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Reflexão e Ação

versão On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.2 Santa Cruz do Sul maio/ago 2022  Epub 02-Ago-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i2.17517 

Artigos do Fluxo

O papel dos anciãos na preservação e divulgação do etnoconhecimento Terena em escolas indígenas no estado de Mato Grosso do Sul

The role of the elderly in the preservation and dissemination of Terena ethnoknowledge in indigenous schools in the state of Mato Grosso do Sul

El papel de los ancianos en la preservación y difusión del etnoconocimiento Terena en las escuelas indígenas del estado de Mato Grosso do Sul

1 Universidade de Coimbra - UC - Coimbra - Portugal.

2 Universidade de Coimbra - UC - Coimbra - Portugal.

3 Universidade de Coimbra - UC - Coimbra - Portugal.

4 Universidade Federal de Pelotas - UFPEL - Pelotas - Rio Grande do Sul - Brasil.


RESUMO

Neste artigo os autores analisam o papel dos anciãos na preservação e divulgação do etnoconhecimento Terena no contexto da escola formal, instituição pública percebida como mediadora entre conhecimentos científicos constituídos no Ocidente e conhecimentos tradicionais construídos ao longo da história de um povo originário. O objetivo maior do trabalho é analisar como os professores de escolas públicas existentes em aldeias Terena, localizadas no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, utilizam os conhecimentos tradicionais na transmissão de diversos saberes para os estudantes indígenas. Os professores Terena costumam apontar o papel relevante dos sábios anciãos como transmissores de saberes tradicionais e destacam sua importância para a educação dos alunos, cabendo aos docentes compreenderem esses saberes e os aplicarem em suas práticas pedagógicas.

Palavras-chave: Educação Escolar Indígena; Etnoconhecimento; Povos Indígenas; Povo Terena

ABSTRACT

In this article, the authors analyze the elders’ role in the preservation and dissemination of Terena ethnoknowledge in the context of formal school, a public institution as a mediator between scientific knowledge constituted in the West and traditional knowledge built throughout the history of an original people. The main objective of the work is to analyze how teachers, from public schools existing in Terena villages, located in Mato Grosso do Sul state, Brazil, use traditional knowledge of diverse knowledge to indigenous students’ transmission. Terena teachers tend to point out the relevant role of the wise elders as transmitters of traditional knowledge and highlight their importance for the education of students, it being up to the teachers to understand this knowledge and apply it in their pedagogical practice.

Keywords: Indigenous School Education; Ethnoknowledge; Indigenous Peoples; Terena people

RESUMEN

En este artículo los autores analizan el papel de los ancianos en la preservación y divulgación del etnoconocimiento Terena en el contexto de la escuela formal, institución pública entendida como mediadora entre conocimientos científico constituidos en el Occidente, y conocimientos tradicionales construidos a lo largo de la historia de un pueblo originario. El objetivo más grande del trabajo es analizar cómo los profesores de escuelas públicas existentes en aldeas Terena, localizadas en el estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, utilizan los conocimientos tradicionales en la transmisión de diversos saberes para los estudiantes indígenas. Los profesores Terena acostumbran a apuntar el papel relevante de los sábios ancianos como transmisores de saberes tradicionales y destacan su importancia para la educación de los alumnos, siento que los docentes son los que tienen que comprender esos saberes y aplicarlos en sus prácticas pedagógicas.

Palabras clave: Educación Escolar Indígena; Etnoconocimiento; Pueblos indígenas; Pueblo Terena

INTRODUÇÃO

“[...] porque se eu fosse professor não-índio, eu falava só da história. Jogava o que estava escrito nos livros e pronto. Agora, a gente como professor indígena, tem que fazer. Não tem? Vai buscar conhecer a realidade. Não sabe? Vai buscar mais informações como os nossos anciões” (J2).

