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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.1 Santa Cruz do Sul ene./apr 2022  Epub 14-Ago-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i1.16045 

Artigos do Fluxo

Cartas pedagógicas: uma inspiração freireana

Pedagogic letters: a freirean inspiration

Cartas pedagógicas: una inspiración freireana

Carla Luz Salaibb Dotta1 
http://orcid.org/0000-0002-6057-8846

Elisete Enir Bernardi Garcia2 
http://orcid.org/0000-0002-1211-3059

1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil.

2 Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Porto Alegre - Rio Grande do Sul - Brasil.


RESUMO

Este artigo, projeto de dissertação do Mestrado Profissional em Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS, busca analisar, por meio de cartas pedagógicas que se conceberam sob o conceito de dialogicidade de Paulo Freire, as trajetórias percorridas por estudantes egressos da Educação de Jovens e Adultos - EJA até o acesso ao Ensino Superior na relação com o contexto de direitos desses sujeitos.

Palavras-chave: Cartas Pedagógicas; Educação de Jovens e Adultos; Paulo Freire

ABSTRACT

This article, a Professional Master's in Education dissertation project, tha belongs to the Graduate Program in Education at the State University of Rio Grande do Sul - UERGS, seeks to analyze, through pedagogical letters that were conceived under the concept of Paulo Freire dialogicity, the routes taken by students from Youth and Adult Education - EJA until accessing Higher Education in relation to the rights of these subjects context.

Keywords: Pedagogic Letters; Youth and Adult Education; Paulo Freire

RESUMEN

Este artículo, proyecto de disertación de la Maestría Profesional en Educación del Programa de Posgraduación en Educación de la Universidade Estadual do Rio Grande do Sul - UERGS, y busca analizar, por medio de cartas pedagógicas concebidas bajo el concepto de dialogicidad de Paulo Freire, las trayectorias recorridas por estudiantes egresados de Educación de Jóvenes y Adultos - EJA hasta el acceso a la Enseñanza Superior en relación al contexto de los derechos de estos sujetos.

Palabras clave: Cartas Pedagógicas; Educación de Jóvenes y Adultos; Paulo Freire

INTRODUÇÃO

Nossa pesquisa tem a perspectiva de entender que a educação é direito humano, e no que se refere a Educação de Jovens e Adultos, esse direito tem um sentido ainda maior, pois trata-se de uma educação ao longo da vida, o que representa um direito que se da além dos muros da escola. Porém, quando a educação adentra o novo milénio ainda sem dar conta de alcançar a equidade que o direito e a obrigatoriedade já deveriam ter alcançado, fica claro que, “na história brasileira, diferentes grupos sociais tiveram o direito à educação escolar negado ou desigualmente usufruído” Garcia (2011, p.18), acarretando historicamente, em uma sociedade sem acesso aos bens essenciais, marginalizada e com número elevado de analfabetos, onde a ascensão ocorreu apenas para uma pequena parcela.

No Brasil, mesmo constando nos marcos legais (Constituição Federal de 1988 e LDB - 9394/96) a obrigatoriedade da educação como dever do estado, o cenário de analfabetismo absoluto e funcional é alarmante, pois a grande maioria da população cresceu sem acesso ou permanência à educação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1996 prevê que é dever do Estado promover a educação, com garantia de acesso e padrão de qualidade a todos. A obrigatoriedade que essa lei traz, sendo tanto da família como do Estado, demonstra que a educação no Brasil, sempre esteve ligada a um contexto discriminatório e sem a valorização que o conhecimento tem para o desenvolvimento e crescimento da sociedade. Garcia (2011) corrobora no entendimento de que, apesar de as políticas educacionais estarem sinalizando importantes avanços na consolidação do direito à educação básica e na modalidade EJA, mais de 60 anos passaram-se da Declaração dos Direitos Humanos e a educação escolar ainda não se efetivou como um direito universal para todas as idades. As políticas educacionais ainda não deram conta de reverter o quadro de descontinuidades e o caráter compensatório da EJA no Brasil. É importante considerar que vivemos um processo contraditório, provocado pelos desencontros das políticas governamentais em prol da elevação de escolaridade (GARCIA, 2011).

A educação de jovens e adultos carrega na sua historicidade marcas de lutas onde, muitos dos sujeitos envolvidos, na intenção de alcançarem mudança reais nesse cenário. No pensamento pedagógico de Paulo Freire (2005), onde ele distingue essa diferença social a partir de opressores e oprimidos, podemos refletir sobre a forma como vem sendo construído o pensamento dos homens e mulheres que ao estarem em situação de oprimidos, não são capazes de compreender que se trata de uma situação provocada, de forma que os oprimidos se coloquem cada vez mais na posição de responsáveis por sua condição.

