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Reflexão e Ação

On-line version ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.1 Santa Cruz do Sul Jan./Apr 2022  Epub Aug 17, 2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i1.15898 

Artigos do Fluxo

As performances do professar: deslocamentos do rio do saber em práxis incorporadas

Teaching performances: knowledge river displacements in embedded praxis

Las performance del enseñar: desplazamientos del río de saber en praxis incorporadas

I Instituto Federal do Norte de Minas Gerais - IFNMG - Montes Claros - Minas Gerais - Brasil.

II Universidade de São Paulo - USP - São Paulo - São Paulo - Brasil.

III Universidade de São Paulo - USP - São Paulo - São Paulo - Brasil.


RESUMO

Ao cruzar as noções de performance e professar, tal como trabalhadas sobretudo por filósofos como Derrida e Gusdorf, este texto ensaia possibilidades de deslocar a noção de Saber do professor como objeto, passível de ser transferido, para aquela de Saber como práxis incorporada, manifesta em gestos e constituída na relação entre professores e alunos, em presença. A partir da Pedagogia Crítico-Performativa e dos estudos da performance, propomos que o professar seja entendido como a performance do saber que se constitui na pessoalidade intransferível, inerente aos processos de subjetivação.

Palavras-chave: Performance; Saber; Professar; Incorporação; Presença

ABSTRACT

By crossing the meaning of performance and teaching, as worked by philosophers such as Derrida and Gusdorf, this text tests the possibilities of displacing the notion of teacher Knowledge as an object, capable of being transferred, to that Knowledge incorporated as Praxis, in presence manifested in gestures and constituted in the relationship between teachers and students. From Critical-Performative Pedagogy and performance studies, we propose that teaching must be understood as knowledge performance that constitutes the non-transferable personality inherent in the subjectivation processes.

Keywords: Performance; Knowledge; Teaching; Incorporation; Presence

RESUMEN

Al cruzar las nociones de performance y enseñar, tal como trabajadas sobre todo por filósofos como Derrida y Gusdorf, este texto ensaya las posibilidades de desplazar la noción de Saber del profesor como objeto, pasible de ser transferido, para aquella de Saber como Praxis incorporada, en presencia manifestada en gestos y constituida en la relación entre profesores y alumnos. A partir de la Pedagogía Crítico-Performativa y de los estudios de la performance, proponemos que el enseñar sea entendido como la performance del saber se constituye en la personalidad intransferible, inherente a los procesos de subjetivación.

Palabras clave: Performance; Saber; Enseñar; Incorporación; Presencia

PERFORMANCE E PROFESSAR: NASCENTES

Este ensaio parte de ideias elaboradas sobretudo nos últimos vinte anos de que o professar, esse ensinar típico dos professores, seja uma performance. Ao cruzar textos de Austin (1962), Butler (2003), Derrida (2001) e Gusdorf (2003), que tecem pensamentos sobre os conceitos de performance e professar, indagamos os lugares do corpo, do gesto e da presença no ato educacional, de modo a problematizar as visões de que o saber do professor seja: 1. algo que está na mente ou no cérebro; 2. constituído de uma verdade produzida antes da aula, por cientistas (da qual o professor é mero reprodutor), portanto, apartada do presente da aula e da subjetividade de quem ensina; 3. transmitido apenas por meio de atos de fala, dissociados de um corpo que se apresenta integralmente. A presença corporal de docentes e discentes, bem como a crítica às compreensões de saber que separam corpo e mente, suscitam a atenção da educação sob diferentes perspectivas, considerando a potência da comunicação corporal como saber docente (ANTÉRIO e GOMES-DA-SILVA, 2015).

O deslocamento proposto neste texto, portanto, configura-se em uma aproximação do terreiro educacional com os estudos da performance. Dialogamos com investigações e reflexões elaboradas por professores-pesquisadores, atravessando-as com nossas próprias pesquisas que, por sua vez, cruzam os conceitos de performatividade e professar, no que vem sendo chamado de Pedagogia Crítico-Performativa (PINEAU, 2010). Noções como corpo, presença e gesto vêm à baila no terreiro educacional para duvidar, brincar e jogar com as teorias sobre a construção do saber em campo expandido. Como Loponte (2017), emprestamos a noção de “campo expandido” de Krauss, autora que, em 1979, cunhou o conceito para se referir à dificuldade de enquadrar alguns fenômenos de arte como meramente esculturas. Conceber a docência no campo expandido significa pensá-la como arte, mas para além dos sentidos de arte-objeto ou espetáculo, ou mesmo de técnica, ou de aula de arte. As fronteiras entre arte e vida, tal como nas experiências contemporâneas mais radicais, são pontos de contato e de transição:

Compreendemos aqui a arte contemporânea não apenas como mais um estilo ou “ismo”, mas como um modo de pensar que abrange e não exclui outras formas de arte, de épocas, lugares e culturas distintas. (...) temos buscado pensar a partir das produções artísticas contemporâneas (...) para instigar a docência como campo expandido, mais aberta à dúvida em relação a propostas pedagógicas cristalizadas, à invenção de práticas educativas contemporâneas ao tempo em que vivemos (...). (LOPONTE, 2017, p.447)

Neste sentido, o conceito de performativo não é entendido como linguagem específica do fazer artístico, mas como território de pensamentos e possibilidades de ação para o professar fundado no corpo-mente, na estética e na presença, independentemente da disciplina ministrada. Trata-se da acepção de performatividade em seu sentido filosófico, tal como vem sendo usada em Marcondes (2017):