Neste artigo consta parte de uma pesquisa em andamento para a conclusão do curso doutorado em História das Ciências e Educação Científica na Universidade de Coimbra, Portugal. Trata-se de um ensaio escrito pelo orientando sob a supervisão e o acompanhamento dos orientadores. O texto possui um caráter exploratório, cujo objetivo é analisar o papel dos anciãos do povo Terena na preservação e divulgação do etnoconhecimento ou conhecimentos tradicionais no contexto da educação escolar indígena. Neste cenário, a escola formal pública e gratuita é percebida como espaço privilegiado para a mediação entre conhecimentos científicos, constituídos no Ocidente, e conhecimentos tradicionais, construídos ao longo da história de um povo originário do continente americano. Para este propósito, analisa-se como os professores de escolas públicas existentes em comunidades ou aldeias Terena, todas localizadas em terras tradicionalmente ocupadas no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil, utilizam os conhecimentos tradicionais na transmissão de diversos saberes para os estudantes indígenas. Busca-se compreender, por meio de entrevistas realizadas no segundo semestre de 2021 com docentes e discentes Terena, como ocorre o trânsito desses conhecimentos entre professores e estudantes.

Importa registrar que o nome dos interlocutores da pesquisa é mantido no anonimato ao longo do artigo por questões de natureza ética, sendo indicados apenas com letras e números: a primeira letra do nome em maiúsculo e um número correspondente à pessoa. Os trechos das entrevistas apresentados foram transcritos literalmente, tal qual registrado no gravador digital. Eventuais “erros” gramaticais denotam, dentre outras coisas, a existência e o uso de uma língua portuguesa que se apresenta como língua franca, porém com características próprias da região, haja vista que a maioria dos interlocutores é bilingue, o que sugere a existência de um português terena.

Estudar aspectos da educação formal e da cultura tradicional do povo Terena é tema de grande relevância científica e social, pois a figura dos anciãos é amiúde apontada como uma fonte inesgotável de conhecimentos, os quais são carregados de experiências, vivências, histórias, sentidos e ressignificados. Tais saberes vão muito além dos conhecimentos registrados em livros didáticos, quer dizer, dos conhecimentos científicos tidos como universais no Ocidente. Através dos conhecimentos dos mais velhos, transmitidos e aprendidos de uma geração para outra, principalmente por meio da tradição oral, os anciãos se tornam uma espécie de biblioteca viva, quer dizer, um vasto acervo de saberes relevantes à educação escolar indígena e à propagação de etnoconhecimentos.

Como destacado por um dos professores entrevistados: “[...] o ancião ele é único. Cada um deles são único. Uma grande biblioteca que nós temos. E hoje dá para contar nos dedos quantas biblioteca nós temos em pé aqui na comunidade” (D1). A fala apresentada evidencia, no contexto da pandemia de Covid-19, o quanto o povo Terena perdeu de idosos vitimados pelo novo coronavírus: “[...] dá para contar nos dedos quantas biblioteca nós temos”, afirmou o citado docente. Esta situação chama ainda mais à atenção para a importância de trabalhos como o aqui apresentado, que registram e valorizam aspectos da cultura tradicional terena no campo da educação formal.

Na construção identitária de uma educação escolar indígena, que parte da transmissão de conhecimentos tradicionais, o professor indígena é um sujeito importante, estratégico, prestigiado e valorizado para o povo Terena. Cabe a ele fazer a ponte ou atuar como mediador entre os conhecimentos tradicionais de seus antepassados e dos mais velhos e os conhecimentos científicos dos não-índios ou “brancos”, também chamados de purutuye ou purutuya no idioma nativo. O docente Terena tem a responsabilidade de unir esses dois mundos e explorar o que os dois têm de melhor ou mais positivo. Fazem isso com o propósito de criar um conhecimento mais amplo do que é proposto nos currículos regulares, bem como elaborar aulas interdisciplinares e multidisciplinares que contemplem os dois universos.

