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Cadernos de História da Educação

versión On-line ISSN 1982-7806

Cad. Hist. Educ. vol.22  Uberlândia  2023  Epub 07-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/che-v22-2023-233 

Resenhas

O ambiente escolar para além do espaço físico: análise de suas transformações em diferentes perspectivas

Beyond the physical setting: an analysis of School Environment and its transformations from different perspectives

El ambiente de la escuela más allá del espacio físico: análisis de sus transformaciones en diferentes perspectivas

Rita de Cassia Gallego1 
http://orcid.org/0000-0003-4465-8173; lattes: 5047364999300982

1Universidade de São Paulo (Brasil). ritagallego@usp.br

LIMA, Ana Laura Godinho; CAZETTA, Valéria. O Ambiente escolar em transformação. Campinas, SP: Alínea, 2022.


Ana Laura Godinho Lima e Valéria Cazetta, ao organizarem o livro O Ambiente escolar em transformação, publicado pela Editora Alínea, oferecem uma contribuição bastante original e generosa ao campo educacional. Tal originalidade e generosidade pautam-se em algumas características que considero peculiares: versa acerca de uma temática pouco explorada (ambiente escolar), ainda que seja extremamente importante; os/as autores/as são tanto por pesquisadores/as, em diferentes momentos da carreira acadêmica, quanto docentes e discentes que atuam na Educação Básica, aspecto esse que considero remarcável; percepção essa também expressa por Natália Gil, em seu instigante Posfácio. Essa configuração permitiu uma análise do objeto central da obra - ambiente escolar - por várias perspectivas: Educação (especialmente História da Educação e Psicologia da Educação), Medicina, Geografia, Arquitetura, Psicanálise e dos sujeitos que atuam na Educação Básica.

Outra marca a se destacar é a forma como o livro está estruturado. As organizadoras esclarecem, no consistente texto de apresentação, que esse é fruto de um evento realizado no Instituto de Estudos Avançados da USP, em agosto de 2021, ainda em meio à pandemia da COVID-19, a qual mobilizou algumas das questões primordiais discutidas naquela oportunidade, tais como expressas pelas organizadoras:

O que foi possível continuar?, O que foi preciso transformar?, O que se interrompeu bruscamente? Que dificuldades novas se impuseram e, por outro lado, que novos recursos puderam ser enfim experimentados? Que novos aprendizados se tornaram inadiáveis? Que outros se tornaram impossíveis na escola em suspensão? (p. 12).

Soma-se a essa, uma indagação considerada pelas organizadoras imperativa naquele momento: “E agora, quando e como voltar à escola terrena, como aterrizar?” (p. 13).

A informação de que a obra é fruto do evento é importante para se compreender a estrutura do livro, o qual, além do Prólogo, escrito por Júlio Groppa Aquino, e o Posfácio, de autoria de Natália Gil, apresenta como capítulo zero o texto de Carlota Boto, o qual consistiu na conferência de abertura do referido evento. É composto por 4 partes, as quais derivaram das mesas redondas do Seminário, mantendo-se o mesmo título na publicação, e um total de 13 capítulos, sendo esses assim distribuídos: cinco capítulos na primeira parte, três capítulo na segunda, dois capítulos na terceira e três capítulos na quarta, sendo as páginas finais de cada uma delas, inclusive do capítulo zero, dedicada a “Comentários”, com exceção da segunda. Segundo as organizadoras, tendo em vista o importante papel dos mediadores dos debates nas mesas, os quais, ao ampliarem o debate público, possibilitaram não só pensar sobre o contexto educacional pandêmico, extrapolando as fronteiras das disciplinas, mas também impediram que a análise se restringisse à busca de “soluções mágicas” e sem dificuldade haja vista a sabida, complexidade da realidade da educação brasileira, decidiram mantê-los no livro.

