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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-227 

Resenhas

Os jesuítas em uma perspectiva globalizada: contribuições de um ensaio de crítica histórica

The jesuits in a globalized perspective: contributions of an essay of historical criticismo

Los jesuitas en una perspectiva globalizada: aportes de un ensayo de crítica histórica

Jane Elisa Otomar Buecke1 
http://orcid.org/0000-0001-5055-4210; lattes: 0600525207700699

1Universidade do Estado do Pará (Brasil). janebuecke@yahoo.com.br

CAVALCANTE, Maria Juraci Maia. Os Jesuítas: a escrita de si no corpo historiado dos índios: reflexões sobre o papel da sua ação missionária na experimentação de uma pedagogia moderna: um ensaio de crítica histórica. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2021.


Maria Juraci Maia Cavalcante reúne neste ensaio os resultados de dez anos de pesquisa acerca da presença jesuíta no Brasil e em Portugal. Conforme a autora esclarece, seu interesse inicial estava na expulsão dos jesuítas de Portugal no início do século XX e sua vinda para o Brasil a compor um projeto de educação nacional no período republicano. O levantamento e estudo das fontes apontou para outras questões adjacentes ao entendimento dos significados da ação jesuítica no Nordeste e revelou necessidade de um recuo temporário à chegada dos inacianos ao Brasil no século XVI. Com isso, o trabalho final se tornou abrangente ao abordar a ação jesuítica no Brasil desde o período colonial até a primeira metade da República, no século XX e pode ser considerado por isso, uma história de longa duração.

O ensaio reúne textos produzidos durante a pesquisa (2010-2020), muitos dos quais passaram pelo crivo de eventos importantes no campo da história da educação como Congresso Luso-brasileiro de História da Educação (COLUBHE), Congresso Brasileiro de História da Educação (CBHE), reuniões da Associação Nacional dos Pesquisadores em História (ANPUH) entre outros.

Uma das inovações dessa obra é a reunião de um material com temporalidades diversas ao abranger a história de uma ordem que vivenciou rupturas e desafios durante sua história. Identifica-se a continuidade na filosofia dessa ordem e para além do seu objeto inicial, sente a necessidade de se debruçar no entendimento dessa filosofia.

Outra característica a ressaltar é a análise da ação jesuítica fundamentada na perspectiva globalizada de Serge Gruzinski. Guiado pelas fontes, o texto não se limita ao contexto do Ceará Republicano, mas vai “aos quatro cantos do mundo” e relaciona as atividades jesuítas na América Portuguesa com as missões asiáticas, as quais ainda merecem maior atenção na historiografia brasileira. Assim, percebemos como uma questão inicial pode deflagrar um sem-número de outras questões a serem selecionadas e analisadas pelo pesquisador. A Missão Setentrional dos Jesuítas Portugueses Dispersos, concebida para alocar os jesuítas exilados da República Portuguesa no Brasil, é o mote inicial para um trabalho denso em que as ações desses religiosos, ao longo de diferentes tempos e espaços, são intrincadas em torno de uma ordem cujas características e unidade vão sendo apresentadas ao longo do texto.

O ensaio foi didaticamente dividido em cinco capítulos e reúne tópicos de aspectos da pesquisa abordados durante uma década. O primeiro capítulo intitula-se Base filosófica e escrita, artes e pedagogia jesuítica. Ao examinar o papel dos jesuítas no âmbito da República Brasileira, as fontes instigam o questionamento da filosofia que permeia o pensamento e as ações desses religiosos. Três obras são a base para esse capítulo: Comentários do Colégio Coninbricense da Companhia de Jesus Sobre os Três Livros do Tratado Da Alma de Aristóteles Estagirita, do Padre Manoel de Goes (1598), A Fábula Mística - Séculos XVI e XVII, de Michel de Certeau (2015) e História do Futuro I e II e Chave dos Profetas, do padre Antônio Vieira (Século XVII).

