SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número1Resistencia propositiva popular: en tiempos de marco de referencia y disputas por outra educaciónCartas pedagógicas: una inspiración freireana índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.1 Santa Cruz do Sul ene./apr 2022  Epub 11-Ago-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i1.15786 

Artigos do Fluxo

A educação freiriana pelas lentes do anticolonialismo e dos estudos pós-coloniais e decoloniais

Freirian education through the lenses of anticolonialism, post-colonial, and decolonial studies

La educación freiriana a través de los lentes del anticolonialismo y de los estudios poscoloniales y decoloniales

Kátia Luzia Soares OliveiraI 
http://orcid.org/0000-0003-4001-7512

Gracy Kelly Andrade Pignata OliveiraII 
http://orcid.org/0000-0002-6244-3304

IInstituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia - IFBA - Salvador - Bahia - Brasil.

II Universidade Federal do Oeste da Bahia - UFOB - Barreiras - Bahia - Brasil.


RESUMO

Este texto argumenta em favor da perspectiva de educação proposta por Paulo Freire e sugere que suas obras sejam revisitadas pelo prisma da crítica pós-colonial e decolonial, tendo como horizonte a ideia de emancipação humana, alicerçada em projetos coletivos de transformação da realidade no âmbito da justiça social. Para tanto, busca realizar uma aproximação entre a perspectiva teórica freiriana e a crítica pós-colonial e decolonial a partir da ênfase da Educação Libertária e da proposta de uma Pedagogia [des]decolonial. Trata-se de um estudo de caráter teórico, no qual adotamos como lastro conceitual a pedagogia crítica de Freire.

Palavras-chave: Pedagogia Crítica Freiriana; Crítica Pós-Colonial e Decolonial; Pedagogia Decolonial

ABSTRACT

This text argues in favor of the perspective of education proposed by Paulo Freire, and suggests that his works must be reviewed through the postcolonial and decolonial criticism point of view, having as a target the idea of human emancipation, based on collective projects of reality transformation. regarding the social justice field. For this, it seeks to make an approximation between the Freirian theoretical perspective and postcolonial and decolonial criticism based on the emphasis of Libertarian Education and the proposal of a [de]decolonial Pedagogy. It is a theoretical study, in which we adopt as Freire's conceptual field and critical pedagogy.

Keywords: Freirean Critical Pedagogy; Postcolonial and Decolonial Criticism; Decolonial Pedagogy

RESUMEN

Este texto argumenta a favor de la perspectiva de educación propuesta por Paulo Freire, y sugiere que sus obras sean revisadas por el prisma de la crítica poscolonial y decolonial, teniendo como horizonte la idea de emancipación humana, basado en proyectos colectivos de transformación de la realidad en el ámbito de la justicia social. Para eso, busca realizar una aproximación entre la perspectiva teórica freiriana y la crítica poscolonial y decolonial a partir del énfasis de la Educación Libertaria y de la propuesta de una Pedagogía [des]decolonial Se trata de un estudio de carácter teórico, en el cual adoptamos como campo conceptual y pedagogía crítica de Freire.

Palabras clave: Pedagogía Crítica Freireana; Crítica Poscolonial y Decolonial; Pedagogía Decolonial

INTRODUÇÃO

Os Estudos pós-coloniais vêm se constituindo como “um campo pós-disciplinar ou indisciplinar de reflexão e produção de conhecimentos” (Mattos & Pena, 2013, p. 230), em que se destaca a busca por matrizes epistemológicas diferentes da epistemologia ocidental, eurocêntrica, colonialista.

Ao falar sobre a crítica pós-colonial, na obra Sair da grande noite, ensaios sobre a África descolonizada, o historiador e politólogo camaronês Achile Mbembe, uma das referências nos estudos pós-coloniais, a partir de uma escrita peculiar e bastante requintada, recupera três momentos do nascimento do pensamento pós-colonial , a saber: o momento inaugural das lutas pelas descolonizações africanas em meados do século XX; o segundo situado na década de 1980 em que se destaca a contribuição de Edward Said, que por meio de suas obras Orientalismo, The World, the Text, the Critic e Culture et Impérialisme, demonstrou que “ o projeto colonial não era redutível a um simples dispositivo militar-econômico, mas era subentendido por uma infraestrutura discursiva, uma economia simbólica, todo um aparato de saberes cuja violência era tão epistémica quanto física” (MBEMBE, 2014, p. 64).

