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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.1 Santa Cruz do Sul ene./apr 2022  Epub 11-Ago-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i1.16054 

Artigos do Fluxo

Resistência propositiva popular: em tempos de marco de referência e disputas por outra educação

Proactive popular resistance: in times of frame of reference and disputes for another education

Resistencia propositiva popular: en tiempos de marco de referencia y disputas por outra educación

Gercina Santana NovaisI 
http://orcid.org/0000-0002-7327-8375

Tiago Zanquêta de SouzaII 
http://orcid.org/0000-0002-2690-4177

I Universidade de Uberaba - Uniube - Uberaba - Minas Gerais - Brasil.

II Universidade de Uberaba - Uniube - Uberaba - Minas Gerais - Brasil.


RESUMO

Este texto visa contribuir para a reflexão sobre resistência propositiva popular no enfretamento das políticas públicas de educação neoconservadoras e neoliberais, evidenciando princípios, diretrizes, conceitos e experiências do campo da educação emancipatória. Nesse contexto, analisa o documento publicado no ano de 2014: “Marco de Referência de Educação Popular para as Políticas Públicas”, evidenciando elementos e contradições que revelam opções relativas à elaboração de políticas educacionais, desenvolvidas em períodos históricos que antecederam a eleição presidencial de 2018. Valendo-se das contribuições de Dussel (1986, 1997, 2007) e Freire (1996, 2000, 2005, 2011), retomam-se acontecimentos recentes e possibilidades de educação utópica, para compreender e anunciar contraposições à educação para a subordinação das classes populares como política pública de educação e ao fortalecimento da agenda de mercantilização do conhecimento e abandono do caráter público, laico, gratuito e social das instituições públicas de ensino, em decorrência do resultado das urnas referente à escolha do presidente do Brasil para o período de 2019 a 2022.

Palavras-chave: Educação Popular; Neoconservadorismo; Resistência Propositiva Popular

ABSTRACT

This text aims to contribute to the popular proactive resistance reflection in the neoconservative and neoliberal public education policies confrontation, evidencing principles, guidelines, concepts, and experiences in the field of emancipatory education. In this way, it analyzes the document published in 2014: "Popular Education Reference Framework for Public Policies", showing elements and contradictions that reveal options regarding the elaboration of educational policies, developed in historical periods that preceded the 2018 presidential election. Using the contributions of Dussel (1986, 1997, 2007) and Freire (1996, 2000, 2005, 2011), recent events and the possibilities of utopian education are taken up, to understand and announce oppositions to education for the subordination of the popular classes as a public education policy and the strengthening of the trade knowledge agenda and negligence of the public, secular, free and social nature of public educational institutions, according to the polls that refer to the election of the president of Brazil for the period from 2019 to 2022.

Keywords: Popular Education; Neoconservatism; Popular Proactive Resistance

RESUMEN

Este texto tiene como objetivo contribuir a la reflexión sobre la resistencia propositiva popular en el enfrentamiento de las políticas públicas de educación neoconservadoras, y neoliberales, evidenciando principios, directrices, conceptos, y experiencias del campo de la educación emancipadora. De esa forma, analiza el documento publicado en el año 2014: "Marco de Referencia de Educación Popular para las Políticas Públicas", evidenciando elementos y contradicciones que revelan opciones relativas a la elaboración de políticas educacionales, desarrolladas en períodos históricos que antecedieron a la elección presidencial del 2018. Valiéndose de las contribuciones de Dussel (1986, 1997, 2007) y de Freire (1996, 2000, 2005, 2011), se retoman acontecimientos recientes y las posibilidades de educación utópica, para comprender y anunciar contraposiciones a la educación para la subordinación de las clases populares como política pública de educación y al fortalecimiento de la agenda de mercantilización del conocimiento y abandono del carácter público, laico, gratuito y social de las instituciones públicas de enseñanza, de acuerdo al resultado de las urnas que se refieren a la elección del presidente de Brasil para el periodo del 2019 a 2022.

Palabras clave: Educación Popular; Neoconservadorismo; Resistencia Propositiva Popular

INTRODUÇÃO

[...] Salve os caboclos de julho Quem foi de aço nos anos de chumbo Brasil, chegou a vez De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês [...]. (DOMÊNICO et al., Samba enredo da Estação Primeira da Mangueira, 2019)

Faz chuva e faz sol. O som das mensagens chegando de forma insistente por meio dos celulares nos faz retirar a atenção da chuva e das cores do arco-íris. É preciso vigiar, resistir e propor, pois saltam aos olhos as evidências da onda neoconservadora , capaz de destruir conquistas sociais e direitos humanos e ampliar a regulação das várias dimensões da vida das pessoas. Como exemplo, foi promulgada a emenda constitucional 95/2016 que limita por vinte anos os investimentos em educação, saúde e assistência social no Brasil e, no dia 29 de março de 2019, o diário oficial da União publicou o decreto 9741, que bloqueou recursos previstos no orçamento de 2019.

A área com maior bloqueio (valores absolutos) é a educação: R$ 5,8 bilhões. Não bastando, chegou às escolas um e-mail, enviado pelo Ministério da Educação - MEC, solicitando que os/as professores/as perfilassem os/as alunos/as, para cantar o Hino Nacional, gravassem e enviassem esta gravação, respeitando o tamanho máximo do arquivo indicado, para o referido ministério.

Prédios construídos com recursos do orçamento do governo federal, por meio do Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil - Proinfância, e com contrapartida dos municípios, foram entregues para organizações não-governamentais. Esse processo de terceirização transfere, também, o poder de decidir sobre quem pode estudar nas escolas que funcionarão nos referidos prédios, a escolha de gestores/as e demais profissionais da educação. Além disso, são transferidos outros recursos financeiros públicos, subvenções, com a finalidade de financiar despesas de custeio dessas organizações.