Essa mesma sociedade, que não atua para a isonomia do sujeito, também revela um lado cruel, estabelecendo um padrão de superioridade para aqueles que tiveram acesso à educação, sendo assim, um adulto, ao se reconhecer analfabeto, pode trazer consigo uma bagagem de incapacidade e inferioridade, acreditando muitas vezes, ser ele próprio responsável por sua situação, sem condições de desenvolver uma consciência crítica em relação a seus direitos, acarretando na “impossibilidade de fazer algo diante do poder dos fatos, sob os quais fica vencido o homem” (FREIRE, 1967, p 105). Neste contexto nacional a Educação de Jovens e Adultos se revela como uma dívida social, que tem como dever buscar essa equidade e igualdade que a educação brasileira não conseguiu atingir.

Um dos marcos normativos do Conselho Nacional de Educação indica para a EJA três funções essências que norteiam o princípio de igualdade, que são: reparadora, equalizadora e qualificadora (Parecer do CNE 11/2000).

Segundo o parecer, indicado acima, a educação, ainda que imprescindível, não é a única responsável pelas inúmeras formas de discriminação, ela apenas está incluída nos sistemas sociais, sendo assim, a função reparadora da EJA representa a restauração de um direito negado historicamente, elevando o sujeito a um estado de igualdade permanente e não apenas como um sistema compensatório, e deve possibilitar o acesso à educação de forma que a compreenda como a base para a concretização de outros direitos. Nesse sentido, essa função colabora, não somente para diminuir a discriminação, mas também, para promover a elevação da autoestima do sujeito que terá condições de reconhecer-se como igual, e não mais inferiorizado por uma condição imposta. Deve-se lembrar, porém, que essa função necessita estar presente no cotidiano escolar e nas práticas educacionais, para que a EJA não represente apenas um espaço de transcrição do conhecimento, devendo, como menciona o documento:

ser vista, ao mesmo tempo, como uma oportunidade concreta de presença de jovens e adultos na escola e uma alternativa viável em função das especificidades sócio-culturais destes segmentos para os quais se espera uma efetiva atuação das políticas sociais (Parecer do CNE 11/2000, p. 09).

Para que a função reparadora, seja efetiva e ocorra de forma correta, é importante estar diretamente relacionada a segunda função, a equalizadora, que é uma forma de favorecer a entrada e permanência na escola a inúmeros segmentos da sociedade, como trabalhadores, donas de casa, imigrantes, pessoas em situação de cárcere privados, entre muitos outros. Esta função tem como objetivo, não somente possibilitar a inserção na escola, mas oportunizar melhores condições de trabalho e vida social. Segundo o parecer, acima indicado (p. 10), “A equidade é a forma pela qual se distribuem os bens sociais de modo a garantir uma redistribuição e alocação em vista de mais igualdade, consideradas as situações específicas”, ou seja, é uma forma de promover, a educação obrigatória reconhecendo a qualidade do indivíduo, suas competências e as contribuições que esse pode trazer para sociedade, dando condições para que cada um desenvolva suas potencialidades através de suas experiências de vida.

Essas duas funções, segundo o parecer, só terão condições de alcançar um patamar de qualidade, a partir da terceira função, a qualificadora, pois se trata de uma função permanente, que proporcione um conhecimento atualizado e de qualidade para toda a vida, reconhecendo o potencial de autonomia do sujeito, que pode no decorrer de sua formação, identificar potenciais artísticos e intelectuais até então reprimidos pela falta de reconhecimento de si próprio. Essa função pode significar, uma qualificação mais positiva para o mundo do trabalho, maior participação política do sujeito, e ainda, a possibilidade de uma inserção tecnológica, tendo em vista a realidade virtual na qual a sociedade se encontra na atualidade.

A função qualificadora da EJA vem reforçar a busca pelo direito, e respalda o tema em questão, porque reconhece o potencial do sujeito que frequentou a EJA para além da inserção no mundo do trabalho, e também garantir a esse público uma educação que os qualifique e que possibilite sua preparação para o universo acadêmico, motivando sua entrada em cursos superiores, com reconhecimento de suas capacidades e o aproveitamento de suas potencialidades, pois ainda que o documento não trate diretamente sobre a educação superior, podemos considerar para fins desse trabalho que a função qualificadora demonstra as possibilidades de continuidade de formação, quando afirma que “ela é um apelo para a educação permanente e criação de uma sociedade educada para o universalismo, a solidariedade, a igualdade e diversidade” (Parecer CNE 11/2000, p. 11).

Na perspectiva de ascendência dessa modalidade e seus sujeitos a um patamar de igualdade social, torna-se fundamental a relação da temática com os ensinamentos de Paulo Freire, o educador que dedicou seu trabalho na construção da humanização e libertação de homens e mulheres, auxiliando na tomada da consciência de seus lugares na vida social. Por meio de seu protagonismo em inúmeras campanhas e movimentos para a alfabetização de adultos, sua prática pedagógica esteve voltada sempre à “mudança”, e a transformação social e política que a educação pode proporcionar. No prefácio apresentado por Moacir Gadotti na obra Educação e Mudança, ele sinaliza que “depois de Paulo Freire não é mais possível pensar a educação como um universo preservado e que ninguém mais pode ignorar que a educação é sempre um ato político” (FREIRE,1979, p. 5).