Conforme ela revela, esse recuo temporal foi necessário para a compreensão da formação dos intelectuais jesuítas e sua ação missionária. Por isso, há um mergulho na pedagogia humanística dos inacianos iniciada nos séculos XVI e XVII. Para tanto, vem a lume um arcabouço de fontes para o estudo do período colonial de grande serventia para os pesquisadores do campo.

No segundo capítulo, Jesuítas: entre a ciência, a educação e a religião, aborda-se a formação dos jesuítas ressaltando sua qualidade intelectual e a racionalidade. Mesmo assentada sob o aspecto religioso, há um projeto racional em curso e o elo entre fé e razão é praticamente indissociável no desenvolvimento do pensamento vigente nos integrantes da Sociedade de Jesus. Com isso, sua presença é marcante, seja no oriente ou ocidente, influenciando a cultura e o modo de viver e ver a vida nos locais onde se instalaram desde o século XVI até ao XX. A densidade e solidez na formação de um inaciano, é um dos pontos de continuidade na história desses religiosos.

Ao abordar o percurso biográfico de Inacio de Loiola, Cavalcante inova ao ressaltar a presença feminina na vida do fundador da Sociedade de Jesus, pois, demarca o momento em que ele e a própria sociedade contaram com a ajuda de mulheres para se fazer e sobreviver como instituição religiosa, quando essa mulher carregava o fardo da responsabilidade pela entrada no pecado do mundo e era subjugada por esse motivo. Outro aspecto importante nesse capítulo, é o tópico sobre as artes e ofícios desenvolvidos nos colégios jesuítas ne período colonial. São agrupados e analisados os ofícios comuns em Portugal, espalhados para as novas terras e os ofícios ligados ao universo cultural dos povos originários.

O capítulo 3, Missões nos sertões do nordeste brasileiro e do leste africano, agrupa as missões jesuíticas instaladas no Ceará: Missão da Ibiapaba (1606-1759); Missão do Aquiraz (1748-1759); Missão de Baturité́ e Fortaleza (1920). Essa última constitui um desdobramento da missão portuguesa instalada na Bahia após a expulsão dos jesuítas pela República de Portugal, em 1910. A exemplo das Missões de Baturité e Fortaleza, as expedições realizadas pelos jesuítas ao nordeste brasileiro seguem os fundamentos fincados pelas missões dos séculos XVI, XVII e XVIII.

Ao se deter mais na Escola Apostólica fundada em Baturité em em 1927, ela identifica o padre Baecher vindo da missão africana na Zambézia, e evidencia sua tese de circularidade de preceitos e práticas inacianas visto aquela missão centralizar-se na escolarização de crianças e adolescentes em ambientes de internamento e evangelização, nos interiores mata adentro:

Impressiona a persistência da tradição cunhada pela Companhia de Jesus, a coincidência das concepções e práticas apostólicas, bem como o impacto que causa a presença desses missionários em localidades onde eram vistos como estrangeiros, juízes, enviados especiais de Deus, sendo tomados, não raro, como salvadores de almas. Missas e pregações, batizados, confissões e comunhões oferecidas a grandes quantidades de fiéis eram campanhas intensas após as quais os missionários voltavam aos seus locais de residência. Tudo isso era motivo suficiente para que tais missões fossem acontecimentos marcantes para a vida das populações interioranas que as recebiam. (CAVALCANTE, 2021, p. 266)

Ressalte-se ainda, a semelhança da ação missionária dos inacianos no século XVII e três séculos depois. Há uma conservação do padrão missionário e seu transplante para diferentes ambientes políticos - monárquico e republicano. Ao serem exilados no Brasil republicando no início do século XX, os jesuítas tentam realizar na antiga colônia o que estavam impedidos na nova Portugal republicana e antijesuítica. Na república brasileira, foram favorecidos a construir suas casas e residência somando-se ao esforço do clero brasileiro de fortalecimento da fé católica no contexto de laicidade implantado com a separação do estado e igreja em 1899.