A discussão acerca das relações de gênero nas escolas continua sofrendo ataques. O projeto “Escola sem Partido” permanece na agenda do governo e sendo desenvolvido por meio das tentativas de silenciamento das vozes das comunidades, das instituições de ensino, da colocação em postos chaves do governo de defensores/as da retirada de princípios constitucionais vigentes, dentre outras ações, que fortalecem o processo de desmonte da Constituição Federal vigente.

Narrativas são elaboradas contra o que consta, a título de ilustração, no artigo 206 da Constituição da República Federativa do Brasil, utilizando também de mecanismos de desvalorização e criminalização do feito pelo outro/a que se opõe ao desmonte das políticas sociais. Outros mecanismos também são utilizados: valorização e nomeação das ações que afrontam a democracia e a soberania nacional como atos de amor à pátria e de interesse público. São muitas mensagens recebidas confrontando a base legal vigente e desenhando a conjuntura atual e seus vínculos com o fortalecimento do neoconservadorismo em diversos países do mundo.

A leitura das mensagens recebidas nas mais variadas redes sociais permite afirmar, ainda, que o ódio e a intolerância são incentivados e as notícias falsas são tomadas como verdades. A mídia tradicional dissemina informações sem espaço para interpretação, apenas consumo. Há um esforço para reescrever a história, positivando e renomeando o golpe militar de 1964. Frequentemente, ocorrem tentativas de apagar outras histórias no campo da educação emancipatória e do reconhecimento dos efeitos da escravidão e da colonização no Brasil até a atualidade.

Essa situação exige reflexões e ações coletivas, contraponto às políticas públicas de educação para e com o mercado, contemplando a defesa do financiamento público da educação, concepções sobre produção de conhecimento e a relação entre educação, culturas e humanização. Decorrentes dos efeitos do neoconservadorismo e seus encontros com o neoliberalismo, as “situações-limites” (FREIRE, 2005) impostas às classes populares,

no momento [...] em que elas se configuram como obstáculos à sua libertação, se transformam em “percebidos destacados” em sua “visão de fundo”. Revelam-se assim, como realmente são: dimensões concretas e históricas de uma dada realidade. Dimensões desafiadoras dos homens, que incidem sobre elas através de ações que Vieira Pinto chama de “atos limites” - aqueles que se dirigem à superação e à negação do dado, em lugar de implicarem na sua aceitação dócil e passiva. (FREIRE, 2005, p. 51).

Nesse contexto a categoria resistência propositiva popular (NOVAIS; SOUZA, 2019), devido ao seu potencial explicativo e orientador de ações coletivas, no campo da resistência aos efeitos das políticas neoconservadoras e neoliberais, e à necessidade de justificar o acréscimo do adjetivo popular à expressão resistência propositiva, tem nos auxiliado na busca de melhor compreender e interpretar ações de grupos que se colocam em movimento, opondo-se às bases teóricas e metodológicas que constituem um jeito de relacionar com o mundo e o/a outro/a e são partes integrantes e justificadoras do projeto de educação dominante. A necessidade de compreender essa oposição nos levou a identificar e analisar, por meio de pesquisa documental, segundo os pressupostos de Cellar (2008) e de campo, a partir das entrevistas semiestruturadas, conforme Gaskell (2002), dinâmicas e elementos dos movimentos, nomeados por nós de Resistência Propositiva Popular, que conferem consistência e revelam potencialidade da referida categoria.

A título de ilustração, no fragmento do Relatório de Pesquisa (NOVAIS; SOUZA, 2020) sobre as narrativas de educadoras populares e movimentos de resistências, por meio de entrevistas semiestruturadas, foi possível reconhecer elementos e dinâmicas recorrentes nos movimentos vinculados ao campo da educação popular e expressos nas histórias de vida dos seus membros, nas histórias desses movimentos e nos entrelaçamentos entre as histórias de vida e as histórias dos movimentos. Por isso, mencionamos trechos dessas narrativas que antecipam e auxiliam as discussões expostas nas próximas seções, revelando dinâmicas e elementos dos movimentos de resistência propositiva popular, vinculados à ideia de aprendizagem permanente da ação; processos de identificação e compromisso com as lutas cotidianas das periferias pobres; atuação em rede de gestão descentralizada com a intenção de transformar a realidade, amor, ética, solidariedade como valores humanos orientadores das ações, valorização da relação não hierarquizada entre intelectuais da academia e dos movimentos sociais e da participação democrática. É importante esclarecermos que as educadoras populares entrevistadas iniciaram a participação em movimentos populares e sindicais na década de 1970 e continuam participando dos movimentos de defesa das vidas em tempos de pandemia do Coronavírus e de aprofundamento das desigualdades sociais, em função do sistema majoritário vigente. A educadora popular Açucena revela que, em 1979, ao iniciar a participação na comunidade de base da igreja católica, nas pastorais, a proposta apresentada por líderes religiosos era a de

conhecer a realidade, nos conhecer, para transformar o meio onde vivíamos [...] Assistíamos os vídeos de formação Fé e Política”. Comecei na fábrica [...] discutir a realidade da fábrica [...] organizar as costureiras [...] fomentar a criação de sindicatos [...] atuar nas favelas em defesa da moradia [...] minha vida foi essa dedicada ao movimento popular e sindical. Conhecer a realidade, ver a causa dos problemas e atuar para transformar a realidade injusta[...] o valor era o humano, a dignidade humana (Educadora Popular, Açucena, 2021).

Revela, ainda, que tem participado da luta coletiva para garantir alimentação e máscaras para parcela significativa da população que “está passando fome ou não tem alimento em quantidade suficiente e de qualidade”, não possui recurso financeiro para adquirir equipamentos de proteção e de higiene. Destaca que, hoje, “a organização não é predominantemente sindical, são outras formas de organização”. Destaca, também, que ampliou o entendimento sobre a separação radical entre o assistencialismo e os movimentos por mudar a estrutura que alicerça as desigualdades sociais, esclarecendo que “a entrega de cesta básica, a distribuição de marmitex pela Cozinha Comunitária, devido à ausência de políticas de Estado, são ações, fomentadas por redes de solidariedade, e não podem ser definidas como assistência, no sentido restrito da palavra, para manter o sujeito na condição desumanizadora” (Educadora Popular Açucena, 2021).