Ainda ao longo das décadas de 1980 e 1990, sob “a fresta aberta por Said”, Mbembe destaca os “subaltern studies” e o pensamento afro-moderno que se desenvolve então na periferia do Atlântico com destaque para a obra de Paul Gilroy L’ Atlantique noir (p. 67). E, por fim, o terceiro momento, “assinalado pelo facto central da nossa época- a globalização, a expansão generalizada da forma mercadoria e o seu embargo da totalidade dos recursos naturais, das produções humanas, em suma, do vivo” (p. 67).

Com essa reflexão Mbembe (2014) situa a crítica pós-colonial como “resultado da circulação dos saberes entre diversos continente e através de diversas tradições anti-imperialistas, é como um rio de múltiplos afluentes” (p. 68). No mesmo sentido, Manuela Ribeiro Sanches (2011) ao refletir sobre os elementos fundadores ou inaugurais dos campos de estudo pós-coloniais traça as relações entre este e uma perspectiva anticolonial que trouxe um questionamento radical ao chamado neocolonialismo. Assim, ao compilar textos da segunda metade do século XX de autores como W. E. Du Bois (1969, [1903]), Alain Locke (1969, [1925]), Leopold Sédar Senghor (1961, [1930]), Mario Pinto de Andrade (1975), Michel Leires (1983, [1950]), Georgs Balandier (1950), Aimé Césaire (1956), Frantz Fanon (1980, [1956]), Kwame Nkruhmah (1977), Almícar Cabral (1995, [1970]), e outros mais, apresenta-os como referências para as propostas dos agora chamados estudos pós-coloniais.

Ao ressaltar esses momentos marcantes da crítica pós-colonial tanto Mbembe quanto Sanches trazem à tona a diversidade teórica que marca o campo de estudos pós-coloniais. Em comum, os autores situarem o momento inaugural desse campo nas lutas anticolonialistas. O que nos interessa, no entanto, em seus argumentarmos é realizar uma aproximação entre aspectos da leitura pós-colonial e a perspectiva anticolonial de Paulo Freire, que se manifesta por meio da proposta de uma educação emancipadora e libertária.

Como sinaliza Tomaz da Silva (2001, p.62).

Ao se concentrar na perspectiva de grupos dominados em países da América Latina e, mais tarde, nos países que se tornavam independentes do domínio português, Paulo Freire antecipa, na pedagogia e no currículo, alguns dos temas que iriam, depois, se tornar centrais à teoria pós-colonialista.

Tendo vivenciando o contexto das lutas anticoloniais, a proposta teórica de Paulo Freire apresentada em obras como Educação e Transformação e Pedagogia do Oprimido têm como cerne a defesa da necessidade de compreender a inseparabilidade entre educação e política. Suas teorizações apontam para a denúncia de como a educação é marcada pelas estruturas de poder, numa sociedade colonialista cujas marcas são a opressão, a desigualdade e a exclusão social, as quais funcionam como instrumento de poder à serviço da dominação e alienação social.

Esse modelo de educação é chamado por Freire de educação bancária, cuja base de pensamento centra-se na ideia de realidade como algo estático, imutável em que os homens são tidos como seres de adaptação. A perspectiva freiriana de educação tem como característica principal a sensibilidade ao humano, que se expressa a partir de uma preocupação ontológica com os valores éticos e políticos que conduzem a emancipação e a consciência crítica da realidade.

Essa relação entre os sistemas de educação e a opressão aparece como tema dos estudos pós-coloniais que ressaltam o papel das estruturas simbólicas, epistemológicas e discursivas na manutenção de determinadas relações de poder. Nesse sentido, “a perspectiva de Freire era, já em Pedagogia do oprimido, claramente pós-colonialista, sobretudo em sua insistência no posicionamento epistemologicamente privilegiado dos grupos dominados” (SILVA, 2001, p. 62).

Freire não se limita a denunciar o caráter ideológico e político da educação, mas também aponta para possíveis saídas por meio da própria educação. Após caracterizar a Educação Bancária e apresentar a sua crítica, o pensador passa à defesa de uma proposta de uma outra educação, uma pedagogia do ser humano, que em oposição à primeira, sirva à libertação, à humanização dos homens. Ou seja, uma prática educativa ontologicamente pensada como espaço problematizador, capaz de imprimir uma crítica radical à dominação, desumanização e alienação humana, servindo como um mecanismo de resistência a todas as formas sociais de opressão e degradação.