O enriquecimento do imaginário do professor performer, ao longo dos anos de trabalho e formação, há que se dar em íntima relação com a importância do brincar: o brincar imaginativo, aquele que prescinde de brinquedos. (...) A tônica pode ser a de uma formação relacional, sem aparelhos e aparatos preconcebidos - despojamento no estilo “um banquinho, um violão” -, que consistiria em um fórum permanente de discussão e de processos do performar de si, com o outro no mundo, na metodologia work in process/trabalho em processo - advinda das artes e que pode migrar para o campo educacional como um todo. (p.77, grifo nosso)

Com isso, pretendemos, no leito deste texto-rio, navegar nos deslocamentos que têm sido propostos pela Pedagogia Crítico-Performativa. Esta teoria relê a pedagogia crítica freiriana pelas lentes dos estudos da performance. Com seus afluentes, apontamos como as noções de performatividade e professar se cruzam a partir dos textos de Austin (1962), Butler (2003) e Derrida (2001). A partir disso, perfazemos um curso que desemboca no grande leito: a importância do gesto, da presença e do corpo para a práxis docente, em autores como Gusdorf (2003), McLaren (1991) e Launay (2010). Estes deslocamentos nos auxiliam a repensar questões, caras à educação, que suscitam o pensamento plural e dele se beneficiam. Se bem fluírem as águas, acreditamos poder, na foz, desaguar em performances do professar calcadas na pessoalidade e em um saber que não se entende como objeto desassociado dos sujeitos, mas como práxis incorporada.

A PEDAGOGIA CRÍTICO-PERFORMATIVA: LEITO

Os Estudos da Performance germinaram a partir da antropologia de Turner relida sob a óptica do encenador Richard Schechner (2010). Herdeiros desta tradição, professorespesquisadores como McLaren (1991) e Pineau (2010) cruzaram os estudos da performance com a pedagogia de Paulo Freire, produzindo o que chamam de Pedagogia Crítico-Performativa. Os autores identificaram nesta teoria a emergência de “uma nova poética dos estudos educacionais” (PINEAU, 2010, p.91) a partir do final dos anos oitenta. Reconhecendo as muitas possibilidades que o ensino como performance engendra, Pineau investiga um sem-número de estudos que enfocam desde a importância da capacidade criativa e intuitiva dos docentes até analogias possíveis do professor como contador de histórias, regente e ator. A estas, poderíamos adicionar outras pesquisas brasileiras do professor como bufão ou palhaço, e as muitas vertentes que analisam o uso do humor, do jogo e da brincadeira como fontes valiosas para o repertório didático. Contudo, a autora alerta também para as possibilidades redutoras destas analogias, seja através da associação de performance com o desempenho (no sentido de aumentar a produtividade docente, em sentido neoliberal) ou com o espetáculo (no sentido debordiano do termo, transformando a aula em “show”, restringindo-se ao uso de técnicas teatrais na pedagogia). Neste sentido, os estudos de Pineau orientam a pesquisa das relações entre performance e educação, na premissa de que o ensino, como a arte, tem “(...) natureza fabricada, inventada, imaginada, construída das realidades humanas. Culturas e individualidades não são dadas, são construídas; mesmo como ficções, são ainda construídas, pois [...] elas mantêm presentes a promessa de re-imaginar e remodelar o mundo” (CONQUERGOOD apud PINEAU, 2010, p.97).

A Pedagogia Crítico-Performativa desconstrói, assim, a visão de que os gestos profissionais e os corpos dos professores são naturais, frutos de “estilo próprio”, baseado em um ideal de identidade ou personalidade imutável, que deva ser cuidado exclusivamente a partir do olhar das ciências da saúde. Diz Sabatini (2014) que a nossa performance docente, quando não é ensinada, acaba por mimetizar e reconstruir as memórias das boas performances docentes dos professores que nos formaram. Portanto, questionamos, com Pereira (2010), “de que maneira a recuperação da dimensão expressiva do ato pedagógico serve para desenvolver o pensamento e a prática educativa contemporânea?” (p.140).

Desejamos, como estes autores, superar a pedagogia bancária (FREIRE, 2011) e explicadora (RANCIÈRE, 2017), partindo da crítica à pedagogia transmissiva para encontrar as possibilidades desta superação no corpo dos professores. Entendemos que a ideia de transmissibilidade do saber está por demais arraigada no nosso imaginário pedagógico e incorporada às nossas práticas educacionais, de modo que não nos basta dizer que se critica. Tampouco basta recorrer a metodologias ativas, como técnicas externas à produção da subjetividade de quem ensina. Compreendemos ainda, com Freire (2011), que essa superação não se dá por evolução histórica contínua: ela se dá no corpo, em tentativa e erro, na práxis da vivência docente, desde a sua formação inicial até o seu último instante em sala de aula. Essa superação se torna especialmente difícil em uma sociedade capitalista, em que o saber é vendido em pacotes, em sistemas mercadológicos de educação, redutores do saber à “créditos/hora” (GIROUX, 2013).

Nossa perspectiva não significa uma recusa da racionalidade, da exposição ou do elogio de qualquer atividade, pois, com Rancière (2017), reconhecemos que a escuta já pode ser uma ação. Ademais, toda racionalidade pressupõe uma dimensão estética (FERREIRA-SANTOS, 2005) ou, se falarmos em racionalidades, no plural, do mesmo modo como falamos em epistemologias, será preciso refletir sobre quais dimensões estéticas engendram e são engendradas por cada forma do pensar. Porém, é fato que o corpo na formação docente tem sido relegado ao lugar de objeto-deestudo, às disciplinas de artes ou educação física, aos projetos extraclasse e espaços extra escolares, como periferia do saber sério, planejado, objetivo, instituído, que se “domina”.