Para Freire (1997) o ser humano só terá a capacidade de posicionar-se diante de algo que considera errado, quando assume uma postura, quando deixa o estado de acomodação, caso contrário, somente ajusta-se ao que lhe é imposto, não desenvolvendo a capacidade e dialogar ou de participar da vida democrática, apenas aceita o que se sobrepõe a ele. É a partir dessa visão que não podemos pensar na EJA de hoje, sem contextualizarmos a “concepção crítica” de Paulo Freire que para Gadotti significa, possibilitar que homens e mulheres se percebam como parte da história, como fazedores de cultura, para que sua condição não seja entendida como “desígnio divino ou sina, mas como determinação do contexto econômico-político-ideológico da sociedade em que vivem” (GADOTTI, 1996 p. 37).

Sendo assim pensar nos jovens e adultos que participaram dessa modalidade como sujeito social, implica também pensar na EJA como propulsora de sua identidade, pois se os “fazeres” da EJA estiverem ligados às concepções críticas, e não pautados apenas em conteúdos e cronogramas, possibilitará a compreensão de que não se trata apenas uma etapa a ser vencida, mas sim de um lugar de reconhecimento, superações e propulsão a novas atitudes. Trata-se também, de esperança, pois é essa que fornece forças para a luta, para uma busca constante, para o enfrentamento e a concretização dos sonhos, pois nos lembra Freire, que a esperança:

faz parte da natureza humana. Seria uma contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, primeiro o ser humano não se inscrevesse ou não se achasse predisposto a participar de um movimento constante de busca e, segundo, se buscasse sem esperança [...] A esperança é uma espécie de ímpeto natural possível e necessário, é um condimento indispensável à experiência histórica (FREIRE, 1996, p. 72).

INSPIRAÇÃO FREIREANA PARA AS CARTAS PEDAGÓGICAS

Uma das práticas que Paulo Freire utilizava para dialogar com o mundo, era a do registro de suas ideias em forma de cartas a partir das reflexões de suas vivências. Para ele “o momento de escrever se constitui como um tempo de criação e de recriação, [...] O tempo de escrever, diga-se ainda, é sempre precedido pelo de falar das ideias que serão fixadas no papel” Freire (2020, p. 54). Nesse sentido, a sistematização da escrita de Paulo Freire, se deu na prática da autoria de seu próprio pensamento, seus testemunhos e suas vivências com o ato de registrar também suas experiências.

O ato de escrever cartas, sempre foi a forma mais utilizada pela humanidade para se comunicar. Todavia, ainda que hoje pareça obsoleta e superada, muitos escritores defendem a metodologia de escrita de cartas. Para Moraes e Paiva (2018, p. 11) “a carta é um documento, peça para o diálogo, prosa, comunicação mais direta, coloquial, direcionada a um interlocutor. Há nelas um sentido, ao mesmo tempo, objetivo e subjetivo, coloquial e formal, prosaico e poético”. Porém, quando direcionada ao destinatário específico, com intenção de mobilizar saberes, seja de forma literária, filosófica ou até mesmo coloquial, essa passa a ter cunho educacional, assumindo a configuração de carta pedagógica.

As cartas pedagógicas tratam-se de um importante instrumento de escrita e reflexão, dando-nos a possibilidade de alterar planos e rever estratégias, num tempo-espaço de registo que nos permite avaliar aspectos fundamentais do processo de ensino-aprendizagem. Ao longo da história as cartas serviram como comunicação entre as pessoas, registraram acontecimentos e fatos sociais, políticos, culturais, literários e econômicos, refletindo a época em que foram escritas. As cartas pedagógicas são utilizadas, também, como um instrumento de registro, de análise/diálogo de narrativas dos interlocutores, pois valorizam conhecimentos produzidos em situações de experiências didáticas, no tempo e no espaço; podendo servir de material para compreender os processos de formação, de conhecimento e de aprendizagem.

Segundo (CAMINI, 2012), para que uma carta tenha cunho pedagógico essa necessita interagir, comunicar, provocar um diálogo pedagógico. As cartas pedagógicas podem ainda levar quem as escreve a rememorar experiências vividas ou expressar uma ideologia, mas é fundamental que a prática de escrita das cartas pedagógicas, esteja, como defende Paulo Freire, ensopada de convicções, sonhos e imaginação, Freire (2000).

Quanto a escrita das cartas pedagógicas, Freire adotou essa prática como uma forma de dialogar com o mundo, sendo algumas de suas obras escritas nesse formato, como: “Cartas a Cristina”, “Professora sim, tia não”, “Cartas à Guiné-Bissau” entre muitos outros escritos deixados por ele. Freire defendia, principalmente, que uma carta pedagógica deveria ser uma forma de reflexão, de busca por respostas, e que poderia ainda, ter um cunho político, quando lida ou escrita com olhar crítico à realidade vivida.

