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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-183 

Artigos

A expansão do ensino régio na América Portuguesa no século XVIII: centralização e singularidades1

La expansión de la educación real en la América portuguesa en el siglo XVIII: centralización y singularidades

Thais Nívia de Lima e Fonseca1 
http://orcid.org/0000-0002-5090-293X; lattes: 8412524167340382

1Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil). thaisnlfonseca@gmail.com


Resumo

Nesse artigo pretende-se analisar o processo de expansão do ensino régio na América portuguesa destacando a atuação dos governadores e suas relações com o poder central, respondendo conforme as especificidades de cada capitania aos esforços de centralização e uniformização da coroa portuguesa. O objetivo é reunir elementos para uma análise comparada e contribuir para a compreensão dos processos iniciais de implantação do ensino público no Brasil, com destaque para o confronto entre as ações administrativas do poder central e as experiências vividas no cotidiano do gerenciamento do ensino público no período colonial.

Palavras-chave: História da Educação; Brasil Colônia; Aulas Régias; Subsídio Literário

Resumen

Este artículo pretende analizar el proceso de expansión de la educación real en la América portuguesa, destacando la actuación de los gobernadores y sus relaciones con el poder central, respondiendo según las especificidades de cada capitanía a los esfuerzos de centralización y uniformización de la corona portuguesa. El objetivo es reunir elementos para un análisis comparativo y contribuir a la comprensión de los procesos iniciales de implementación de la educación pública en Brasil, con énfasis en la confrontación entre las acciones administrativas del poder central y las experiencias vividas en la gestión cotidiana de la educación pública. en el periodo colonial.

Palabras clave: Historia de la Educación; Brasil Colonial; Clases Reales; Subsidio Literario

Abstract

In this article it's intended to analyze the process of expansion of royal education in Portuguese America, highlighting the actions of governors and their connections with the central power, attending to the efforts of centralization and standardization of the Portuguese crown, according to the particularities of each captaincy. The goal is to collect elements for a comparative analysis and contribute to the understanding of the initial processes of implementing public education in Brazil, with emphasis on the clash between the administrative actions of the central power and the experiences lived in the daily management of public education in the colonial period.

Keywords: History of Education; Colonial Brazil; Royal Classes; Literary Subsidy

Notas introdutórias

A historiografia sobre o período colonial no Brasil tem discutido, nas últimas décadas, a natureza e as características das relações de Portugal com seus domínios, debate que foi impulsionado pela questão da possível presença das estruturas de Antigo Regime na América. A abordagem que considera essa possibilidade entende de maneira relativizada a dimensão absoluta e centralizadora da monarquia portuguesa naquele período, conforme as teses defendidas pelo historiador do direito português, António Manuel Hespanha (1994; 1998). Segundo essa perspectiva, as elites dos domínios ultramarinos desfrutariam de uma relativa autonomia em relação ao poder central, evidenciando-se relações de mútua dependência entre a Coroa e os poderes locais (FRAGOSO, BICALHO & GOUVÊA, 2001). Esse posicionamento confronta a abordagem consolidada na historiografia desde meados do século XX, que colocava o Brasil como parte integrante do chamado sistema colonial, dependente e submetido às necessidades econômicas de Portugal (NOVAIS, 1979). Numa posição intermediária nesse debate, Laura de Mello e Souza (2006), adotando um tom crítico à ideia da transplantação das estruturas de Antigo Regime para a América, chama a atenção para a complexidade da sociedade colonial, onde práticas trazidas de Portugal se misturavam a outras, derivadas das lógicas próprias dessa sociedade.

Essa discussão, sem dúvida, tem importância para o estudo da educação no período colonial no Brasil, sobretudo quando se trata dos primórdios do processo de escolarização, a partir das reformas pombalinas e da implantação do ensino régio, na segunda metade do século XVIII e primeiras décadas do século XIX. O suposto retrocesso representado pelas reformas, tal como proposto por Fernando de Azevedo (1963), tem sido colocado em xeque pela renovação recente na historiografia da educação colonial, sem que isso signifique atribuir a elas a condição de um bem sucedido projeto da coroa portuguesa. Mas não restam dúvidas acerca do papel dessas reformas no conjunto de eventos que tornaria a instrução elementar pública uma instituição reconhecida socialmente. Uma vez que se trata de um processo político-administrativo e jurídico - além, é claro, de pedagógico -, a perspectiva historiográfica proposta por Laura de Mello e Souza nos proporciona instrumentos pertinentes para o entendimento dos mecanismos que regulavam a implantação e o funcionamento do ensino régio nas diferentes capitanias do Brasil.

A própria Coroa reconhecia a diversidade e as especificidades presentes em seus domínios, deixando abertas algumas possibilidades de ajustes às determinações originais das reformas presentes nas leis, alvarás e ordens régias. Por mais que se procurasse manter todos os territórios ultramarinos sob os mesmos ditames, não seria possível ignorar as diferenças entre a América, a África, China e Índia. Esse entendimento, ainda que fosse induzido pelos sujeitos envolvidos nas circunstâncias particulares e distintas nessas diversas partes do mundo sob domínio português, acabava por fazer funcionar de algum modo o ensino régio diante de problemas nem sempre previstos, mesmo que possíveis.