A/O leitor/a que tem como expectativa encontrar uma discussão voltada à arquitetura física dos espaços escolares, por ter como temática nuclear o ambiente escolar, engana-se. Ainda que se fosse feita essa escolha já seria muito original. Ao sair do lugar comum, o livro traz inúmeras provocações. A cada capítulo, novas perspectivas no exame do ambiente escolar, evocando-se problemáticas que possibilitam um olhar para a escola, e a educação, em sua complexidade para além do material: seus sujeitos, relações com a sociedade e famílias. Na apresentação, as organizadoras esclarecem que houve a pretensão, desde o evento, de contemplar os diferentes sensos do termo ambiente, não apenas o “ambiente natural e as condições do espaço físico ocupado pela escola, mas também a configuração social, histórica, política, tecnológica e ainda as relações afetivas que envolvem as crianças e os adolescentes em seu processo de escolarização” (p. 13). Desse modo, ao enfrentar o debate acerca do ambiente escolar, considerado em um sentido amplo, não restrito aos aspectos físicos e objetivos, analisado de forma interdisciplinar, é evidenciada a sua complexidade e, portanto, segundo as organizadoras, é assim que esse precisa ser “reimaginado, reconfigurado e, sobretudo, retomado” (p. 13).

Considero que a compreensão das organizadoras acerca do ambiente escolar dialoga com a forma pela qual o psicólogo e investigador na área da neurociência Colin Ellard (2019), no sugestivo livro A alma dos lugares: como a paisagem e o ambiente alteram o nosso comportamento e as nossas decisões, concebe o impacto do ambiente ou lugar em nosso comportamento, atitudes e sentimentos:

As nossas experiências diárias relativas ao lugar, por norma, não são tão sublimes. [...] estudos psicológicos sugeriram que a forma de tais espaços não afeta apenas o modo como nos sentimos, mas também nossas atitudes e o nosso comportamento, tornando-nos mais condescendentes e prontos para nos submetermos a uma vontade maior e mais forte. [...] O contraste entre as nossas reações a tais espaços pode ser facilmente lido nos nossos corpos. É visível na nossa postura, nos padrões dos nossos movimentos de olhos e cabeça e, até, na nossa atividade cerebral. Onde quer que vamos, os nossos sistemas nervosos e as nossas mentes são moldados pelo que vivemos. (ELLARD, 2019, p. 17-18, grifos nossos).

Ainda na apresentação, sublinho a imagem trazida por Ana Laura e Valéria, a mesma utilizada no cartaz de divulgação do evento, cuja escolha considero bastante acertada, uma vez que é potente para mobilizar algumas das problemáticas pelas quais estávamos todos passando naquele momento pandêmico. Isso porque na imagem não há fronteiras definidas, essas se embaralham, não há uma imagem propriamente definida, evocando justamente a diluição do espaço físico da escola e a ocupação de vários espaços ao ser utilizado o espaço virtual para a realização das aulas. Ao extrapolar o caráter concreto, as organizadoras, perspicazmente, associam essa imagem “nublada” a alguns dos sentimentos presentes entre docentes e discentes dos vários momentos da Educação, tais como “confusão, vertigem, desabamento, desemparedamento, robotização, estilhaçamento” (p. 14). Antes de apresentarem a forma pela qual o livro está estruturado, Ana Laura e Valéria fazem questionamentos muito relevantes acerca de como a imersão compulsória perante as telas trouxeram implicações que extrapolam as dimensões pedagógicas da ação docente, entre elas a saturação, angústias e, inclusive, os efeitos da contemplação narcísica.

Carlota Boto, no capítulo zero, intitulado História da escola e da cultura escolar, realiza um exame minucioso e erudito de diversos projetos de ensino, mediante a retomada de marcos importantes da História da Educação, mobilizando o que houve em cada um deles, trazendo preciosidades ao citar fontes que são raramente exploradas. A autora chama a atenção para algo que considero muito relevante: “Todos os povos têm educação, mas nem todos têm escola” (p. 24). Para Boto, a compreensão de como a escola e a cultura escolar se constituem historicamente implica um olhar panorâmico que possibilite a apreensão do legado, dos deslocamentos, da circulação e também das heranças e continuidades. É nesse sentido que destaco em seu capítulo algo que talvez não seja tão evidente para quem não tenha tido em sua formação aulas de História da Educação, haja vista que cada vez mais são retiradas horas dessa disciplina nos cursos de formação docente: a linguagem utilizada na educação é bastante alterada, segundo o contexto de utilização e o momento histórico, sendo alguns sentidos muito diferentes a considerar tais elementos e tão evidentes no texto, a exemplo de escola, colégio, professor, aluno, para citar alguns, e, portanto, espaço e ambiente escolar.