Para Vieira, Freire mantinha constantemente o hábito de escrever cartas, sendo a forma de comunicação que mais gostava de utilizar na sua prática pedagógica. Defensor do diálogo, Freire entendia que “o diálogo como exercício rigoroso do pensamento refletido e compartilhado precisa se apoiar em instrumento coerente. A carta, como um instrumento que exige pensar sobre o que alguém diz e pede resposta, constitui o diálogo por meio escrito” (VIEIRA, 2008, p. C.2/158).

Em uma de suas cartas que compõem o livro Pedagogia da Indignação: o autor defende que uma carta pedagógica poderia ser utilizada como instrumento por “professoras e professores que, chamados à reflexão pelos desafios em sua prática docente, encontrassem nelas elementos capazes de ajudá-los na elaboração de suas respostas”, (FREIRE, 2000, p. 29), o que demonstra, que escrever cartas pedagógicas, poderia ser um instrumento de diálogo.

Nessa perspectiva, as cartas pedagógicas de Paulo Freire marcaram uma forma de escrita e comunicação, que na sua originalidade eram naturalmente uma metodologia dialógica, pois fundamentavam uma relação humana; e pedagógicas, no que diz respeito às convicções quanto às possibilidades de mudança, e a intencionalidade de libertação, sempre explícitas em sua posição política. Para Coelho (2011, p. 60) Paulo Freire “Tinha uma enorme convicção de que o ser humano não existe para ser objeto aderido a outrem, mas por vocação ontológica, é sujeito de seu destino, construtor de sua história e de suas autonomias”. Para ilustrar sua posição sobre a importância dessa forma de comunicação, destacamos parte de um de seus últimos escritos, encontrado no livro Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos, publicado três anos após sua morte, por Ana Maria Araújo Freire.

Primeira carta Do espírito deste livro Protegidas do simplismo, da arrogância do cientificismo, as cartas, por outro lado, deveriam transparecer, na seriedade e na segurança com que fossem escritas, a abertura ao diálogo e o gosto da convivência com o diferente. O que quero dizer é o seguinte: que, no processo da experiência da leitura das cartas, o leitor ou leitora pudesse ir percebendo que a possibilidade do diálogo com o seu autor se acha nelas mesmas, na maneira curiosa com que o autor as escreve, aberto à dúvida e à crítica. É possível até que jamais o leitor venha a ter um encontro pessoal com o autor. O fundamental é que fiquem claras a legitimidade e a aceitação de posições diferentes em face do mundo. Aceitação respeitosa. Não importa o tema que se discute nestas cartas elas se devem achar “ensopadas” de fortes convicções ora explícitas, ora sugeridas. A convicção, por exemplo, de que a superação das injustiças que demanda a transformação das estruturas iníquas da sociedade implica o exercício articulado da imaginação de um mundo menos feio, menos cruel. A imaginação de um mundo com que sonhamos, de um mundo que ainda não é, de um mundo diferente do que aí está e ao qual precisamos dar forma. (FREIRE, 2000 p. 39)

É por meio dessas inspirações, que nosso trabalho se propõe a caminhar com os sujeitos da EJA por meio das cartas pedagógicas escritas por egressos que alcançaram o Ensino Superior, que mesmo com suas trajetórias marcadas por interrupções e percalços, buscaram dar continuidade a seus estudos, não se detendo a possíveis convicções de que a EJA não qualifique o sujeito para a inserção em uma Universidade. Com objetivo de proporcionar, não apenas um espaço de diálogo com nossos interlocutores, mas também a oportunidade de levarem a modalidade às lembranças e sentimentos que impulsionaram a continuidade de seus estudos, pretendemos que essas cartas sejam, de fato, lidas por estudantes da modalidade.

As cartas escritas pelos interlocutores da pesquisa, tratam-se de cartas voltadas à EJA, como parte das trajetórias vividas por esses sujeitos; mas de forma mais específica, a quem a carta será direcionada é de escolha de cada participante, podendo ser para um professor, amigo ou familiar, mas que tenha representado um papel importante em sua trajetória enquanto estudante da EJA, ou simplesmente, à modalidade ou a estudantes que hoje se encontram inseridos nos cursos de Educação de Jovens e Adultos.

A intenção desta proposta, de uma pesquisa sobre estudantes oriundos da EJA e o seu acesso ao Ensino Superior, não diz respeito somente ao direito de continuidade dos estudantes de EJA, nem busca mensurar ou distinguir importâncias quanto ao grau de estudos ou conhecimento dos sujeitos que participaram da modalidade, no sentido de que obrigatoriamente tenha maior ou menor valor quem alcançou o Ensino Superior. Pelo contrário, o trabalho busca um diálogo relacionado ao direito de igualdade, ou à igualdade de direito, independente da condição em que se desenvolveram os estudos na Educação Básica, com um debate que pretende ir além da condição de capacidade, mas sim do direito à continuidade, pois esse direito não se anula com a conclusão do Ensino Médio para estudantes da EJA, Dotta (2018, p. 16).

