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Reflexão e Ação

versão On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.27 no.2 Santa Cruz do Sul maio/ago 2019  Epub 12-Nov-2019

https://doi.org/10.17058/rea.v27i2.13367 

Resenha

O FAZER LITERÁRIO COM A MATÉRIA DO POR VIR1

Daniel CONTE2 

2Universidade Feevalel – FEEVALE – Novo Hamburgo – Rio Grande do Sul – Brasil


Vértice de inúmeras discussões, a função da literatura e o papel que a ficção opera na ossatura do imaginário é debate permanente sobre o fazer literário, seus atores e sua funcionalidade. A ideia propagada pelo cientificismo, que marcou o romance europeu do século XIX, de que a literatura tinha seu enredo centrado em atores da sociedade e que espelhava o que, de fato, ocorria nas dobras dos convívios urbanos, ainda habita a imaginação dos leitores comuns os quais, não raro, confundem enredos, personagens e autores com seus pares, seus amores e seus desafetos.

A literatura, contudo, apresenta-se na atualidade marcada pela história político-econômica dos territórios que lhe servem de cenário, emergindo de condições de produção específicas em que as máculas do arranjo simbólico do fenômeno humano e dos aparelhos ideológicos (os quais comportam a repetição dos arquétipos históricos) são evidentes e traumáticas. Isso ocorre porque a materialidade ficcional, assim como outras artes, dá forma concreta a anseios, dilemas, angústias, devaneios e impasses por meio de representações gestadas desde as estruturas do imaginário social.

Faz-se importante apontar que o texto literário estabelece correspondências com a realidade factual e a produção artística, retomando o passado, a fim de que o sujeito leitor se movimente para o entendimento do presente histórico, explorando a herança memorial para transformá-la pela ação criadora, já que as representações poéticas trazem fragmentos da realidade, ademais de dialogarem com a tradição estética.

Ao efetivar-se em texto, sintetizando o discurso dizente da malha antropológica, a literatura dá à imaginação a roupagem das palavras e interliga tempos e espaços, autores e leitores em um gesto de comunicação solidária, que, todavia, se mostra como um discurso encenado.

A noção de texto literário compreendido como universo ficcional que traduz dimensões sociais, históricas e culturais, complementa-se com o reconhecimento de que ele é, essencialmente, um fenômeno de linguagem. Organiza-se na forma de um discurso ou como um ato enunciativo que emana de um locutor, dirige-se a um alocutário, faculta uma referência ao mundo e comporta marcas mais ou menos explícitas da situação em que emerge.

Nessa ordem, há duas questões significativas que comportam o fato literário: a primeira é a possibilidade de escutar aqueles a quem as estratégias de poder de Estado reservaram a margem do social como espaço de estabilidade narrativa e sofrimento e a outra é o redizer da história oficializada pelos anais da estupidez humana. E são justamente estes dois importantes predicativos das composições ficcionais que a professora Maria Salete van der Poel oferece ao leitor de sua obra Vidas Aprisionadas: Relatos de uma prática educativa, lançada pela Editora Oikos, no ano de 2018.

A obra apresenta-se como um gênero híbrido que remete a ares confessionais, biográficos e ficcionais como uma grande alegoria em que imagens narrativas caminham a uma mesma significação: a educação pela literatura, pela cultura. A narrativa origina-se dos registros de seus diários de campo, os quais remetem ao tempo da realização dos estudos de mestrado, na Universidade Federal da Paraíba, pontuado por polêmicas, coragem e, principalmente, por um movimento de liberdade intelectual.

O ordinário cotidiano e as peripécias vividas pela autora estão muito bem descritos, o que manifesta uma relação íntima da autora com sua escritura. Irônica e sagaz, a narradora de Vidas Aprisionadas estende à contemplação de seus leitores questões cruciais para o entendimento das estratégias de educação em espaços de privação de liberdade, indicando caminhos que levam à autonomia do sujeito pela sua escritura e pelo fazer da palavra. E é justamente a palavra que, imbuída de poder, coloca em marcha movimentos íntimos de transformação e de ocupação de espaços de fala, o que significa que há um deslocamento simbólico da noção de permanência de mundo.

A narradora ora simula uma impossibilidade de seguir narrando para que não seja ela mesma a estrela principal da diegese, simulando um desmerecimento do narrado, ora figura-se como um ser silencioso que concede uma liberdade intangível aos personagens representados. E isso chama muito a atenção do leitor, pois se pensarmos a enunciação como uma relação de poder entre enunciador e enunciatário, percebemos que a ideia de significar plenamente para o outro emerge do ato de fala.