No prefácio da obra de Paulo Freire Pedagogia do Oprimido, Ernani Maria Fiori descreve: “Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a existência” (FREIRE, 2003, p. 11). Trata-se de uma das principais marcas do pensamento de Freire, com fecundas reflexões na proposição de um projeto de sociedade mais justa e digna. Talvez aqui esteja a base do pensamento no qual Freire ancora sua pedagogia. Neste sentido, Pedagogia do Oprimido, também poderia ter sido nominada de pedagogia do ser humano, posto que a base de seu pensamento é o existir humano em sua essência e complexidade.

Sem dúvida um existir que pressupõe a consciência crítica e engajamento político-social, sem os quais ocorre o isolamento e a negação do ser humano como ser em si. Não se trata de uma consciência apenas intelectualista, mas de uma práxis, cuja ação-reflexão produz transformação.

Trata-se de uma educação libertadora, problematizadora, denunciativa, cujos pressupostos centrais se fundamentam na crítica, no diálogo e/ou dialogicidade e na busca por uma transformação social a partir da emancipação dos sujeitos. Nesta ideia, reside a possibilidade de libertação, no sentido de liberdade como valor fundamental à existência e à condição humana.

Nesta perspectiva ontológica do pensamento de Freire “[...] a desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é, porém, destino dado, mas resultado de uma 'ordem' injusta que gera a violência dos opressores e esta, o ser menos”. (FREIRE, 2003, p. 16). Assim, a realidade passa a ser compreendida como histórica, portanto, mutável. Os seres humanos, em lugar de seres passivos, coisificados, são concebidos como seres ativos, reflexivos. E a prática educativa em relação à realidade social é pensada “não apenas para nos adaptarmos, mas sobretudo, para transformar para nela intervir, recriando-a” (FREIRE, 1996, p. 28).

De um ponto de vista mais amplo, Taveira et al (2019, p. 545), identificam no pensamento de Paulo Freire uma tríplice perspectiva:

uma perspectiva ontológica que se apresenta como uma imagem coerente do ser humano como ser histórico e socialmente situado, um ser aí no mundo com os outros, interpelado pela necessidade de construir sua plena humanidade; uma perspectiva axiológica, ao colocar a práxis como força vital que responde pelo processo de humanização bem como a educação como prática da liberdade, como mediadora da emancipação dos sujeitos; uma perspectiva epistemológica, ao reconhecer a imprescindibilidade da formação da consciência como a grande ferramenta subjetiva para explicitar as reais condições do existir histórico concreto e as referências valorativas para sua superação.

São, portanto, esses fundamentos que fazem da pedagogia freiriana uma proposta que transcende a temporalidade histórica de seu tempo e se acomoda perfeitamente aos debates contemporâneos de inspiração humanística. Trata-se de uma pedagogia do ser humano, comprometido político e socialmente com a sua realidade frente aos desafios que tangenciam à sua própria existência.

O pensamento libertador é uma característica marcante na obra de Paulo Freire, e embora não demonstre clara preocupação em criticar a filosofia ocidental eurocêntrica, suas contribuições não deixam de procurar “exorcizar o idealismo que sempre contaminou essa tradição da cultura filosófica europeia” (TAVEIRA et al, 2019, p. 540). Logo, para Freire, o homem latino-americano, movido por desafios histórico-sociais concretos, precisa assumir uma consciência politizada que o leve a superar as próprias contradições e a reconhecer a própria aderência a ações culturais antidialógicas, só assim poderá transpor aderindo a perspectiva eurocêntrica ao próprio movimento de libertação (TAVEIRA et al, 2019).

Ainda no que se refere ao que desejamos ressaltar, a relação das teorizações de Freire com as teorias pós-coloniais essa pode ser vista, por um ângulo, pela constatação comum de como a educação fez parte do mundo colonizado ou ainda, como o colonialismo havia encontrado no sistema de ensino mecanismo de manutenção e legitimação de dominação, sobretudo à partir de metodologias e conteúdos alicerçados em uma epistemologia de herança colonial. Por outro ângulo, também ganha contornos especiais o fato de que além da crítica explícita à Educação que se liga aos pressupostos de dominação colonial, Freire aponta para a discussão de como esse mesmo sistema de educação pode vir a se constituir em possibilidade de resistência à essa dominação.