O que buscamos com essa proposta de pesquisa, trata-se de uma forma de reconhecimento, de que mesmo com suas trajetórias marcadas por interrupções e percalços, alguns estudantes buscaram dar continuidade a seus estudos, não se detendo a convicções de que a EJA não qualifica o sujeito para a inserção em uma Universidade. Inicialmente, esse convite seria apenas para os interlocutores de uma pesquisa anterior, realizada para o Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado: “Da Educação Básica a Universidade: Alunos da Ledoc Oriundos da EJA”, que buscou compreender a trajetória de estudantes de um curso superior da UFRGS, Campus Litoral Norte/RS, de Licenciatura em Educação do Campo: Ciências da Natureza. Porém, conforme a ideia foi sendo construída, percebeu-se a possibilidade de expansão para outros interlocutores que demonstraram interesse pelo tema, por serem pessoas egressas da EJA que também alcançaram o Ensino Superior e que demonstraram o desejo de participar. Dessa forma, a pesquisa vem ganhando adeptos, por aproximação e conhecimento do tema.

Esclarecemos que para não corrermos o risco de determinismo, a escolha para quem a carta seria direcionada foi de escolha de cada participante, podendo ter sido remetida um professor, amigo ou familiar, mas que tenham representado um papel importante em sua trajetória enquanto alunas na EJA, ou simplesmente à modalidade ou a estudantes que hoje se encontram realizando seus estudos na EJA.

Cabe destacar que, ao iniciarmos a pesquisa, fomos interpeladas por falas dos interlocutores da pesquisa de que muitos docentes do Ensino superior não acreditam que esses egressos possam apresentar as condições tidas como necessárias para acompanhar as aprendizagens inerentes à conclusão do curso. Essa e muitas outras questões, estarão tratadas no conjunto do texto dissertativo da pesquisa.

É importante destacar, que as cartas pedagógicas não serão o nosso único elo com os estudantes-interlocutores, inicialmente pretendíamos que no percurso da pesquisa, pudéssemos reunir os participantes formando grupos focais para debatermos acerca dos temas que permeiam a pesquisa, porém nossas expectativas e pretensões foram interrompidas por uma situação que não fazia parte de nosso contexto de perspectiva de futuro, a interrupção das aulas presenciais e o distanciamento social. Atingidos por uma Pandemia ocasionada pelo contágio da doença “Covid - 19”, foi necessário repensar a pesquisa. Sem expectativas de quanto tempo ainda durará a situação que nos encontramos, mudamos alguns caminhos que pretendíamos trilhar. Para que pudéssemos chamá-los para o debate que pretendemos aqui realizar, convidamos para que juntamente com a carta, escrevessem também uma narrativa de suas trajetórias, com questões direcionadas que contemplem a temática que desejamos analisar.

Apresentaremos um trecho da carta convite encaminhada aos estudantes egressos da EJA e as orientações para que procedessem a escrita, e ainda, um recorte e uma breve análise das cinco cartas já mencionadas. Como forma de preservar a identidade das participantes, não serão apresentados os nomes dos escritores no final de cada carta.

CARTA CONVITE

A presente carta tem o intento de convidá-lo(la) a participar da pesquisa que está sendo desenvolvida no Programa de Mestrado Profissional em Educação (PPGED) da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), por mim Carla Luz Salaibb Dotta, sob a orientação da Prof ª Drª Elisete Enir Bernardi Garcia.

A pesquisa tem por objetivo central identificar estudantes do Ensino Superior egresso da Educação de Jovens e Adultos - EJA (quem passou pela modalidade em alguma fase da Educação Básica) e realizar uma reflexão sobre suas histórias de vida vinculada as trajetórias escolares.

Nesse sentido, estamos pedindo sua participação em forma de duas cartas:

- Uma carta que é sobre a narrativa de sua trajetória escolar;

- Outra carta dirigida a modalidade EJA.

Uma carta que é sobre a narrativa de sua trajetória escolar com destaque na EJA e sua inserção no ensino superiorSegue a explicação de cada uma:

Ao escrever esta carta - narrativa da trajetória escolar, poderá fazê-la no formato de memorial, ou no estilo de escrita que melhor lhes inspire a reflexão. O motivo de pedir esta carta é para conhecer sua trajetória, seu percurso pelo processo de escolarização. Neste sentido, segue algumas questões que gostaríamos, na medida do possível, fossem contempladas na sua escrita:

- Como e por quais motivos você cursou a EJA?

- Por quanto tempo ficou afastado/a da escola até retomar os estudos?

- Como foi seu processo de transição para o ensino superior: qual curso, o porquê dessa escolha, como teve acesso a esse curso (por vestibular, exame...)?

- Quais foram os desafios e dificuldades de inserção e de permanência nesse curso?

- Como a EJA e o curso superior contribuíram para a constituição de sua vida pessoal e profissional?

- Qual a sua opinião sobre as políticas públicas voltadas a EJA e sobre o olhar da sociedade acerca dessa modalidade de ensino?

A escrita de uma carta pedagógica voltada à modalidade.

