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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.26 no.2 Santa Cruz do Sul mayo/agosto 2018  Epub 13-Sep-2019

https://doi.org/10.17058/rea.v26i2.11709 

Dossiê: Educação, Cultura e Produção de Sujeitos

MEDICALIZAÇÃO NA ESCOLA E A PRODUÇÃO DE SUJEITOS INFANTIS

MEDICALIZATION IN SCHOOL AND THE PRODUCTION OF CHILDREN'S SUBJECTS

MEDICALIZACIÓN EN LA ESCUELA Y LA PRODUCCIÓN DE SUJETOS INFANTILES

Geoge Saliba MANSKE1 

Daniela Cistina Rático de QUADROS2 

1Univesidade do Vale do Itajaí – UNIVALI – Itajaí – Santa Catarina – Brasil.

2Univesidade do Vale do Itajaí – UNIVALI – Itajaí – Santa Catarina – Brasil.


RESUMO

A infância enquanto condição humana está articulada com as diferentes concepções nas quais foi produzida. Nesse ínterim, multiplicidades de saberes técnico-científicos constroem verdades organizando os modos de compreensão sobre ela. Considerando a atualidade dessas relações, realizamos uma pesquisa junto a profissionais da educação de escolas públicas de um município do sul do Brasil. Investigamos os processos de medicalização na constituição de sujeitos escolares. A consolidação do discurso biomédico no âmbito das escolas tem sido cada vez mais frequente, e sua difusão e reiteração reforçam argumentos de ordem biológica em situações que são, em boa medida, de ordem social e cultural.

Palavras-chave:  Medicalização; Infância; Educação

ABSTRACT

Childhood, as a human possibility, has always been articulated the different conceptions in which it was produced. In the meantime, multiplicities of technical-scientific knowledge construct truths by organizing the modes of understanding of childhood. Considering the actuality of these relationships, we conducted a survey with professionals of public school education in a municipality in the south of Brazil. We investigate the processes of medicalization in the constitution of school subjects. The consolidation of biomedical discourse within schools has been increasingly frequent, and their diffusion and reiteration reinforce biological arguments in situations that are, to a large extent, social and cultural.

Keywords:  Medicalization; Childhood; Education

RESUMEN

La infancia como condición humana está articulada con las diferentes concepciones en las que fue producida. En el ínterin, multiplicidades de saberes técnico-científicos construyen verdades organizando los modos de comprensión sobre ella. Considerando la actualidad de esas relaciones, realizamos una investigación junto a profesionales de la educación de escuelas públicas de un municipio del sur de Brasil. Investigamos los procesos de medicalización en la constitución de sujetos escolares. La consolidación del discurso biomédico en el ámbito de las escuelas ha sido cada vez más frecuente, y su difusión y reiteración refuerzan argumentos de orden biológico en situaciones que son, en buena medida, de orden social y cultural.

Palabras clave:  Medicalización; Infancia; Educación

À GUISA DA INTRODUÇÃO

A infância, enquanto uma condição humana, sempre esteve articulada as diferentes concepções nas quais foi produzida, variando potencialmente seu sentido de acordo com as sociedades, as culturas e os modos de vida nos quais foi elaborada e vivida. Essa categoria ao longo do tempo, e especialmente a partir do Iluminismo, se constituiu como campo crescente de investigação e pesquisas em diversas áreas do saber, sendo incorporada e produzida por diversas abordagens e estudos, o que resultou nas distintas imagens sociais das crianças (ANDRADE, 2010). Entendida como uma “invenção moderna” (RESENDE, 2015) a infância é permeada por diversos processos de saberes sobre o corpo, abrangendo diferentes espaços sociais, na Pedagogia, na Psicologia ou na Medicina, por exemplo. Desse modo, é possível inferir que tais saberes resultam na produção de uma noção de infância que é governada, vigiada e modulada pela percepção de que esta deve ser ditada e conduzida por modelos estabelecidos socialmente, em âmbito escolar, doméstico ou outros ambientes sociais, fabricando-se, dessa maneira, uma possibilidade de vida que precisa ser dirigida para determinados pressupostos a ela predispostos (BUJES, 2002), nem que para isso, na atualidade, se recorra a alternativas medicamentosas ou ao campo das biotecnologias.

No âmbito da saúde em articulação com a educação é possível destacar diversas pesquisas realizadas junto a profissionais que têm debatido questões sobre o crescente processo de medicalização da vida escolar, demostrando os mecanismos de controle por meio do poder disciplinador a partir das biotecnologias hoje ofertadas (CAPONI, 2009; HECKERT, ROCHA, 2012; MEIRA, 2012; PASSONE, 2013; FIGUEIRA, CALIMAN, 2014; LEONARDO, SUZUKI, 2016). Diante desse cenário, crescem os números de encaminhamentos de crianças aos especialistas da saúde, pautados na crença de que, com diagnóstico, pode-se intervir da melhor maneira em suas vidas para a superação das dificuldades de aprendizagem e/ou o controle dos comportamentos (HECKERT; ROCHA, 2012). Assim, o processo medicalizante adentra as escolas e a vida dos sujeitos, e, sem que se perceba, adquire diversas denominações e características que, de certa forma, por vezes não são reconhecidas como formas de controle social (LEONARDO; SUZUKI, 2016).