A educação como prática de liberdade é desenvolvida mediante relações intersubjetivas em que o “eu” se desloca para o campo do outro para construir uma consciência de si. Não existe consciência reflexiva fora da prática sociocultural das interações face a face, em que o “eu” também se reconhece, a partir de um processo de intersubjetividade, na identidade de outros. É nas malhas das interações sociais que se constituem os valores éticos, políticos deontológicos que presidem a performance humana.

A proposta freiriana, é assim pautada na perspectiva de unidade dialética na qual se configura um atuar e um pensar sobre a realidade para transformá-la. É nessa imbricação do eu (mediado pela consciência crítica) com o outro que “os alicerces que sustentam as relações socioculturais dos seres humanos consigo mesmo, com os outros e com o mundo” (TAVEIRA; SEVERINO e ROMÃO, 2019, p. 543), são desvelados. A máxima do pensamento de Freire está posta aqui - a educação como prática da liberdade e emancipação humana. “[...] a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos - libertar-se a si e aos opressores” (FREIRE, 2003, p. 30).

Em contrapartida, os estudos pós-coloniais apresentam a elucidação de como a educação baseada no academicismo e intelectualismo constituiu-se em espaço de homogeneidade epistemológica contribuindo para a invisibilidade, negação e inferiorização de epistemologias e saberes de populações historicamente colonizadas; mas, para além dessa pertinente crítica, “acenam para a possibilidade de desconstrução de representações e “regimes de verdades” que desqualificam, inferiorizam ou silenciam experiências e saberes oriundos e protagonizados pelos povos subalternizados” (MATTOS; PENA, 2013. p. 230).

Como uma forma alternativa de saber sobre a modernidade e uma disciplina plena (MBEMBE, 2014, p. 64), sinaliza que os estudos pós-coloniais propõem pressupostos teóricos outros para se pensar a dinâmica histórica desenvolvida entre a Europa e os então chamados outros e outras no contexto do colonialismo e pós-colonial ismo. Assim, ressaltam a necessidade de uma compreensão mais complexa em que o foco se desloca para além de simples dicotomias como a oposição dual e excludente entre “eu” e o “outro”, em que predomina o desejo de eliminação do segundo como garantia de existência do primeiro. Nesse aspecto uma crítica à perspectiva de Freire seria a permanência de uma relação dicotômica representada no binômio opressores e oprimidos. Contudo, em sua proposta tanto oprimidos quanto opressores estão em situação de desumanidade e devem, portanto, juntos, construírem uma nova humanidade.

Nesse mesmo sentido, Achille Mbembe, com filiações assumidamente reconhecidas na leitura dos textos de Franz Fanon, e mesmo de Edward Said, propõe que a crítica pós-colonial, por um lado “alumia claramente a violência inerente a uma ideia particular da razão de que o fosso colonial separa o pensamento ético europeu das suas decisões práticas, políticas e simbólicas” (MBEMBE, 2014, p. 68) e por outro lado “frisa a humanidade por vir, aquela que deve advir da abolição das figuras coloniais do inumano e da diferença racial” (p. 68). Contudo, assim como a desumanidade foi compartilhada, a reinvenção da humanidade precisa ser assumida no diálogo entre os homens, ou seja, “dirige-se a todos, inimigos e oprimidos de outrora” (p. 47).

Para pensar o decolonial na perspectiva de Freire seria postular uma pedagogia da (re) existência, uma pedagogia da liberdade ou libertadora, a qual possibilitaria outras formas de ser e estar no mundo, numa perspectiva de incidir uma condição existencial com sentido emancipatório, ressignificando o ser e o estar no mundo.

ALGUMAS TESSITURAS EPISTEMOLÓGICAS ENTRE FREIRE E AS PEDAGOGIAS DECOLONIAIS

Assim como as pedagogias decoloniais, o pensamento de Freire se move em busca de articulações epistemológicas entre educação, pedagogia e política. A ideia de educação popular formulada por Freire como prática libertadora explora questões no campo da luta revolucionária e dos movimentos sociais, o que faz de seus estudos um prenúncio do que hoje reconhecemos como pedagogias decoloniais.