A forma como você irá escrever será pessoal e poderá utilizar o formato que desejar; pode ser digitada, manuscrita, com desenhos ou fotografias. Enfim, cada carta terá sua especificidade e característica, podendo ser destinada a modalidade de forma geral. Segue algumas sugestões para você escolher a quem destinar a carta:

A alguma pessoa que tenha sido importante no seu processo de escolarização;

Aos professores, a um professor/a, que tenha dado uma maior contribuição para teu processo de escolarização de estudante da EJA, ou ainda pela importância geral dos professores/as.

Aos estudantes que se encontram hoje na EJA - como forma de incentivo;

Ao governo, as universidades, entre outros destinatários que você desejar, desde que estejam envolvidos, de alguma forma, na modalidade EJA.

Cabe destacar que as cartas, além de servirem para o arcabouço teórico-metodológico da produção escrita da dissertação, farão parte do produto final do Mestrado que terá como objetivo a realização de um trabalho de intervenção junto a EJA, em escolas a serem ainda definidas.

Nossa intenção é que suas cartas possam servir de instrumentos de reflexão, de problematizações, de reconhecimento da modalidade e quiçá servir de incentivo à superação das dificuldades e desencantos que muitas vezes estão presentes na caminhada das pessoas que estudam e trabalham na modalidade.

AS CARTAS

1. 1ª Carta

Querida amiga Míriam:

Hoje, relendo a obra de Érico Veríssimo “Olhai os Lírios do campo”, lembrei de você, de seus sonhos. [...]

Lembras o dia que nos foi apresentada esta obra? Apaixonamo-nos pelos personagens, e a carta? Lembras da carta da Olívia para o Eugênio? Chegamos ao ponto de decorá-la

Minha querida amiga, a saudade é imensa, e o destino se encarregou de nos afastar, mas sabemos que realizaste ao menos um dos teus sonhos (sonhávamos tanto...), de formar-te no Ensino Médio. O acesso era tão distante para nós na época, mas tu encontraste uma forma de retomar os estudos após a formatura do oitavo ano

A tua oportunidade surgiu através da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e, como tu falavas, eu perguntava... O que é a EJA? Ora, é a minha oportunidade de concluir o Ensino Médio, com qualidade e em menos tempo, tu respondias. Quanto envolvimento, responsabilidades e sonhos tu ainda mantinhas.

Em memória de Miriam Pause

Ao analisar as palavras da autora, percebemos o quanto são encharcadas de sentimentos e memórias, e da valorização da EJA, que conheceu através das palavras de uma amiga, que à reconheceu como oportunidade. A oportunidade de conclusão de uma etapa tão importante para muitos jovens e adultos que por motivos que pertencem somente a quem os vive, buscam a modalidade, mas que não a desqualifica por ser em um período de tempo menor. O fato de a carta estar classificada como “em memória”, demonstra que a pessoa a quem esta carta foi escrita não se encontra mais presente em vida, não há menção sobre a data ou as causas do falecimento da pessoa mencionada, porém fica a evidência do sentimento de amizade e reconhecimento. Percebe-se que a autora não teve contato diretamente com a EJA, mas por meio dos sentimentos de uma estimada amiga, compreende sua importância social.

2. 2ª Carta

Aos meus queridos professores:

Talvez vocês não se lembrem de mim, talvez não façam ideia de como foram importantes, talvez não tenham ciência dos efeitos que suas palavras causaram. Pois bem, aos dezesseis anos de idade, por consequência da maternidade precoce, tive que abandonar os estudos. [...]. Mesmo com o decorrer dos anos, o desejo de retornar a uma escola se fazia presente em minha vida, mas parecia um sonho muito distante de ser realizado. Até que certo dia, com todo o incentivo de minha família, que não mediu esforços para que eu voltasse a estudar, surgiu a oportunidade de reingressar ao ensino médio na Educação de Jovens e Adultos. Mal sabia eu que isso iria mudar tanto a minha vida.

Passamos um ano e meio juntos [...] Lembro-me dos conselhos, da mão no ombro nos acalmando em dia de avaliação. [...] falavam sobre darmos continuidade aos estudos, que tínhamos potencial para ingressar no ensino superior, fizeram com que eu acreditasse e buscasse uma graduação. Eu confesso que fiquei com medo, a EJA ainda sofre muitos preconceitos, e se eu não conseguisse dar conta dos estudos?

Remetida diretamente aos professores que estiveram presentes durante sua trajetória enquanto estudante da EJA, a estudante acima demonstra sua gratidão à representação que esses professores tiveram na sua decisão de dar continuidade aos estudos até alcançar um curso de graduação. Poderíamos considerar, para a pesquisa que aqui tratamos, que a afirmação mais significativa da carta, seja quando cita as falas dos professores sobre a continuidade dos estudos e o potencial de cada um para o ingresso no ensino superior, pois desmistifica a lógica de seleção e classificação que muitas vezes se estabelece no âmbito escolar, pois como afirma Arroyo (2008, p. 29), “Hierarquizar os desiguais é inerente à cultura escolar [...] condiciona a exclusão de alunos vistos como desiguais, incapazes, deficientes”. Falas com essa comprovam a importância do estímulo e apoio a esses estudantes, pois auxiliam na descaracterização dos estigmas de incapacidade que muitos carregam consigo, o que serve como reforço para o discurso de que o Ensino Superior não é para todos, e sim para uma pequena parcela da sociedade, considerada como capazes.