Os novos discursos medicalizantes gerados a partir da associação entre problemas de ordem neurológica e os processos de ensino-aprendizagem tornaram-se uma prática cada vez mais frequente no cotidiano das instituições de ensino, bem como dos serviços de saúde, para os quais são encaminhados os alunos com maiores contingentes de queixas escolares. Tais encaminhamentos são baseados em avaliações diagnósticas, segundo normatividades da sociedade, favorecendo cada vez mais os saberes biomédico e pedagógico (com a inclusão do primeiro no segundo) na construção de uma concepção sobre o que é considerado normal ou não nos processos de escolarização das crianças (FIGUEIRA, CALIMAN, 2014; MEIRA, 2012).

A escola moderna desde seu surgimento constitui-se como um espaço que se caracteriza por gerar corpos “dóceis” através de seu poder disciplinador, tendo ligação direta com o poder e os modos de constituição do sujeito (FOUCAULT, 1999). No entanto, na atualidade, as formas de gerenciamento sobre os corpos escolares deslocaram as potencialidades dos diagnósticos baseados no saber biomédico, em especial, com o advento de novas drogas e psicofármacos voltados ao controle dos comportamentos humanos. Diante disso, o caráter do diagnóstico sobre as crianças que apresentam modos de aprender e agir que escapem aos padrões normativos impostos pela sociedade faz com que, diariamente, novas crianças sejam rotuladas como portadoras de um distúrbio neuropsiquiátrico, que envolve, além de longos tratamentos com profissionais de equipes multidisciplinares, o uso abusivo de drogas psicoativas. Frente a este cenário, percebe-se que durante os diversos momentos da vida do sujeito surgem outros modos de cuidados terapêuticos, prescrições e especialidades médicas que determinam seus passos, apropriando-se de seus comportamentos e normatizando sua vida, não sendo mais possível vê-lo como um simples processo natural de desenvolvimento (SANCHES; AMARANTE, 2014).

Quando se trata da infância, é relevante observar que a maior parte dos desvios ocorridos nessa etapa da vida são constatados na escola e construídos a partir do momento em que a criança desenvolve dificuldades no processo de aprendizagem, tal quando não consegue prender por muito tempo sua atenção nas lições ou, então, quando é muito agitada. Desse modo, essas dificuldades são questionadas pelo professor, que encaminha o aluno para o profissional da área médica ou da área da psicologia, uma expertise no campo da saúde, tendo como consequência a patologização de pequenos desvios de comportamento cotidianos (VIÉGAS et al., 2014). Embora na moda, tais desvios, além de terem caráter contraditório, são polêmicos, inclusive nos próprios campos da medicina, da psicologia, da educação ou da biomedicina, haja vista que sua etiologia ainda é desconhecida, sendo apontada por importantes profissionais como um processo que desresponsabiliza questões políticas, históricas e sociais, transformando as dificuldades de escolarização em doença individual, especialmente nos campos escolares.

O ato de patologizar atinge o sujeito que se manifesta fora dos padrões sociais considerados normais, reificando as práticas de medicalização mediante as relações de poder que institucionalizam os processos de normalização, produzindo atos de classificação e de individualização, os quais ganham contornos próprios nos quais a norma vai se afirmando. Este processo constitui formas de domínio sobre o comportamento humano, respaldados por saberes científicos que se encontram cada vez mais justificados através de diagnósticos nas manifestações infantis consideradas inadequadas ou anormais (LUENGO, 2010).

Em uma sociedade escolarizada, a escola se constitui como a instituição social que mais incorpora diferenças e diversidades, embora contraditoriamente a essas multiplicidades e ao longo da história, atue em processos de normalização social. Destarte, as práticas escolares muitas vezes destoam desta realidade, e acabam se configurando por contradições e antagonismos, uma vez que a escola é um espaço correlato à sociedade, constituída por discursos e práticas nem sempre homogeneizantes (SANTOS, 2015). Compreendemos, na fala de Brzozowski (2013), que o discurso em torno do processo de medicalização ocorre na medida em que se percebem crianças com formas distintas de comportamento, caracterizadas como falta de atenção e agitação, transformados em sujeitos patológicos que necessitam de ações que estabeleçam uma normatividade social dentro dos espaços onde estão inseridas, gerando, por exemplo, sujeitos diagnosticados com algum transtorno mental ou comportamental. Em síntese, o discurso científico medicalizante em torno de diversas patologias apresenta explicações reducionistas, ou seja, reduzem o sujeito à mente e ao cérebro, transformando comportamentos, pensamentos e características individuais em conexões neurais ou desequilíbrios em neurotransmissores. Segundo Rose (2013), essas novas concepções voltadas ao campo biológico recodificam os modos de vida dos sujeitos, reorganizando desde seus modos de conduta ao modo como se relacionam consigo mesmos, nos fazendo refletir que a vida, então, torna-se um objeto de constantes transformações, ao passo que nossos pensamentos, emoções e comportamentos estão abertos às intervenções biomédicas.