Dentre as propostas teóricas pós-coloniais, temos mais recentemente , desde as décadas de 1980, os chamados Estudos Decoloniais. Embora seja possível perceber aspectos em comum com a crítica pós-colonial, em geral, os estudos decoloniais trazem como importante especificidade em seu lócus de enunciação reflexões empreendidas por autoras e autores latino-americanos. A esse respeito Costa e Grosfoguel (2016, pp. 16-17) nos informam que “ao evitar o paradoxal risco de colonização intelectual da teoria pós-colonial, a rede de pesquisadores da decolonialidade lançou outras bases e categorias interpretativas da realidade a partir das experiências da América Latina”.

É desse lugar situado e em torno de conceitos como colonialidade (do saber, do poder e do ser) e decolonialidade que pesquisadores e pesquisadoras desse grupo denunciam e tecem crítica à permanência da perspectiva eurocêntrica responsável pela subalternização de saberes e fazeres outros. Nos termos de Maldonado-Torres,

a colonialidade se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista mundial e da ideia de raça. Assim, apesar do colonialismo preceder a colonialidade, a colonialidade sobrevive ao colonialismo. Ela se mantém viva em textos didáticos, nos critérios para o bom trabalho acadêmico, na cultura, no sentido comum, na auto-imagem dos povos, nas aspirações dos sujeitos e em muitos outros aspectos de nossa experiência moderna. Neste sentido, respiramos a colonialidade na modernidade cotidianamente. (MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131).

A colonialidade se manifesta como a negação epistêmica dos modos distintos de ser e estar no mundo. Assim, o rompimento com as estruturas de colonização e seus marcos de referência científicos e geográficos pressupõe o fortalecimento da memória coletiva que se opõe a dominação eurocêntrica.

Como bem explicita Walsh (2013), a memória coletiva tem sido o espaço de articulação da pedagogia decolonial, tanto que povos indígenas e afrodescendentes, por exemplo, as têm mantido como parte de sua existência e de sua luta. Nesse sentido, entendem que à superação da colonialidade, paradigma dominante, atuante há mais de quinhentos anos, requer a constituição de um pensamento outro, capaz de construir um conhecimento educativo transformador em nosso continente.

O horizonte da decolonialidade traz assim a compreensão de imaginários culturais, “como discursos que no sólo se objetivan en ‘aparatos’ disciplinarios (leyes, instituciones, burocracias coloniales) sino que se tradujeron en formas concretas de subjetividad. [...] no son simplemente ‘ideolo-gías’ (en el sentido restringido de Marx) sino modos de vida, estructuras de pensamiento y acción incorporadas al habitus de los actores sociales” (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p. 57)

Ao sinalizar sobre as filiações e afiliações teóricas da crítica pós-colonial decolonial, Santiago Castro Gómez (2005, p. 9) menciona sobre as fontes teóricas desses últimos. Para o autor são diversas,

desde la filosofía de la liberación y la teoría de la dependencia delos años setenta, pasando por los trabajos de michel foucault, pierre bourdieu y los estudios poscoloniales de los ochenta, hasta las actuales discusiones en torno al imperio y la globalización hechas por Michael Hardt y Antonio Negri.

Ao mencionar a filosofia da libertação, temos mais um ponto de contato com o pensamento de Paulo Freire, cujas matizes de pensamento estão imbricadas na ideia de comprometimento político e social que conduzem os homens a um projeto emancipatório de reconstrução crítica da realidade, o qual os torna sujeitos livres.

Em sintonia com essa percepção temos o enfoque da pesquisadora decolonial Catherine Walsh (2014), linguista norte americana radicada no Equador. Refletindo sobre os processos educacionais em articulação aos estudos decoloniais, ou grupo de investigação latino-americano Coloinialidade/Modernidade, Walsh propõe um pensamento que articula o pedagógico e o descolonial/decolonial.