Os Estudos da Performance têm se dedicado ao estudo do jogo, do ritual e dos fenômenos artísticos como práticas sociais incorporadas. O que se busca é a análise do comportamento humano, das sequências das ações reiteradas, do jogo entre ação e representação e dos papéis encarnados em sistemas culturais, especialmente quando se dá a mostrar, se exibe. Seja um ator numa peça teatral, um zagueiro num estádio de futebol ou um padre em uma missa. Para além dos tipos clássicos de performances, Schechner (2010) admite que outros fenômenos podem ser estudados como performances: “ensinar não constitui uma performance artística, mas certamente é uma performance. No ensinar, o professor precisa definir certas relações com os estudantes. O professor precisa desempenhar o papel do professor, que pode variar de circunstância a circunstância” (p.30). Aqui, os conceitos de performance e jogo foram traduzidos pelos professores-entrevistadores como desempenho. Ao dizer que os professores precisam to perform/to play o papel de professor, Schechner encara a dimensão social da função do educador como um papel a ser desempenhado, isto é, como conjunto de ações que formam um comportamento social que precisa ser “atuado” para ser entendido como o de um professor.

Então, o professor performa o saber utilizando como matéria o seu corpo-mente: memória, gestos, voz, olhar, movimentos, imaginação (CIOTTI, 2019). Ao falar e agir, a professora ou o professor evocam imagens e emprestam sua corporeidade para tornar presente o invisível - quer seja um átomo em uma aula de química, uma paisagem, um fato histórico, uma personalidade, um conceito. Ao gesticular, o professor indica, aponta, revela, separa, une, recusa, permite, convida, funda, movimenta. Isto se alia a noções - já presentes no senso comum educacional - como a de “currículos ocultos” ou ainda de que “o corpo fala”. No entanto, a relação com tais noções pode sugerir prescrições, ao associar gestos a um comportamento psicofísico determinado (gesto x determina uma mensagem x). Ou ainda, proposições negativas, ao entender os gestos dos professores como produtores de “ruídos” de comunicação, que devam ser eliminados para uma comunicabilidade pretensamente clara e linear, no sentido de um currículo explícito em oposição ao oculto, subliminar ao discurso “verdadeiro”.

Para Sabatini (2014, p.478), “a pedagogia é o tipo de performance que é tão comum, tão universal e historicamente entrelaçada na experiência humana que a sua própria característica já foi parodiada, sobretudo por pessoas que já foram estudantes.” Uma das coisas mais divertidas, quando se está numa escola, é fazer graça interpretando seus professores, tornando-os vilões patéticos ou heróis das nossas imaginações juvenis. De certa forma, ao interpretar um professor, se representa uma representação, o esforço do sujeito-docente em corresponder à imagem de um corpo professoral. Desta forma, a paródia, a comicidade e o humor se instalam no jogo entre identificações e distanciamentos: o meta-teatro que é encenar um professor acentua os estereótipos reiterados deste tipo de performance. Para hooks (2018), que conjuga a pedagogia ao ato político da transgressão, evocar o aspecto teatral do ensino se relaciona com engajamento:

Ensinar é um ato teatral. E é esse aspecto do nosso trabalho que proporciona espaço para as mudanças, a invenção e as alterações espontâneas que podem atuar como catalisadoras para evidenciar os aspectos únicos de cada turma. Para abraçar o aspecto teatral do ensino, temos de interagir com a “plateia”, de pensar na questão da reciprocidade. Os professores não são atores no sentido tradicional do termo, pois nosso trabalho não é um espetáculo. Por outro lado, esse trabalho deve ser um catalisador que conclame todos os presentes a se engajar cada vez mais a se tornar partes ativas no aprendizado. (p.21-22)

A performance do professor, ou o que aqui chamamos “professar”, é o ato de, tendo encarnado um conjunto de saberes, vivê-los, partilhá-los, desmontá-los, engajá-los e reconstruí-los com e diante de outras pessoas. O que tentaremos demonstrar a seguir, quando esse rio recebe afluentes, é que o professar e a performance tem mais pontos de contato do que se pode, à priori, supor, e as teorias sobre a performatividade da educação e da linguagem podem confluir nesta direção.

AFLUENTES: DAS PERFORMATIVIDADES

A introdução da noção de performance na teoria da linguagem deve-se a Austin (1962). Em síntese, seu trabalho consiste em definir uma nova categoria da enunciação - a qual ele nomeou como sendo performativa - em oposição à categoria descritiva/constativa. Austin propõe

(...) chamá-las de sentenças performativas ou enunciações performativas (...) O nome é derivado, é claro, de “performar”, o verbo usual do substantivo “ação”: indica que a emissão do enunciado é a execução de uma ação que normalmente não é considerada apenas como dizer algo. Diversos outros termos podem ser aplicados, cada um deles cobrindo adequadamente essa ou aquela categoria mais ou menos ampla de performatividade: por exemplo, muitos performativos são contratuais ('eu aposto') ou declaratórios ('eu declaro guerra'). Mas nenhum termo, em uso atualmente, que conheço é amplo o suficiente para abarcar a todos. (1962, p.6)

Em outras palavras, performativa é a linguagem que faz, atua sobre o mundo, não apenas o descreve. É a linguagem que perfaz uma ação, porque o enunciador está em uma situação que o autoriza a desempenhar aquele papel, e a sua enunciação não é apenas a descrição representativa de um ato. Como exemplo clássico de Austin (1962), temos

o enunciado “eu aceito” (tomar esta mulher como legítima esposa), ao ser proferido no decurso de uma cerimônia de casamento. Aqui nós diríamos que, ao dizer essas palavras, estamos fazendo algo, ou seja, casando, mais do que descrevendo algo, a saber, que estamos nos casando. E o ato de casar, como também, digamos, o ato de apostar, pode ser, ao menos preferivelmente (embora ainda não decididamente), descrito como o ato de dizer certas palavras, muito mais do que o executar uma outra ação, interior e espiritual, da qual estas palavras são meramente o sinal exterior e audível. (p.12)