Considerando a atualidade dessas relações, que emergem no espaço escolar mediadas por processos de medicalização da infância, realizamos uma pesquisa junto aos profissionais da educação de escolas públicas de um município do sul do Brasil. Investigamos os processos de medicalização na constituição de sujeitos escolares, através dos encaminhamentos de alunos tidos com alguma dificuldade de aprendizagem ou comportamento à rede pública de saúde. As discussões que seguem apresentam o percurso metodológico e, em seguida, as discussões e análises referentes à constituição de sujeitos medicalizados nos processos escolares. Entendemos que tais processos sociais estabelecem formas potentes de constituição de sujeitos, os quais são produzidos e reificados em meio às diversas formas de relações de poder, que no caso deste estudo se valem de discursos e saberes tocantes as novas tecnologias sobre o corpo e subjetividades.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

O desenvolvimento deste estudo assenta-se em uma abordagem qualitativa, com uso de técnicas de pesquisa de campo para a produção do material empírico para investigação. As técnicas de pesquisa foram: entrevistas semiestruturadas com profissionais da área da educação que fizeram parte deste estudo; análise documental de encaminhamentos realizados pelos profissionais da educação aos profissionais da área da saúde no local investigado; e observações de todo o processo de pesquisa que resultaram na construção de um diário de campo no decorrer do trabalho.

Na condução dos processos investigativos elaboramos um percurso metodológico que se constituiu das seguintes etapas: primeiramente, um contato formal com a Secretaria Municipal de Educação do município investigado, a fim de obter autorização para realização da pesquisa, com explanação dos objetivos do estudo e solicitação de indicação das escolas municipais que seriam mais pertinentes para a realização da investigação. Em seguida, após aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética da universidade na qual os autores estão vinculados3, se visitou as escolas indicadas para definir datas, horários e locais em que pudessem ser realizadas as entrevistas, além de já iniciar as observações e os registros no diário de campo.

Quanto às entrevistas, entramos em contato com os diretores das escolas participantes para agendar data e local adequados para entrevista com os professores e os orientadores pedagógicos. A escolha dos professores se deu através de conversa com os diretores das escolas, o qual indicava os professores que mais realizam encaminhamentos de crianças aos profissionais da saúde. Assim, realizamos um total de 12 entrevistas semiestruturadas, que foram realizadas entre os meses de setembro e novembro de 2016. Além das entrevistas e registros em diários de campo, analisamos também os formulários de encaminhamento de alunos/as que eram realizados pelos profissionais das escolas.

Compilamos as entrevistas, os documentos de encaminhamentos e os registros em diários de campo e os compusemos como material empírico da pesquisa, na medida em que estes, em seu conjunto, produzem significações específicas sobre o objeto de estudo da investigação, pois através de suas práticas e saberes atuam como referência para os encaminhamentos das crianças aos especialistas da saúde. Desse modo, analisamos este conjunto de documentos como artefatos culturais, entendidos, de acordo com Costa (2010), como um conjunto de produções textuais, livros, cartilhas e diversas outras práticas, que imersas em redes de verdade produzem significados.

No que tange à análise dos dados e discussões, nos orientamos a partir de conceitos teóricos para subsidiar as análises subsequentes. Desse modo, as concepções de sujeito desenvolvidas nos trabalhos de Foucault (1995) e considerações recentes sobre esta concepção elaboradas por Rose (2013), serviram como instrumentos analíticos para análise do material empírico elaborado, no qual procuramos tensionar os ditos e escritos a partir das conceituações propostas por estes autores.

A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO MEDICALIZADO NA ESCOLA

Menino maluquinho não existe mais, está rotulado e recebendo psicotrópicos para Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Mafalda está tratada e seu Transtorno Opositor Desafiante (TOD) foi silenciado. Xaveco não vive mais no mundo da lua, aterrissou desde que seu Déficit de Atenção foi identificado. Emília, tão verborrágica e impulsiva, está calada e quimicamente contida. Cebolinha está em treinamento na mesma cabine e nas mesmas tarefas para rotulá-lo como portador de Distúrbio de Processamento Auditivo Central (DPAC) e assim está em tratamento profilático da dislexia que terá com certeza quando ingressar na escola. (MOYSÉS; COLLARES, p. 21, 2014).

Assim como os personagens conhecidos da literatura infantil, lembrados por Moysés e Collares (2014), atualmente, muitos de nós também estão imersos nos mares da medicalização. O tema vem sendo discutido de vários modos e é retratado nos meios de comunicação social, até mesmo na mídia voltada às crianças, como nos desenhos animados.