Nos termos da própria pesquisadora, trata-se de refletir sobre

caminos y condiciones radicalmente “otros” de pensamiento, re- e in-surgimiento, levantamiento y edificación, hacia prácticas entendidas pedagogicamente - prácticas como pedagogías - que a la vez, hacen cuestionar y desafiar la razón única de la modernidad occidental y el poder colonial aún presente, desenganchándose de ella. Pedagogías que animan el pensar desde y com genealogías, racionalidades, conocimientos, prácticas y sistemas civilizatorios y de vivir distintos. Pedagogías que incitan posibilidades de estar, ser, sentir, existir, hacer, pensar, mirar, escuchar y saber de otro modo, pedagogías enrumbadas hacia y ancladas en procesos y proyectos de carácter, horizonte e intento decolonial. (WALSH, 2014, p. 13).

Trata-se de uma proposta em que o elo entre o pedagógico e o político são confirmados como condição para o devir de outras realidades históricas. Ou seja, um pensamento que reconhece e retoma aspectos da pedagogia proposta por Freire em que a educação e o político são indissociáveis e pautados na dialogicidade. Quanto a isso, Walsh (2014) explica que “estos posicionamientos y comprensiones pedagógicas se alían con los de la llamada pedagogia crítica iniciada por Freire en los 1960 y retomada por muchos educadores populares y activistasintelectuales a lo largo del mundo hasta los 1990” (2014, p. 15).

Embora seja reafirmado por Cathetine Walsh o papel de Freire na concepção de sua pedagogia des/dedecolonial, é preciso ressaltar, contudo, algumas especificidades. Os estudos nas linhas pós-estruturalistas, pós-coloniais e decolonais tem ampliado a perspectiva crítica apontando, por exemplo, deslocamentos que vão além das dicotomias dominados-dominadores, vencidos-vencedores, oprimidos-opressores derivativas das relações de classe.

Trata-se de deslocamentos associados à concepção de foucaultiana de poder em que esse deixa de ser concebido como a um poder soberano, opressor ou libertário, externo e passa a ser compreendido numa perspectiva descentralizada em que se dispersa por todo o campo social. Assim, mantendo diálogo com as propostas teóricas relacionadas com a chamada crítica póscolonial decolonial, Walsh (2014) tem ampliado a perspectiva de Freire apontando para além das dicotomias dominados-dominadores, vencidos-vencedores, oprimidos-opressores.

À emergência nas décadas de 1990 de movimentos indígenas, é um importante exemplo nessa direção, em que a

insurgência política, epistêmica, existêncial junto con las organizaciones afrodescendientes, cambiaría el rumbo y proyecto en América Latina de la anterior pensada transformación y revolución; de aquí y en adelante la lucha no es simplemente o predominantemente una lucha de clases sino una lucha por la descolonización liderada, organizada y visionada en mayor parte por los pueblos y las comunidades racializadas que han venido sufriendo, resistiendo y sobreviviendo la colonialidad y dominación (WALSH, 2014, p. 16).

Com efeito, a superação da lógica colonial aponta para a necessidade de que a história seja recontada, e agora a partir da perspectiva daqueles que foram oprimidos em razão de suas classes sociais e/ou origens étnicas. Negros, indígenas, campesinos, mulheres, tiveram suas memórias, em geral silenciadas ou deturpadas pela história oficial (MOTA NETO, 2018). Por isso, para que recuperem parte de sua existência e de sua luta demandam a proposição de uma pedagogia decolonial que seja forjada na intencionalidade transformadora de novos quadros intelectuais de referência.

Tendo por base a proposta de uma pedagogia decolonial para além da crítica e da denúncia, articula-se aqui um entendimento que aposta na possibilidade de introduzir epistêmes invisibilizadas, subalternizadas, como forma de reconhecer conhecimentos outros (CANDAU; OLIVEIRA, 2010, p. 23) e assim, “tornar visíveis outras lógicas e formas de pensar, diferentes da lógica eurocêntrica dominante” (CANDAU; OLIVEIRA, 2010, p. 25).

Enquanto proposta política “não se restringe [...] à mera inclusão de novos temas nos currículos ou nas metodologias pedagógicas, mas se situa na perspectiva da transformação estrutural e sócio histórica” (CANDAU; OLIVEIRA, 2010, p. 27), a exemplo que propunha Paulo Freire. Dito nos próprios termos de Walsh (2014, p.13),

obviamente, la pedagogía y lo pedagógico aqui no están pensados en el sentido instrumentalista de la enseñanza y transmisión del saber, tampoco están limitadas al campo de la educación o los espacios escolarizados. Más bien, y como dijo una vez Paulo Freire, la pedagogía se entiende como metodologia imprescindible dentro de y para las luchas sociales, políticas, ontológicas y epistémicas de liberación [grifo nosso].