Essas questões nos instigam a elaborar uma abordagem da história das reformas pombalinas da educação que considere, por um lado, as relações entre o poder central e os poderes locais, incluindo os professores régios e os grupos sociais envolvidos nas atividades educacionais, direta ou indiretamente. Por outro lado, numa perspectiva comparada, mas também conectada, dar a devida atenção às nuances daquelas relações nas diferentes partes do império português, bem como os variados impactos provocados pelas reformas conforme as especificidades locais. Assim será possível dar um passo a mais no estudo das reformas, privilegiando-se a atuação dos seus principais agentes - governadores, câmaras municipais, autoridades eclesiásticas e professores - além das parcelas de população que seriam beneficiárias potenciais e/ou efetivas daquele ensino, colocando-os numa perspectiva comparada e conectada, pela investigação de diferentes partes da América portuguesa.

Por isso, nesse artigo, pretende-se analisar o processo de expansão do ensino régio na América portuguesa destacando a atuação dos governadores e suas relações com o poder central, respondendo conforme as especificidades de cada capitania aos esforços de centralização e uniformização da coroa portuguesa. O objetivo é reunir elementos para uma análise comparada e contribuir para a compreensão dos processos iniciais de implantação do ensino público no Brasil, com destaque para o confronto entre as ações administrativas do poder central e as experiências vividas no cotidiano do gerenciamento do ensino público no período colonial.

A disponibilidade de documentos produzidos por essas instâncias permite uma análise comparada conforme as conjunturas específicas de cada capitania e, mesmo internamente, às particularidades das diferentes povoações, vilas e arraiais. Os resultados até aqui alcançados com as pesquisas realizadas nos últimos anos corroboram a hipótese sobre o jogo do confronto e da negociação, indicando que a relação monolítica entre Portugal e seus domínios poderia nem mesmo ser pretendida pela própria Coroa em muitas situações relativas ao estabelecimento e funcionamento do ensino régio. Entende-se essa perspectiva, por exemplo, no estudo da atuação de alguns governadores que desempenharam suas funções em mais de uma Capitania, como foi o caso de Bernardo José de Lorena, governador de São Paulo entre 1788 e 1797, e de Minas Gerais entre 1797 e 1803. Ordenar e controlar o ensino régio foram algumas de suas evidentes preocupações na administração de duas capitanias com características distintas, o que favorece o estudo comparado de suas ações, trazendo à luz elementos importantes para a compreensão de um processo longe de ser homogêneo e previsível. Daí a relevância de se apontar elementos gerais dessas perspectivas, e analisar especificamente alguns aspectos da implantação das reformas em algumas capitanias na segunda metade do século XVIII.

As reformas pombalinas da educação constituíram-se de várias ações tomadas durante o reinado de D. José (1750-1777), sob a condução de seu ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal: a criação da Aula do Comércio (1759), a criação da Direção Geral dos Estudos e das aulas régias de Gramática Latina, Grego e Retórica (1759), a criação do Real Colégio dos Nobres (1761), a ampliação do ensino régio com a incorporação das aulas de primeiras letras e a criação do Subsídio Literário, e a reforma da Universidade de Coimbra (1772). Salvo as ações que iriam se desenvolver exclusivamente em Portugal e que atingiriam indiretamente seus domínios - como a reforma da Universidade, a Aula de Comércio e os Colégio dos Nobres, por exemplo -, as demais também se aplicavam no além mar. Estavam, no entanto, longe de alcançar alguma uniformidade, embora ela fosse, às vezes, pretendida. Passados muitos anos do início das reformas, D. João, já regente2, determinou que todos os professores régios de Retórica do Reino e dos domínios ultramarinos utilizassem o compêndio de História de Jerônimo Soares Barbosa. Numa ordem endereçada especialmente ao Ouvidor de Pernambuco, o Príncipe Regente replicava a mesma instrução passada a outras partes do império, insistindo na padronização das normas e dos métodos estabelecidos para o ensino régio (AVISO, 1806). Em algum nível, talvez até parecesse à administração central que esse objetivo estaria sendo alcançado, se forem consideradas respostas como a que deu a essa ordem o Ouvidor de Vila Rica, reportando ter intimado o professor de Retórica da Cidade de Mariana a dar lições com o compêndio de Jerônimo Soares Barbosa, conforme as instruções (RELAÇÃO, 1806). O professor respondeu prontamente:

Recebi a Ordem Regia escrita em 28 de abril do corrente ano; e fico ciente do que se determina na mesma, pronto a dar execução o que S. Alteza Real o Príncipe Regente Nosso Senhor me ordena. Mariana, em o 1º de Agosto de 1806. Salvador Peregrino Aarão, Professor Régio de Retórica (RELAÇÃO, 1806).