No blog Vamos falar de TDAH?, em um post de outubro de 2016, alguns personagens de desenho animado são retratados com supostos comportamentos semelhantes aos de sujeitos com TDAH. Calvin é um menino de seis anos, da famosa história em quadrinhos “Calvin e Haroldo”, com seu tigre de pelúcia, que ganha vida quando ninguém está por perto. Doug Funnie sonha acordado, simbolizando as distrações do TDAH. Patrick Estrela, do desenho “Bob Esponja Calça Quadrada”, é extremamente distraído e desatento. Lucas é outro que sempre vive no “Mundo da Lua”. Sem esquecer, claro, do Bart Simpson, que, no segundo episódio da décima primeira temporada de “Os Simpsons”, sofre as terríveis consequências do uso da medicação para controlar seu temperamento “demoníaco”. Tais exemplos materializam a heterogeneidade de manifestações midiáticas acerca de sujeitos infantis enquanto objeto de investimento relacionado a seus comportamentos, e de algum modo está correlato ao nosso interesse de pesquisa, que encontra nos materiais empíricos produzidos possibilidades de reverberação deste tema. Entrementes, e em meio a estas recorrências culturais, a partir dos materiais empíricos produzidos nesta pesquisa procuramos compreender como ocorre a formação de sujeitos infantis potencialmente medicalizáveis desde os discursos medicalizantes promovidos pelos indivíduos entrevistados, na medida em que as crianças que são encaminhadas para especialistas da área da saúde acabam caracterizando-se a partir de uma determinada representação de sujeito.

É notório que a medicalização é um amplo processo que vem se disseminando em diversos ambientes, aos quais determinadas características do sujeito passam a ser vistas e tratadas pela medicina e seus campos correlatos como algo patológico. Sabemos que os discursos biomédicos envoltos nos processos de medicalização da vida popularizaram-se quando, por exemplo, nos deparamos com uma criança com dificuldades escolares ou comportamentais. As respostas a esse evento já são logo encontradas por meio de diagnósticos médicos, como transtorno de déficit de atenção com hiperatividade ou dislexia. Devido a esse fato, a medicalização nos espaços escolares vem se tornando objeto constante de análise por diversos pesquisadores, que voltam seu entendimento sobre as questões mentais e de aprendizagem, compreendidas como algo que se relaciona a um fato maior a ser descrito, conceituado como medicalização da vida (LEONARDO, SUZUKI, 2016; FIGUEIRA, CALIMAN, 2014; SANCHES, AMARANTE, 2014; BRZOZOWSKI, CAPONI, 2013; MEIRA, 2012; SANCHES, 2011, BRZOZOWSKI et al., 2010).

Ao pensarmos na medicalização dos comportamentos humanos, precisamos considerar todos os processos de subjetivação que nos atravessam. Parte exemplarmente significativa, como retratado na epígrafe acima, é a tentativa de silenciar, acomodar, disciplinar, docilizar, padronizar, governar todas as Mafaldas, Meninos Maluquinhos, Emílias, Calvins, e aqueles que desobedecerem às normas padronizadas, através de diversas práticas de sujeição.

Quanto às práticas de sujeição é preciso atentar para as considerações de Foucault que, nos últimos vinte anos de construção de sua obra, discutiu as análises de relações de poder na conformação dos sujeitos, aludindo aos tipos de objetivos, técnicas ou discursos que são necessários para formação de um determinado tipo de sujeito (FOUCAULT, 1995). O poder a que o autor se refere (FOUCAULT, 1995, p. 242) é “um modo de ação de alguns sobre os outros [...] [na medida em que] o poder só existe em ato, mesmo que se inscreva num campo de possibilidades esparso que se apoia sobre estruturas permanentes”. Esse poder se vale e se dispersa entre esses espaços, exercendo suas relações através de modos de ação de uns sobre os outros – professor e aluno, pais e filhos, médico e famílias, e assim sucessivamente. As instituições escolares, como exemplo, também demonstram relações de poder através de sua organização espacial, na disposição das carteiras nas salas de aula, umas atrás das outras, na localização do quadro negro, no papel do professor, exercendo poder através de seus conhecimentos.

São esses pressupostos teóricos que nortearam a construção das análises a serem apresentadas, na medida em que os processos e construtos de medicalização não apenas possibilitam, mas acionam e colocam em prática formas de subjetivação e conformação de um determinado projeto de sujeito, qual seja, a criança que precisa ser medicada. É na esteira desse debate que problematizamos que tipo de sujeito é formado em meio a esses processos de medicalização, quais são suas características e o que se espera dele após o processo terapêutico.

Em seus modos de governo, a escola atua acumulando conhecimentos, e cada vez mais assujeita e objetiva a criança, por meio de normas e regras impostas, exercendo seu domínio sobre a infância (RESENDE, 2015). A subjetividade, desse modo, é estabelecida através de uma constante produção do sujeito, nas relações produzidas no seu meio social (SANTOS, 2012) diferenciando as crianças que não se enquadram dentro desses critérios a partir de uma série de técnicas. Tais processos podem ser evidenciados em inúmeros registros do material empírico desta pesquisa, como nos exemplos abaixo:

Primeiro o professor da sala de aula detecta o problema, se ele percebe que o aluno não está acompanhando de acordo com os demais, isso não quer dizer que não tenha alunos com dificuldades também, mas a partir de uma dificuldade muito abrangente, muito perceptiva, esse professor encaminha esse aluno para que ele possa fazer uma avaliação. (ENTREVISTA, PROFESSOR 5).