Essa é uma discussão que se faz necessária uma vez que ainda se percebe quanto a recepção às teorias dos Estudos Pós e Decoloniais no Brasil, críticas referentes à suspeita de que o foco na dominação epistemológica quebraria a força do político. Quanto a isso, Santiago Castro Gómez (2005, p. 27) menciona que por terem uma clara filiação teórica e metodológica com o modelo pós-estruturalista de Foucault, Deleuze, Lyotarde e Derrida, desde o início recai sob autores e autoras pós-coloniais e decoloniais, um olhar enviesado, suspeito.

Ao nosso ver esse olhar de suspeita parece ainda maior quando a abordagem desses estudos está voltada para a educação escolar, para o ensino. Assim, não é incomum, a título de exemplo, a crítica de que a proposta de uma pedagogia descolonial ou decolonial coloca à Educação uma possibilidade de atuação ou agenciamento histórico que não comporta as transformações das desigualdades sociais, que só se dão a partir de deslocamentos estruturais. Dessa forma seria preciso mudar as estruturas políticas e econômicas para experimentarmos mudanças nas esferas sociais.

Parafraseando Santiago Castro Gomez (2005) podemos dizer que tal qual acontece com os estudos pós-coloniais decoloniais, muitas dessas críticas, decorrem de um conhecimento aligeirado ou mesmo anacrônico das propostas e discussões em torno dessas abordagens.

Embora estejamos de acordo quanto à necessidade de mudanças estruturais para que se deem mudanças sociais efetivas, o modo como esses deslocamentos se processam podem ser nuançados, conforme apontado pelo escopo conceitual desses estudos, que a partir de um conjunto de teorias como Representações Sociais, Imaginário, Discurso e outros, vêm há décadas flexibilizando a relação “determinante” da estrutura (forças econômicas) sobre a superestrutura (ideias, pensamentos, costumes, e instituições políticas, jurídicas, religiosas, etc.). Valorizando a análise cultural da infraestrutura discursiva e simbólica essa perspectiva mais aberta permite considerar o impacto dessa última sobre a primeira.

Como nos adverte Sandra Jatahy Pesavento (1995), não se trata de “retomar uma discussão, a nosso ver, inócua e ultrapassada, sobre a primazia dos níveis ou instâncias da realidade” (p. 17) mas de, relativizando as críticas e abandonando posições polares de determinâncias, ventilar a discussão sobre o lugar e o poder do ensino enquanto espaço de discurso e devir histórico, destacando que “existem complexos imaginários que subvertem as condições ditas estruturais da vida” (1995, p.17) .

Assim pode-se chamar a atenção para a compreensão de práticas pedagógicas que podem vir a ser instrumentos de transformação da realidade. Ainda como sinaliza Walsh (2014, p. 17)

pedagogías que trazan caminos para críticamente leer el mundo e intervenir en la reinvención de la sociedade, como apuntó Freire, pero pedagogías que a la vez avivan el desorden absoluto de la descolonización aportando uma nueva humanidad, como señaló Frantz Fanon. Las pedagogías pensadas así no son externas a las realidades, subjetividades e historias vividas de los pueblos y de la gente, sino parte integral de sus combates y perseverancias o persistencias, de sus luchas de concientización, afirmación y desalienación, y de sus bregas -ante la negación de su humanidad- de ser y hacerse humano.

Notadamente, a percepção sobre a obra de Paulo Freire decorre da performance ontológica de seu pensamento, que “[...] supõe uma imersão crítica sobre a realidade, desvelando os alicerces que sustentam as relações socioculturais dos seres humanos consigo mesmo, com os outros e com o mundo” (TAVEIRA et al, 2019), evidenciado a importante articulação do pensamento do autor com o escopo de estudos produzidos pelos intelectuais decoloniais. As múltiplas inquietações desse grupo de intelectuais latino-americanos, conhecidos como decoloniais, centram-se no pensamento crítico e transdisciplinar que se caracteriza “[...] também como força política para se contrapor às tendências acadêmicas dominantes de perspectiva eurocêntrica de construção do conhecimento histórico e social”. Enquanto que, para Freire, a libertação da dominação cultural pressupõe a capacidade de refletir e tomar consciência sobre sua posição no mundo e sobre o mundo mesmo e sobre o seu poder de transformar o mundo.