O que fez o professor Salvador, na prática, não sabemos. Podemos inferir sobre seu comprometimento com o emprego, no qual estava desde 1788, quando recebeu sua carta de nomeação e apresentava regularidade em suas atividades e, salvo por um período de afastamento por problemas de saúde, continuou ativo até os primeiros anos do século XIX. Mas percebemos também o atendimento protocolar à comunicação oficial entre o centro e as partes, cada qual cumprindo seu papel nas redes de comunicação oficiais, o que poderia garantir as boas impressões sobre as condutas dos agentes da coroa nos diversos níveis da administração colonial e permitir algum grau de controle a partir das informações que chegassem do além-mar.

Dinâmicas administrativas do ensino régio

O processo de implantação do ensino régio na América portuguesa foi marcado por dinâmicas complexas e tensões entre as diferentes instâncias de poder, do central ao local. As sucessivas alterações nas estruturas de gerenciamento desse ensino - Diretoria Geral dos Estudos (1759), seguida da Real Mesa Censória (1772) e da Real Mesa da Comissão Geral sobre o Exame e Censura dos Livros (1787), depois para a Universidade de Coimbra (1791) e finalmente para a Junta da Diretoria Geral dos Estudos (1794) - tiveram impactos nas esferas locais de poder, isto é, os governos das capitanias e as câmaras municipais. As dificuldades de se fazerem cumprir algumas das determinações das reformas da educação, como por exemplo, a realização, em Lisboa, dos exames para provimento das cadeiras, levou a Coroa a delegar às autoridades locais a atribuição de conduzi-los na América, em conformidade com as normas estabelecidas.

A implantação do ensino régio na América portuguesa, ainda que analisada a partir dos atos administrativos gerais e da legislação, não foi um processo uniforme e de ocorrência simultânea em todas as partes do território. Em algumas capitanias, como Minas Gerais e Mato Grosso, por exemplo, as primeiras aulas régias começaram a ser registradas já passados muitos anos do início das reformas, ao contrário do que ocorreu com capitanias litorâneas, como o Pernambuco e a Bahia.

Como mencionado, desde o início a administração central já considerava as condições locais para instruir seus agentes sobre como aplicar as normas estabelecidas pelas leis. A questão dos ordenados dos professores régios, por exemplo, foi um dos primeiros elementos em que as diferenças foram lembradas, ainda que isso também estivesse relacionado com alguma dificuldade da Coroa em criar um sistema unificado para todo o império. Nem mesmo havia uma definição clara sobre a necessidade das aulas mantidas pelo Estado em todos os domínios portugueses pois, mesmo com a expulsão dos jesuítas em 1759, havia lugares onde a presença de outras ordens religiosas supriria adequadamente as demandas pela instrução, como por exemplo, em Angola ou na Índia.

Sobre os ordenados, embora o Alvará régio de 1759 determinasse que os professores devessem assumir seus cargos mediante a posse de uma carta assinada pelo Diretor, o Rei D. José decidiu que os professores que fossem designados para o ultramar prescindissem dela, até que os valores dos ordenados, nessas partes do império, fossem definidos. A diversidade de situações pode ser vislumbrada numa carta endereçada ao Governador do Grão Pará e Maranhão, na qual o Diretor Geral dos Estudos, D. Tomás de Almeida, informava sobre a nomeação de um professor régio de gramática latina para a Cidade do Grão Pará, com ordens para que o governador arbitrasse o ordenado que lhe parecesse adequado “conforme a necessidade do País” (CARTA, 1760). Para orientar essa definição o Diretor Geral informava o governador sobre os valores pagos em outras partes, como Lisboa, Coimbra, Porto e Pernambuco. Interessante é que outros elementos aparecem nessa comunicação, como a constatação das diferenças pagas em algumas partes do Brasil devido aos custos de subsistência mais baixos, como era o caso do valor das moradias e, na região do Pará, devido à utilização do serviço dos “pretos da terra que não gastam nem alimentos, nem vestiários do Reino” (CARTA, 1760), dispensando gastos com serviçais. Dessa forma, os professores régios dessa capitania não precisariam de ordenados mais robustos, já que suas despesas seriam menores do que seus colegas de outras regiões.

Essa discussão estendeu-se por longos anos, o que indica que, por mais que a Coroa persistisse na intenção uniformizadora, a realidade obrigava ao reconhecimento das diferenciações. Já em 1822, às vésperas da independência do Brasil, a Junta Provisória do Governo do Piauí autorizava a criação de novas cadeiras em diversas localidades, mas determinava diferenciações salariais conforme a densidade populacional de cada uma. Presumia-se que esse critério teria influência na frequência de alunos em cada localidade e que, consequentemente, refletiria em maior ou menor trabalho para os professores (OFÍCIOS, 1822). Mas essa autorização talvez só confirmasse uma situação já observada na prática desde duas décadas antes, como se observa nos dados constantes da Tabela 1, especialmente em relação à capitania de Pernambuco, onde havia uma variação salarial entre as diversas povoações. Comentaremos mais sobre essa questão adiante.