Outros exemplos são as frases “eu prometo”, “eu permito”, “eu declaro”, sempre ditas na primeira pessoa por alguém que desempenha um papel circunstancial na experiência. O padre ou o juiz que profere as palavras “eu vos declaro marido e mulher” tem, numa situação matrimonial, o poder de, ao dizê-lo, fazer acontecer. Outra pessoa, ao dizer as mesmas palavras, não o teria. Ou mesmo o padre e o juiz, na ausência dos noivos e das testemunhas, também não. A conclusão a que Austin chegará é que a performatividade de um discurso não é inerente às palavras do enunciado como na categoria verbal das formas imperativas, por exemplo; mas é inerente à relação que se estabelece entre o enunciador e seus ouvintes. Trata-se de um acordo tácito entre papéis desempenhados, que confere ao enunciador o poder de performar o que diz. O presidente que declara guerra ou o professor que determina a atividade do dia, em uma aula, não apenas descrevem ações futuras. Eles também movimentam, respectivamente nos soldados e nos alunos, a ação dos corpos no aqui-e-agora. Para tanto, porém, presidente e professor precisam ter, de soldados e alunos, o poder instituído, a confiança na palavra, o acordo firmado de uma relação de poderes. A partir de Austin (1962), as teorias da performance e do performativo se desdobraram em inúmeras áreas do saber. E a noção de “linguagem performativa” se expandiu dos atos de fala para uma noção cada vez mais expandida de linguagem corporal integral.

Em Butler (2003), por exemplo, o aspecto performativo da linguagem se produz sobre as construções de gênero e corpo. Corroborando a célebre frase de Simone de Beauvoir, “ninguém nasce mulher, torna-se”, Butler elabora uma teoria segundo a qual o gênero é performativo, construído socialmente através de representações e da ação da linguagem da fala e do corpo, entre os sujeitos. O exemplo de Butler é cirúrgico ao definir a ação do discurso performativo sobre os corpos:

Consideremos a interpelação médica que (...) transforma uma criança, de um ser “neutro” em um “ele” ou em uma “ela”: nessa nomeação, a garota torna-se garota, ela é trazida para o domínio da linguagem e do parentesco através da interpelação do gênero. Mas esse tornar-se garota não termina ali; pelo contrário, essa interpelação fundante é reiterada por várias autoridades, e ao longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar esse efeito naturalizado. A nomeação é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e também a inculcação repetida de uma norma. (2003, p.161)

Trata-se, portanto, de um pensamento segundo o qual a linguagem funda os sujeitos enquanto é fundada por eles, num jogo de ações performativas mútuas e reiteradas ao longo do tempo. Butler (2003) alerta que “o argumento nunca foi o de que tudo é discursivamente construído” (p.162), mas na assunção de que existe, entre corpo e linguagem, uma relação bilateral, complexa e não determinista. Ou seja, uma máquina social de produção de subjetividades onde todos são agentes, produtores e produzidos.

Ora, se performance pode construir gênero, poderá também (guardadas as especificidades de cada caso) produzir imagens e poderes de profissão e, especificamente, a profissionalidade do professor, o ato de professar. Em outro texto (BRAGA; ZIMMERMANN, 2020), mostramos que a autoridade do professar pode se construir performativamente a partir do entusiasmo, para a construção de uma comunidade de aprendizado, sem se valer do corpo autoritário. Utilizamos, como Vick e Martinez (2011), “o conceito de Butler de performatividade para analisar os atos que, reiterados, são entendidos, ou performativamente constituídos, como ensinar”, de forma “que a pedagogia possa ser entendida como uma prática incorporada. Que ela possa ser vista como a atuação de uma sequência de gestos corporais, contingencialmente atados aos discursos que lhes dão significados.” (p.178). Pontuamos, aqui, que a noção de práxis (como atamento da teoria e da prática, e do corpo-mente) parece mais justa que simplesmente a de prática, e partimos da conclusão destes autores de que

a transformação das práticas incorporadas do ensino usual envolverá encontrar formas específicas, concretas, corporais de usar o espaço, os corpos, as vozes de maneira diferente. Envolverá responder as questões sobre o que seria ensinar de modo a não usar o corpo do professor para afirmar a autoridade, a diferença e a distância entre professor e aluno, a singularidade e a fixação das identidades - para construir uma nova prática pedagógica (...) (p.190)

Como a imagem, a representação de cada profissional - ou os discursos do que se diz de cada profissão e do trabalho - moldam os sujeitos ao longo de sua profissão? O que espera um professor da docência quando, na juventude, decide seguir este caminho profissional? A que imagens, mais ou menos verdadeiras, este sujeito espera corresponder segundo os modelos, categorias e possibilidades que lhe foram enunciadas pela sociedade, e que continuarão a atravessá-lo ao longo da sua vida profissional? Que performances serão possíveis? Como cada um performa o seu professar? Quais são as inúmeras maneiras de performar o ato de ensinar, a partir das representações apreendidas sobre o que significa aprender? Como estes modelos corporais e gestuais fundam o seu imaginário de ações, gestos, olhares, memórias? Como as narrativas sobre a profissão de professor formam e agem sobre a profissionalidade de cada um?