Mas, vejamos outros fragmentos das narrativas que também revelam sujeitos militantes, valores e dinâmicas dos movimentos de resistência; resistência esta marcada pela recusa dos discursos sobre a impossibilidade da mudança em “favor da justiça e da ética” e a crença de que esta mudança “virá porque está dito que virá” (FREIRE, 2000, p. 40-41).

Ao longo da vida você vai aprendendo e reaprendendo sua ação, e a comunidade tem muito a ver com isso, envolvendo com a comunidade, com as lutas cotidiana da população. Compromisso com as causas sociais, humanas. [...] lutas coletivas. Posso não morar na comunidade, mas pertenço a ela. Estou junto. Identifico. [...]. A luta cotidiana são as conquistas e ao mesmo tempo é o seu aperfeiçoamento enquanto pessoa e como ser humano [...] às vezes você não tem aquela necessidade direta, mas, você luta junto com outras pessoas que estão vivenciando aquela necessidade, então passa a ser a sua luta também. Esses movimentos de luta por direitos sociais, humanos têm construído redes locais, nacionais e internacionais. Os valores [presentes nos movimentos de resistência] que você construiu e que você inseriu na sua vida, tanto do ponto de vista pessoal quanto da questão da militância [...], a questão da ética, ela é fundamental na sua trajetória junto com o movimento, é você ter respeito aos princípios democráticos, quer dizer, nós vimos a noite retrasada quando o segurança tirou a vida de um senhor negro a paulada, então, você vê aquela agressividade, e seus princípios humanos [...] não aceita essa atitude. Outros valores presentes no movimento: o amor, a solidariedade, a honestidade. A negação das fakenews. A participação democrática. Escutar e falar. Relação não hierarquizada dos /as intelectuais da academia com os movimentos sociais. (Educadora Popular Flor do Deserto, 2020).

Na perspectiva de continuar a reflexão sobre esses processos, além do Preâmbulo, este texto contém duas seções e as considerações possíveis com a finalidade de contribuir com o debate sobre resistência propositiva popular, pautas, valores e dinâmicas. Na primeira, consta análise sobre o Marco de Referência da Educação Popular (BRASIL, 2014) para as políticas públicas, buscando elementos para pensarmos sobre marcas da resistência propositiva popular com vistas ao desenvolvimento social, político econômico, ambiental. Na segunda, continuamos as reflexões sobre esse tipo de resistência em contexto de fortalecimento do neoconservadorismo e do neoliberalismo como fundamentos das políticas públicas educacionais. Apresentados os contrapontos a essas políticas, retomamos valores, princípios, conceitos e metodologias da Educação Popular, especialmente por meio das elaborações de Freire (1996, 2000, 2005, 2011) e Dussel (1986; 2007) e, ainda, nos valemos de outras experiências para inspirar a discussão em torno do que, neste trabalho, é considerado como resistência propositiva popular. Por fim, as considerações possíveis em tempos sombrios de vitória parcial dos processos de desumanização.

MARCO REFERENCIAL DA EDUCAÇÃO POPULAR PARA A ELABORAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO SOCIAL: MARCAS DE RESISTÊNCIA PROPOSITIVA POPULAR?

A busca por compreensões acerca das experiências que, de algum modo, confrontam elementos do neoconservadorismo e neoliberalismo, levou-nos a analisar o documento “Marco de Referência da Educação Popular para a elaboração das políticas públicas”, publicado no ano de 2014, quando Dilma Rousseff foi reeleita presidenta do Brasil. Esse resultado eleitoral seria a base legal para que o Partido dos Trabalhadores completasse um ciclo de 16 anos no governo federal, em uma aliança ampliada com outros partidos . Durante esse ciclo, ocorreu a criação e o fortalecimento de diferentes conselhos como espaço de discussão e deliberação sobre temas de interesse coletivo, como educação de jovens e adultos, saúde, biodiversidade, juventude, indígenas, quilombolas, moradores de periferias urbanas, pessoas com deficiência, transparência pública e combate à corrupção, direitos dos idosos, dentre outros temas, buscando favorecer a participação na formulação e avaliação das políticas públicas.

De acordo com os dados divulgados em 14 de agosto de 2016, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) , em parceria com a Fundação João Pinheiro e com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), o IDHM - Índice de Desenvolvimento Humano, no Brasil, cresceu contínua e anualmente 1% no período entre 2011 e 2014, que marcou o primeiro mandado da presidenta Dilma Rousseff (PT) . Os três itens que compõem o índice - educação, renda e longevidade - melhoraram no período. Quanto à educação, registrou-se um crescimento anual de 1,5%, item que é medido pela escolaridade (proporção de pessoas com 18 anos ou mais e com ensino fundamental completo, cuja taxa média de crescimento anual foi de 0,5% entre 2011 e 2014), e pela frequência escolar (que registrou um aumento de 1,9% ao ano, no mesmo período). A renda, que é medida pela renda domiciliar per capita, mudou para 1,1% e, a longevidade , aumentou para 0,6% ao ano, quando considerado o período supracitado.