Para adentrar a este universo, foram realizadas entrevistas semiestruturadas (TRIVIÑOS, 1987; MANZINI, 1990/1991) com trinta e um docentes indígenas de escolas municipais e estaduais indígenas, distribuídas em seis aldeias ou comunidades estabelecidas em Mato Grosso do Sul. As entrevistas foram gravadas nas próprias aldeias, por meio de aparelho celular, e as transcrições foram feitas literalmente, sempre em respeito ao vernáculo dos interlocutores. Por meio da análise textual discursiva, as falas foram categorizadas e reagrupadas em uma análise que partiu do empírico para as reflexões teóricas, em “um movimento intenso de interpretação e produção de argumentos” (MORAES; GALIAZZI, 2016, p.118).

O conteúdo gerado em cada entrevista foi primeiramente analisado de maneira isolada e, depois, compreendido na busca das maneiras como são estabelecidos os trânsitos para o etnoconhecimento. Os diferentes relatos foram (re)agrupados de acordo com o tema abordado. Antes de se chegar às considerações finais, cada uma das três categorias identificadas é discutida nas seções do presente artigo: (i) a importância e a valorização dos anciões dentro do ambiente escolar e seu papel na educação indígena; (ii) as estratégias e preocupações dos professores em estabelecer a ponte entre a escola e os anciões; (iii) o etnoconhecimento transmitido pelos anciões na interação com os estudantes.

Espera-se que este trabalho contribua para valorizar ainda mais a educação escolar oferecida em estabelecimentos públicos de ensino fundamental e médio existentes em comunidades indígenas no Brasil. Que sirva ainda para estimular a produção de novos estudos sobre uma temática de grande relevância para os povos originários que habitam esta parte da América do Sul, bem como à humanidade em geral.

A IMPORTÂNCIA E VALORIZAÇÃO DOS ANCIÕES DENTRO DO AMBIENTE ESCOLAR E SEU PAPEL NA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Embora o termo mais comum para se referir às pessoas mais antigas ou idosas em uma comunidade indígena seja ancião, há várias outras expressões usadas para se referir a elas, as quais carregam em seu significado a importância e a valorização na educação indígena. Os estudos de Eremites de Oliveira e Pereira (2012 [2003]), Mussi (2008) e Mendonça et al. (2020) fazem referência aos anciãos do povo Terena como troncos velhos, termo que remete à ideia de base ou alicerce da sociedade indígena. Segundo Eremites de Oliveira e Pereira (2012, p.126), o “tronco velho” está representado em mais de uma figura dentro da tradição Terena: “[...] caso esse velho venha a falecer, sua esposa pode assumir a posição de pessoa de referência para o grupo de parentes e, nesse caso, o tronco passa a ser uma mulher idosa. Na falta desta, também pode ser substituído por um irmão ou filho mais velho”. Como apontado no começo deste artigo, o professor D1 chama o ancião de “biblioteca viva”, expressão que se aproxima semanticamente da palavra “ sábio” (CABALZAR, 2012), também encontrada em dicionários da língua portuguesa como sinônimo de experiente, prudente, ajuizado, culto, intelectual, mestre e pensador, alguém que merece o respeito de todos dentro da comunidade.

Simas (2010, p.6) afirma que os anciãos indígenas têm a missão de preparar as crianças para o ciclo da sua vida em sociedade, ou seja, eles têm que explicar e narrar aos seus sucessores os conhecimentos sobre a vida em comunidade, a fim de que sua cultura continue a existir. Seguindo a tradição oral, os anciãos transferem suas histórias e conhecimentos por meio de conversas, exemplos e contação de histórias. Com o avanço das tecnologias digitais e sua chegada às comunidades indígenas, cada vez está mais comum o seu uso para registro de conhecimentos tradicionais. Por isso, gravações por vídeo ou áudio têm sido recorrentes dentro das aldeias terena, como verificado nas redes sociais: YouTube, Facebook, Instagram, Twitter, WhatsApp, TikTok etc. Nas falas dos professores interlocutores, tem-se uma amostra do que era e do que é atualmente o registro desses saberes. O professor R1 relata que:

Muitas histórias da comunidade. Assim, eu digo, que perdeu. Porque, muitas, que nem a gente não tinha preocupação de fazer esse registro. Porque também, a gente, alguns anos atrás, a gente não tinha, é acesso, esse meio de poder fazer uma gravação. Para poder fazer uma filmagem. Então ficar muito na fala (R1).