Para Derrida (2001), que se dedica a estas questões, a noção de performance no ensino é indissociável da noção de professar. O professar é o ato do professor profissional que não se confunde com o genérico educar. Os professores são também educadores, assim como a televisão ou os pais de uma criança, já que as ações de educar/ensinar podem ser empreendidas por qualquer pessoa que atue na formação de alguém. O professar, porém, é um ato profissional específico, de alguém que dedica vida, memória e corpo a uma profissão. O professar é um trabalho intelectual e físico que supõe uma ciência e uma arte de fazer, uma poética, uma estética e uma ética específicas.

Em Derrida (2001), “esta palavra ‘professar’ de origem latina (profiteor, fessum sum, er. pro et fateoor, que significa falar, da qual também vem a fábula e assim um certo ‘como se’), significa, em francês e em inglês, declarar abertamente, declarar publicamente.” (p.35) 4 O saber torna-se passível de um acionamento, de uma presentificação. Não é objeto a ser transmitido ou força a ser empregada, mas relação construída no processo da vivência, em ação. A performance do professar é este enactment, esta mise en scène, este pôr em jogo o conhecimento. Ato este cuja publicidade é condição sine qua non, bem como o é um certo caráter religioso, que a radiciação da palavra encerra: profissão, professor, professar, profecia. Derrida abre o seu texto, que é a transcrição de uma palestra, dizendo que o que ele disser adiante “sem dúvidas, será como uma profissão de fé: a profissão da fé de um professor” (p.24) ligada ao “direito fundamental de dizer tudo, ainda que sob o título de ficção e de conhecimento experimental, e o direito de dizê-lo publicamente, de publicálo.” (p.24)

Em Derrida, o professar da verdade é o que interessa ao autor: “A universidade professa a verdade, e esta é a sua profissão. Ela declara e promete um comprometimento sem limites com a verdade.” (2001, p.24). Na Universidade Incondicional, imaginada por Derrida (2001), as Humanidades teriam o poder de descontruir a si próprias porque têm a autonomia, a soberania absoluta sobre a verdade (p.26). Isto implica “no direito de fazê-lo performativamente, isto é, através da produção de eventos, como por exemplo a escrita, ou a criação de obras singulares” (p.26). E, ainda,

Vincular a fé ao conhecimento, a fé no conhecimento, é, de certa maneira, articular movimentos que poderiam ser chamados de performativos com movimentos constativos, descritivos ou teóricos. Uma profissão de fé, um compromisso, uma promessa, uma responsabilidade assumida, tudo o que não apela a discursos de conhecimento, mas a discursos performativos que produzem o evento de que falam. Portanto, deve-se perguntar a si mesmo o que significa "professar". O que se faz quando, performativamente, se professa, mas também quando se exerce uma profissão e singularmente a profissão de professor? (p.30)

O que se nota, pelas duas últimas citações, é que o sentido que o autor dá à palavra performance está ligado à ideia de ação e criação da verdade. Ou, como comumente se diz em pedagogia, construção/produção do conhecimento - o que difere de transmissão/reprodução. Se a produção se inscreve no presente da linguagem, a reprodução pressupõe uma determinação e uma repetição do passado, um atamento dos sujeitos a um conhecimento produzido anteriormente. Conhecimento que se transmite, que se repete, sem necessária conexão com o aqui-e-agora de sua enunciação. A radicalidade do pensamento de Derrida, portanto, consiste em pensar o professor como produtor e construtor do conhecimento, como criador do acontecimento-aula (GALLO, 2017), cujo saber é sempre uma reiteração/citação - porque somos sujeitos históricos -, mas cuja performance exige a atualização no momento do seu dizer, como no caso dos artistas da presença.

SABERES EM PERFORMANCE, INCORPORADOS: GRANDE LEITO

O saber, então, se cria nas relações entre sujeitos, se constitui e se revela nas ações corporais, na materialidade (imanência) destas relações. Gusdorf (2003) dirá que “toda aprendizagem de um saber é uma evocação do ser” (p.23), isto é, um chamado à constituição de si mesmo, subjetivação que se dá no encontro com o outro. Pois “o saber fornece a oportunidade ou o pretexto do encontro. Era uma espécie de jogo, o jogo escolar, cujas regras eram respeitadas, mas não enganavam ninguém” (p.42). Neste sentido, o saber do currículo é tido aqui como pretexto que dá, ao encontro, uma utilidade, a teleologia do jogo que vale tanto (ou mais) pelo processo do jogar do que por seus resultados (SAURA, 2013). Porque o processo do encontro dos corpos, desempenhando papéis uns diante dos outros, permite que performem suas experiências e narrativas:

Mais do que contar histórias, contar a sua história. Trovador errante, expor-se na exposição do conhecimento e historicidade que construímos coletivamente. Expor a trajetividade recursiva deste movimento que nos levou até o hoje que somos, sussurrando nossa história a outros trovadores errantes, vagabundos ao redor das fogueiras. (...) Ali saberemos: uma pessoa esteve aqui. (FERREIRA-SANTOS, 2005, p.43)

Trata-se de partir de si mesmo e não de uma pretensa objetividade externa àqueles que se encontram: atualizar o sentido da experiência e importá-la àqueles a quem se diz, construindo sentidos e saberes, coletivamente. Ao mesmo tempo, contar a sua história não se confunde com fazer-se tema-objeto do ensinar, mas em apresentar-se como lugar - único possível - de onde se pode partir para contar o que se sabe. Não se trata, portanto, de uma noção individualista de sujeito, preso à imagem repetida e imutável de si mesmo, mas, ao contrário, do atamento do saber à experiência daquele que partilha. É possível ilustrar este argumento com a citação de um aluno sobre a sua professora, colhido por Launay (2010):