Inicialmente o professor que identifica essa dificuldade, né. Identifica qual aluno tem mais dificuldade na aprendizagem, aquele que não está acompanhando o ritmo da turma, a dificuldade está muito aquém da idade dele e do ano de escolarização dele. (ENTREVISTA, PROFESSOR 10).

Dessa maneira, o que define uma relação de poder é “o modo de ação que não age direta e indiretamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação” (FOUCAULT, 1995, p. 243). Compreendendo que essa forma de poder se aplica à vida cotidiana, caracterizando o indivíduo e circunscrevendo-o em uma determinada pressuposição do que deveria ou não ser ou agir, o modelo de escolarização se constitui através de relações de poder, produzindo um sujeito criança-aluno, cuja conduta deve ser pautada pelas regras dos modelos pedagógicos, como exemplificamos no encaminhamento abaixo de uma criança de oito anos matriculada no 3º ano do bloco de alfabetização:

A Unidade Escolar está preocupada em investigar o porquê de suas dificuldades de aprendizagem, tais como: aparenta desejar atenções diferenciadas para si, solicitando que sejam feitas todas as suas vontades; costuma falar mais que o necessário, não respeitando os momentos em que o grupo necessita de silêncio; distrai-se facilmente, ainda não consegue prestar muita atenção a detalhes ou comete erros por descuido nos trabalhos escolares; envolvida em seus pensamentos ou parece não estar ouvindo quando se fala diretamente com ela; perde frequentemente os itens (cadernos, lápis, borracha, livro, etc.) necessários para facilitar suas atividades escolares; é esquecida em atividades do dia-a-dia; esfrega as mãos ou os pés com frequência ou fica se contorcendo na cadeira (agitação). A Unidade Escolar acredita na parceria da Saúde, considerando que uma análise mais detalhada da aluna só traria benefícios para o seu desenvolvimento global e intelectual. (ENCAMINHAMENTO 1).

Se compreendermos a educação como um conjunto de atuações pelas quais se conduz e se governa a ação dos outros, logo a compreenderemos como uma forma de saber-poder. O que deve chamar atenção para as análises, como cita Rose (2001), não é a ideia das pessoas em si, tal como se houvesse um centro pessoal e fixo de sujeito ou de uma identidade, mas sim as práticas e os processos pelos quais são compreendidos, ajustados, incitados e forjados esses sujeitos, através das técnicas, por exemplo, que transformam o aluno em um sujeito medicalizado. Dessa maneira, segundo o autor, essas técnicas têm caráter subjetivo, pois precisam ser inventadas e organizadas para então ser implantadas. É nas práticas e técnicas de si que se constroem as possibilidades de sujeição. É nelas, portanto, que residem as análises do sujeito foucaultiano. No caso deste estudo, percebe-se que a busca incessante por um diagnóstico médico é vista pelos educadores como algo que fará bem à criança, e que só através dele é possível mudar as formas pedagógicas sobre o aluno, fazendo-o progredir em suas atividades, através, principalmente, dos discursos biomédicos. Rose (2001), ao discutir esses processos de formação do sujeito, denomina esse fenômeno como “genealogia da subjetivação”, que consiste na maneira pela qual indivíduos tornam-se sujeitos. Percebemos a efetivação desse processo nos excertos a seguir:

Então a gente aqui após a triagem, vê se há necessidade de um encaminhamento para o neuro, até porque tendo o laudo em mãos consegue resguardar essa criança, esse adolescente de algumas coisas, principalmente algumas adaptações na escola [...] esse laudo acaba ajudando também a criança nesse sentido e o professor de poder entender melhor como é que esse aluno aprende. (ENTREVISTA, PROFESSOR 8).

Muda a forma de avaliar, o professor tem que mudar sua ação pedagógica que é necessário. Muitas vezes ele faz o trabalho com todos, mas na hora da avaliação ou na modificação que o professor quer avaliar esse aluno e perceber qual é a necessidade dele que tem de ser trabalhada para que ele compreenda esse contexto, ele tem que modificar a ação. É o que a gente sempre espera do profissional. (ENTREVISTA, PROFESSOR 5).

As práticas de subjetivação anteriormente aludidas se manifestam na materialidade desses excertos. Trechos como “tendo o laudo em mãos” se caracterizam como técnicas (nesse caso, baseadas numa – incontestável? – racionalidade biomédica) que legitimam ações sobre os sujeitos, agindo sobre suas possibilidades de ação, tendo o caráter ‘quase salvacionista’ de um indivíduo com ‘vistas a se perder’ caso não seja diagnosticado e tratado.