A intensa comunicação entre as instâncias locais e a administração central em Portugal descortina a diversidade de situações, interesses e condições para o funcionamento do ensino régio, desde sua criação até as primeiras décadas do século XIX. Não raro diversas questões chegavam em bloco, para serem apreciadas de uma só vez, envolvendo demandas vindas de diferentes partes do império, geralmente encaminhadas ao Conselho Ultramarino, chegando por vezes à Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, de onde eram encaminhadas aos órgãos a que competia dar solução. No caso das questões envolvendo o ensino régio e seus professores, essa função, como já mencionado, foi atribuída a diferentes órgãos conforme as mudanças administrativas realizadas pela coroa. Um documento de 1821 traz indicações sobre essa dinâmica de condução do gerenciamento daquele ensino, e que permitia à administração central perceber o seu cotidiano:

Manda El Rei pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino remeter à Junta da Diretoria Geral dos Estudos os requerimentos inclusos de Francisco Ramos de Oliveira, que pretende ser restituído à Cadeira de que foi suspenso; do Presbítero Secular José Marinho Falcão Padilha, substituto da Cadeira de Retórica do Recife de Pernambuco, que requer a confirmação do seu provimento; e de Francisco de Betencourt Pereira da cidade de Angra, Ilha 3ª, Professor Publico de Primeiras Letras na dita cidade, que pretende que um seu filho lhe suceda na referida cadeira; para que consulte o que parecer sobre cada um dos ditos requerimentos. Palácio de Queluz em 3 de Dezembro de 1821 (CONSULTAS, 1821).

Diferentes assuntos, em diferentes partes dos domínios ultramarinos, e a busca por soluções centralizadas ficam evidenciadas nesta distribuição de requerimentos de professores régios. Anexos, iam documentos comprobatórios das situações relatadas pelos professores para instruir os pareceres que a Junta emitiria sobre suas demandas. O professor de Retórica de Pernambuco, por exemplo, enviou sua petição acompanhada de uma cópia da provisão que o havia nomeado para a referida cadeira, além de declarações de colegas e da Câmara da Vila de Recife atestando seus atributos profissionais e comprometimento com o serviço, todos com reconhecimento público de um tabelião. Procurava-se seguir um rito administrativo, por meio do qual as posições dos indivíduos e suas demandas seriam legitimadas perante a coroa e, se possível, ajudariam na obtenção de resultados favoráveis. Ao menos no que dizia respeito a esses percursos formais, o ensino régio apresentava alguma uniformidade, assim como ocorria com outras dimensões da administração do império que não a educação. Vemos isso de forma bastante evidente no cumprimento de uma norma definida no reinado de D. Maria I, reforçando a obrigatoriedade de os professores régios enviarem às Juntas de Fazenda de suas capitanias atestados emitidos pelas câmaras municipais, nos quais deveria ser confirmada a frequência e assiduidade deles, bem como seu comportamento e condutas morais, sem o que seus ordenados não seriam pagos. O estudo de séries desses atestados permite a análise das trajetórias desses professores e de situações de seu cotidiano no âmbito do ensino régio, ao longo de muitos anos, contribuindo para o esclarecimento de questões importantes sobre o funcionamento desse ensino no Brasil.3

A centralização administrativa também se mostrava no gerenciamento da arrecadação do subsidio literário, ao menos no que diz respeito aos balanços realizados para a prestação de contas ao governo central.4 Os registros da Junta da Administração e Arrecadação do Subsidio Literário contém os relatórios enviados pelas Juntas das capitanias, dando conta dos montantes da arrecadação do tributo, os gastos realizados com a folha de pagamentos dos professores e a manutenção das próprias Juntas, mas também relatando dificuldades encontradas no processo, principalmente a falta da pessoal suficiente para o serviço. Os relatórios, com planilhas detalhadas, também eram enviados à administração central, geralmente como atendimento a solicitações de informações sobre os rendimentos do subsídio e seus usos, feitas pela Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos.

Em 1798 a Secretaria enviou um Aviso aos governadores das capitanias da América determinando o envio de relatórios sobre os rendimentos do subsídio literário, as relações dos professores e seus ordenados, e o que se devia a eles em pagamentos atrasados, relativos aos anos de 1795 a 1797. A análise de vários desses relatórios enviados à Secretaria de Estado nos permite identificar o confronto entre a imposição de procedimentos padronizados para todos os territórios e as particularidades que interferiam no andamento dos processos administrativos, no que toca ao gerenciamento do ensino régio. Foram analisados os relatórios de cinco capitanias - Pernambuco, Mato Grosso, Maranhão, Minas Gerais e Goiás - , todos elaborados em resposta ao referido Aviso, de 22 de setembro de 1798, e enviados ao então Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho.5 Nem todos os relatórios foram elaborados a dar conta das demandas da Secretaria, alguns mais completos, outros omissos em relação a alguns itens que deveriam conter, e outros trazendo informações que não haviam sido solicitadas. Ainda assim, é possível analisa-los em comparação, identificando questões que interessam para uma perspectiva que busque confrontar as intenções uniformizadoras e de controle da coroa, e as experiências e problemas distintos de cada parte da América portuguesa.