Junto a ela, por exemplo, eu aprendi, me formei, sem dúvida. Mas aprendi muito mais quando não era mais o seu aluno, dez anos mais tarde, quando nos encontramos de novo. Nesse momento, eu encontrei a mulher e algo que ultrapassava aquilo que ela tinha querido me ensinar.” (p.86)

O que será este inominável que inúmeros alunos descrevem da sua relação com seus professores? Esta memória do olhar, do gesto, do tom de fala, da materialidade das coisas que carrega e usa, e que ultrapassa os conteúdos ensinados? Gusdorf (2003) elabora esta questão através da narrativa da memória que tem de seus próprios professores:

Já esqueci quase todo o conteúdo das aulas de história, francês ou latim. Mas ainda vejo certos gestos, certas atitudes; ainda ouço tal palavra, relativa ou não a aula, mas que me fez refletir; ficou-me o peso de uma zanga ou de uma indignação memorável. Enfim, alguns ainda continuam vivos e presentes em mim: a personalidade deles marcou-me porque discutimos, nos enfrentamos, nos estimamos e, sem dúvida, secretamente, nos amamos. Vivos ou mortos, por mais longe que estejam, viverão em mim até minha morte. (p.42)

Esses são elementos físicos, concretos, incorporados, simbólicos (“viverão em mim”) disto que chamamos de performance do professar, pois “não é uma questão de método. É na relação que o ensino acontece. Há uma pessoa que se coloca ‘em disponibilidade de pedagogia’ e que lhe permite... Se o conteúdo é importante, é o modo pelo qual ele é transmitido que é fundamental” (Launay, 2010, p.86). A distinção entre “método” e “modo como é transmitido” pode ser assim compreendida: enquanto método sugere formalismo, externo ao ato relacional e à pessoalidade do saber, porque pode ser adotado indistintamente por quem os domina, o modo tem relação intrínseca (forma-conteúdo, inseparáveis) com a pessoalidade e com as necessidades construídas aqui-e-agora.

Esta perspectiva corrobora, a nosso ver, a ideia de engajamento da educação, como querem Freire e hooks , como prática da liberdade. Engajamento aqui, como encarnação do saber e materialização das palavras pelo exemplo e nas ações (Freire, 2011). Para hooks (2018),

A pedagogia libertadora realmente exige que o professor trabalhe na sala de aula, que trabalhe com os limites do corpo, trabalhe tanto com esses limites quanto através deles e contra eles: os professores talvez insistam em que não importa se você fica em pé atrás da tribuna ou da escrivaninha, mas isso importa sim. (p.184)

Ou seja, o engajamento libertário está atrelado, em educação, a uma perspectiva do saber como práxis incorporada e esta incorporação está diretamente relacionada, em educação, com o que tem sido caracterizado como entusiasmo (HOOKS, 2018; BRAGA e ZIMMERMANN, 2020). A importância do corpo no ensino aparece também em McLaren (1991), autor da pedagogia crítica que investigou a aula como ritual, em suas dimensões teatrais e performativas:

Os professores são coreógrafos que usam gestos, entonações verbais e métodos rítmicos de expressão ritualizada. (p.155) A fala inicial por parte do professor serve para focalizar a atenção do aluno sobre si mesmo. A própria presença pedagógica do professor se torna um instrumento para organizar a identidade do grupo. (p.156) As aulas tinham mais ritmo quando eram orquestradas por Brock - o que provavelmente explica o fato de que eu passei mais tempo observando as aulas de Brock do que as das outras. (p.161) Ele (Brock) considerava seu desempenho como professor de duas maneiras contraditórias: como um disciplinador e como um animador. Ele disse que adotaria qualquer um dos dois papéis, de acordo com a turma que estivesse lecionando. (p.162)

Nos excertos citados, McLaren flagra isto que caracterizamos aqui como práxis no/do corpo que ensina. Recorremos, neste ponto, a dois outros relatos anônimos de alunos, extraídos do texto de Launay (2010), para analisar esta dimensão silenciosa e poderosa do gesto docente:

Durante a aula, ele trabalhava muito com cada pessoa, sem por isso se demorar demais em um único aluno. Seu ensino era extremamente vivo. Algo de muito rápido circulava: abundância de informações, alternância entre rir, ficar sério, exposição de um pequeno aspecto teórico. (Launay, 2010, p.92)

Neste outro relato, a professora fala com as palavras, mas é na forma do que ela diz que reside o gesto fundamental:

Essa professora me fez realmente amar o trabalho técnico. Ela falava do prazer, do artístico, da sensibilidade. Mas para alcançar o ideal artístico do qual ela falava, eu me tornei anoréxica. Eu não lhe falei disso, mas mesmo assim é muito importante. (...) Essa professora me dizia: “Seria bom se você perdesse alguns quilos.” Ela o dizia muito docemente. Não era em nada uma bárbara. Havia essa atração sem aprofundamento por uma imagem de corpo ideal para a dança. Eu queria corresponder ao máximo a essa imagem de que ela falava, mesmo que involuntariamente, de modo subjacente. É paradoxal. Ela indiretamente me destruiu durante um momento de minha vida e ela me deu ao mesmo tempo muita força. (Launay, 2010, p.88. Grifos nossos)

Os termos grifados ressaltam os modos como os gestos silenciosos, não ditos, se dão e são lidos na dimensão estética da aula. A performance da professora, na visão desta aluna, é doce e não bárbara. A atrai e a adoece. A destrói e fortalece. O que estes paradoxos revelam, mais do que a ação de uma professora específica, é a potência dos gestos encadeados de uma práxis pedagógica incorporada, o que eles podem fazer sobre alguém, para além daquilo que é efetivamente dito. A professora não diz “perca quilos, do contrário não será bailarina”, mas, talvez, seja a sua sugestão aparentemente doce (“seria bom que...”) aliada a uma imagem de professora que seduz para a arte, para sensibilidade, que tenha adoecido a aluna. O gesto não precisa ser fisicamente agressivo ou autoritário, para ser violento.