CONCLUSÃO

Sob o viés dos chamados Estudos Pós-coloniais e Decoloniais, vários estudiosos e estudiosas vem há muito captando os movimentos sociais identitários à percepção da força ainda atuante da cultura colonial em níveis e efeitos múltiplos. Tendo como marco de reflexão a experiência do Colonialismo ou da Colonização, de forma geral trazem como característica comum a denúncia que esse, além de uma dominação política e econômica, manifestou-se como uma dominação epistemológica responsável pela “subalternização de outros conhecimentos por uma perspectiva eurocêntrica dominante até os dias atuais” (OLIVEIRA, 2012, p. 39) e que se desdobra inclusive nos planos e programas de Ensino.

Como possibilidade de uma compreensão mais complexa sobre a relação entre a Educação e as lentes de tensão colonidade/ decolonialidade/humanização, nos interessa nessa argumentação nos posicionarmos a favor da atualização da perspectiva teórica freiriana em diálogo com aspectos das leituras pós-colonial e decolonial. Desse lugar é possível ressaltar uma proposta de educação que, pautada na crítica ao humanismo, no universalismo europeu e na problematização política, sugere pressupostos outros para a construção de uma realidade em que a força dos etnocentrismos, dos androcentrismos e antropocentrismo seja relativizada, flexibilizada e até quebrada.

REFERÊNCIAS

BERNARDINO-COSTA, J.; GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 15-24, 2016. [ Links ]

CASTRO-GÓMEZ, S. La postcolonialidad explicada los niños. Instituto Pensar, Universidade Javeriana. Popayán: Editorial Universidad del Cauca, 2005. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Educação e mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 2014. [ Links ]

MALDONADO-TORRES, N. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de um concepto, IN: Castro-Gómez, S.; Grosfoguel, R. (coords.) El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007. [ Links ]

MATTOS, W.; PENA, P. Em torno do ensino de história da África na Bahia: Breves considerações gerais. Revista de História Comparada, v. 7, n. 2, p. 216-243, 2013. Disponível em: Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/RevistaHistoriaComparada/article/view/686/629 . Acesso em: 25 jul. 2020. [ Links ]

OLIVEIRA, L. F. DE; CANDAU, V. M. F. Pedagogia Decolonial e Educação Antirracista e Intercultural no Brasil. Educação em Revista, v. 26, n. 1, p. 15-40, 2010. [ Links ]

OLIVEIRA, L. F de. História da África e dos africanos na escola: desafios políticos, epistemológicos e identitários para a formação dos professores de História quando a diferença se torna obrigatoriedade curricular. 2010. 281 f. Tese (Doutorado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010. [ Links ]

PESAVENTO, S. J. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginário. Revista Brasileira de História, v. 15, n. 29, p. 9-27, 1995. [ Links ]

SANCHES, M. R. Malhas que os Impérios tecem. Textos Anticoloniais, contextos PósColoniais. Lisboa: Edições 70, 2011. [ Links ]

TAVEIRA, A. S. N.; SEVERINO, A. J.; ROMÃO, N. P. Ontologia, epistemologia e axiologia na pedagogia do oprimido. Revista Educação em Perspectiva, v. 9, n. 3, p. 538-552, 2019. [ Links ]

WALSH, C. Lo pedagógico y lo decolonial: Entretejiendo caminos. En C. WALSH (ed.), Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de resistir, (re) existir y (re)vivir. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013. [ Links ]

Recebido: 18 de Setembro de 2020; Aceito: 28 de Setembro de 2020

Kátia Luzia Soares Oliveira Doutoranda em História pela Universidade de Brasília. Mestre em História pela Universidade do Estado da Bahia. Especialista em História pela Universidade do Estado da Bahia. Graduada em História pela Universidade do Estado da Bahia. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Sustentabilidade, Educação e Tecnologia, cadastrado no CNPq. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia

Gracy Kelly Andrade Pignata Oliveira Doutoranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa em Educação Inclusiva e Necessidades Educacionais Especiais, cadastrado no CNPq. Pedagoga da Universidade Federal do Oeste da Bahia

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons