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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-229 

Resenhas

Pensar a História da Educação: entre práticas, sujeitos e silêncios

Thinking about History of Education: between practices, subjects and silences

Pensar acerca de la Historia de la Educación: entre prácticas, sujetos y silencios

Julia Rany Campos Freitas Pereira Uzun1 
http://orcid.org/0000-0002-8073-296X; lattes: 7159573898145572

1Universidade de São Paulo (Brasil). juliauzun@usp.br

ECAR, Ariadne Lopes; BARROS, Surya Aaronovich Pombo de. História da educação: formação docente e a relação teoria-prática. São Paulo: FEUSP, 2022.


Não existe produção historiográfica descolada de seu contexto. A ideia de que o autor está à frente de seu tempo, ou que se instala no pensamento de três séculos atrás, vem carregada do principal pecado do historiador: o anacronismo. Nesse sentido, o livro organizado por Ariadne Lopes Ecar e Surya Aaronovich Pombo de Barros traz uma série de reflexões sobre a História da Educação e a profissão docente muito presentes no contexto em que se insere: o da preocupação com o desmantelamento das Ciências Humanas no Brasil, que afeta diretamente o processo de formação docente. Com propostas diferentes, vinculados a níveis educacionais diversos em todas as regiões do país, os autores e autoras envolvidos no projeto mobilizaram sua escrita para discutir o papel da História da Educação para a garantia de uma educação pública de qualidade, que dê voz a múltiplos atores e que faça sentido para professores e estudantes nesse momento de crise.

O resgate minucioso da história da profissão docente no Brasil é um grande desafio para os pesquisadores em História da Educação. A formação dos sistemas de ensino brasileiros passou por um processo precoce de estadualização, fazendo com que a formação de professores adquirisse caráter regional (TANURI, 2000, p.61). Nesse sentido, o grande esforço dessa obra é retomar trajetórias pessoais, institucionais e contextuais que ampliem o olhar sobre a história da formação de professores no Brasil, suas práticas, suas estratégias e suas diversas formas de apropriação e ressignificação do “ser professor” em diversas temporalidades.

É sabido que a criação de escolas voltadas para a preparação específica de professores esteve vinculada ao processo de institucionalização da instrução pública no Brasil, caminhando em conjunto com as propostas liberais de secularização e de ampliação do acesso ao ensino primário. Ainda que esforços do período colonial, como o Alvará de 6 de novembro de 1772, tenham regulamentado os exames aos quais os candidatos à docência deveriam ser submetidos em todo o domínio português, as primeiras iniciativas formais para a criação de centros de formação docente ocorreram em 1820, com a instalação das escolas de ensino mútuo, que desejavam preparar docentes ao mesmo tempo em que se ensinavam as primeiras letras (MOACYR, 1936, p.24).

Com a Lei de Instrução Pública, de 15 de outubro de 1827, foram estabelecidos parâmetros para a seleção de mestres e para a criação de escolas de primeiras letras em todos os povoados mais populosos do Império. Ainda que esse esforço inicial tenha sido generalizado, a Reforma Constitucional de 1834 garantiu que as Assembleias Legislativas Provinciais passassem a legislar sobre a instrução pública em cada província e sobre a formação de seus docentes (VILLELA, 1992, p.28). Surgiram, assim, as Escolas Normais Provinciais, a partir do modelo francês, oferecendo a cada província a liberdade de formar seus professores da forma como melhor conviesse à região. No ano seguinte, a primeira Escola Normal brasileira foi criada na província do Rio de Janeiro (BASTOS, 1998, p.91).

Ainda que as primeiras cadeiras tenham sido ocupadas por professores, nos anos finais do Império tais escolas foram abertas também às mulheres, que passaram a predominar em seus bancos. No final do século XIX, havia a ideia de que a educação nos anos iniciais deveria ser atribuída às mulheres, como uma extensão de sua atividade materna e da educação que já ofereciam em seus lares. Além disso, o magistério feminino era considerado como a única profissão capaz de conciliar as funções domésticas, ao mesmo tempo em que resolvia a escassez de mão-de-obra para a escola primária. Logo, o rápido processo de feminização do magistério foi decorrente do desprestígio social e dos baixos soldos oferecidos pela profissão (SIQUEIRA, 1999, p.221).

É a partir desse quadro que os doze capítulos do livro dirigem seu olhar. Com sistemas de ensino tão diversificados, com programas de formação docente muito distintos e discutindo temporalidades diversas, os autores se indagam sobre o papel da História da Educação na formação de sujeitos históricos conscientes de si, de seu contexto, capazes de olhar para o Outro e para a diferença. Afinal, quem são os professores formados no Brasil, ontem e hoje? Quais são as exigências e bases para sua formação? Como classe, raça, gênero e territorialidade podem influenciar nessa formação? Como a História da Educação pode atribuir sentidos para esse processo? Essas, dentre várias, são as questões debatidas de formas distintas pelos autores da obra.

A primeira parte do livro tem como objetivo principal a discussão sobre o papel da História da Educação nos currículos dos cursos superiores de formação de professores, sejam as Licenciaturas ou a Pedagogia. Partindo de currículos já estabelecidos em instituições de Ensino Superior, os artigos têm em comum a identificação dos problemas apresentados no trabalho com a História da Educação e a reflexão sobre o papel da disciplina na formação do indivíduo e do professor.

Acerca desta reflexão, Cíntia Borges de Almeida, Marcelo da Silva Gomes e Raquel Freire Bonfim defendem que a História da Educação deve ser entendida como elemento fundamental para a formação docente, apresentando uma grande cartografia dos currículos de licenciaturas de universidades públicas no país e demonstrando as diferentes formas de apropriação e reconhecimento da disciplina.

Por sua vez, Aline Moraes Limeira avança na discussão sobre a relevância da História da Educação na formação docente, reforçando sua importância como saber formador nos cursos de Pedagogia. Ela ressalta o papel da disciplina dentro do contexto de crise das Ciências Humanas no Brasil no século XXI, identificando o papel da História da Educação no reconhecimento dos estudantes como sujeitos históricos capazes de refletir sobre os processos de escolarização e sobre a sociedade em que vivem.

A segunda parte da obra analisa, a partir de estudos de caso, diversas experiências docentes com a História da Educação no Ensino Superior, em suas mais diferentes formas de oferta. Ainda que abordem regiões diferentes do Brasil, os textos têm em comum a análise de processos práticos do trabalho com a História da Educação, desvendando as especificidades que este conteúdo precisa se ater em diferentes contextos e temporalidades.

Natália Gil questiona as motivações para a presença da disciplina no Ensino Superior, identificando-a como necessária para a formação de professores reflexivos. A partir de sua prática como pesquisadora e professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ela problematiza as formas como a História de Educação foi tratada no passado e no presente, tecendo expectativas para o futuro da disciplina como impulsionadora da compreensão das identidades plurais, como forma de explicar o papel da mudança na história, como identificação dos sujeitos como produtores dessa história e como forma de cultivo de um ceticismo saudável.

Angélica Borges e Amália Dias apresentam o papel da História da Educação nas diversas modalidades de trabalho com o Ensino Superior - seja a pesquisa, o ensino e a extensão. A partir da análise de suas experiências na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, as autoras evidenciam o papel do conceito de periferia nos estudos de História da Educação, refletindo sobre o papel da disciplina na formação de professores em um contexto que se identifica como periférico e necessita dar visibilidade à história local para a criação de um movimento duplo da formação do professor e do magistério nas periferias.

Já Felipe Tavares Moraes discute as relações entre a História da Educação e o Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR), a partir de sua trajetória docente no Campus Marabá da Universidade Federal do Pará. Através da epistemologia da prática docente, o autor analisa como o programa agiu de forma emergencial para formar professores que já estavam em atividade na Educação Básica, mas não tinham formação superior, apresentando os problemas enfrentados pelos professores cursistas, os silenciamentos da história local e a perspectiva colonial dos currículos de História da Amazônia, que centralizava os conteúdos apenas na formação da capital do estado, ressaltando a importância do diálogo e da reformulação dos currículos de História da Educação.

Os capítulos que compõem a terceira parte do livro travam um importante diálogo entre a História da Educação e os diversos sujeitos silenciados pela historiografia ao longo dos anos. O objetivo principal destes textos é questionar, por meio da perspectiva interseccional, as relações entre gênero, raça e História da Educação.