A questão também é percebida no relato do professor D1, que trata das técnicas empregadas por seus alunos no registro dos relatos dos anciãos:

Se vocês não quer escrever! Hoje tem celular, liga lá o áudio, o gravador, prac você guardar depois daquilo. Esse é um documento muito importante que você não vai ouvir de outra pessoa. Mas o ancião ele é único, cada ancião ele é único, é uma biblioteca única (D1).

A maior parte da transmissão de conhecimentos ocorre em conversas comuns do dia a dia. É na roda do mate ou de tereré, bebida que pode ser quente (mate ou chimarrão) ou fria (tereré), feita a base de erva-mate e água, ou ainda nas conversas cotidianas à mesa ou à sombra de uma árvore, por exemplo, que ocorre a maior parte das transmissões de conhecimento tradicional. Por este motivo, para fazer o registro de parte dos conhecimentos que é transmitida cotidianamente, o entrevistador e ouvinte deve estar atento em capturar todos os detalhes das conversas diárias. A seguir são apresentados dois exemplos.

Primeiro:

É, eu convivi muito com ele! Porque as histórias contada ali, de toda manhã. O Terena, ele... ele toma o seu mate, né! E ali passava mandioca, a batata em volta da fogueira e transmitia esses conhecimentos, né, da cultura terena. Hoje é diferente, hoje eu não, assim! Não tem mais aquele ambiente que tinha antigamente. Que você chegar ali, e levantar ali e conviver. Que era da cultura bem antiga, da cultura terena. Hoje em dia, é os familiares Terena, já estão mais distante porque precisa trabalhar. Então não tem aquele momento, aquele encontro. [...] É, Hoje nós temos aí, essa dificuldade, porque já não tenho muitos anciões, né, que pode falar (J2).

Segundo:

Sim, bastante, porque sou daquela, daquele indígena que teve a oportunidade de ter crescido ao lado dos pais, né! Trabalhando na roça, tirando madeira. Todo o conhecimento que passou para a gente, os filhos. [...] E na roça sempre fala para nós, sempre orientava nós. Qual era o período certo pra plantar. Quando a lua estiver nessa posição, pode plantar. Pode aparecer caruncho [inseto coleóptero que perfura a madeira], por exemplo. Você não pode fazer a colheita também, o milho durante a lua nova. Você não pode fazer a colheita, porque você não tem, ele não vai ficar, você não vai poder guardar né. Pode pegar caruncho (J4).

Nota-se que da relação dos mais jovens com os mais velhos nasce a preocupação dos professores interlocutores com a preservação do conhecimento represado nos anciões. Eles temem que as novas tecnologias e do acesso às redes sociais reduzam os contatos dos mais jovens com os anciões e, com isso, se perca muito da própria cultura. Uma estratégia utilizada pelo professor E3 para estreitar os caminhos entre os seus alunos e os anciões é através da pesquisa junto às pessoas idosas:

Porque, hoje devido à tecnologia. Os alunos talvez saiam um pouco do foco de conversar com os mais velhos, tipo com o avô, um tio. Entendeu? Então, eu tento aproximar eles né. Por isso eu peço a pesquisa, pra aproximar eles das pessoas mais idosas (E3).

Para o professor E5, levar anciões para a escola nunca foi uma preocupação, pois na relação ensino/aprendizagem, a transmissão do conhecimento não era atribuída às instituições escolares, visto que o processo de ensinar e aprender é inerente à vida em sociedade, como verificado nas comunidades Terena. O citado docente cresceu e aprendeu ao lado de anciões. Em suas palavras:

Olha, naquele tempo não, não levavam na sala de aula, porque como a escola estava iniciando, nós tínhamos apenas uma sala. Ela era junta né, as séries. E aí, não era necessário, porque a gente convivia com eles, né, com os anciões. Não era necessário eles voltarem até a escola, porque a gente saiu ali, já tava convivendo como o ancião, né. Era muito próximo, né. Essa familiarização nossa (E5).

