos, partícipe dos movimentos realizados por meio da educação para a modernização do Estado, nasceu na cidade de Florianópolis, Estado de Santa Catarina, no dia 7 de julho de 1938. Licenciou-se em História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no ano de 1960 e, desde 1961, foi professor nessa instituição. Logo no início de sua vida acadêmica, atuou como colaborador do professor Oswaldo Rodrigues Cabral (1903-1978), titular da cadeira de Antropologia, auxiliando-o em suas aulas.

O professor Cabral, aos olhos de Santos, “foi o intelectual que melhor projetou Santa Catarina, entre os finais dos anos trinta aos anos setenta do século passado (SANTOS, 2016, p. 17)”. Sílvio Coelho dos Santos acumulou experiências também na educação básica. Foi professor no Colégio Catarinense, no qual ministrava aulas de História e Geografia para alunos da 5ª série e teve também experiências na educação primária, exercendo as funções de professor, de diretor de grupo escolar e de orientador pedagógico nos quadros da rede municipal de ensino, em Florianópolis.

A experiência inicial de Santos no Instituto de Antropologia foi fundamental para demarcar sua trajetória, pois o conduziu à realização de um curso de pós-graduação em Antropologia Cultural e Sociologia Comparada, no ano de 1962, no Museu Nacional da antiga Universidade do Brasil, no Estado do Rio de Janeiro e no qual foi orientado pelo professor Roberto Cardoso de Oliveira (1928-2006). Posteriormente, doutorou-se em Ciência Social pela Universidade de São Paulo (USP) em 1972, sob a orientação do professor Egon Schaden (1913-1991), oriundo de São Bonifácio, cidade catarinense, um dos grandes nomes da Antropologia no Brasil. A tese defendida foi publicada com o título “Índios e brancos no Sul do Brasil - a dramática experiência dos Xokleng”.

Como professor universitário iniciou sua atuação na Universidade Federal de Santa Catarina, em 1961, na qual foi coordenador da Pós-graduação em Ciências Sociais, Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-graduação, Pró-Reitor de Ensino (1980-1986), Coordenador do Mestrado em Ciências Sociais, Chefe do Departamento de Ciências Sociais e Diretor do Museu de Antropologia, dentre outras representatividades.

Em 1979, a UFSC abriu pela primeira vez vagas para o concurso de professor titular, sendo que duas vagas eram para a área de Antropologia, das quais uma foi preenchida por Sílvio Coelho dos Santos, aprovado no concurso (SANTOS, 2006). Foi membro do Conselho Diretor da Associação Brasileira de Antropologia, da qual foi presidente entre os anos de 1992-1994, sócio emérito do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC) e membro do Conselho Diretor da Fundação de Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (FUNCITEC). Foi Conselheiro Suplente do Conselho Estadual de Educação, Secretário Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e também foi membro da Academia Catarinense de Letras, onde ocupou a cadeira de número oito.

Antes de seu falecimento, em outubro de 2008, Sílvio Coelho dos Santos desenvolvia pesquisas nas áreas de Relações Interétnicas, Direitos Especiais e Sociologia do Desenvolvimento. Publicou diversos livros, escreveu artigos em jornais, nos Mensários Informativos do Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais - Cepe . Este periódico era o veículo de divulgação das pesquisas realizadas na instituição, além de tratar dos seus procedimentos cotidianos. Em seu bojo havia a proposta de intercâmbio com outras instituições de pesquisas educacionais. O Cepe desenvolvia um sistema de permuta de publicações, o que permitiu o recebimento de um grande número de trabalhos desenvolvidos em todo o Brasil. Possuía também um Serviço de Documentação e Informação que estabelecia contato com o Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação, para quem fornecia os dados obtidos na realização dos estudos e pesquisas pelo Cepe realizadas.

Recebeu o título de Professor Emérito da Universidade Federal de Santa Catarina, em 14 de setembro de 1999, “em reconhecimento aos seus méritos acadêmicos e papel desempenhado na consolidação” da instituição (AUTOR 2, 2008, p. 73).