Através do olhar da história das mulheres, dos estudos de gênero e de seus vínculos com a História da Educação, Fabiana Garcia Munhoz tece um conjunto de reflexões com o objetivo de desnaturalizar a profissão docente como uma atividade feminina, discutindo os processos de escolarização das mulheres na história brasileira. A autora também reflete sobre os movimentos de hierarquização da profissão docente, que levaram as mulheres para docência na Educação Básica, com salários mais baixos, e os homens para a Educação Secundária e Superior, com status mais elevados e salários maiores. Retomando a trajetória de professoras negras, como Maria Firmina dos Reis, Benedita da Trindade e Coema Hemetério dos Santos, a autora discute o papel da raça nas delimitações do magistério feminino ao longo da história brasileira.

Surya Aaronovich Pombo de Barros propõe uma série de usos e apropriações da História da Educação para uma formação antirracista. Em seu texto, a autora investiga a emergência das temáticas raciais nas discussões sobre a História da Educação, rompendo o silenciamento de anos sobre tais temáticas. Para isso, ela discute um grande conjunto de legislações educacionais para refletir sobre as mudanças na forma de tratamento às populações negras na educação, apresentando os processos de inclusão e as lacunas ainda presentes nesse movimento. A autora apresenta um conjunto de pesquisas realizadas sobre o tema desde 2003, questionando as transformações na historiografia da educação e a inserção da perspectiva antirracista, igualitária e interseccional. O objetivo central da autora é discutir os resultados dessas transformações para a formação docente, incluindo os espaços de protagonismo negro na educação da atualidade.

Como encerramento da terceira parte, Mariléia do Santos Cruz ressalta a importância da inserção de intelectuais negros no processo de construção da memória coletiva brasileira, como forma de combate às políticas de exclusão e esquecimento dessa população. Em seu texto, a autora apresenta formas de uso e inserção de autores negros nas discussões da História da Educação como disciplina de formação docente. Ela centraliza suas propostas na análise dos textos de José do Nascimento Moraes, jornalista e professor maranhense, que atuou na Escola Normal e no Liceu Maranhense, avaliando seus livros, escritos de jornal e impressos durante a década de 1930, justificando sua escolha de recorte a partir de sua importância para a estruturação do sistema nacional de educação.

A última parte do livro traz uma série de reflexões sobre o processo de institucionalização da Educação Básica brasileira através da perspectiva da História da Educação. Através de estudos de caso, os textos reúnem questionamentos sobre as formas distintas de educação e docência de crianças e jovens em modalidades variadas, níveis distintos e espaços escolares diversos.

Aline Lima da Silveira Lage e Maurício Rocha Cruz analisam as maiores tendências da educação de surdos no Brasil e as principais propostas para a formação de docentes voltados para este grupo no país, entre os séculos XIX e XXI. O centro da análise é o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), fundado em 1855, como uma colaboração do professor francês Édouard Houet e o governo imperial. O objetivo do texto é refletir sobre os espaços da educação de surdos na História da Educação. Os autores realizam um grande levantamento de fontes, dentre as quais estão os currículos, relatórios e propostas de cursos para a formação docente do Instituto, além de uma detida análise historiográfica, traçando o protagonismo, as contribuições e a trajetória da instituição para a população surda em processo de escolarização.

Em seu artigo, Vinícius de Moraes Monção debate a organização, estruturação e escolarização no contexto brasileiro, centrando-se nos espaços do Rio de Janeiro e do Distrito Federal na primeira metade do século XX. O autor quer ampliar as discussões sobre a educação pré-escolar, conceitualizada em seu texto como aquela destinada às crianças menores de 7 anos, tida em seu período como a idade inicial para a obrigatoriedade escolar. O objetivo do autor é colocar em diálogo a conformação da educação pré-escolar com as estratégias e táticas de formação de professoras para essa etapa, especialmente a partir da década de 1920, quando a pré-escola pública se constitui e as Escolas Normais passam a se especializar no atendimento a essa faixa etária. As bases para essa discussão são dois guias pedagógicos, elaborados pelas professoras Celina Airlie Nina e Heloísa Marinho, permitindo a construção de uma interlocução entre a prática pedagógica, a história da educação e a trajetória docente como um conjunto de vivências e suportes produzidos fora da educação pré-escolar.