Chagas-Ferreira (2021) assevera que o distanciamento entre as gerações demonstra risco de extinção de práticas e de aspectos relevantes da identidade dessas comunidades, mas esta não é, nem de longe, um problema estrutural verificado nas aldeias Terena em Mato Grosso do Sul. A morte de um ancião, porém, representa o desaparecimento de um acervo cultural de inestimável valor e isso é sentido pelas comunidades. Para o professor W1, ainda é muito forte a ligação da juventude com os mais velhos:

Porque ainda é muito forte a ligação da juventude com os mais velhos. Aqui ainda os anciãos, os mais velhos, eu falo ainda, porque em outros locais não é, a mesma realidade. Tem uma referencia muito forte, então, não precisa ser pai de um pra orientar ou para chamar atenção de algo que está errado. E isso é muito bem aceito, né! Então, quando os anciãos vêm à escola, os alunos se sentem protegidos e seguros em relação, que alguém, né, como o ancião está cuidando também deles, enquanto em idade escolar (W1).

Para o professor E4, por sua vez, o contato dos mais jovens está mudando. Ele relata que o conhecimento está nas mãos dos anciões:

[...] a gente que tem, as pessoas da nossa faixa etária, que tem interesse. Já tem esse conhecimento, mas o pós-eu, depois de mim, da minha, depois da minha geração, já não tem mais isso. Porque o que aconteceu, cresceu-se a comunidade, teve evolução. Veio a questão tecnológica, né. E que prende muito nossos olhos, né. Eles não têm aquele hábito de poder ir lá questionar os nossos anciões, pra poder saber desse conhecimento. Porque a gente só vai adquirir o conhecimento, quando a gente sentar com eles, né! Eles explicar para você a realidade dele! (E4) [destaques nossos].

Na mesma direção da fala do professor E4, o docente V1 explica sobre a importância do conhecimento represado pelos sábios da comunidade:

A escola no qual eu leciono, ela é muito aberta para a história do cotidiano dos nossos anciões, que são as referências pra nós! Então, a fonte do saber indígena está com os anciões! A gente não faz ciência indígena, sem consultar o ancião. É ele que tem a sabedoria. Se eu sou mestrando, no dia que eu pegar o meu certificado de pós-graduado, de mestre, de doutor, eu serei doutor porque tem um doutor sábio meu, o ancião, que me ensinou. Além das referencias teóricas, mas tudo bem. Vamos deixar a referencia teórica de ocidental e vamos procurar um conhecimento indígena, vai de igual para igual. Na minha concepção, enquanto indígena, é muito melhor que qualquer referencia ocidental. Não desconsiderando, mas você tem que passar por esse campo científico e ter ela como referência. Mas o meu povo tem o conhecimento também (V1) [destaques nossos].

Verifica-se a existência de uma posição unanime entre os entrevistados a respeito da importância dos anciãos nas comunidades, sobretudo quanto ao papel desempenhado por eles como guardiões de saberes, costumes, tradições e da própria história do povo Terena. No âmbito escolar, os conhecimentos tradicionais são percebidos como tão relevantes, e até mesmo mais importantes, em relação aos conhecimentos científicos constituídos no Ocidente. Por este motivo, o ideal é que os saberes tradicionais e os saberes tidos como científicos assumam posição de simetria nas escolas existentes em aldeias terena.

As pessoas idosas têm a responsabilidade de transmitir aos mais jovens o seu conhecimento, servindo-lhes, além disso, de modelo em termos de conduta social. Nesse sentido, cabe aos professores a aproximação entre os educandos e os anciões, promovendo o diálogo e a ligação entre os conhecimentos tradicionais e conhecimentos de alhures.