No capítulo 4, Jesuítas no Ceará republicano: Escola Apostólica de Baturité́, residência e paróquia do Cristo-Rei, apresenta-se a investigação sobre a presença dos jesuíticas no Ceará na Primeira República, caminho pelo qual adentrou o universo das ações educativas desses religiosos no nordeste brasileiro. Por isso, a Escola Apostólica de Baturité ganha foco e as práticas de formação ocorridas em seu interior são analisadas. A presença e o papel dessa escola no contexto cearense são remontados a partir do cruzamento de fontes impressas, escritas e orais. O padre Santana, ex-aluno e ex-professor da Escola Apostólica de Baturité, é um dos seus principais narradores.

Nesse capítulo ainda encontramos o cotejo entre as recomendações pedagógicas da Província Portuguesa da Companhia de Jesus, escritas ao fim da primeira década do século XX, e as Constituições da Sociedade de Jesus, de 1551, com o qual analisa-se as rupturas e continuidades no pensamento pedagógico dessa ordem. As considerações levantadas apontam para uma ordem coesa e coerente em seus fundamentos mesmo diante das adversidades enfrentadas ao longo de quatro séculos. Os princípios contidos nesses documentos ainda regem as ações atuais dos inacianos em âmbito internacional. A dimensão moral e religiosa do projeto educativo dos inacianos fundamentada, sobretudo, nos Exercícios Espirituais, do fundador da Companhia, voltado para o cultivo de sua espiritualidade, é apontada como explicação para a preocupação dos jesuítas com o disciplinamento dos seus alunos, encontrada nos manuais da Escola de Baturité.

Essa escola funcionou de 1927 a 1963. Seu fechamento é atribuído à falta de vocação e seus alunos transferidos para o Colégio Santo Inácio, em Fortaleza. O objetivo dessa escola era educar meninos vocacionados para a vida apostólica, sacerdotal e religiosa na Companhia de Jesus. Por isso, selecionava alunos que demonstrassem piedade e intenção de consagrar sua vida à Deus. O curso durava cinco anos e juntamente com os estudos típicos do curso ginasial ocorria a preparação para admissão no noviciado da Companhia de Jesus.

As conexões da presença dos jesuítas no Ceará Republicando com Portugal Republicano são demonstradas ainda, através do culto à Nossa Senhora de Fátima, almejado pela comunidade portuguesa residente em Fortaleza, ainda impactadas pela aparição miraculosa em 1917. Para além de um costume, a devoção a esta santa, tornou-se marca cultural presente nos fortalezenses até os dias atuais.

No Capítulo 5, Ação de imposição e tradução cultural, Cavalcante se volta para as crônicas da Companhia de Jesus em relação aos índios do Brasil, no tempo colonial e imperial com o fito de analisar o retorno da Companhia ao país no século XIX. Seguindo a perspectiva da longa duração ela faz uma recapitulação dos significados de cada século para a história jesuítica: “os séculos XVI e XVII são considerados o período áureo das missões jesuíticas, o século XVIII lhes trará inúmeras dificuldades e atropelos. Já o século XIX será de negociações e retornos com vistas à recuperação do direito e liberdade de ação educativa dos jesuítas na Europa e em diferentes partes do mundo” (CAVALCANTE, 2021, p. 355).

Ao retornar ao Brasil em 1840, os jesuítas ainda conviviam com lembranças das leis pombalinas de expulsão, que muitos acreditavam ainda vigorarem em Portugal. Nesse contexto, os inacianos chegaram mais tímidos e receosos comparando-se com sua chegada em 1549, quando contavam com respaldo total da coroa portuguesa. Ainda assim, eles retomam a catequização de grupos indígenas entre as regiões sul e central do Brasil, e procedem à abertura de colégios para oferecer formação jesuítica à juventude brasileira de elite.