Isso porque para além dos contextos políticos, econômicos, sociais, é preciso considerar quem é responsável pela organização educacional, quem é ou pode ser docente, quem são os alunos elegíveis, onde e como são os espaços nos quais ocorre a ação educativa, a função social da educação escolar e sua organização, o repertório teórico e material pedagógico existente etc. A autora faz um panorama partindo de Grécia e Roma, passa para a Idade Média, então Renascimento, os colégios jesuíticos, os Irmãos das Escolas Cristãs, a Revolução Francesa, a Escola Nova, concluindo o capítulo de forma magistral ao trazer o debate sobre a escola justa. Assim como salientado pelo comentarista, Naomar de Almeida Filho, Carlota desvela como se institui a missão político-ideológica da educação. Acredito que as considerações realizadas pela autora na introdução do capítulo evidenciam o eixo analítico presente em sua brilhante contribuição:

À guisa de ritual, o movimento escolar se desenrola e depois se desagrega para, em seguida, se reconstituir ‘mudar de estado e de forma, morrer e renascer de outra forma (GENNEP, 2011, p. 268). Ao proceder assim, a escolarização tende a trabalhar com muito mais continuidades do que com deslocamento ou com rupturas. É encenando sempre a dramaticidade da permanência que ritos se tornam constitutivos do cotidiano da formação (p. 24)

Os três primeiros capítulos da Parte 1 são escritos por docentes da Educação Básica, o que consiste em um dos importantes diferenciais do livro. O capítulo 1 - A escola antes, durante e depois da pandemia: reflexões de profissionais e estudantes da educação básica - não instiga o/a leitor/a somente por seu título - “O professor na coxia”, mas também pelo fato de o professor Bruno Alvarez problematizar de forma astuta o método simultâneo de ensino, fazendo uma relação muito perspicaz entre a aula presencial, por vezes replicáveis, e o sentido desses momentos. Tendo em vista a possibilidade de gravação das aulas, tão realizada durante a pandemia, questiona o sentido de se considerar a mesma aula independentemente dos sujeitos ali envolvidos.

Ao ponderar, “evitando-se a armadilha dos modismos”, tanto o papel das aulas expositivas, que, para ele, devem ter lugar nas escolas, quanto o extremo de se perceber na tecnologia e sua inteligência artificial, “compreendidas como tábua de salvação e como potenciais substitutos dos professores” (p. 75), entendo que o Bruno dialoga com as considerações e também preocupações de José Mário Pires Azanha, em seu texto “Uma reflexão sobre a Didática” (1985), quando afirma que o professor: “Na sua atividade criativa de ensinar é um solitário, que por isso mesmo não deve esperar socorro definitivo de nenhum modelo ou método de ensino por mais avançadas e sofisticadas que sejam as teorias que supostamente os fundamentam” (p. 32). Ainda que reconheça algumas das potencialidades do uso das metodologias ativas, o professor evita tomá-la como panaceia e traz uma consideração que entendo ser muito perspicaz: a importância de se valorizar os momentos de contato em carne e osso com os alunos. Para o autor, o maior ensinamento trazido por esse contato com a tecnologia é que os educadores devem ser cada vez mais humanos, provocando-os a possibilitarem que seus alunos brilhem.

Ingrid Rodrigues Gonçalves, autora do segundo capítulo da primeira parte, “Narcísios sem férias - Sujeitos e materialidades de uma nova cultura escolar?”, mediante a utilização de analogias e metáforas ao evocar as experiências do ambiente escolar presencial para o vivenciado virtualmente, brinda o leitor com uma retomada preciosa de sua atuação docente na ETEC Cepam, onde trabalhou durante o período da pandemia, momento em que viu modificadas, de forma repentina, atividades cotidianas corriqueiras com a entrada no mundo virtual com a utilização das plataformas Google e Microsoft, nas quais pôde experimentar o que chamou de “caos inovador”, no qual o dia-a-dia passou a ser “audiovisualizado”. Nessa retrospectiva analítica, a autora traz uma problemática significativa quanto à vulnerabilidade do ambiente virtual. Assim como os imprevistos, por vezes, faziam com que não houvesse aula no contexto presencial, a autora retoma que a indisponibilidade do sistema impactou na dinâmica escolar, a qual, naquele momento estava alicerçada pelo prédio virtual, construído por bits, bytes, menus, tags, pdfs, uploads e links, sendo todos “barrados no baile virtual das senhas e criptografias digitais” (p. 81).