AS ESTRATÉGIAS E PREOCUPAÇÕES DOS PROFESSORES EM ESTABELECER A PONTE ENTRE A ESCOLA E OS ANCIÕES

Dentro do estabelecimento escolar, os docentes possuem a liberdade para planejar suas aulas e definir parte dos projetos que elaboram para a promoção dos conhecimentos tradicionais. Suas preocupações concentram-se em propagar o conhecimento científico lato sensu, isto é, indígena e não-indígena, pois há a expectativa da comunidade para que as crianças prosperem por meio da educação formal e, se possível, retornem às comunidades com novas perspectivas para a melhoria da vida em sociedade. Exemplo: quando pessoas Terena concluem os cursos de graduação em Agronomia, Direito, Geografia, História, Letras e Pedagogia, por exemplo, dentre outras formações acadêmicas, espera-se que retornem às comunidades para que possam retribuir ao apoio que receberam para chegarem aonde chegaram. Este princípio da reciprocidade é muito forte nas comunidades indígenas em geral e estão norteadas pela filosofia do chamado bem-viver. Dito de outra maneira, faz-se necessário formar cidadãos que atuem, ao mesmo tempo, em dois universos: o local ou comunitário (indígena ou tradicional) e o global ou da sociedade nacional (não-indígena ou “modernidade”). Neste cenário, a escola formal assume papel preponderante e por isso o corpo docente que nela atua deve ser constituído por professores indígenas.

Segundo informa o interlocutor J2, torna-se necessário valorizar a cultura terena e trazer para dentro da sala de aula o conhecimento científico: “[...]o estudante Terena tem aquele caminho; dois universos distintos. Então, ele tem que dominar o conhecimento tradicional e os conhecimentos universal”. Manter conhecimentos tradicionais, em meio às demandas de uma cultura invasora que chega através das telas dos celulares e das TVs, apresenta-se como uma forma de resistência e, também, de atualização em relação ao mundo exterior. As palavras do professor J2 trazem esta ideia de atualização: “Eu sempre falo: a gente não vamos voltar ao passado, não tem jeito! Mas nenhuma cultura floresce fora de seu tempo!” [destaques nossos]. Esta última afirmação remete às afirmações de Luciano (2006, p.40): “[...] o qual pondera que fazer parte da modernidade não significa abdicar de sua origem nem de suas tradições”.

A preocupação em não perder a tradição também aparece nas falas dos professores interlocutores, que buscam sistematicamente pelos conhecimentos tradicionais e acadêmicos: “[...] posso ser um mestrando sem deixar a minha cultura, a minha raiz Terena de lado” (A1). Nesta mesma direção, o professor J1 relata o que ouviu de um experiente ancião: “Terena, eu não tenho universidade, eu não tenho uma academia, mas eu tenho a academia da experiência, da construção do povo Terena. Nisso eu sou um mestre da educação”.

Uma preocupação comum entre os professores está em como conduzir os anciões até as salas de aula das escolas indígenas. Ocorre que entre os interlocutores há docentes que escolhem levá-los até a sala de aula para integrá-los ao ambiente escolar. Fazem isso com a intenção de valorizar seu papel na aldeia e para a comunidade escolar. No entanto, existe entre os professores um número equivalente que prefere conduzir os alunos até a residência dos anciãos. Isto é feito para que os idosos se sintam mais à vontade no ambiente onde residem, além de mostrar aos alunos que o conhecimento que eles trazem consigo foram construídos fora da escola formal. São atividades intra e extramuros dos estabelecimentos de ensino e ambas as práticas têm apresentado resultados bastante positivos, visto que o propósito maior é valorizar a dimensão e a importância dos anciãos como sábios na cultura indígena. Tais estratégias são importantes à mediação dos conhecimentos dos anciãos, pois a escola é algo estranho à sua vivência, uma imposição da estrutura educativa escolar dentro da aldeia, conforme observado por Farias:

Através de muitas observações, percebi que essas aulas são muito proveitosas, e também que os Anciãos se sentem mais confortáveis fora da escola. Quando mencionam esse trabalho, percebo que há certa preocupação deles de estar dentro da escola, de como devem se comportar, pois, para eles, é um espaço que não oferece nenhum conforto, não é um espaço a que se sentem pertencentes. A escola tem muros, paredes, é um local fechado para os Anciões e, segundo eles, é um espírito maligno que machuca (FARIAS, 2015, p.43).