Rose (2001) afirma que a subjetividade não está centrada no sujeito, mas sim na materialidade que as técnicas de sujeição operam sobre ele. Em práticas cotidianas, as condutas passam a se tornar uma série de problemas, tanto para si como para os outros, de modo que se buscam soluções para administrar tais dilemas, como é o caso dos encaminhamentos das crianças aos experts da saúde ou da educação. Foucault (1995, p. 234) cita que “para analisar o poder do ponto de vista de sua racionalidade interna, [é necessário] analisar as relações de poder através do antagonismo das estratégias”, ou seja, é importante analisar aquilo que foge, neste caso, à norma para compreender o que é a normalidade. Essas formas de poder se aplicam à vida diária e caracterizam o indivíduo demarcando-o através de suas individualidades, que transformam esses indivíduos em sujeitos. Na definição de Foucault (1995), isso pode ocorrer de duas maneiras: sujeitos a algo ou alguém através dos modos de controle – no caso deste estudo, as crianças aos moldes da sociedade – e sujeitos presos a sua própria identidade, ambos sugerindo uma forma de poder que torna o indivíduo “sujeito a”.

O poder que incide através do professor que identifica o aluno problemático é utilizado para garantia da “normalidade”, competindo à escola caracterizar o que é considerado normal ou patológico. Segundo Canguilhem (2009, p. 113), “não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são em si patológicas, elas exprimem outras formas possíveis de vida”. Partindo dessa definição percebemos que esses fenômenos não se restringem somente ao campo educacional, mas à vida de forma mais ampla.

Conforme a análise de Rose (1988), nossa vida íntima, pensamentos, desejos, sensações, assim como todas nossas características individuais, definidas pelo autor como ‘eus privados’, que sempre pareceram nos pertencer e a mais ninguém, são intimamente governados e administrados em todos os detalhes que, segundo ele, se manifestam em três perspectivas de governo do ‘eu privado’. Em primeiro lugar, pelo poder público, políticas institucionais e de regulação, como no caso das escolas, dos modos de escolarização, cuidados com a saúde da criança e através da vigilância dos pais, como forma de regular condutas através das ações sobre as capacidades das crianças, como demonstramos nos seguintes excertos de algumas entrevistas:

Bom, a criança tem um tempo mais prolongado pra ser alfabetizado, mas só que a criança no início da alfabetização ela tem que dar algumas devolutivas. Às vezes a criança não consegue responder com a mesma coerência dos demais, uma parte da fala que não é muito articulada, ou se ela não percebe com os demais no mesmo nível [...] vai pra fono se ele tem uma linguagem não muito articulada, se percebe que tem uma audição não muito limpa, porque se a professora fala e ele [aluno] não percebe, também se encaminha. (ENTREVISTA, PROFESSOR 5).

Aí o projeto “mosqueteiros” surgiu diante dessas crianças que não tinham laudo, e que não conseguiam avançar na questão da leitura e da escrita, e que estavam muito abaladas emocionalmente, então o objetivo principal do projeto era desenvolver a leitura e a escrita e melhorar a questão da autoestima deles, então nós usamos assim vários artistas, vários famosos disléxicos que são bem sucedidos e trabalhamos em cima disso, que eram mentes brilhantes, que tinham outras habilidades, que não é só a leitura e a escrita que vai dizer que uma pessoa é inteligente ou não, então eles começaram a entender o problema deles, a dificuldade deles, e buscar outras habilidades, pra superar aquela. (ENTREVISTA, PROFESSOR 1).

Outro ponto de apoio que tem é o Mais Educação, que é um projeto da REDE e funciona nesta escola. Este projeto é de certo modo para envolver as crianças de risco, de dificuldade de aprendizagem, essas crianças que tem problema com agressividade e aí precisam de mais atenção. (ENTREVISTA, PROFESSOR 10).

A maneira como as formas de regulação dirigidas às crianças aparecem nos discursos dos entrevistados, demonstram o modo como as capacidades subjetivas têm se infiltrado de forma ampla e profunda em toda nossa existência na construção do sujeito. Compreendemos que as iniciativas de construção de um projeto como forma de melhorar o aprendizado das crianças são práticas que devem ser seguidas nas escolas, porém, não como forma de potencializar o “problema deles”, subjetivando esse sujeito como um infante patológico.

Em segundo lugar, como perspectivas de governo do ‘eu privado’, Rose (1988) aponta o controle das subjetividades como uma tarefa de organização, ilustrado através do controle da indisciplina e das características de cada criança, como apresentamos nos excertos abaixo, demonstrando os motivos porque a subjetividade humana tornara-se um indutor nessas relações.

Quando elas [professoras] estão explicando e eles [alunos] vão fazer a atividade eles se dispersam. Ou fazem uma outra que não foi pedido. Dificuldade para memoriar também. Estas estão bem relacionadas à atenção. Então eles estão fazendo aqui daí eles saem, vão pra outra mesinha, não dando continuidade ao trabalho. Nestas questões. E às vezes eles olham pra professora quando ela está explicando, ela tem a sensação que estão entendendo mas quando vai para o registro eles ainda não entenderam. E assim ó, eles são bem agitados também, dá pra gente ver isso.