Lara Chaud Palacios Marin, também professora, dedica o seu provocativo capítulo 3 - A docência na educação básica durante pandemia da Covid-19: saberes pedagógicos em pauta - à narrativa de algumas das suas experiências na atuação junto ao 2º ano do Ensino Fundamental I, em 2020, de uma escola privada da cidade de São Paulo. Um diferencial trazido pela autora é que, ao discutir as transformações do ambiente da sala de aula vivenciadas no decorrer da pandemia, dialoga com sua pesquisa que tem como objeto central a cultura escolar, mobilizando referenciais teóricos relevantes acerca desse. Afora isso, faz considerações sobre os desafios do trabalho docente e conjecturas acerca das permanências e mudanças da instituição escolar pós-pandemia.

Tal como também observado nos comentários da Parte 1 tecidos por Ingrid Rodrigues Gonçalves, uma das mudanças mais expressivas durante a pandemia consistiu no “baralhamento” das fronteiras entre os espaços domésticos e escolar, estando as famílias lidando ao mesmo tempo com seus filhos, mas também com alunos. Ao tratar em sua narrativa sobre aspectos pedagógicos como planejamento, tempo, avaliação, comportamento dos estudantes entre outros, Lara demonstra que o ambiente escolar consiste em um lugar do imprevisto e os profissionais da educação deparam-se constantemente com situações novas e inesperadas. Para a autora, ainda que não se considerem aptos para enfrentá-las, os docentes adaptam-se continuamente a essas mobilizando seus saberes pedagógicos e é assim que ocorre a dinâmica contínua entre a conservação e transformação no ambiente escolar; sendo a transformação entendida, assim, não apenas no âmbito das reformas estruturantes do modelo escolar.

Já os dois capítulos seguintes, 4 e 5, que encerram a parte 1, destacam-se por terem sido escrito por estudantes do Ensino Médio, o que considero, como apontado anteriormente, um dos aspectos mais originais do livro; aspecto esse também remarcado pelo estudante Theo Garcia da Silva, autor do capítulo 5. Anna Julia Silva de Jesus, no capítulo 4, intitulado Será que o vestibular ainda é uma opção?, aluna que cursa habilitação técnica em Serviços Jurídicos na ETEC Cepam, a mesma escola onde atua a professora Ingrid, e integra o Programa de Pré-Iniciação Científica e de Pré-Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação da USP, como bolsista do CNPq, na dúvida do que priorizar, escolhe realizar uma retrospectiva na qual mobiliza algumas vivências como estudante entre os anos de 2020 e meados de 2021, nos quais esteve diante a tela para adentrar a escola.

A estudante, de forma bastante lúcida, questiona se perante o medo cotidiano frente à instabilidade do acesso à internet e aos dados alarmantes de 2.572 mortes diariamente, faz sentido ter o vestibular como opção. Em um texto sensível e questionador, Anna Julia, ao eleger alguns meses para trazer acontecimentos marcantes, mobiliza questões que demonstram que o ambiente escolar, certas vezes, ignora ou tenta passar por cima de aspectos importantes para os estudantes, entre eles destaco a saúde mental, para dar continuidade ao que se propõe em termos curriculares. Entretanto, para a aluna, “estamos vivendo uma educação robotizada, que desvaloriza qualquer busca pelo conhecimento” (p. 115), provocação essa que, ao meu ver, seria importante os/as educadores/as levarem em conta.

Tão provocativo quanto o texto anterior, o capítulo 5, escrito pelo estudante que, tal como Anna Julia, é bolsista do CNPq pelos mesmos Programas e frequenta a mesma ETEC, sendo recém ingresso no curso de Ensino Médio com habilitação técnica em Serviços Públicos. A participação de Theo representou também um debate político em termos da representação estudantil haja vista que estava à frente, naquele momento, de duas diretorias - das Escolas Públicas Técnicas da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (UPES) e das Escolas Públicas da União Municipal dos Estudantes Secundaristas de São Paulo (UMES-SP). Em um texto contundente, Theo buscou publicizar certas contradições que vinha experimentando como estudante, uma vez que luta por direitos e condições adequadas de educação no ensino público. Ao eleger alguns dilemas que vinha enfrentando, Theo destaca uma série de desafios, sendo a gestão do tempo nuclear.