É importante frisar que, em 2002, 468 mil alunos completaram as atividades de graduação, mas em dezembro de 2012 o número de formandos de ensino superior chegava a 1,05 milhão, ou seja, um aumento de 124% que era apoiado por programas de inclusão social como o Prouni, o Fies e a política de cotas (INEP, 2010, p. 32; 2015, p. 63). A reprodução social da classe média tradicional sofria uma tensão significativa no momento de ofensiva ideológica e política da direita a partir da segunda fase das jornadas de junho de 2013, principalmente em São Paulo. (BASTOS, 2017, p.35)

Para Bastos (2017), o cenário da Educação no Brasil, com o fim do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, veio sofrendo forte influência do meritocratismo, como uma consequência da desvalorização que mais de quatro séculos de escravidão infligiram ao trabalho manual, por causa da desigualdade histórica de acesso à educação e por causa da ameaça à reprodução dos grupos populares. Tal influência tem sido utilizada para justificar as políticas educacionais que produzem e reproduzem o discurso sobre a suposta superioridade cultural da população branca em relação à população negra, estando estreitamente vinculado aos valores sociais e raciais de parcela significativa dos/as intelectuais e operadores/as do sistema educacional brasileiro. Assim, no interior das escolas, quase toda ação e prática estabelece normas racializadas, que concedem ou negam demandas com base nelas.

Já na apresentação do Marco, consta que o objetivo do documento é o de “criar um conjunto de elementos que permita a identificação de práticas de Educação Popular nos processos das políticas públicas, estimulando a construção de políticas emancipatórias” (BRASIL, 2014, p.5). Celebra a Educação Popular e as diferentes experiências ocorridas no Brasil, mostrando o significado desse tipo de educação no processo de desenvolvimento econômico social, “reconhecendo que a ação estatal, e seus processos educativos, podem dar-se, confluir e fortalecer-se num fértil campo de diálogo com a realidade, entre os saberes e o conhecimento acumulado do povo brasileiro” (BRASIL, 2014, p.5-6). Mas, que entendimento pode auxiliar-nos a compor compreensões sobre o Marco de Referência? Vasconcellos considera que Marco Referencial é

a tomada de posição da instituição que planeja em relação à sua identidade, visão de mundo, utopia, valores, objetivos, compromissos. Tem como função maior tensionar a realidade no sentido da sua superação/transformação e, em termos metodológicos, fornecer parâmetros, critérios para a realização de diagnóstico. (VASCONCELLOS, 2000, p.182)

Tendo como referência essa formulação, a análise desenvolvida no Marco evidencia o caráter do documento, referência para a política nacional de Educação Popular, os/as destinatários/as, gestores/as públicos/as e a metodologia de elaboração e implementação das políticas públicas “sempre em diálogo com os setores organizados da sociedade” (BRASIL, 2014, p. 7) e indícios das marcas da dinâmica e de elementos presentes em ações de Resistência com vistas à garantia de direitos sociais e humanos.

Nessa direção, o conceito-chave, utilizado no texto, Educação Popular, orienta as formulações ali registradas e esclarece sobre a compreensão adotada em relação a esta expressão:

A educação popular a um só tempo é uma concepção prático/teórica e uma metodologia de educação que articula os diferentes saberes e práticas, as dimensões da cultura e dos direitos humanos, o compromisso com o diálogo e com o protagonismo das classes populares nas transformações sociais. [...] uma ferramenta forjada no campo da organização e das lutas populares no Brasil, responsável por muitos avanços e conquistas em nossa história. (BRASIL, 2014, p.7).

Esse conceito impacta a metodologia de elaboração do Marco, que é

[...] resultado de um amplo processo de debates, diálogos e reflexões, a partir de diferentes práticas, do Governo Federal, de movimentos sociais, de universidades e de educadores populares e da educação formal do Brasil, desenvolvido por meio de reuniões, seminários e articulações entre 2011 a 2014, coordenado pela Secretaria Geral da Presidência da República, por meio de seu Departamento de Educação Popular e Mobilização Cidadã/SNAS. (BRASIL, 2014, p.2).

As 100 experiências formativas, mencionadas no Marco, contemplam a pluralidade de temas e métodos, mas é possível identificar elementos comuns em parcela significativa dessas experiências que podem ser lidos a partir dos fundamentos teórico-metodológicos da Educação Popular: dialogicidade, amorosidade, conscientização, participação e transformação da realidade e do mundo. A tentativa de negar a negação, na perspectiva de Dussel (1977, 1997), está presente nessas experiências, especialmente quando se opõem à exploração, a dominação, a exclusão, a fim de afirmar e libertar o que sempre foi o outro, distinto, alteridade real, viva e ausente.

Segundo Dussel (1997), a libertação acontece a partir da realidade da vida, ou seja, do plano prático-produtivo, das condições materiais que a efetivam. Estas dimensões teórico-práticas constituem e conformam as condições indispensáveis à vida de todo e qualquer ser humano. No entanto, o que se tem percebido claramente e em escala planetária, é que somente uma pequena parcela da humanidade tem acesso a essas condições prático-teóricas e desfruta do conforto Segundo Dussel (1997), a libertação acontece a partir da realidade da vida, ou seja, do plano prático-produtivo, das condições materiais que a efetivam. Estas dimensões teórico-práticas constituem e conformam as condições indispensáveis à vida de todo e qualquer ser humano. No entanto, o que se tem percebido claramente e em escala planetária, é que somente uma pequena parcela da humanidade tem acesso a essas condições prático-teóricas e desfruta do conforto

O Marco, como contraponto a essa situação, se utiliza da defesa de outro tipo de desenvolvimento econômico:

Está em curso no Brasil, há 10 anos, um modelo de desenvolvimento econômico e social denominado por alguns estudiosos como “neo-desenvolvimentismo” e por outros como “sociodesenvolvimentista”. Quem defende essa última vertente a define tendo três eixos: construção de um mercado interno de massas; políticas públicas com participação social e inclusão; relações internacionais soberanas. Este modelo é responsável, graças à combinação de políticas de redistribuição de renda, de aumento do salário-mínimo e de facilitação de crédito, por provocar a maior mobilidade social experimentada na história recente do país. Para ambas as perspectivas, é importante entender o Estado e qual o seu papel e de suas instituições no processo de desenvolvimento brasileiro. (BRASIL, 2014, p.13).