Ariadne Lopes Ecar traz à luz a análise dos registros da professora Noêmia Saraiva de Matos Cruz, realizados no Grupo Escolar Rural de Butantan entre os anos de 1937 e 1945. A partir das premissas da História Cultural, a autora propõe a análise dos cadernos da professora produzidos no Clube Agrícola da instituição, com o objetivo de conhecer os conteúdos e propostas de trabalho para a educação rural, percebendo as táticas usadas pela professora para divulgar suas experiências através dos registros de seus próprios estudantes. O texto também traz reflexões importantes para a importância do registro escrito no processo de formação de professores e na compreensão da cultura escolar. Nesse ínterim, a autora realiza várias considerações sobre os objetivos das escolas rurais, sobre a importância dos currículos, grades horárias e prescrições para os professores desse tipo de instituição.

Para encerrar o livro, Carlos Alberto Diniz traça a trajetória do Ginásio Municipal Dr. Adhemar de Barros, primeiro ginásio público da cidade de Matão, no interior de São Paulo, analisando suas transformações entre 1940 e 1965. O autor ressalta a importância dos ginásios no interior do estado como símbolo da modernização e do desenvolvimento locais, refletindo sobre seu processo de ampliação a partir do momento em que passa a ser gerenciado pelo governo estadual, passando por um processo que o transformou em uma das escolas de elite paulistas. Durante sua análise, o autor aborda as representações da instituição para a comunidade e as práticas de ensino ali realizadas, apresentando os múltiplos e complexos significados do espaço escolar e suas contribuições para a História da Educação.

Um dos pontos centrais que norteiam todos os textos do livro é a necessidade de compreensão de que a História da Educação pode ser vista como um grande caleidoscópio: ao mesmo tempo que fala sobre espaços escolares, também deve discutir seus artefatos, suas práticas, suas políticas e seus silenciamentos. Seja como disciplina curricular ou como campo de investigações, a História da Educação traz um grande conjunto de temas e propostas imbricados, que só possibilitam uma análise detida de seu contexto quando analisados em paralelo. A própria divisão das partes do livro indica sobremaneira essa necessidade: para conhecer o processo de formação de professores, é necessário analisar a práxis, as experiências e sujeitos envolvidos, as discussões interseccionais que ela provoca e sua relação com os educandos, sejam eles crianças ou jovens.

Além disso, todos os textos do livro ressaltam a importância da reflexão constante sobre a formação de professores. Quem leciona? A partir de que bases e premissas? Quais documentos e indicações norteiam a prática docente? Por que a profissão docente é considerada pelo senso comum como uma atividade feminina? Cada um a sua forma, os capítulos desse livro perscrutam o labirinto de construção da formação de professores, incluindo suas exclusões, suas políticas e os lugares sociais determinados para o professor - e para a professora - em cada contexto. O livro reforça a importância da História da Educação nos currículos da Educação Superior como forma de compreender as conquistas da profissão e de repensar, ressignificar e reapropriar os espaços, as lutas e as políticas para a formação daqueles que conduzem a Educação Básica no país.

Referências

BASTOS, Maria Helena C. A formação de professores para o ensino mútuo no Brasil: o “curso normal para professores de primeiras letras do Barão de Gérando (1839)”. História da Educação. Pelotas, n. 3, v. 2, 1998. p. 95-119 [ Links ]

MOACYR, Primitivo. A instrução e o império: subsídios para a história da educação no Brasil (1823-1853). São Paulo: Editora Nacional, 1936. v. 1 [ Links ]

SIQUEIRA, Elizabeth M. Luzes e sombras: modernidade e educação pública em Mato Grosso (1879-1889). Tese de Doutorado em História da Educação. Instituto de Educação da Universidade Federal do Mato Grosso, 1999. [ Links ]

TANURI, Leonor Maria. História da formação de professores. Revista Brasileira de Educação. n. 14, mai/ago 2000. p. 61- 92. [ Links ]

VILLELA, Heloisa de O.S. A primeira escola normal do Brasil. In: NUNES, Clarice (org.). O passado sempre presente. São Paulo: Cortez, 1992. [ Links ]

Recebido: 24 de Novembro de 2022; Aceito: 12 de Janeiro de 2023

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