Em 1970, recebeu o célebre II Prêmio Abril de Jornalismo, resultado de sua colaboração dada a um jornalista da Editora Abril, que veio a Santa Catarina fazer matéria sobre turismo. Na proximidade com Santos, surgiu o interesse pelas questões indígenas do Estado e o convite para fazer uma matéria sobre os bugreiros (GUERRA, 2006, p. 11). Pela intimidade com o tema e entrevista realizada com um ex-bugreiro, que foi transformada em matéria jornalística e publicada pela Revista Homem em abril de 1976, o prêmio foi concedido a Santos. Após seu falecimento recebeu como homenagem por meio da Resolução nº 06/do Conselho Universitário da UFSC, no dia 29 de maio de 2012, a aprovação da alteração do nome da Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina que passou a incorporar seu nome: Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina Professor Silvio Coelho dos Santos.

Na trajetória de Silvio Coelho dos Santos, três intelectuais foram referência: Oswaldo Rodrigues Cabral, Roberto Cardoso de Oliveira e Egon Schaden, que por serem “pioneiros da antropologia influenciaram os rumos de sua carreira (...) devido ao tempo de convivência e, talvez, aos traços de personalidade” (GUERRA, 2006, p. 09). O primeiro, sem dúvida, deixou marcas que, de certo modo, forjaram os rumos que o intelectual Santos imprimiu à carreira profissional. Como homenagem prestada a Cabral, Santos organizou o livro “Oswaldo Rodrigues Cabral”, em homenagem ao centenário deste intelectual.

Educação e antropologia: campos de atuação dos intelectuais e da produção do capital simbólico

O diálogo proposto entre antropologia e educação, neste texto, não atende as possibilidades de uma antropologia da educação, como propõem Gusmão (2015) e Oliveira (2015) em seus estudos. Antes, busca uma proximação entre estas duas áreas para a compreensão da trajetória dos intelectuais destacados nesta abordagem.

Santos (2006) observa que o ensino de antropologia não só em Santa Catarina, mas em todo o Sul do Brasil, teve início com a criação das Faculdades de Filosofia. A criação das Faculdades de Filosofia ocorreu entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1950. Em Florianópolis, foi criada com esforços do desembargador Henrique da Silva Fontes, em 1951, a Faculdade Catarinense de Filosofia, que foi instalada em 1955. Nesse ano, os cursos de História e Geografia compunham um único curso, passando em 1956 a ser independentes. Os alunos de História, nesse contexto, deveriam frequentar as disciplinas de Antropologia Cultural e Etnografia Geral e do Brasil. Esse fato provavelmente estreitou os contatos de Santos com o professor Cabral e, consequentemente, com a Antropologia. Com a criação da UFSC em 1960, a Faculdade foi incorporada com o nome de Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), o que originou mudanças na matriz curricular e distribuição de disciplinas e deu início à Cadeira de Antropologia e Etnografia, da qual o professor Cabral era catedrático.

Em Florianópolis, o médico Oswaldo Rodrigues Cabral, assumiu, em 1961, a direção da Faculdade de Filosofia, cargo ao qual renunciou em 1963, devido às discordâncias com o corpo docente e servidores . Em 1961, Santos foi convidado, pelo professor Cabral, para ser auxiliar de ensino, cargo para o qual foi designado em março do mesmo ano. Essa renúncia de Oswaldo Rodrigues Cabral, abriu novas perspectivas para a cadeira de Antropologia, ou seja, “criou condições para o surgimento, nas décadas seguintes, do Departamento de Antropologia e dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia”, pela maior dedicação do professor Cabral à Cadeira de Antropologia, em detrimento das atividades administrativas que exercia como diretor (SANTOS, 2006, p. 11).

Assim, em fins do ano de 1963, Silvio Coelho dos Santos, com auxílio de alguns estudantes, já realizava projetos de pesquisa nas áreas de etnologia indígena e arqueologia, . C com um espaço físico reduzido e assoberbado de materiais empíricos coligidos no campo de pesquisa, porém consciente “de que as atividades de pesquisa eram essenciais para a universidade” (SANTOS, 2005, p. 18). Propôs, juntamente com Oswaldo Rodrigues Cabral e Valter Piazza, ao então Reitor da UFSC, o professor João David Ferreira Lima, a criação do Instituto de Antropologia, enquanto . Santos desenvolvia paralelamente no Cepe atividades de pesquisa em educação, colaborando para a instalação da Faculdade de Educação (FAEd).

Para a concretização do Instituto “foram meses de trabalho para detalhar a proposta, obter recursos financeiros, reformar as casas, instalar móveis, comprar equipamentos e organizar a equipe de trabalho. Em 1968, o Instituto de Antropologia tornou-se realidade”, transformando as baias de uma antiga fazenda, a Fazenda Assis Brasil, “num ambiente de pesquisa e de ensino” ou seja, das baias à organização de unidades de pesquisas antropológicas e arqueológicas (SANTOS, 2005, p. 18).