As missões de Macau e Brasil são apresentadas em perspectiva comparada, quando se evidencia algumas semelhanças como a resistência em ambas em admitir meninos locais como candidatos à Companhia de Jesus pela crença em sua inferioridade intelectual frente aos europeus:

Ao comparar a existência de uma mesma questão no campo da formação de padres em continentes diferentes e distantes no tempo e no espaço, este estudo - recorte de um outro mais amplo sobre a história dos jesuítas no campo educacional - revela o quanto o regulamento da Companhia de Jesus estabelecido ao tempo de Inácio de Loiola requeria atenta obediência e rigorosa observância, sobretudo no tocante a ser Roma o centro político e a Europa o centro de formação mais adequada aos missionários da Companhia de Jesus. No entanto, isto não significou que a formação dos jesuítas não tenha aqui e ali superado as barreiras territoriais iniciais. (CAVALCANTE, 2021, p.365).

O trabalho de Maria Juraci Maia Cavalcante contribui para desmontar certezas e conclusões acerca do jesuitismo no Brasil ao apontar a complexidade das relações criadas por esses religiosos em locais e temporalidades diversas.

A perspectiva da história comparada adotada no livro, permite um passeio entre as ações jesuíticas no oriente e no ocidente contrapondo os limites encontrados em cada realidade e as interações culturais forjadas.

Como é de se esperar de um estudo de longa duração, não há aprofundamentos e/o detalhamentos almejados por alguns leitores mais curiosos e deixa de fora análises sobre a presença jesuítica em muitos locais em que atuaram. Entretanto, a intenção parece ser essa mesma, ao deixar em aberto inúmeras possibilidades de aprofundamento e fios soltos a fim de estimular pesquisadores e estudiosos em geral para adentrarem por esses meandros, mas com pontos de partidas bem delineados:

Preferimos ficar entre o plano geral e o particular, adotando a ideia de recortes temáticos como aproximações possíveis no estudo dessa ação protagonizada pelos jesuítas. Há em nós o sentimento de sermos herdeiros de Capistrano de Abreu, no tocante à atitude reticente que tinha o historiador cearense em relação à construção de uma história total do Brasil. Preferia ele - como precursor das inovações metodológica da nova história francesa - investigar aspectos dessa história que revelassem algo de mais substancial sobre a economia, as relações sociais e os intercâmbios culturais havidos no processo colonial brasileiro. (CAVALCANTE, 2020, p. 406).

A escolha pelo estilo de ensaio está vinculada à impossibilidade de análises e interpretações fechadas. Como ela mesma sugere, sua investigação está mais atrelada “à dúvida, ao questionamento, ao diálogo com outros estudiosos, ao recurso do livre pensar e compromisso com nossa honestidade estudiosa das coisas históricas, que sabe dos limites e potencialidades do fazer historiógrafó, de suas tentações ficcionais e da sua inevitável provisoriedade”. (CAVALCANTE, 2020, p. 407).

Fica claro ao leitor do início ao fim desta obra, que a história dos jesuítas, bem como suas contribuições e/ou prejuízos (como querem alguns), compõem um campo de estudo ainda muito fértil e necessário para a compreensão da história da educação brasileira. E os inúmeros documentos registrados e guardados pelos inacianos - tratados, crônicas, cartas, relatórios entre outros - formam um conjunto de fontes quase inesgotável a serem acessadas para responder vários tipos de questionamento. Por se tratar de registros com apenas um lado da história, precisam receber tratamento interpretativo crítico e cotejo com outras fontes. Assim como Cavalcante fez com êxito nesse livro que nos apresenta.

REFERÊNCIAS

CAVALCANTE, Maria Juraci Maia. Os Jesuítas: a escrita de si no corpo historiado dos índios: reflexões sobre o papel da sua ação missionária na experimentação de uma pedagogia moderna: um ensaio de crítica histórica. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2021. [ Links ]

Recebido: 07 de Dezembro de 2022; Aceito: 15 de Fevereiro de 2023

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