Esse ano foi o ano de encarar nossa realidade [...]. Eu estou aqui nesta escola desde 2014. Entre as crianças que tem laudo e as que tem dificuldade na aprendizagem eles somam um terço da nossa população, é bastante. (ENTREVISTA, PROFESSOR 10).

Esses altos números refletem a maneira pela qual os sistemas de verdades são constituídos e validados nas instituições escolares, através das relações de poder. Veras (2014) descreve a origem da palavra “infância”, que vem do latim in fari, “aquilo que vem de fora do discurso”; ou seja, infantes são aqueles sujeitos que não falam por si, que necessitam que alguém fale por eles. Se analisarmos esse “um terço de crianças com laudo e as que têm dificuldades”, teremos certamente histórias diferentes que impedem que todas sejam rotuladas através de suas características a um mesmo traço comum.

Por fim, Rose (1988) aponta o nascimento de uma nova expertise da subjetividade, retratada através dos inúmeros diagnósticos, com intuito de classificar e medir ao prescrever medicações.

Aí eu tenho mais dois [alunos] que foram encaminhados também. Estes dois também não dão conta, só que um a gente acha que tem dislexia, apesar de ter seis anos ainda. Tem alguns outros que são muito lentos...

Pesquisador: muito lentos como?

Lento pra tudo, até quando eu faço a chamada o aluno não responde, dá dó sabe? Então pra pegar material, pra tudo, esse que foi encaminhado várias vezes e somente agora que a mãe resolveu levar. Mas neste caso tem todo o histórico, dos avós, tios, primos. Então quando tem um histórico da família a gente já faz um trabalho diferenciado. (ENTREVISTA, PROFESSOR 6).

Então assim, as crianças de muita dificuldade de aprendizagem elas tem que ser necessariamente encaminhadas pra algum lugar que ela possa se desenvolver, ou seja, para uma equipe clínica que possa fazer com que ele se desenvolva. A partir disso fica na responsabilidade da família esse comprometimento. Muitas das nossas crianças não avançam porque a família não tem esse comprometimento. (ENTREVISTA, PROFESSOR 5).

As novas formas de expertise que surgiram a partir das atuais condições de medicalização da sociedade multiplicaram os números de profissionais e especialistas que intentam compreender, classificar, diagnosticar e medicar diversas formas de problemas humanos (ROSE, 1988). Estes têm transformado as formas como agimos e pensamos, e refletidas nas falas dos profissionais, as crianças diagnosticadas têm que ser necessariamente encaminhadas pra algum lugar que possam se desenvolver adequadamente.

Os processos que discutimos até aqui, segundo análise de Santos (2015), estão presentes também no currículo, definido por ele como uma esfera de poder que apresenta caráter formativo, sob o qual instituem-se novas práticas e modos de pensar, e que através de verdades nos constituem e nos tornam aquilo que somos. Essas técnicas, as quais se recorre como forma de buscar corrigir um problema ou reduzi-lo, estão presentes nos ambientes escolares nos diversos encaminhamentos, como ferramentas de remodelações do modo como os processos de aprendizado dos alunos são narrados. Em relação a esse fato, observou-se que não existe um padrão nos encaminhamentos realizados, sendo que cada profissional o faz de acordo com seus conhecimentos e pressupostos, tornando-os indubitavelmente subjetivos.

Eu faço um relatório do que eu observei, um relatório assim sem roteiro sem nada, relatório descritivo do que foi observado naquela avaliação, das atividades desenvolvidas, do que não desenvolveu, qual que tem dificuldade, a questão da orientação de tempo, espaço né, leitura e escrita, matemática e escrita, raciocínio lógico, calculo mental, situações assim, e ele leva pro pediatra, e com esse relatório da escola ele vê se há necessidade de encaminhar para o neuropediatra. (ENTREVISTA, PROFESSOR 1).

Às vezes é com as professoras, às vezes a gente senta com a equipe, pega, coleta as informações com todos os profissionais para poder fazer um parecerzinho assim do aluno. O que ele faz na escola, qual a dificuldade dele e encaminha este parecer junto com os pais para que eles possam levar pro profissional para ter uma informação da escola. (ENTREVISTA, PROFESSOR 2).

A orientadora utiliza um que pra mim é um pré-conceito porque é o que os neurologistas usam, as psicopedagogas, e às vezes eles são assim outras horas não. Teria que ser um outro material para avaliá-los. Geralmente fazer um relatório individual é melhor. Também conversar com os pais, quando eles forem falando e não um questionário pré-estabelecido assim: em casa seu filho é calmo ou é agitado? É agitado, ah sim, pouco, mais ou menos? Então pra mim esse material não é interessante. Assim mais nessa idade, porque seis anos é complicado dizer que o aluno tem problema. Então tem que ter um olhar diferenciado para cada aluno. (ENTREVISTA, PROFESSOR 6).