O Instituto ganhou prestígio no Brasil e no exterior, por meio do desenvolvimento de projetos, primordialmente, nas áreas da arqueologia e da etnologia, da abertura para estagiários, e pela publicação regular dos resultados obtidos. Santos, ao se referir às pesquisas arqueológicas realizadas nos sítios arqueológicos, em Santa Catarina, os Sambaquis, considera que tais pesquisas tinham “projeção nacional e internacional” (SANTOS, 2005, p. 16). De acordo com Souza (1993), como Diretor do Instituto de Antropologia, Oswaldo Rodrigues Cabral, teria trazido personalidades nacionais e internacionais para ministrar cursos na Universidade, dentre os quais, o arqueólogo norte americano Wesley Hurt, e professores brasileiros: Paulo Duarte, Egon Schaden e Roque de Barros Laraia .

Devido à reforma universitária de 1970, o Instituto não sobreviveu, por conta da concentração das atividades de ensino e de pesquisa nos Centros e nos Departamentos, sendo transformado em Museu de Antropologia. Essa mudança, para Santos, de certo modo, “foi a maneira encontrada para se resguardar a equipe de pesquisa e se manter certa independência em relação ao Departamento de Sociologia, onde os professores e pesquisadores foram lotados” (SANTOS, 2005, p. 19).

Essa realidade trouxe contrariedade a Oswaldo Rodrigues Cabral, como registrou Souza, acerca das afirmações feitas por ele:

Aqueles responsáveis pela destruição do Instituto de Antropologia sabem que eu os conheço muito bem e sei também que, muitas vezes, destruindo-se a obra, faz-se esquecer o autor. Só que não aconteceu como queriam! Lá fora, em outros estados e mesmo em outros países, o Instituto de Antropologia é lembrado pelas conquistas e publicações, cursos e por seu criador. Isso é que fica! (SOUZA, 1993, p. 184).

Esse fato faz considerar a projeção de Oswaldo Rodrigues Cabral no próprio Estado, no Brasil e mesmo no exterior e o modo como ele defendia suas ações e procurava demarcar legitimidade a elas e a si próprio. Em 1973, Oswaldo Rodrigues Cabral aposenta-se, compulsoriamente, das atividades junto à Universidade Federal de Santa Catarina.

Após a reforma universitária ocorrida em 1970, a Antropologia passou a integrar o Departamento de Sociologia e Silvio Coelho dos Santos, sobre esse fato, afirma que não foi sem resistências. Para ele, “a lotação e a consequente subordinação dos professores ao Departamento de Sociologia foram motivo permanente de tensão, que se manifestava no dia-a-dia nas relações com os colegas professores de Sociologia” (SANTOS, 2006, p. 41). Assim, qualquer proposta de desenvolvimento de pesquisas, de participação em eventos, de distribuição de carga horária, precisava ser aprovada pelo Departamento de Sociologia. Para conquistar espaço e se consolidar, o grupo lançou mão de algumas estratégias para se (re) afirmar, por meio de ações como:

Ampliar os contatos externos, visando à valorização e ao reconhecimento do grupo. Divulgação sistemática das atividades de pesquisa; a realização de cursos de extensão, proferidos por professores de universidades do país ou do exterior; a dinamização do sistema de estágios para alunos recém graduados, com vistas ao seu encaminhamento para realizarem cursos de pós-graduação; a manutenção da Revista Anais do Museu de Antropologia; e a ampliação dos contatos com universidades estrangeiras (SANTOS, 2006, p. 43).

Os integrantes do grupo da Antropologia, do qual Sílvio Coelho dos Santos era o mentor, a partir do afastamento de Cabral, engendraram a criação de um curso de Especialização em Antropologia, desde 1972, que culminou com a implantação de um Curso de Especialização em Ciências Sociais, no ano de 1976, com concentração em Antropologia e Sociologia, fruto de uma negociação longa, devido às resistências do último. Santos, foi designado o primeiro coordenador desse curso e, em Em 1977, foram iniciados os estudos que objetivavam transformar este curso em mestrado, que se concretizou em dezembro de 1978, também sob a coordenação de Santos e sendo este também membro do colegiado. Esses movimentos clarearam a questão posta desde os anos de 1970, quais sejam: as áreas de Antropologia e Sociologia deveriam caminhar cada uma em sua direção, o que se consolidou em 1987, quando foi criado o Departamento de Antropologia e, posteriormente, implantado o curso de doutorado, em 1998.