Um dos aspectos a chamar a atenção é quanto aos valores pagos aos professores régios conforme a cadeira que ocupavam. Sabemos que nos primeiros anos das reformas pombalinas, sobretudo entre 1759 e 1772, houve dificuldades no estabelecimento de valores únicos para cada cadeira, principalmente devido à constatação, pelas administrações central e local, das diferenças observadas nas atividades econômicas e seus rendimentos, e no custo de vida de cada região, conforme já comentado nesse artigo. Problemas no gerenciamento dessa questão, inclusive devido às queixas de professores sobre as diferenças dos ordenados pagos para as mesmas cadeiras, levaram à fixação dos valores, ainda que aparentemente de forma não compulsória. A hierarquização entre as cadeiras não se dava, apenas, pelo fato de estarem divididas entre as chamadas escolas menores e escolas maiores com relação ao nível do ensino, mas também pelos ordenados diferenciados recebidos pelos professores. No momento da elaboração dos relatórios em questão, esses valores já estavam melhor definidos, embora algumas situações peculiares possam ser observadas, conforme indicado na tabela 1:

Tabela 1 Valores dos ordenados anuais, conforme as cadeiras existentes (1795-1797) 

Cadeira/Capitania Filosofia Geometria Retórica Gramática Latina Primeiras Letras Grego
Pernambuco 160$000 480$000 440$000 400$00 (Recife e Olinda)

240$000 (Igaraçu, Serinhaen, Penedo, Itamaracá, Fortaleza, Sobral, Aracati, Iço, Viçosa)

300$000 (Alagoa do Sul, Cidade da Paraíba, Cidade do Natal do Rio Grande do Norte, São José do Ribamar)
150$000 (Recife, Olinda, Boa Vista, Cidade da Paraíba, Goiana

100$000 (Igaraçu, Serinhaen, Penedo, Cidade da Paraíba, Aracati)

120$000 (Cidade do Natal do Rio Grande do Norte, São José do Ribamar)

80$000 (nas demais localidades)
440$000
Mato Grosso 400$000 400$000 200$000
Maranhão 460$000 440$000 400$000 100$000
Minas Gerais 460$000 440$000 400$000 150$000
Goiás 460$000 440$000 400$000 150$000

Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino, Projeto Resgate. Biblioteca Nacional Digital.

Embora fique evidente alguma uniformidade quanto aos valores dos ordenados das cadeiras de filosofia, retórica e gramática latina, verifica-se a variação encontrada em relação à cadeira de primeiras letras que, não apenas apresentava diferenças entre as capitanias como, no caso de Pernambuco, essas diferenças ocorriam entre localidades da própria capitania. O mesmo em relação à cadeira de gramática latina. Nas áreas urbanas mais importantes - como Recife e Olinda - os valores dos ordenados das duas cadeiras eram os mesmos praticados no restante da América portuguesa. Mas apresentavam uma gradação conforme se tratavam de localidades menores e mais afastadas daqueles centros. O relatório da capitania de Pernambuco não deixava claro quais seriam as razões dessas diferenças, mas apontava dificuldades relacionadas às condições econômicas locais, argumento que, na verdade, vinha sendo utilizado desde os primeiros anos das reformas, em diversas partes dos domínios portugueses, antes mesmo da criação do subsídio literário em 1772 (OFÍCIO, 19 fev. 1799).6

Os valores mais usualmente pagos aos professores régios - principalmente de gramática latina, filosofia, primeiras letras e retórica - não estavam muito distantes dos que eram pagos aos ocupantes de outros cargos na administração colonial, como por exemplo, escrivães ou juízes de fora, que recebiam, em média, entre 300$000 e 400$000 por ano. O pagamento, no entanto, não era realizado pontualmente, apresentando atrasos vultosos em tempo e em quantias, em todas as capitanias. Esse é um aspecto que nos permite analisar as situações específicas de cada uma, e que impactavam o funcionamento do ensino régio, impedindo as iniciativas de uniformização que, embora pudessem ser desejadas pela coroa, não eram, na verdade, esperadas.

Os relatórios dos governadores das capitanias, elaborados em 1799, demonstraram haver uma clara defasagem entre a arrecadação do subsidio literário e as necessidades de manutenção do ensino régio, quanto ao pagamento dos ordenados dos professores, o que indica que a criação de um tributo específico para este ensino não resolveu os problemas do seu financiamento. Lembremos que, antes do estabelecimento do subsídio, eram as câmaras municipais as responsáveis pelo custeio de aulas para as crianças, quando houvesse demanda para isso, e com os recursos de suas próprias rendas, vindas da cobrança de diversos impostos. Após 1772, o subsídio literário passou a ser recolhido e administrado pelas juntas de fazenda das capitanias, que já eram responsáveis pelo pagamento dos ordenados dos militares, clérigos e funcionários civis da administração local. As câmaras permaneceram encarregadas de atestar o funcionamento das aulas e a assiduidade e comportamento dos professores, condições para que recebessem seus ordenados, e à Real Fazenda cabia fiscalizar a arrecadação dos tributos, sua utilização e controle pelas juntas das capitanias. Esse processo significou, então, a centralização do gerenciamento do ensino régio, tanto em seus aspectos funcionais e pedagógicos, quanto tributários. Mas a centralização não implicava, necessariamente, em uniformidade, e os relatórios em análise aqui fornecem os indícios das situações não apenas diversas, mas muitas vezes também conflitantes.