Bastos (2017, p. 35) afirma que, com o avanço do populismo de direita no país, desde 2013, ano que antecedeu a criação do referido Marco, revelou-se a revolta das camadas médias “imprensadas pelo custo dos serviços privados, pela carência de empregos e pelo avanço das camadas populares, pelo qual culpavam o populismo e a demagogia dos políticos que compravam apoio popular” por meio de políticas de assistência social. Revelou-se, ainda, que a revolta contra a corrupção ocupou o centro do cenário das insatisfações das camadas médias tradicionais. E, ao mesmo tempo, contraditoriamente, manipulou-se a corrupção “para ajudar a derrubar um governo que contribuía para as investigações e colocar no poder um grupo político corrupto e interessado em barrar as investigações”.

No referido Marco, em relação ao contexto em que foi criado, consta que são muitos

desafios ao Brasil para se afirmar enquanto nação no cenário mundial, sobretudo o de avançar para além apenas da inserção no consumo para a integração no processo do conhecimento e criação de valores da cidadania milhões de brasileiros e de brasileiras. [...]. As políticas governamentais originaram uma nova classe trabalhadora heterogênea, desorganizada e precária no sentido de não possuir um ideário pelo qual lutar. Esta nova classe trabalhadora é que absorve a ideologia da classe média: o individualismo, a competição, o sucesso a qualquer preço, o isolamento e o consumo. (BRASIL, 2014, p.14).

Desse modo, de acordo com Dussel (2007), é possível compreender que existe uma política dominadora que justifica o status quo vigente e que, ante essa política, se faz necessário outra política, uma antipolítica que negue a dominação sofrida não apenas pelo pobre, mas também pelo povo latino-americano, e abra caminho para uma política cujo exercício não seja a justificação racional de dominação, mas a promoção do respeito, da dignidade da vida humana entre as culturas e no interior de todas as culturas.

Nessa direção, o documento analisado contempla o reconhecimento de que “a ação estatal, e seus processos educativos, podem dar-se, confluir e fortalecer-se num fértil campo de diálogo com a realidade, entre os saberes e o conhecimento acumulado do povo brasileiro” (BRASIL, 2014, p. 6-7). Na Educação Popular manifestam-se diferentes relações sociais entre os sujeitos históricos e interativos, construídas em um currículo vivo, permeado de ações, atitudes, conceitos, linguagens e interesses, pautados no diálogo libertador e reflexivo, que além de contribuir para a apropriação de diferentes saberes, também promove a socialização e a interação entre os sujeitos, propiciando assim a construção do sentido de humanidade pelos mesmos e criando condições para que a classe oprimida supere a consciência ingênua e atinja a consciência crítica, a partir da compreensão da sua realidade concreta.

Conforme consta no Marco (BRASIL, 2014, p. 8), a Educação Popular recupera sua importância histórica na constituição do povo brasileiro, e pode, a partir disso, “[...] orientar a formulação de políticas públicas com participação social e emancipatória”, [...] em espaços e contextos em que práticas educativas formuladas em sintonia com esta perspectiva metodológica podem se dar”, reforçando um dos seus objetivos, que é o de

apoiar os diferentes setores do governo em suas ações educativas e formativas para que, dentro de seus contextos, mandatos e abrangências, possam alcançar o máximo de resultados, avançando para uma concepção de educação em sintonia com as diferentes realidades e com a perspectiva da valorização dos saberes populares, da humanização e da emancipação popular. (BRASIL, 2014, p. 16).

Nesse sentido, segundo Freire (2007), a insegurança, a incerteza, a dúvida, o nervosismo e a ansiedade representam o medo que pode configurar alienação, ou seja, o medo que paralisa diante do futuro. Um medo de correr o risco da aventura de criar, sem o qual não há criação. Um medo que estimula o formalismo, que limita a vontade de transformar, de primar pela liberdade, o que configurará, ainda, de acordo com Freire (1999), uma introjeção, no oprimido, do projeto do opressor. Dessa forma, é necessária a ousadia, intimamente ligada à coragem de arriscar, de passar pela experiência da resistência propositiva popular, o que permitirá que o sonho se torne realidade: a realização da libertação, da alteridade, da emancipação e da autonomia.

Outra observação refere-se ao fato de que o processo de elaboração e as tentativas de implementação do referido marco podem ser compreendidos como ação de resistência no interior do Estado.

RESISTÊNCIA PROPOSITIVA POPULAR EM CAMPOS MINADOS PELO NEOCONSERVADORISMO E NEOLIBERALISMO

Nesse processo de nomeação da resistência, é importante destacar que o neoconservadorismo e o neoliberalismo não atuam apenas no campo dos direitos sociais e humanos. Com a finalidade de compor narrativas justificadoras dos retrocessos dos referidos direitos, e colocá-las como orientação geral da vida de sujeitos e dos seus grupos de origem, essas narrativas contemplam formulações sobre dimensões da vida humana, especialmente, a razão, as crenças, os valores, o público e o privado e as representações.

Essas narrativas, crivadas por representações, aqui entendidas como escreve Lefebvre (1983, p. 94), “[...] fatos de palavras (ou se preferir de discurso) e de prática social”, são assumidas por parcelas significativas da população e contribuem para manter inalteradas representações dominantes sobre a desigualdade social e os responsáveis pela barbárie construída. Essas representações orientam as condutas das pessoas. Assim, o neoliberalismo

impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a i mesmo e a comporta-se como uma empresa. (DARDOT; LAVAL, 2016, p.16)

Em contraposição a esse modo de organizar, estruturar a economia e o estado e de regular a conduta dos sujeitos, configurando as relações sociais, os modos de perceber e relacionar com o outro, definindo elementos das subjetividades e colocando-os em escalas de valoração do sujeito e seus feitos, fortalecendo a responsabilização individual pelo denominado “sucesso” e “fracasso”, há necessidade de opor-se e propor mudanças contemplando diferentes esferas da vida. Todavia, essa oposição e proposição requerem teorias e práticas ancoradas na recusa do individualismo, da violência, da desumanização, do autoritarismo e de qualquer outro tipo de opressão.

A formulação da expressão resistência propositiva popular incorpora essa compreensão e o reconhecimento de que a sua construção exige redes abertas e democráticas de produção e divulgação de conhecimentos, saberes e experiências complexos, vinculados aos diferentes lugares, sujeitos ou grupos sociais, e processos de superação de qualquer obstáculo à emancipação humana. Dessa forma, ao identificar e analisar movimentos de resistência em contextos escolares e não escolares, são evidenciados pautas, proposições, dinâmicas e valores que podem permitir nomeá-los como movimentos de resistência propositiva popular, por exemplo, como evidenciou resultados da pesquisa sobre narrativas de educadoras populares e movimentos de resistências análise, mencionada na introdução deste texto. Assim, destacam-se as pautas interconectadas, ancoradas nos direitos humanos, a participação democrática como método e conteúdo das ações, a gestão em rede descentralizada, a busca por relações não hierarquizadas entre academia e movimentos sociais, a valorização de diferentes saberes, a solidariedade como eixo orientador das ações.

A resistência propositiva popular é materializada, por exemplo, nos movimentos marcados por diversidade temática, ações coletivas e, unicidade quanto ao compromisso com o fim da barbárie. Frequentemente, faz parte da dinâmica desses movimentos a solidariedade como modo de relacionar com o/a outro/a e projeto de humanização. Assim, a resistência propositiva popular é constituída por projetos políticos pedagógicos ampliados, associados à inscrição nos discursos sociais de outras narrativas sobre experiências e compreensões acerca das relações entre as pessoas. Isso tem permitido, especialmente, nos últimos dez anos, a ampliação da pauta inicial do movimento em defesa da escola pública, quando são agregadas as demandas, as reflexões e os sujeitos, por exemplo, dos movimentos de mulheres negras. Esses movimentos são comprometidos com a superação das hierarquias e fragmentação dos conhecimentos. Fomentam a produção do conhecimento sobre mundo e o autoconhecimento, a recusa da valorização dos conhecimentos acadêmicos em detrimento dos conhecimentos produzidos pelos movimentos sociais e ou por diferentes grupos sociais. Por conseguinte, para esse processo educativo, são fundamentais experiências ocorridas nas instituições públicas, laicas e democráticas de ensino, bem como aquelas que ocorrem no âmbito dos movimentos sociais e das diferentes expressões das culturas populares, opondo-se à “nova razão do mundo” (DARDOT; LAVAL, 2016), neoliberal e neoconservadora.

Para melhor esclarecermos sobre essas experiências e buscarmos elementos comuns e diversos para refletirmos sobre estratégias e mecanismos no âmbito da resistência propositiva popular, mencionamos a Marcha Mundial das Mulheres - MMM, criada em 2000, que reuniu mulheres de todo mundo contra a pobreza e a violência. E, em tempos de pandemias, mulheres continuam marchando em defesa de todas as vidas.

Assim, a MMM continua realizando ações internacionais, nacionais e locais, organizadas por meio de núcleos e comitês, acolhendo também a participação das pessoas que não são vinculadas a estes espaços organizativos. As participantes da Marcha refletem e intervêm na realidade, fortalecendo espaços coletivos plurais, tratando temas locais associados aos processos globais, às lutas pelo fim das desigualdades e de qualquer tipo de opressão. As razões, características e ações desse movimento são assim descritas:

Estamos em marcha permanente pela autonomia econômica das mulheres, pela paz e desmilitarização, pelos bens comuns e a natureza e pelo fim da violência contra as mulheres. Mudar o mundo e mudar a vida das mulheres em um só movimento. Igualdade para todas. Fortalecimento de espaços coletivos das mulheres: populares, autônomos e diversos. (MARCHA MUNDIAL DAS MULHERES, 2019, s/p.).

Essas experiências da MMM são sustentadas por princípios e valores (unicidade entre teoria e prática, solidariedade, emancipação dos sujeitos, respeito e valorização das culturas, democracia, trabalho coletivo, amorosidade, espaço para formulação e atuação dos grupos de mulheres, convivência da unicidade com a diversidade, dentre outros). Alguns destes princípios e valores também estão presentes em experiências ocorridas em escolas das redes públicas de ensino e resultantes da decisão política de partir da realidade concreta e buscar a transformação da realidade opressora e excludente, criando espaços não hierarquizados de reflexão e construção coletiva de ações educativas emancipatórias, favoráveis à humanização, como resistências.

Nessa direção, citamos a organização e o desenvolvimento das Rodas de Conversa nas escolas de ensino fundamental e de educação infantil, durante o processo de implementação da gestão democrática, popular e em rede, da educação pública municipal de ensino do município de Uberlândia/MG, no período de 2013 a 2016, vinculada ao compromisso com demandas e interesses da maioria dos/as alunos/as das escolas públicas e gratuitas.

Das rodas de conversa [...] participaram os/as profissionais da educação presentes nas escolas onde elas ocorriam e, frequentemente, professores/as formadores/ as do Centro Municipal de Estudos e Projetos Educacionais Julieta Diniz (CEMEPE). Os temas das rodas de conversa revelaram preocupações e demandas dos/as profissionais das escolas associados aos cumprimentos dos objetivos educacionais. [...] As rodas de conversa evidenciavam elementos da educação popular, por exemplo: o fortalecimento e a valorização da participação dos/as profissionais da educação na análise dos problemas identificados nas escolas e na elaboração coletiva de posições visando superá-los. E, ainda, a elaboração da política de formação continuada e em serviço, estruturada a partir da realidade concreta das unidades escolares. Nessa perspectiva, os resultados dessas discussões foram tomados como base para as ações da Política Pública de Educação para a rede municipal de ensino de Uberlândia. (NOVAIS; NUNES, 2018, p.78-79)

A experiência, ocorrida em outro espaço cultural, que merece destaque, é a do desfile de Carnaval da Escola de Samba “Estação Primeira de Mangueira”, no ano de 2019. O enredo desenvolvido por Leandro Vieira, “História para ninar gente grande”, bem como as alegorias, os movimentos dos componentes, e o samba enredo composto por criado por Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Silvio Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino, dão visibilidade às narrativas não registradas na história oficial.

[...] Brasil, meu nego Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra. Brasil, meu dengo A Mangueira chegou Com versos que o livro apagou Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato [...]. (DOMÊNICO et al., 2019).

Essas narrativas cantadas e dançadas, divulgadas para milhões de pessoas, provocaram a inscrição da história negada nos discursos sobre o Brasil e o debate em diferentes espaços, fomentando educação com base na realidade concreta do país e disputas de narrativas.

As experiências mencionadas trazem novas narrativas e sujeitos, mostrando um país que não está no retrato oficial. Adotam a criação de espaços coletivos de discussão e manifestação, a nomeação de personagens e seus grupos sociais apagados da história. Dessa forma, têm oportunizado leituras e intervenções na realidade, produção de conhecimentos e outras sociabilidades promotoras de constituição de subjetividades e jeitos de relacionar no contexto de luta contra a opressão e a discriminação.

Mas, segundo as formulações de José Francisco de Melo (2014), ao acolher a dimensão do popular, é preciso ponderar as dimensões fundantes do adjetivo, como a origem e o direcionamento das questões que surgem; o componente político essencial e orientador das ações; e, especialmente, o popular manifestado por metodologias que indiquem encaminhamentos de ações, acompanhadas de seus aspectos éticos, a saber: diálogo, solidariedade, coletivo, dentre outros; e utópico: autonomia, liberdade, emancipação e independência. Desse modo, “nesta concepção, popular adquire dimensão de uma metodologia que só terá significado quando expressar uma visão de mundo em mudança, contendo em suas ações a dimensão de propor saídas para as situações de miséria vividas pelo povo”. (MELO, 2014, p.46)

Felizmente, o ser humano pode reagir às imposições de padrões de comportamento e, ao utilizar dinâmicas, incorporar valores e pautas da resistência propositiva popular, pode promover transformações. Freire (1996, p. 41) alerta que o contexto da resistência pressupõe uma briga entre desiguais, em que “a boniteza de ser gente se acha, entre outras coisas, nessa possibilidade e nesse dever de brigar”. A resistência, nesse sentido, é a possibilidade de mudar o mundo, compreendê-lo dinâmico, recusando o discurso de que a mudança irá acontecer espontaneamente, ou seja, de que vai chegar porque tem que chegar. É também uma prática que contraria alguns aspectos da visão de mundo dominante e, desse modo, faz-se necessário uma luta contra ela e não assumir a posição fatalista forjada pelo próprio sistema, a ponto de fazer com que as pessoas compreendam que não há o que fazer nessa realidade, que é assim mesmo como se apresenta.

Paulo Freire (2011a) adverte sobre a necessidade do diálogo como ação cultural para a libertação, como chancela do ato de conhecimento, que se fundamenta no próprio processo de organização das classes populares e prima pela compreensão crítica da sua realidade. Nessa perspectiva, a resistência propositiva popular, em tempos minados pelo conservadorismo e combate à democracia social, também pode ser identificada por meio dos indícios da existência dos processos de fomento à consciência crítica. Para Freire (2011b), um dos objetivos da Educação Popular é a formação humana historicamente enraizada e, acima de tudo, que preze pela libertação dos homens e das mulheres, posicionando-se criticamente e tomando decisões que interferem e alteram a realidade, em comunhão e resistência, por meio do diálogo e da práxis.

Freire (1995, p.16) afirma que a educação pode se fazer como caminho e possibilidade, para que as pessoas possam elaborar a sua cultura. “A participação popular na criação da cultura e da educação rompe com a tradição de que só a elite é competente e sabe quais são as necessidades e interesses de toda a sociedade”. Disso decorre, também, a ideia da resistência propositiva popular como projeto político pedagógico ampliado, vinculado ao desenvolvimento social, econômico, ambiental .

Para Dussel (1993), a ideologia do desenvolvimento, que insiste em avalizar um progresso igualitário para tudo e todos/as no mundo, na verdade, não passa de uma postura eurocêntrica desenvolvimentista, que, desde a época da “conquista”, ou melhor, da invasão territorial, por ocasião das grandes navegações, cerra os olhos para a exploração e dominação da periferia, o que se constituiu em origem e manancial de riquezas roubadas e acumuladas nos centros europeus de maior destaque da época. Conforme sua conveniência, esta ideologia pensa o outro enquanto escravo, como não-ser, como se fosse algo ou alguém livre, mas ainda imaturo, bárbaro e bruto, que por isso não toma parte naquela experiência comum de dominação, desconsiderando-o mesmo sendo aquela parte dominada, negada e explorada constitutiva da modernidade.

Esta situação de não-ser, de não reconhecimento do outro, de dominado e explorado, é indicativa da exclusão explícita da constituição do sentido e da compreensão do ser da modernidade e por extensão da cultura e da civilização ocidental. O mundo periférico não poderá, nunca ─ no que se refere ao sistema e ao modo de produção capitalista ─ ser central ou tardio porque seu destino foi traçado, desde há muito, como não incluído, como impossibilitado de tomar parte de uma nova perspectiva, que reconheça o outro latino-americano, em sua singularidade, e a América Latina, em sua particularidade, como ser distinto de distinto caminho (DUSSEL, 1997).