3. 3ª Carta

[...] sempre tive dificuldades para as exatas, más um dia ainda no fundamental, a noite quando cursava as totalidades EJA, conheci uma professora chamada Naira que tinha um jeito especial par ensinar, foi um aprendizado que carrego para sempre comigo. Foi sem dúvida uma das mais marcantes na minha caminhada até aqui, [...] fez eu pensar meu lugar no mundo e a importância do meu modo de estar no mundo. Fazia os alunos se sentirem especiais com dedicação e colocava os estudantes para cima, incentivando para nunca desistir do sonho de aprender [...] lembro do carinho e da dedicação que já tive a oportunidade de ter.

Mesmo reconhecendo suas dificuldades, a estudante aqui, aponta novamente para a importância da representatividade dos professores para os estudantes da EJA, remetida a sua passagem pela modalidade ainda no Ensino Fundamental, percebemos o quanto a professora citada marcou a trajetória da estudante, sendo, de forma semelhante à carta anterior, o grande incentivo para que os alunos sentissem o desejo de dar continuidade a seus estudos.

4. 4ª Carta

Não me adaptei nas minhas turmas nos turnos da manhã, aí rodei dois anos, um ano rodei na sétima e outra no primeiro ano do médio, pensei em largar a escola, foi quando minha mãe me ofereceu o supletivo.

Depois que eu completei o supletivo eu prestei vestibular e passei de primeira. Foi durante o meu estágio que me descobri professora e que queria dar aula para essa modalidade. Então para finalizar quero muito agradecer a EJA que me transformou em uma pessoa melhor, hoje sei que é importante levar em conta a história que o aluno traz consigo, e partir do que o aluno sabe para o que ele ainda desconhece.

“Rodei”, esse é um verbo que acompanha os estudos de muitos alunos da Educação Básica, referido ao fato de que esse não atingiu os objetivos estabelecidos por uma normativa que rege a educação, muitos estudantes são levados a acreditarem que são incapazes, ou menos capazes do que aqueles que nunca “rodaram de ano”, expressão comumente utilizada nas escolas. Aqui a estudante reconhece seu desejo de desistir, por conta de um estigma emposto por um sistema educacional. Porém, percebemos que as trajetórias truncadas ou incompletas, como menciona Arroyo (2011, p. 21), não são determinantes. A estudante demonstra sua gratidão pela modalidade, reconhecendo a transformação pessoal que essa lhe proporcionou.

5. 5ª Carta

...tenho em minha memória como se fosse hoje, o dia em que decidi procurar a EJA e lembro meu pavor, em ter que, em meu pensamento lidar com as minhas frustações e preconceitos que eu trazia comigo, em relação em terminar o ensino médio através do EJA [...] em achar que de alguma forma a EJA poderia me prejudicar. E quero lhes dizer que cheguei onde sempre quis estar com o auxílio dos professores e aprendizados que fui adquirindo durante a caminhada e com o apoio da EJA [...]. Hoje, tenho orgulho em dizer que sou muito grata a EJA que me deu a oportunidade de terminar o Ensino Médio. Aprendi que não devemos desistir de nossos sonhos, pois pensava como iria tentar um curso de ensino superior [...] Como palavras de motivação, lembro-me sempre deste dizer: “tentar sempre, desistir nunca”

Como já observado em outras cartas, a EJA ainda carrega estereótipos de inferioridade para aqueles que por ela passam, enraizados por uma cultura escolar, que naturaliza a visão de que alguns se destacaram, enquanto outros fracassaram. A estudante afirma seus medos e frustações relacionados aos preconceitos por ter que finalizar seus estudos na EJA, porém, reconhece que foi através da modalidade e com auxílio dos professores que foi possível alcançar seus sonhos de inserir-se em curso de Ensino Superior.

É importante observar alguns conceitos presentes nos excertos aqui apresentados. A palavra oportunidade é recorrente nas falas de quatro estudantes, que reconhecem na modalidade suas oportunidades, tanto de conclusão do Ensino Médio, como de possibilidade de acesso ao Ensino superior. Nesse sentido, a EJA pode ser considerada como caminho para a materialização dos sonhos de quem por ela necessita passar, e que esses estudantes devem ser vistos como sujeitos reais que não buscam apenas a elevação da escolaridade na educação básica, independente das condições de conclusão.

Outra marca muito forte nas falas, estão atribuídas ao papel dos professores e a importância que esses tiveram na constituição de suas autoestimas como pessoas capazes afirmando o potencial de darem continuidade aos estudos. Arroyo (2011), aponta que as interrogações existenciais que os jovens e adultos carregam sobre suas vidas e as inseguranças sobre aspectos presentes em suas trajetórias, devem ser vistas como um olhar amável e um constante pensar do fazer docente. Para Brunel (2014, p. 94), a prática pedagógica não pode ser “ um transmitir sem alma, sem desejo e emoção”, o que nos faz percebermos a importância do papel do professor da EJA na vida e na trajetória dos estudantes.