O desequilíbrio entre os montantes da arrecadação do subsídio literário e os valores a serem pagos aos professores régios é o ponto comum entre todas as capitanias analisadas, mas são distintas as explicações dadas pelos governadores para a situação, e elas variam segundo as condições locais, como indicado na Tabela 2:

Tabela 2 Diferença entre os rendimentos do Subsídio Literário e os ordenados a serem pagos aos professores (1795-1797) 

Pernambuco Mato Grosso
1795 1796 1797 1795 1796 1797
Rendimento do Subsídio 5:687$069 5:182$844 6:337$348 875$117 866$003 891$858
Ordenados devidos 11:570$000 11:570$000 11:570$000 1:000$000 1:000$000 1:000$000
Número de professores no período 60 03
Maranhão Minas Gerais7 Goiás
1795 1796 1797 1795 1796 1797
Rendimento do Subsídio 1:259$694 1:561$843 1:224$795 1:034$018 1:067$549 2:101$567
Ordenados devidos 1:800$000 1:800$000 1:800$000 10:250$000 2:450$000 2:450$000 2:450$000
Número de professores no período 05 47 09

Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino, Projeto Resgate. Biblioteca Nacional Digital.

No Pernambuco, a principal questão apontada pela Junta Governativa da capitania foi a grave seca que teria acometido os sertões e arrasado os rebanhos, com consequências diretas por vários anos na arrecadação do subsídio, que incidia sobre as carnes. Situação diversa era vivida, no momento da produção dos relatórios, na capitania de Mato Grosso. Não que a arrecadação fosse suficiente, já que mantinha a tendência a ser menor do que os montantes devidos aos professores régios, mas era prejudicada, segundo o governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, por dois fatores: o fracasso em conseguir arrematantes para a cobrança do subsídio literário, e o baixo preço das carnes, que acabava por diminuir o valor do tributo incidido sobre elas. Tentando melhorar a arrecadação, ele propunha aumentar o imposto argumentando que, pelo baixo preço das carnes na Vila de Cuiabá e no Julgado de São Pedro del Rei, a medida não oneraria o consumo. O governador pedia o aval de seus superiores para agir:

Se este meu arbítrio, por fazer levantar o preço de um gênero da primeira necessidade, não for contrário às Paternais Providências de Sua Alteza Real, queira V.Exa. encaminhá-lo à Augusta presença do mesmo Senhor, para determinar-me o que for mais conforme ao Ensino Público de tão longínqua e ignorante Mocidade desta colônia (OFÍCIO, 21 fev.1801).

Não se pode deixar de notar, ainda, a referência nesta última observação do governador, pontuando a distância e, talvez, algum esquecimento das autoridades centrais para com a sua capitania. E por distância não se quer dizer apenas o que separava o Mato Grosso da capital, Rio de Janeiro, ou mesmo de Lisboa, sede do império. O governador lembrava, também, as distâncias consideráveis entre as povoações no interior da capitania, dificultando a arrecadação dos tributos e a instalação das aulas régias, aspectos demonstrados pelos parcos montantes arrecadados para o subsídio literário e pelo número diminuto de professores ativos no momento da elaboração do relatório: apenas um de gramática latina na capital, Vila Bela, e dois na Vila de Cuiabá, sendo um de filosofia e outro de gramática latina.

Na capitania do Maranhão, algumas irregularidades foram identificadas pelo Real Erário que notificou a Junta da Fazenda da capitania. Segundo a notificação, deixava-se de cobrar o tributo em muitas localidades, especialmente na Cidade de Oeiras, capital do Piauí; não se considerava uma parte dos bois abatidos; e não estendia a cobrança pelas carnes secas que circulavam no comércio, sabendo-se ser grande o seu consumo na região; e finalmente, a cobrança reduzida sobre a aguardente. Todas essas irregularidades afetavam os rendimentos do subsídio, e eram apontados pelo Real Erário como causas do déficit e dos atrasos nos pagamentos dos professores régios. Para que esse problema fosse sanado provisoriamente, mandava que fossem transferidos recursos do Cofre das Rendas Reais para o Cofre do subsídio, “a fim de se pagarem os ordenados dos professores em seus devidos tempos” (OFÍCIO, 2 mar. 1799).

Chama a atenção o fato de os rendimentos do subsídio no Maranhão não serem muito inferiores aos valores devidos aos professores régios, se comparados às outras capitanias, principalmente Minas Gerais e Goiás, como se vê pela Tabela 2. O relatório do governador Diogo de Sousa informava apenas cinco professores régios atuantes na capitania do Maranhão em 1799, sendo quatro na Cidade do Maranhão (filosofia, retórica, primeiras letras e dois de gramática latina) e um na Vila de Alcântara (gramática latina). Os valores dos ordenados das cadeiras dos estudos maiores eram mais elevados, o que contribuía para onerar a folha de pagamentos em relação aos montantes disponíveis no Cofre do subsídio (Tabela 1).