Considero relevante a sua observação de que certas críticas tecidas ao ensino público não se circunscrevem ao período pandêmico. Entre elas denuncia a falta de docentes e as suas condições cada vez mais precárias de trabalho, o que leva os alunos a ficarem por horas no aguardo de professores para ministrar a aula de 50 minutos. Desse modo, acredito que o “grito” de Theo é no sentido de “estar em um espaço e ambiente escolares que pudessem proporcionar regularidade” em seu processo formativo, reivindicação essa alcançada quando passou a frequentar a ETEC. Talvez essa constatação possa provocar políticos e educadores a pensar de que modo tal estrutura poderia inspirar a organização das escolas públicas de modo geral. Ingrid, em seus comentários, observa que Theo nos lembra da importância de sonhar, com o que concordo.

A Parte 2, que trata sobre O desenvolvimento humano, a formação da subjetividade e seus entraves no ambiente escolar, é composta por três capítulos deveras instigantes. O autor Cláudio Gonçalves Prado, no artigo Impactos do ambiente no desenvolvimento humano - as contribuições das teorias psicológicas interacionistas em tempos de pandemia, ao mobilizar em sua análise autores representantes da perspectiva interacionista (Jean Piaget, Lév Vigotski e Henri Wallon) discute como esses auxiliam na compreensão da importância dos ambientes de aprendizagem, relacionando essa a aspectos sociais, culturais e econômicos, trazendo questionamentos pertinentes a exemplo de: “(...) como acompanhar a evolução das mídias digitais e do ensino remoto on-line sem acesso a computadores celulares e internet?” (p. 134). Para além das concepções de aprendizagem mobilizadas, o autor relaciona a necessária adoção do ensino remoto e as condições concretas nas quais estão os sujeitos, tensionando os limites impostos para o desenvolvimento humano, haja vista a configuração dos espaços/ambientes domésticos, chamando a atenção para a dimensão afetiva, sendo essa considerada essencial para o aprendizado, o que entendo ser uma contribuição singular desse capítulo.

Também sensível à importância do cuidado, Júlia Catani discute no capítulo 7, o qual versa sobre as Compreensões acerca do cuidado: diálogo com pais e professores a partir da noção de ambiente segundo a psicanálise, como algumas orientações do campo psicanalítico foram sendo incorporadas e contribuíram para a produção de saberes e transformações no ambiente escolar. Algo importante destacado por Júlia é a certa naturalização de algumas delas no cotidiano da escola a exemplo do processo de adaptação das crianças ao ingressarem na escola, para o qual os pais são mobilizados até que essas sintam-se mais confortáveis para ficarem longe dos mesmos. Embora seja amplamente defendida a permanência das crianças na escola, a autora, com base nos referenciais teóricos Donald Winnicott, Françoise Dolto, Anna Freud e Melanie Klein, traz uma discussão que considero essencial - se, por um lado, o ambiente pode ser fértil e acolhedor, por outro lado esse pode ser muito desestruturante e marcar muito negativamente o sujeito, ou seja, produtor de sofrimento, dificultando, assim, a vida social e o convívio da criança da primeira infância à vida adulta.

Embora mobilize um referencial teórico distinto dos capítulos anteriores dessa Parte, Bruna Lavinas Jardim Falleiros discute uma questão bastante polêmica que tem, frequentemente, permeado o cotidiano escolar e social - o gênero. No capítulo intitulado “Menina veste azul e menina veste rosa”: análise de um enunciado, a autora analisa o referido enunciado, possibilitando a compreensão dos jogos de saber e poder tão presentes nos dias de hoje no Brasil e seus impactos no âmbito educacional. A autora inspira-se em Michel Foucault e recorre à uma literatura sobre gênero bastante atual para analisar suas fontes nucleares - três periódicos: A Cigarra (1914-1962), Vida Doméstica (1920-1962) e Pais & Filhos (1968-).

À guisa de uma discussão que considero tão contundente quanto aquela realizada pela psicóloga espanhola Montserrat Moreno (1999), no livro Como se ensina a ser menina, Bruna localiza o momento histórico em que se definiu o uso de rosa para menina e azul para menino, descortinando uma tradição tão enraizada e até incontestável, em algumas situações, como se o uso dessas e outras cores fossem naturais e não uma construção histórica e cultural, que passou, inclusive, pelo desenvolvimento de exames de identificação do sexo dos bebês. A construção realizada pela autora contempla as articulações dessa construção e seu impacto no ambiente escolar e fora dele, uma vez que assume um caráter ideológico, fazendo uma articulação muito bem elaborada ao contexto político vivido entre os anos de 2019 e 2022, particularmente no âmbito federal.