Se, conforme Santos (2015), estamos passando por um momento em que os saberes escolares estão sendo ponderados através de discursos biomédicos, há de se pensar que todos nós estamos envolvidos nessas formas de subjetividade. Essas formas de pensar e agir afetam cada um de nós, pois estão imbuídas na forma como construímo-nos e interagimos com outras pessoas, em todos os ambientes. Utilizamos a análise de Rabinow e Rose (2006) ao argumentar que esse processo se caracteriza como um modo de subjetivação no qual as pessoas são levadas a atuarem sobre si e suas famílias, regidas pelo poder exercido através dos discursos de verdade instituídos. Assim, o poder biomédico transcende a medicina e os demais profissionais da saúde, atravessando a sociedade e preenchendo todos os espaços possíveis da vida através das próprias pessoas, que atuam sobre si e sobre seus próximos.

Através das vigentes formas de conhecimento, novas linguagens têm sido produzidas para discorrer sobre a subjetividade humana. Essas formas de reconhecimento têm sido possíveis através de diversas técnicas de subjetivação, tecnologias que, compreendidas nas palavras de Rose (2001), podem ser realizadas como formas para moldar ou direcionar condutas nas direções desejadas. Não obstante, essas tecnologias que se manifestam em técnicas particulares de subjetivação, que perpassam todo o tecido social, também estão presentes nos processos escolares mediados por discursos medicalizantes, aqui analisados. É perceptível a presença dessas técnicas em diferentes momentos do processo investigativo realizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A consolidação do discurso biomédico no âmbito das escolas tem sido cada vez mais frequente, e sua difusão e reiteração reforçam argumentos de ordem biológica em situações que são, em boa medida, de ordem social e cultural. A partir do material empírico analisado foi possível perceber que os esforços para encontrar uma explicação para comportamentos não esperados são baseados em ditames marcadamente de cunho natural-biológico, e suas soluções se apresentam, de modo hegemônico, através de psicofármacos, os quais são tomados como soluções para os comportamentos dos alunos. Desse modo, pudemos observar que essas práticas incidem sobre os corpos das crianças, tornando-as sujeitas à medicalização. O impacto do diagnóstico tem múltiplos efeitos na infância bem como na produção do sujeito-aluno.

É necessário que a medicalização seja vista como o ponto de partida para as análises acerca dos alunos medicalizados, a fim de compreender os processos pelos quais verdades e saberes se impõem no cotidiano escolar, subtraindo, na maioria das vezes, discussões sobre outros determinantes que incidem e implicam nas diferenças de relações alunos-escola. Isto significa dizer que devemos abordar a medicalização nos âmbitos escolares como algo a ser analisado de modo mais amplo, em vários contextos, a fim de discutir como é possível que tais elementos perpassem a sociedade como um todo e se façam presentes também na escola. Vale aqui a ressalva de que nossa pretensão não é minimizar a importância dos avanços da medicina, mas discutir os efeitos que suas concepções repercutem através da ótica medicalizante.

Existem diversas crianças com dificuldades de aprendizagem e que carecem de procedimentos específicos, no entanto, nesta pesquisa, a maior parte dos encaminhamentos se encontra nas séries iniciais, especificamente no bloco de alfabetização, que não coincidentemente é o período no qual a criança ainda não se sujeitou completamente às regras escolares (se é que isso é possível!). Esse é o período em que devem aprender, bem como socializar com as demais crianças. Mas, a simplificação demasiada dos comportamentos, além de considerá-los quase unicamente biológicos, cerebrais ou neurológicos, pode fazer com que se perca a noção das individualidades e das necessidades de cada sujeito, apenas prorrogando a resolução de tais “problemas”. Esses são alguns apontamentos que necessitam permanecer operando nas análises em relação às práticas que nos constituem – e das quais somos vetores – já que, de alguma maneira e na atualidade, todos estamos direta ou indiretamente implicados aos processos medicalizantes.

3A pesquisa foi aprovada pelo CEP tendo como registro o parecer favorável número Nº 070317/2017, CAAE 57944116.4.0000.0120.

Como citar este documento: MANSKE, GEORGE SALIBA; QUADROS, Daniela Cristina Rático de. MEDICALIZAÇÃO NA ESCOLA E A PRODUÇÃO DE SUJEITOS INFANTIS. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 26, n. 2, ago. 2018. ISSN 1982-9949. Disponível em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/11709>. Acesso em: ______. doi: http://dx.doi.org/10.17058/rea.v26i2.11709.

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Recebido: 27 de Fevereiro de 2018; Aceito: 27 de Junho de 2018

Autor para contato: gsmanske@yahoo.com.br

George Saliba Manske: Doutor em Educação (PPGEDU/UFRGS). Professor no Mestrado em Saúde e Gestão do Trabalho, Mestrado em Educação e Cursos de Educação Física (UNIVALI).

Daniela Cristina Rático de Quadros: Mestre em Saúde e Gestão do Trabalho (UNIVALI). Professora do curso de Enfermagem (UNIVALI).

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