É pelo registro do aqui e do agora do ato comunicacional que se gera a noção de pertencimento, de auto-apropriação e de existência altera. É recorrente em todos os tipos de personagens que são apresentados ao leitor essa faculdade: o ato de falar. A voz de Maria Salete é constituída de tamanha humildade que seus interlocutores escapam ao seu domínio e se colocam como sujeitos partícipes de um processo dizente (que, de fato, produz um efeito de sentido), o qual parece inverossímil. Sim, cada personagem figura pela voz enunciante de Maria Salete, cada um deles tem domínio sobre o seu enquanto narrativo, cada um – com maior ou menor performance – é em si uma cosmogênese. Sadraque, Jó, Salomão, Jessé, Aarão, Ur, Dã, João, Boanerges, Teudas, Joacaz, entre outros, não cabem em si, tamanha é a força que apresentam na narrativa carregadora da matéria de seus fenômenos humanos. Eles atravessam a narrativa dizendo suas vidas, compondo seu destino, exatamente como confessa a autora/narradora, dirigindo-se ao leitor:

No fundo, meu interesse era que eles se apropriassem, juridicamente, de mais um documento que lhes trouxesse novos conhecimentos e lhes proporcionasse a possibilidade de se assumir como SUJEITOS de sua própria história. (POEL, 2018, p. 77).

A confissão desenha a prática educacional – discussão que perpassa o enredo inteiro da obra sempre em reiteração – e seu entendimento do que é liberdade. Maria Salete faz com que os personagens sintam-se parte da realidade da educação que ela inventa, e não lhes nega, tampouco usurpa, o direito que cada um deles tem de criar e de constituir-se. Esse movimento de delicadeza perceptiva do outro leva seus interlocutores a uma profunda mudança subjetiva e organiza aquilo que Roy Wagner, em A Invenção da Cultura, chama de presunção da cultura.

De todos as personagens, Divina Zelfa é a mais contundente, arrebatadora. Mulher de vida doída, sofreu a história em seu corpo. Passou pelas mais variadas operações ideológicas de um mecanismo terrorista de Estado, o qual se movimenta, sempre, no intuito de esvaziar o sujeito, anular seu trânsito no imaginário social e operar psiquicamente sua condição. É para ela, Zelfa, que a autora reserva a maior parte da totalidade da obra. Na reconstrução da narrativa de sua vida, o leitor percebe a permissão que Maria Salete se concede para falar. Eu diria que a autora existe plenamente quando fala pela personagem, é como se ela a parisse. Como se a enunciação fosse a imagem de sua transformação íntima. A personagem, embora vinculada a estruturas violentas, ergue-se soberana no texto e se constitui com amplitude. E fala por si, por uma multidão de mulheres solitárias que, abusadas no espaço social, sobrevivem, são encarceradas e passam a constituir um dos mais perversos sistemas de abuso oficializado pelo poder e por seus aparelhos ideológicos. Divina Zelfa é, sem dúvida, uma personagem que não perde em aprofundamento psíquico para outras figuras significativas da literatura, como Nastenka, a musa de Noites Brancas, de Dostoiévski; Rita Baiana, a mulher endiabrada d´O cortiço, de Aluísio Azevedo; e Ana Karenina, a culpada que dá nome ao clássico, de Tolstói.

Outro olhar que deve ser lançado ao livro é o de seu excelente arranjo gráfico, com editoração primorosa por valorizar o diálogo teórico-crítico, a obra traz menções (no corpo do texto) a Paulo Freire, Michel Foucault, Vanilda Paiva, Zygmunt Bauman, Simone de Beauvoir, Erving Goffmann, Pedro Bandeira, Jomard Muniz de Brito entre tantos outros nomes importantes que conformam o campo simbólico educacional. Vidas aprisionadas é leitura fundamental para todos que veem a literatura como um patrimônio cultural de entendimento da realidade, a todos aqueles que pensam a arte do narrar como fundante na organização social do ser humano. Enfim, a todos que acreditam que o fazer literário é conformado por espaço, tempo e por aquilo que não podemos mensurar.

1 Resenha Livre da Obra: POEL, Maria Salete van der. Vidas aprisionadas: relatos de uma prática educativa. São Leopoldo: Oikos, 2018.

Como citar este documento: CONTE, Daniel. O fazer literário com a matéria do por vir. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 27, n. 2, p. 287-290, abr. 2019. ISSN 1982-9949. Disponível em: <https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/13367>. Acesso em:_____________________. doi:https://doi.org/10.17058/rea.v27i2.13367.

Recebido: 28 de Março de 2019; Aceito: 14 de Abril de 2019

Autor para contato: danielconte@feevale.br

Daniel Conte Doutor em Literatura Brasileira, Portuguesa e Luso-africana pela UFRGS. Professor do Curso de Letras e do Mestrado em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale. Tutor PET-interdisicplinar (MEC/FNDE).

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