Com preocupações semelhantes, a Parte 3, A Educação e a Saúde da criança no ambiente da escola: considerações da Pedagogia e da Medicina, é composta por dois capítulos muito instigantes, nos quais as fronteiras entre os campos da Pedagogia e Medicina são atenuadas, uma vez que é inegável o impacto dos discursos da Medicina na organização escolar. Nesse sentido, no capítulo A escola como um ambiente propício à educação, Ana Laura Godinho Lima faz uma defesa explícita sobre sua crença na educação das crianças ser um processo que demanda tempo e, assim, ao invés de ideias inovadoras, busca ideias duradouras para, dessa forma, pensar a transformação necessária da escola.

A autora elege quatro ambientes potenciais para desencadear processos educativos importantes: a sala de aula, a biblioteca, a sala de artes e o pátio, escolhas essas que considerei muito perspicazes, isso porque mobiliza espaços físicos já existentes para se pensar em transformações viáveis, tomando como pilares estruturantes do ambiente escolar o diálogo e as narrativas, o estudo, a prática e a convivência. Tensiona, desse modo, veementemente os discursos que veem a solução para a “crise” da escola nas tecnologias digitais e nas metodologias ativas; problemática essa também explorada de forma exemplar por Aquino e Boto (2019), demonstrando também fragilidades desse tipo de crença. Entendo que Ana Laura contribui para desconstruir que basta a mudança física dos espaços para a escola ser transformada; posição essa com a qual compartilho.

Já Maria Aparecida Affonso Moysés inicia o capítulo 10, intitulado A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico: riscos de quando a medicina adentra na escola, com questões que julgo fundamentais perante a frase que, tal como a autora, considero genérica, homogeneizadora, normalizadora e normatizadora - “pensar a saúde da criança na escola” - tais como: “Qual criança?, Qual escola?, Qual conceito de saúde, Pensar por quê?” (p. 195). Ao retomar momentos importantes marcados pela construção dos discursos cientificistas da medicina, os quais procuram normatizar o cotidiano e também a aprendizagem, Maria Aparecida, ao contrário de muitas opiniões mais otimistas acerca da relação entre educação e a medicina, defende que é essencial que a sala de aula e a escola sejam compreendidas como espaços prioritariamente pedagógicos, portanto que se inscrevem na área de competência e de responsabilidade de educadores. Acredito que ao assumir tal perspectiva contribui para a valorização dos saberes propriamente advindos da formação docente. Ainda que eu tenda a concordar com um contraponto feito por Daniel Revah em seus comentários, segundo quem no campo pedagógico, muitas vezes, há a tendência de se padronizar, fixar regras didáticas, as quais aprisionam os docentes e produzir comportamentos uniformes, o que acaba por favorecer a dependência dos professores de outros profissionais para auxiliar em sua atuação.

Deslocando a perspectiva de análise para a Geografia e Arquitetura, a quarta parte, A escola como espaço e como lugar, a escola projetada, apresenta três capítulos cuja riqueza deve ser sublinhada. O título dessa Parte remeteu-me à percepção trazida por Viñao Frago e Escolano (2001) ao discutirem o espaço escolar. Isso porque asseveram que, para além do físico, do concreto e do objetivo, os usos realizados dos mesmos são essenciais para se compreender as práticas ali presentes. Por isso, considerá-lo também como lugar, ou seja, o espaço físico habitado, significado e utilizado pelos sujeitos que o compõem. Ao trazer essa distinção entre espaço e lugar, atenta-se para o caráter subjetivo da ação educativa e da importância das relações estabelecidas entre os sujeitos. Trazendo como título Escola como espaço e lugar: três visões de futuro para a educação paulistana, Ana Grabriela Godinho Lima anuncia aspectos importantes do capítulo 11 de sua autoria: o cenário é São Paulo e são três os protagonistas analisados, os quais tem algo em comum - transformaram a cidade por meio da construção de edifícios: Ramos de Azevedo (1851-1928), Mário de Andrade (1893-1945) e Hélio Duarte (1906-1989), cujos projetos para os espaços educativos foram marcados por uma certa “grandeza de visão de futuro para a formação das crianças” (p. 221). O texto chama a atenção pela riqueza de detalhes no que diz respeito ao momento histórico priorizado e dos seus protagonistas, mobilizando fontes diversas. Numa época marcada pela organização das escolas de massas e construções de edifícios escolares, cada um, ao seu modo, trazia no bojo de seus projetos intenções que demonstravam a relação do espaço físico com a perspectiva pedagógica e mesmo com a atuação dos docentes. Esse capítulo nos provoca a atentar para a dita linguagem silenciosa, tal como expressam Frago e Escolano (2001), existente no espaço e lugar, uma vez que aqueles que projetam, de uma forma ou de outra, demarcam intencionalidades.