DO GESTO PRESENTE: FOZ

Marcelo de Andrade Pereira postula que o gesto tem função de atualização e de concretização performativa. A palavra performance, em sua origem francesa, vem de parfournir, completar, realizar completamente. A noção de completude pode referir-se ao espaço vazio deixado pela teoria ou, ainda, pela intenção racionalmente definida. O gesto concretiza porque completa, realiza o abstrato, preenche, dá consequência a algo, performa, torna comportamento ou ato. Segundo Pereira (2010), a dimensão performativa do gesto

permite postular uma educação de ato - como atualização de potência, para recobrarmos o sentido cunhado por Aristóteles do termo -, uma educação atualizadora não orientada por princípios meramente utilitários, técnico-instrumentais - signos de uma educação moderna, reducionista, estabilizadora e reprodutora de sentidos (sensações, significados, finalidades) - redentores e/ou pequeno burgueses; permite postular uma educação que não prejulga de funções, que não se reduz a um exercício infértil e retentivo de descrição-prescrição do real, de emudecimento do real. A educação de ato - que passa, como veremos, pelo gesto - é, com efeito e por efeito, estética. O sentido do performativo - manifesto numa dada acepção de gesto - remonta precisamente a essa noção e propriedade de realização, de atualização do possível. (p. 557)

Isto porque o ato de comunicação, como o é o ato pedagógico, é um ato integral. Não se faz apenas no plano exclusivo das mentes, mas dos corpos-mentes. O gesto elaborado em diálogo, sobretudo o expressivo, confere sentido à própria palavra, esta que, em sua origem, é também gesto (ZIMMERMANN, 2015). A potência atualizadora do gesto, segundo Pereira (2010), se dá na presença.

Estar presente em performance, neste sentido, indica um engajamento no diálogo, o que, portanto, nos distancia da educação bancária e explicadora. Assim, a professora ou professor presentes não são necessariamente aqueles que demarcam indistintamente sua atuação em aula por atos verbais. Mas aqueles que se colocam em relação, ou seja, são capazes de produzir experiências que mobilizem os saberes incorporados, dialogicamente, engajando-se no professar. O gesto demarca esta atualização porque de fato, falar em atualidade e presença é remeter a um aspecto temporal. Presentificar/atualizar evocam a capacidade de estar no momento presente, ou se fazer presente para alguém. Alcir Pécora, professor veterano de literatura da UNICAMP, dá um depoimento para Arte da Aula (CORDEIRO e FURTADO, 2019), muito preciso nesse sentido. Apesar de recusar, a princípio, o aspecto teatral do professar (pois o identifica com impostação gestual), ele admite o caráter físico da aula, no esforço de situá-la no presente das relações:

Você não pode ficar naquilo que já pensou alguma vez, pois você está reproduzindo como autômato uma experiência do texto que não está mais ali. (...) de um lado, há um esforço grande de preparação da aula, mas, de outro, o esforço tem de ser o de tentar impedir que essa reflexão do passado, não importa se boa ou má, se sobreponha àquela que se apresenta na aula. (p.37)

Quantos discursos de professores parecem querer escapar ou fugir ao presente? Que os alunos do passado eram mais disciplinados; que a educação de hoje não é mais como antigamente; que, no meu tempo, se respeitava a escola; que o que vocês estão aprendendo serve para o futuro. A fuga da temporalidade presente instaura a desimportância do agora, uma vida apesar do presente, com nostalgia de um aluno que não é aquele que está diante de si, usando a promessa do futuro como moeda de troca para o disciplinamento dos corpos.

Enfocar a performatividade do professor significa compreender a docência como uma ação pessoal, incorporada, que passa necessariamente pela subjetividade em mutação da pessoa que ensina. E que o saber que se ensina é outro, se ensinado por outro corpo. Neste sentido, admitimos o pensamento de Jaurès (1910) para quem: “Não se ensina o que se quer; eu diria até que não se ensina nem o que se sabe ou se crê saber: não se pode ensinar outra coisa que não o que a gente é”. E o “Ser” desta citação, como ontologia da docência, é entendido não como busca por uma essência ou natureza do professor, nem como recusa ao conteúdo do saber, mas como Saber que vem a ser, devir e criação, assumindo uma instância didática performativa. Isto quer dizer uma didática, incorporada, cujos gestos, olhares, ações e escolhas se constroem no acontecimento material, imanente, da aula (GALLO, 2017).

A verdade professada, em Derrida (2001), está em disputa: “é porque o ato de professar é um ato de discurso performativo e porque o evento que ele é ou produz depende apenas dessa promessa linguística, que a sua proximidade com a fábula, com a fabulação e a ficção, ao ‘como se’, será sempre formidável.” (p.36) Fabulação e ficção, duas palavras opostas à noção clássica de verdade, aqui se ligam neste gesto radical do autor: o de pressupor o professor como produtor, criador, performer, cuja intimidade com aquilo que professa lhe permite ser, de fato, um professor das variadas formas com que a verdade se apresenta. A aula é entendida como um todo polifônico, não apenas pelo que o professor venha a dizer, mas por tudo o que naquele tempo-espaço, naquela experiência, acontece a partir do momento em que o professor, com um gesto, institui o princípio, convite e instauração: vamos começar?!