Essa notificação sobre as irregularidades foi enviada ao Maranhão quase ao mesmo tempo que o Aviso que determinava a realização do relatório do governador Diogo de Sousa, que foi enviado à Secretaria de Estado datado em 2 de março de 1799, sem as respostas aos questionamentos acerca das irregularidades. Essas, na verdade, já haviam sido denunciadas alguns meses antes em uma carta do professor régio de Retórica da Cidade do Maranhão, o padre José da Rocha Luiz, na qual ele se queixava das dificuldades para o recebimento de seus ordenados, e fazia denúncias sobre a malversação dos recursos do subsídio literário pelos responsáveis por sua arrecadação e distribuição. Além de pontuar algumas das irregularidades que foram questionadas pelo Real Erário, o professor também denunciava o favorecimento, pelo escrivão da Junta da capitania, a alguns professores mais próximos a ele, deixando de pagar os ordenados a outros. Não são raros os relatos de irregularidades que envolviam não apenas falhas nos processos de arrecadação dos tributos, mas também práticas personalistas, que resultavam em favorecimentos pessoais no interior de redes de sociabilidades locais, em prejuízo de outras pessoas e do Real Erário.8

O relatório enviado pelo governador da capitania de Minas Gerais, Bernardo José de Lorena, apresenta particularidades que dificultam um pouco o exercício comparado (CARTA, 1799). É detalhado na apresentação das cadeiras régias existentes na capitania entre 1795 e 1797, mas não traz os dados da arrecadação do subsídio literário correspondente a esses anos conforme a solicitação do Aviso da Secretaria de Estado, mas sim para o período de 1779 a 1781.9 Em carta enviada ao Secretário de Estado no ano seguinte, em 1800, o governador estimava a arrecadação em 4:800$000, valor muito próximo, portanto, do apurado anualmente nos anos indicados no relatório (CARTA, 1800). Além da constatação de que, assim como em outras capitanias, a folha de pagamentos dos professores régios superava o imposto recolhido para essa finalidade, cabe atentar para as observações feitas pelo governador Lorena sobre as particularidades da movimentação dos recursos e sua avaliação sobre como otimizar a utilização deles. Na capitania de Minas Gerais o tributo era recolhido na forma de ouro em pó, e depois era fundido em barras, com as quais se fazia o pagamento dos professores. Esse método provocava perdas de ouro e prejuízo para os cofres da capitania, agravando a quadro de desequilíbrio entre os recursos advindos do subsídio literário e a folha de pagamentos do ensino régio.

O governador Bernardo José de Lorena considerava que essa situação permaneceria sem solução, a menos que o quadro de professores régios fosse proporcional à arrecadação do subsídio, o que seria solucionado, a seu ver, com a redução do número de cadeiras. Na já mencionada carta enviada ao Secretário de Estado, em 1800, ele propunha um plano que reduziria o número de cadeiras - e consequentemente de professores - para 27, ou seja, vinte a menos do que o apresentado no relatório do ano anterior. Além do problema da perda provocada pela forma de arrecadação em ouro em pó e sua fundição em barras, o governador também chamava a atenção para o pouco empenho na cobrança do tributo, sugeria uma maior centralização do processo, mas sua maior proposta seria reduzir a oferta de cadeiras, sem considerar os efeitos da medida numa capitania com grande população e muitos núcleos urbanos.

O relatório enviado pelo governador da capitania de Goiás, Tristão da Cunha Meneses, inicia com um longo ofício no qual ele retomava a cronologia das ações administrativas relativas ao ensino público, desde a criação do subsídio literário em 1772 e as normas para sua arrecadação e utilização. Dando destaque para as particularidades da capitania, o governador explicava ter sido necessário fazer adaptações naquelas normas porque, sendo um território extenso, foi preciso delegar aos juízes e tabeliões dos julgados integrantes da sua única comarca a arrecadação do tributo. Mas se queixava da falta de compromisso deles e de sua conivência com a sonegação, principalmente dos “poderosos, senhores de engenho, interessados na mesma causa, e de moral tão corrompida” (OFÍCIO, 2 ago. 1799). Essa seria, para ele, a principal razão para a decadência dos rendimentos do subsídio literário e das dificuldades para se efetuar os pagamentos em dia, deixando a administração da capitania com um débito expressivo. O controle dos descaminhos e dos abusos cometidos pelos responsáveis pela arrecadação seria uma medida óbvia, mas o governador Tristão da Cunha acabava por seguir uma posição semelhante à do governador de Minas Gerais, entendendo ser necessário adequar o número de cadeiras aos rendimentos do subsidio. A solução proposta por ele seria, contudo, distinta em alguns pontos: que primeiro fossem criadas as cadeiras de primeiras letras em todas as povoações da capitania, e depois, “segundo as forças do rendimento aplicado para a subsistência dos Mestres, regular as cadeiras dos Estudos maiores, de sorte que todos os Povos pudessem com o menor incomodo possível aproveitar deste benefício” (OFÍCIO, 2 ago. 1799). O governador entendia ser mais adequado que as cadeiras de Filosofia e Retórica fossem deixadas para o futuro, e que algumas cadeiras de gramática latina fossem remanejadas para atender populações mais distantes.