Passando da discussão do espaço físico, o qual é demarcado e preciso, para os espaços virtuais, fluido e não delimitado, Bruno da Mata Farias, em seu capítulo intitulado Animações educativas: aprender por meio da experiência, em qualquer espaço e de forma lúdica, traz a problemática da aprendizagem que ocorre no virtual, mobilizando alguns episódios de animações educativas, presentes na plataforma youtube e TV Escola. Ao recorrer a imagens e transcrição de trechos dos episódios, demonstra quantos conteúdos, a princípio escolares, se fazem presentes. As constatações levam Bruno a assinalar que estamos imersos em “sociedades da aprendizagem”, tendo papel especial as tecnologias da informação e da comunicação, as quais fazem da aprendizagem uma experiência contínua, flexibilizando a escola como lugar indispensável. Tal como bem observado por Régia Cristina Oliveira, comentarista dessa Parte, a desterritorialização dos espaços institucionais de educação implica em uma aprendizagem que pode ocorrer em qualquer lugar, desconectando-se do tempo, questão essa enfrentada também no último capítulo por Valéria Cazetta, Os espaços-tempos escolares em tempos pandêmicos, permeado de poesia, memórias e considerações astutas. Tendo como articulador das quatro partes do texto a tensão entre espaço-tempo, entre experiências presenciais e virtuais, a autora parte de elementos autobiográficos, descreve alguns efeitos do ensino on-line, discute o “novo sujeito do espaço-tempo escolar” mediante a análise de dois enquadramentos fotográficos e, por fim, recorre ao primeiro episódio da série Chico na Ilha dos Jurubebas para realizar a conexão entre as demais partes.

Ao propor o debate sobre o ambiente escolar em transformação, o livro aponta para potencialidades dos sujeitos, em variados momentos da história da educação, no sentido de mudanças mais ou menos expressivas na escola. Assim, ao contrário das apressadas conclusões de que a escola não muda, notamos que é preciso olhar com mais cuidado para o interior das mesmas, ouvir seus sujeitos e mobilizar as pesquisas para uma análise mais demorada dessa afirmação. Assim como bem afirma Natália Gil no Posfácio, “As sociedades não cessam de mudar; logo, a transformação da educação será sempre tema de reflexão” (p. 295), o que nos aproxima da compreensão sobre cultura escolar delineada por Dominique Julia, que atenta para o fato de que a cultura escolar não pode ser estudada sem a análise cuidadosa das relações conflituosas ou pacíficas mantidas por ela com o conjunto de culturas que lhe são contemporâneas, tais como: religiosa, política ou popular. Além disso, as finalidades educativas, para o autor, variam segunda as épocas, podendo ser essas religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização. Precisamos enfrentar a discussão, tal como proposto na apresentação, afinal, o que é preciso ser transformado, efetivamente? O livro dá muitas pistas para enfrentarmos esse debate.

Assim como expresso por Julio Groppa Aquino, em seu primoroso Prefácio, também espero que, mediante o acúmulo de experiências fruto dos tempos pandêmicos, haja a “irrupção de um acervo de procedimentos mais autônomos e, espera-se, mais inventivos no exercício da própria profissionalidade docente” (p. 9).

Referências

AQUINO, Julio Groppa; BOTO, Carlota. Inovação pedagógica: Um novo-antigo imperativo.Educação, Sociedade e Culturas,[S. l.], n. 55, p. 13-20, 2019. [ Links ]

AZANHA, José Mário Pires. Uma reflexão sobre a Didática. In: 3º Seminário “A Didática em questão”, v. I. São Paulo: FEUSP, 1985. [ Links ]

ELLARD, Colin. A alma dos lugares - como a paisagem e o ambiente alteram o nosso comportamento e as nossas decisões, 2019. [ Links ]

ESCOLANO, Agustín, VIÑAO FRAGO, António. Arquitetura como programa: espaço-escola e currículo. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. [ Links ]

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da Educação, n° 1, jan./jun., 2001, p. 9-43. [ Links ]

Recebido: 25 de Março de 2023; Aceito: 28 de Abril de 2023

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