Disso decorre parte da crítica ao eurocentrismo na perspectiva daquelas/es que foram declaradas/os inferiores e incapazes pela lógica dominante para propor a ideia da transmodernidade de descolonização do conhecimento, desde a periferia (DUSSEL, 2000). Por isso, é preciso "aprender que existe o Sul, aprender a ir para o Sul, aprender a partir do Sul e com o Sul" (MENESES, 2008, p. 5) como caminho para a descolonização do poder, do ser e do saber, que assume um posicionamento crítico e ativo perante as epistemologias do Norte, caracterizadas pela monocultura do saber científico, que nega e desclassifica os conhecimentos e saberes populares.

Como possibilidade de superação dessa realidade, a Educação Popular, em sua práxis, vai primar pela democratização do ensino, na luta pela inclusão social e pela valorização do saber popular. O diálogo, por excelência, é educativo e, por meio dele, é possível que o ser humano se torne pessoa nas interações com o mundo e com as outras pessoas. Dialogar implica, como afirmado anteriormente, buscar permanentemente a criação coletiva, dialética e dialógica. Significa aceitar que toda pessoa sabe, e que nem todos sabem o mesmo, e que os saberes precisam confrontar-se para que nasça um novo saber (FREIRE, 2000). Nesse contexto, a expressão resistência propositiva popular tem potencial explicativo e orientador da configuração e do desenvolvimento de ações criativas, coletivas e emancipatórias.

CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS

Mais uma vez desafiados pela urgência de nos contrapormos à onda neoconservadora, que, destruindo direitos sociais e criando narrativas legitimadoras, dificulta a chegada de uma realidade histórica marcada pela humanização de cada um/a, somos provocados a refletir coletivamente sobre a resistência ao avanço da instalação da barbárie.

No preâmbulo deste texto registramos mensagens recebidas por meio dos celulares que revelam destruição de direitos conquistados e tentativas de evitar avanços no campo dos direitos humanos e sociais, configurando um ataque à constituição e a instalação de um Estado de exceção. Devido à complexidade do momento vivido, optamos por nos ocuparmos da reflexão acerca da contraposição e transformação dessa realidade, buscando refletir acerca da categoria explicativa da resistência propositiva popular.

Apresentamos argumentos a favor da pertinência de buscarmos inspiração no campo da Educação Popular para “denunciar e anunciar”. Retomamos as experiências desenvolvidas por diferentes sujeitos, em diversos espaços de educação e cultura, e analisamos o “Marco de Referência de Educação Popular para as políticas públicas - 2014”, para pensarmos sobre concepção de mundo e metodologias ancoradas em valores e princípios como emancipação, solidariedade, amorosidade e participação não excludente. Essa discussão permitiu mostrar a compreensão e o significado da resistência propositiva popular, para contrapor ao processo de estabelecimento das relações sociais, da organização e da estrutura de Estado que tem dificultado o desenvolvimento de uma educação humanizadora.

Estamos cientes de que esse tipo de resistência instiga a produção coletiva de respostas para questões complexas, estimula o fim de discursos exclusivistas e legitima outras histórias elaboradas ou em construção por determinados grupos sociais compromissados com a superação das “situações-limites” e a escuta de “Marias, Mahins, Marielles e malês”.

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Recebido: 01 de Dezembro de 2020; Aceito: 01 de Maio de 2021

Gercina Santana Novais Licenciada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia (1982), graduada em Ciências Biológicas pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ituiutaba (1976), especialista em Filosofia e Pesquisa em Educação, mestre e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (2005). Foi diretora da extensão da Universidade Federal de Uberlândia - UFU, no período de 2001 a 2008. Foi professora da Educação Básica - 1987 a 2009; professora de cursos de graduação 2011 a 2017. Foi professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Foi secretária de Educação do Município de Uberlândia (2013-2016). Atualmente é professora do Programa de Mestrado Profissional em Educação: formação docente para a Educação Básica da Universidade de Uberaba - Uniube. É líder do Grupo de Pesquisa Formação Docente, Direito de Aprender e Práticas Pedagógicas- FORDAPP. Membro da coordenação da Rede Cooperativa de Ensino, Pesquisa e Extensão nas escolas de Educação Básica - RECEPE. Tem experiência nas áreas de Educação, Psicologia e Políticas públicas, com ênfase em Psicologia e educação escolar, educação e inclusão social, Gestão e produção de resultados educacionais, atuando principalmente nos seguintes temas: Currículo e educação; Formação docente e Práticas pedagógicas; Metodologias participativas de trabalho pedagógico; Dificuldades de Aprendizagem; Resultados educacionais, qualidade social da educação e inclusão escolar e social; Educação Popular; gênero e educação; gênero e violência intrafamiliar.

Tiago Zanquêta de Souza Graduado em Ciências Biológicas. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Gestão Ambiental. Mestre em Educação, pela Universidade de Uberaba - Uniube. Doutor em Educação, pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Professor do Programa de Mestrado Profissional em Educação: formação docente para a Educação Básica e do Programa de PósGraduação em Educação, ambos da Universidade de Uberaba. Líder do Grupo de Estudos Educação na Diversidade para a Cidadania (GEEDiCi-PPGE/Uberaba). Segundo líder do Grupo de Pesquisa em Formação Docente, Direito de Aprender e Práticas Pedagógicas (FORDAPPPPGEB/Uberlândia). Membro do Grupo de Pesquisa em Práticas Sociais e Processos Educativos (PSPE-PPGE/UFSCar). Vice coordenador da REDECENTRO - Rede de pesquisadores sobre professores(as) da Região Centro-Oeste/Brasil. Membro da coordenação da Rede Cooperativa de Ensino, Pesquisa e Extensão nas escolas de Educação Básica - RECEPE. Tem pesquisas na área de Educação, atuando nos seguintes temas: processos educativos em práticas sociais, educação ambiental, educação popular, extensão popular e formação de educadoras/es

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