Notas finais

Esses relatórios dos governadores das cinco capitanias indicam possibilidades de interpretação de parte do processo de implantação e funcionamento do ensino régio no Brasil, em consonância com a perspectiva comentada no início desse artigo, por meio da qual as relações entre as instâncias de poder operavam a negociação, os ajustes e, eventualmente, contrapontos. As administrações locais não podiam agir de forma independente, ainda que seus mandatários - os governadores - gozassem de significativo poder para tomar decisões. Mas isso não implicava em autonomia, e a consulta aos órgãos superiores, em Lisboa, era exigência e necessidade, da qual não poderiam escapar. Esses, por sua vez, ainda que movidos pela expectativa de um controle mais uniforme nas diversas partes constituintes dos domínios portugueses, deixavam margens para a negociação, e reconheciam, até certo ponto, as particularidades para garantir a eficiência do gerenciamento.

Essa reflexão, alinhando-se à discussão sobre as dinâmicas históricas na América portuguesa, ao dar relevância aos contrastes entre as normas e as práticas sociais, aos movimentos de adaptação, transgressão ou negociação, permite estabelecer em que condições a análise das informações vindas das fontes se fará, e em qual jogo de escalas (REVEL, 1998). Isso significa recolocar o problema do contexto para além de ser um cenário no qual os sujeitos se movimentam, mas que se apresenta como plural e passível de elaboração pelo historiador, conforme os pontos de observação definidos a partir das experiências históricas investigadas. Esses pressupostos fazem sentido, no caso em foco, quando se considera o estudo das relações entre os poderes locais e centrais, envolvidos no complexo processo de instalação e funcionamento do ensino régio. A dinâmica das escalas de análise ajuda a esclarecer as especificidades postas em questão, a compreender a elaboração dos discursos e o encaminhamento das ações das diferentes instâncias, inclusive comparando-as.

Comparação aqui é entendida como um método, implícito em todas as aproximações históricas” (PURDY, 2012, p.64), tese também defendida por Carlo Ginzburg, para quem a comparação é inerente ao trabalho dos historiadores (GINZBURG, 2015, e 2021). A comparação firma-se nesses pressupostos que entendem as realidades/situações/processos a serem comparados como móveis e conectados, considerando no centro das ações o confronto entre as normas e as condições sociais e culturais presentes na América portuguesa, relacionadas ao movimento de implantação do ensino régio, e tendo os indivíduos e instâncias administrativas nele envolvidos como os elementos mediadores naquelas conexões. Não obstante todos, em todas as partes dos domínios portugueses estarem formalmente submetidos às mesmas autoridades e normas centrais, seus movimentos eram também pautados pelas condições locais, pelos jogos de forças, pelos interesses e circunstâncias. Num contraponto tanto a uma história da educação do Brasil, quanto à fragmentação das diversas histórias locais e regionais da educação, o intuito desse artigo foi apontar elementos que permitam confrontar as ocorrências em lugares e circunstâncias diversas na América portuguesa, num desafio como proposto por Simona Cerutti, que é o comparar situações específicas “não a partir de uma definição externa e geral dos objetos a serem comparados, mas a partir dos critérios, o mais próximo possível, à experiência dos atores sociais” (CERUTTI, 2021).

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1Esse artigo apresenta resultados de pesquisas realizadas com o apoio do CNPq e da FAPEMIG

2O futuro D. João VI assumiu a regência em 1799, quando sua mãe, a Rainha D. Maria I, foi declarada incapaz. Com a morte dela, em 1816, ele foi coroado Rei de Portugal.

3Ver, com o foco nessa questão: CARDOSO, 2002; FONSECA, 2009; FONSECA, 2010; FRAGOSO, 1972.

4O subsidio literário e sua relação com o ensino régio é tema que, no Brasil, tem integrado diversos trabalhos sobre as reformas pombalinas da educação, mas é pouco visado como um objeto específico, como em MORAIS, 2012; MORAIS, 2019; SILVA, 2004.

5Os relatórios integram ofícios enviados pelos governadores das referidas capitanias e estão disponíveis no Arquivo Histórico Ultramarino/Projeto Resgate/Biblioteca Nacional Digital. Os documentos estão referenciados ao final desse artigo.

6Esse documento foi trabalhado por SILVA, 2008.

7O relatório relativo a Minas Gerais não apresentou os dados do rendimento para os anos de 1795 a 1797 e, por isso, esse campo da tabela não foi preenchido. A questão está explicada no texto, mais à frente.

8Favorecimentos dessa natureza também têm sido identificados em relação a queixas contra professores, supostamente desmerecedores de sua posição, em favor de conhecidos e parentes de agentes das câmaras municipais ou de membros do clero.

9Muitos dados desse relatório merecem análise detalhada, pois divergem de outras fontes sobre o mesmo período. Ver: FONSECA, 2010; FONSECA, 2020.

Recebido: 25 de Novembro de 2022; Aceito: 07 de Fevereiro de 2023

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