REFERÊNCIAS

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Recebido: 29 de Outubro de 2020; Aceito: 06 de Outubro de 2021

Pedro Luis Braga Professor e artista da presença e atua como Prof. Substituto na UFPE na área de Ensino de Arte. Pesquisa, ensaia e atua nas áreas de Educação, Performance, Estética e Artes Cênicas. Doutorande e Mestre em Cultura, Filosofia e História da Educação pela FE-USP. É bacharele em Artes Cênicas pela mesma universidade. Licenciade em Artes pela FAMOSP. Pedagogo pela Universidade Anhembi Morumbi. Já atuou como professore de Artes das redes pública e privada de ensino, como tutor online da UNIVESP para as disciplinas Arte e Música na Educação Infantil e TCC, como produtor de conteúdo para o Grupo Somos (editoras Ática, Saraiva e Scipione) na disciplina Artes nos PNLD 2018, 2019, 2020 e para a QConcursos. É idealizadore, apresentadore, editore e roteirista, desde 2017, com André Pédico, do canal para jovens no Youtube Pirilampo - Artes para novas gentes. Deu aulas de História e Teoria do Teatro, Curso Livre e Gramática da Ação Física no Curso Profissionalizante da Escola de Artes Symphony. Diretor Teatral, já tendo encenado as peças Sete Crianças Judias (assist. direção, 2018), Aire Frío (2016), Epidemia (2014), Anima (2009), Medeias (2011), A Mais Forte (2011) e Ponto de Partida (2010), esta última apresentada no SESC Consolação, na SP Escola de Teatro e nos festivais de Blumenau e de Caxias do Sul (Caxias em Cena). Em 2010, conclui pesquisa pela FAPESP em Encenação, pela qual recebe Menção Honrosa, a respeito do teatro japonês, orientado pelo Prof. Dr. Antônio Araújo do Teatro da Vertigem e coorientado pela Profa. Dra. Alice K. Fez cursos de dramaturgia e crítica com JeanPierre Sarrazac (França), Luiz Alberto de Abreu (Brasil) e Vivian Martinez Tabarez (Cuba). Fez o curso de Elementos do Teatro Shapeskeariano com Bernadeth Alves e o curso de Teatro Musical, com Charles Yuri, Beth Pelegrini e Cadu Witter. Em 2012, participou do Núcleo Anatol Rosenfeld da Cia. do Latão, no qual atuou no espetáculo Buraco Filosófico. Participou como Ator dos processos de criação Anatomia do Fauno, sob direção de Marcelo Denny e Marcelo D´Avilla, com apresentações no Festival Mix Brasil em 2016 e Terra de Deitados, com a Cia Teatro Documentário, em 2015. Atuou também como Narrador por 3 edições do Sarau Arabesque e em uma edição do sarau Dançando com as Deusas, ambos ligados à dança do ventre e as danças do sagrado feminino. Atuou, até Jan/2022, como Professor Substituto nos cursos técnicos de Teatro/Artes no IFNMG Campus Diamantina (EBTT), onde também é Presidente da Comissão de Criação da Licenciatura em Teatro e professore da especialização (pós latto sensu) em Arte e Tecnologia

Soraia Chung Saura Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2001). Mestrado e Doutorado em Antropologia do Imaginário pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo com a tese: Planeta de Boieiros, culturas populares e educação de sensibilidade no imaginário do bumba-meu-boi (2008). Professora Doutora no Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano da Escola de Educação Física e Esportes da Universidade de São Paulo (2010). Orientadora nos Programas de Pós Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Cultura, Filosofia e História da Educação) e da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo (Estudos Socioculturais do Movimento Humano). Desenvolve pesquisas relativas ao corpo e suas intersecções com produções culturais, artísticas, de lazer, jogos tradicionais e esporte, com ênfase antropo-filosófica e na área dos Estudos do Imaginário. Dentre os temas pesquisados estão os Jogos, Esportes, Manifestações Tradicionais e o Brincar. Coordena o Projeto Cinema e Corpo (EEFE, CINUSP e Pro Reitoria de Cultura e Extensão da USP), o Grupo de Estudos PULA e o Centro de Estudos Socioculturais (CESC- EEFE-USP). Membra do Ad Hoc Advisory Committee on the Safeguarding and Promotion of Traditional Sports and Games, UNESCO. Antes de integrar o quadro de docentes da USP, atuou como educadora e coordenadora em diversos programas de comunidades tradicionais

Ana Cristina Zimmermann Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria (1995), especialização em Recreação, Lazer e Animação Sócio-Cultural pela Universidade Estadual de Londrina (1997), mestrado em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC (2001) e doutorado em Educação pela USFC (2010), com estágio no Exterior (Bolsa Capes/PDEE), University of Nottingham. Trabalha com Ensino Superior em Educação Física, com ênfase em Educação Física Escolar e dimensões socioculturais e filosóficas do movimentar-se. Atualmente é professora na Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo. Atuou na coordenação do curso de Licenciatura em Educação Física entre 2016 e 2019. Orientadora no Programa de Pós-graduação em Educação Física e Esporte EEFE/USP na area de "Estudos Socioculturais e Comportamentais da Educação Física e Esporte", no Programa de Pós-graduação em Educação FEUSP, na area de "Cultura, Filosofia e História da Educação”. Integrante do Ad Hoc Advisory Committee on the Safeguarding and Promotion of Traditional Sports and Games, UNESCO. Atualmente realizando pesquisa de Pós-doc na Université Paris-Decartes/UFR STAPS (Sciences et Techniques des Activités Physiques et Sportives)

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