Esses poucos fragmentos que aqui apresentamos nos mostram o muito que ainda temos a refletir sobre a EJA, e o quanto o tema que escolhemos tem relevância no debate sobre os direitos dos sujeitos que buscam essa modalidade, e que vêm a passos lentos, conquistando um lugar de possibilidades e de escolhas de suas condições de “estarem sendo”, sem predeterminação ou condicionamento, como corrobora Paulo Freire, a importância de reconhecermos nossa

“condição de estar sendo, como seres condicionados, inconclusos e aprendizes para sempre, com possibilidades e limites, capacitados para superar os obstáculos e engajar-se na construção de inéditos viáveis, homens e mulheres trazem em si a vocação ontológica de ser mais; como indivíduos, na coletividade, cada um vai descobrindo que sua passagem pelo mundo não é predeterminada, “não é dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir” (FREIRE, 1996, p. 26).

Nesse sentido, nos encharcamos de esperança, de que nosso trabalho irá contribuir para uma reflexão acerca da EJA, seja em um micro ou macro contexto, onde nossas todas as poderão ser ouvidas.

CONCLUSÃO

As mensagens das cartas corroboram na direção de que a modalidade EJA possibilita a mudança na vida dos sujeitos e, na maioria das vezes, é a única possibilidade de elevação de escolaridade para muitos jovens, adultos e idosos no Brasil.

Os Programas de Mestrado Profissional, requerem a construção de um produto final que permita uma reflexão crítica das práticas docentes, visando a integração da universidade com a comunidade educacional. Sendo assim, nossa pretensão com a reflexão até aqui realizada e com a finalização da pesquisa, é de retornar nosso trabalho para a EJA, disponibilizando para as escolas que ofertam essa modalidade as cartas escritas por nossos interlocutores, como forma de incentivo para estudantes que se encontram nessa modalidade, e que possam servir também como propulsoras do desejo da continuidade dos estudos.

A pesquisa pretende reafirmar a importância da EJA como uma política de direito presente nos documentos legais em vigência no país. Salientamos, pela pesquisa que, no contexto nacional, a EJA se revela, na maioria das vezes, como uma única forma de minimizar a ausência de escolas/turmas de ensino sequencial em muitas regiões do país.

Desta forma, entendemos que a concepção e o lugar da EJA ainda estão centrados na função compensatória, repor um tempo perdido, sem a garantia de uma educação com equidade e de qualidade ao longo da vida como dimensão de justiça e do direito humano.

A dimensão da justiça, liberdade, solidariedade e dignidade da pessoa humana de alguma forma, sempre estiveram presentes, em maior ou menor grau na sociedade. Aqui não estamos nos referindo somente ao direito positivado - reconhecido pelas normas jurídicas - mas, sim, aos valores ligados à pessoa humana. Esses valores existem pelo fato de o sujeito existir, mesmo não havendo por parte das autoridades, reconhecidas como soberanas, um reconhecimento formal de que tais valores representam verdadeiros direitos.

Fica evidenciado que os estudantes que frequentam a EJA trazem as marcas da visão reducionista lançada durante décadas sobre os alunos da EJA, o sentido de desvalorização dos conhecimentos que a modalidade oferece ou que esse conhecimento não supre a carências de escolarização consideradas essenciais pelas escolas sequenciais, também conhecidas pelo termo “ regulares”.

É nesse sentido que pesquisa vem sinalizando por meio das cartas carregadas de memórias e de sentimentos, de marcas que constituem suas vidas, que a experiência e a memória de quem passou pela modalidade, e compreende a importância que esta tem no contexto educacional do país, é uma possibilidade para contribuir na formação de quem se encontra inserido na EJA.

Nossa pesquisa se insere no contexto nacional e tem o desafio de ajudar no debate e defesa da EJA, pois estamos vivenciando muitas mudanças nas políticas educacionais. Pretendemos contribuir para que a EJA mantenha-se no palco de debates, como direito de todos e de todas de alcançar os estudos até onde seus desejos e sonhos os levarem como condutores do percurso de suas vidas, e sinalizando constantemente para a importância que a modalidade tem para as trajetórias de vidas de quem por ela passar.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 30 de Novembro de 2020; Aceito: 06 de Outubro de 2021

Carla Luz Salaibb Dotta Formação: Licenciatura em Pedagogia - Licenciatura em Educação do Campo: Ciências da Natureza. Especialização: Educação de Jovens e Adultos. Mestranda em Educação

Elisete Enir Bernardi Garcia possui graduação em Pedagogia (1996). Especialização em Educação Profissional Técnica de Nível Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2006-2007) e Mestrado em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (2005). Doutorado em educação (2007-2011) pela UNISINOS. A ênfase dos estudos e da experiência profissional referem-se às áreas: Formação de professores, currículo, juventudes, gestão escolar, políticas educacionais, saberes/práticas, educação básica: níveis e modalidades de ensino, especialmente nas questões que tange a Educação de Jovens e Adultos e educação do campo

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