Concomitante às atividades de ensino que desenvolvia na Cadeira de Antropologia, logo que retornou de seu curso de especialização no Museu Nacional, Silvio Coelho dos Santos realizava pesquisas educacionais, contribuindo não só para a organização do Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais (Cepe), como também para a instalação da Faculdade de Educação (FAEd), por meio da criação do Curso de Pedagogia. Era ainda aluno regular da Faculdade de Direito e o acúmulo de responsabilidades o levou a trancar a matrícula e, posteriormente, abandonar o curso. Para ele, os primeiros movimentos para a criação do Centro de Estudos e Pesquisas Educacionais (Cepe) se constituíram “num clima de renovação que tinha como base as metas de governo, havia recursos centrados no Plameg I que podiam ser transferidos para esse tipo de projeto e naturalmente uma vontade de um bocado de gente nova (...)” (DALLABRIDA, 1997).

Na estrutura da Faculdade de Educação, o Cepe constituía-se no segundo elemento principal: precedeu as atividades do Curso de Licenciatura em Pedagogia e tinha como principais funções: “realizar estudos e pesquisas visando aprofundar o conhecimento da realidade educacional do Estado (...)”; “elaborar planejamentos no setor educacional com vistas à política de desenvolvimento catarinense (...)” e “organizar um serviço de documentação e informação” (CENTRO..., 1970, p. 03). Para a realização de seus objetivos, dispunha dos seguintes serviços: a) Levantamentos e Pesquisas; b) Estudos e Planejamento; c) Estatística; d) Documentação e Informação. O Cepe pode ser considerado, no que diz respeito à produção de pesquisas em educação, como um “divisor de águas”, visto que imprimiu um pensamento científico para tratar com as questões educacionais.

Silvio Coelho dos Santos (1968. p. 13), atuou juntamente com uma equipe chefiada por Maria da Glória Matos, na implantação do Cepe. Após isso, foi designado para “organizar a equipe técnica que comporia o Serviço de Levantamentos, Pesquisas e Inquéritos do referido Centro” (SANTOS, 1968. p. 13). Nesta instituição, foi Diretor (1966/1970), pesquisador, assumiu funções de técnico, além de ser responsável pela ministração de cursos de Metodologia de Pesquisa Educacional e Sociologia Geral. Desenvolveu pesquisas em educação, tendo como prática a análise antropológico-social, tônica da sua formação, contribuindo de modo significativo para a configuração do campo educacional catarinense, por meio de suas produções sobre o tema.

A partir da sua inserção no Cepe, Silvio Coelho dos Santos (1968, p. 13) iniciou “um contato permanente com a problemática do ensino no Estado”. A sua participação nessa instituição, em grande medida, foi orientada pela experiência no setor de educação primária municipal, por meio das diferentes funções que nela exerceu. As muitas indagações acerca do complexo sistema de ensino que vigorava no Estado e da organização da própria sociedade estadual, é que o tornaram convicto da necessidade de se estabelecer uma análise profunda dessas situações. Assim, quando exercia ainda a função de orientador pedagógico no município de Florianópolis, desenvolveu, em 1964, a pesquisa “A zona Rural da Ilha de Santa Catarina - aspectos econômicos, sociais e culturais”, sua primeira experiência como pesquisador.

Ao analisar os dados coligidos nessa pesquisa, Silvio Coelho dos Santos (1968, p. 14) percebe “conexões diretas entre as atividades educacionais desenvolvidas pelo município e os mecanismos político-partidários em vigor”, ligando o êxito da educação diretamente às filiações partidárias dos cabos eleitorais das diferentes localidades, chegando ao extremo de a assiduidade escolar da criança depender da vinculação de seus pais com determinados partidos políticos.

Para além desse aspecto, Santos (1968, p. 14) observa que “a própria administração do Município era realizada irrestritamente em função dos objetivos partidários”, o que, para ele, consistia na razão de muitos problemas do sistema municipal de ensino. Ao iniciar suas incursões no Cepe, as questões educacionais pertinentes ao Estado de Santa Catarina passaram a constituir-se, por conta do plano global de desenvolvimento em vigor (Plameg I), no alvo de estudos e pesquisas da equipe por ele dirigida.

As semelhanças entre o que ocorria no município e no Estado foram deflagradas, sendo impossível entender os problemas educacionais, desvinculando-os das questões político-partidárias. Para Santos (1968. p. 15) essa ligação entre política partidária e educação era própria, peculiar de áreas nas quais o quadro socioeconômico e cultural era de subdesenvolvimento, carente de modernização, o que se justifica pelo plano que intentava “promover o desenvolvimento socioeconômico da população”.

Para ele, a situação precária do sistema de ensino não era um privilégio de Santa Catarina, mas o “empiriscismo” dos administradores da educação era um grave obstáculo no caminho da modernização, bem como do Estado. A urgência em se planificar o setor educacional se mostrava pela tradicionalidade, pela seletividade e por oferecer aos educandos uma concepção de mundo “incoerente com os objetivos da sociedade dinâmica, complexa e democrática que aos poucos vai se instalando no Estado e no País. Dessa maneira a educação oferecida é mais um obstáculo do que uma agência promotora de mudanças” (SANTOS, 1968, pp. 20-21).

A capacidade de criticar, confrontar, não se projeta somente por sua origem social, mas pela posição do grupo ao qual estava ligado. Por outro lado, a condição social e sua rede de relações não era relegada em detrimento de seu engajamento político. Ao longo de sua trajetória profissional, construiu uma rede social que o deixava numa situação privilegiada na sociedade, contudo esta não é uma condição sui generis para se pertencer a uma intelectualidade. Ao contrário, seu inconformismo social, que o conduzia a engajar-se numa causa política, no desejo de transformar, não só a causa indígena (seu grande desafio), mas a sociedade de modo geral, o colocava nesta condição. Assim, sua condição de intelectual não “era ditada por qualquer posição objetivamente ocupada na escala social, mas pela decalagem pressentida ou vivida entre, de um lado, a sociedade desejada, a partir de uma certa visão de mundo e, de outro, a sociedade tal como se apresenta, a sociedade real”, de acordo com o que compreende Martins (1987, p. 69).

Nessa perspectiva, duas de suas contribuições mais significativas ao campo educacional foram: “ativar e esclarecer as bases que têm o dever de patrocinar o surgimento do Primeiro Plano Estadual de Educação (SANTOS, 1970, p. 07), estando à frente da equipe de técnicos do Cepe, diagnosticando as condições perversas que corroíam a educação catarinense e também a realização do Colóquio Estadual para a Organização dos Sistemas de Ensino (Ceose), um instrumento de ação do Ministério da Educação.

Considerações finais

Em suas trajetórias, Oswaldo Rodrigues Cabral e Silvio Coelho dos Santos mostraram-se competentes para criarem suas próprias imagens, além da competência para operarem com a palavra, com o discurso, ocupando “(...) lugares socialmente valorizados na imprensa, no Estado, nas instituições de ensino e nos círculos de cultura” (VIEIRA, 2006, p. 6). Oswaldo Rodrigues Cabral e Silvio Coelho dos Santos - nas fontes consultadas e também por suas produções intelectuais e/ou sua influência ou atuação política - podem ser identificados como homens da cultura, das letras, políticos, professores.

Oswaldo Rodrigues Cabral, além de exercer a medicina, ocupou lugares de destaque relacionados a esta área, como cargos públicos e representatividades em diversas instâncias. Foi Deputado Estadual (1947/54) e presidente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (1954). Fez parte de entidades ligadas à cultura, dentre elas Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto Histórico de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Pernambuco, Bahia, Paraná, da Associação Peruana de Folclore, da Academia de Letras de Santa Catarina, do Piauí e do Paraná; da Comissão Catarinense de Folclore e de outras instituições culturais nacionais e estrangeiras. Exerceu atividades ligadas ao jornalismo e foi exímio em deixar suas marcas em suas diversas obras impressas, versando sobre uma variedade de temas que percorreram a história, política, folclore, antropologia, educação.

Sílvio Coelho dos Santos demarcou seu pensamento, particularmente, no campo acadêmico. No entanto, sua iniciação e projeção como antropólogo e intelectual foi demarcada pelo campo educacional. No início dos anos 1960, quando contribuiu para a implantação do (Cepe), do Curso de Pedagogia e da Faculdade de Educação (FAEd), instituições que serviram de fundamentos para a criação da Universidade do Estado de Santa Catarina. Investiu na produção de artigos sobre a temática educacional, passando a publicá-las no jornal O Estado e, posteriormente, nos Mensários Informativos do Cepe, constituindo parte da coletânea que compõe o livro “Um esquema para a Educação em Santa Catarina”, que veio à lume no ano de 1970. Antes, porém, em 1968, já havia publicado o livro “Educação e Desenvolvimento em Santa Catarina”, fruto de pesquisas desenvolvidas na área da educação, antes mesmo de assumir o cargo de diretor do Cepe. Santos publicou ao todo vinte e quatro obras e mais de setenta artigos científicos, articulados com a antropologia, a exemplo da obra Integração do Índio na sociedade regional - o papel dos postos indígenas de Santa Catarina (1970).

A missão social de Silvio Coelho dos Santos, a partir dos anos 1970, foi disseminar as culturas indígenas presentes no Estado de Santa Catarina, dividindo-se entre a vida acadêmica e o trabalho de campo, projetando e “defendendo” os direitos, especialmente educacionais, dessas culturas em suas principais produções acadêmicas. Reiteramos que o fez, a partir da prática da disseminação de escritos acadêmicos que analisam suas culturas, sem envolvimento direto com filiação partidária, mas especialmente por meio do Núcleo de Estudos de Populações Indígenas (NEPI), que coordenava na UFSC e no qual orientou diversos estudos de mestrado e doutorado.

É considerável demarcar o campo educacional, por meio de lugares e ações próprios, que se apresenta como possibilidade aos intelectuais de projeção a outras posições dentro e fora do próprio campo, uma vez que, como defende Bourdieu (1996), o campo educacional não pode ser interpretado como autônomo. Antes, compreendido em articulação com outras ações desempenhadas pelos intelectuais e articuladas a outros campos. Assim, dentre os lugares ocupados pelos intelectuais, aqui se deu destaque ao campo educacional que permitiu a eles a projeção em outros projetos, como o que se defendeu acerca da antropologia.

Ainda como acadêmico do curso de medicina, Oswaldo Rodrigues Cabral fazia sua incursão no campo educacional. Participou da Primeira Conferência Estadual do Ensino Primário, ocorrida em 1927, na capital catarinense - Florianópolis -, apresentando tese sobre princípios de higiene e saúde. Investiu em obras versando sobre aspectos educacionais, numa perspectiva histórica que revela sua eficiência em tratar de assuntos, entrecruzando diversas áreas.

Na década de 1950, sua inserção na Universidade Federal de Santa Catarina o posiciona novamente com o exercício da docência, que havia ficado à margem por conta do seu envolvimento com outras ações que percorreram sua trajetória. Foi deste lugar que se efetivaram alguns intentos ligados à antropologia, como também foi nesta Universidade (UFSC) que se estreitaram suas relações com outros sujeitos que compartilharam do projeto proposto por Oswaldo Rodrigues Cabral, acerca da antropologia. Dentre os sujeitos com os quais Oswaldo Rodrigues Cabral estreitou laços, esteve Silvio Coelho dos Santos. Este também exerceu o magistério em cursos relacionados à educação básica e dividiu a docência na UFSC com o primeiro, como já esclarecido.

É possível interpretar o início da institucionalização da antropologia como área específica, não só no Estado catarinense, mas também no Brasil, a partir das ações implementadas por Oswaldo Rodrigues Cabral e Sílvio Coelho dos Santos, no interior da Universidade Federal de Santa Catarina. As ações dos intelectuais citados, no campo educacional, podem ser avaliadas como fatores de projeção para a institucionalização da antropologia enquanto área específica, pelas atividades de ensino e pesquisa com as quais se envolveram. Por meio destas ações, pode-se considerar que os intelectuais conquistam certa hegemonia das suas ideias e do monopólio desta produção, ocupando lugares em uma instituição de prestígio (UFSC).

Essas considerações, permitem percebê-los como produtores de capital simbólico (BOURDIEU, 2001) e que os mesmos expressavam, simultaneamente, os interesses das classes dominantes e os interesses próprios dos intelectuais que lutam pelo monopólio da produção do capital simbólico. Compreendido capital simbólico como prestígio, reputação, ocupação de lugares de destaque em múltiplos cenários. Uma forma também percebida e reconhecida como legítima e distinta das demais espécies de capital - o econômico, o cultural e o social -, por meio do que propuseram e instituíram, além da possibilidade de identificá- los como precursores da área da antropologia, não apenas na UFSC, no Estado de Santa Catarina, mas também no Brasil.

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Recebido: 14 de Junho de 2022; Aceito: 19 de Setembro de 2022

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