Nesta linha de raciocínio, o professor A2 procurou trabalhar uma maneira de não levar os anciãos para dentro da sala de aula e assim justifica: “[...] porque eu penso que ele fica mais tranquilo, mais livre, lá casa dele do que ele ir para escola”. Em certos casos, a depender de cada pessoa, levar os anciãos para escola muda completamente a maneira como eles podem ensinar aos alunos: “Que a gente sabe que a escola é algo que veio de fora para dentro, que não é do nosso contexto”. O docente A2 completa sua preocupação com esta prática ao afirmar o seguinte: “[...] levar o ancião para escola é algo assim, que ele não vai é ensinar ou falar da maneira que deve ser ensinado para esses alunos, como ele tá ensinando na casa dele”. O professor E1 observou que todo o conhecimento que os anciãos tinham era um pouco bloqueado dentro da sala de aula: “Mas a gente observou e depois fez uma análise. É pelo espaço, tá! Ele não se sente bem ali, naquele espaço, que não pertence a ele, não é dele. É diferente, né!”. Acrescenta em sua análise: “É mesma coisa que eu estava fazendo uma entrevista dessa, diante de uma câmera. Nossa, eu ia me sentir muito desconfortável”.

Corroborando com a preocupação na condução e tratamento respeitoso dispensado aos anciãos, os professores mudam a estratégia para obter a colaboração dos idosos. Na sequência constam relatos e estratégias dos professores para obter a colaboração dos anciões em suas aulas.

Primeiro:

E aí a gente leva a escola, leva assim por turma, né! A gente se organiza, faz o planejamento, assim: dá aula diferenciada, a aula fora das quatro paredes. E a gente leva os nossos alunos. Mais antes disso, a gente já vai na casa do ancião antes. Assim, só o professor e o ancião, conversa com ele. Já fala, né: “Vou vir com a turma aqui. Eles são tantos os alunos, eles vão querer saber sobre isso, tem como a senhora conversar?” (D1).

Segundo:

Aí, eu Preparo eles primeiro; vai vir fulano aqui, ele vai contar sobre o nosso Buritizinho, que era esse pequeno rio, corregozinho; tá secando, ele vai contar a história dele, de onde ele começa, como que era em volta. Então, ele vai vir hoje, eu quero que vocês presta atenção. Que ele não gosta também de falar e criança ficar conversando, não querer subir na cadeira, da mesa, e eles não gostam. Então, a gente tem que respeitar. Então, preparou eles também, né! (E2).

Na interação com os anciões, há uma preocupação dos professores com a saúde e longevidade de suas “bibliotecas vivas”. Esta preocupação aumentou a partir da pandemia de Covid-19, iniciada no primeiro semestre de 2020, uma vez que muitos idosos faleceram. Para Cabalzar (2012, p.128), a interação entre os anciões e os professores é uma política nova, “[...] pois a escola de modelo ocidental não contava com esses sábios. Quando os velhos morrem, tudo fica mais difícil para os projetos de aprendizagem de saberes étnicos”. Esta preocupação está muito presente no relato dos professores interlocutores. Primeiro relato: “E aí a gente instiga, a eles, os alunos, procurarem. Porque daqui um dia, eles não vão, tá. Quem vai contar a história pra nós?! São eles, né! [...] Aqui temos, temos bem pouco já” (L1). Segundo relato: “E quando eles já tão na idade mais debilitada, quando tão com algum problema de saúde, a gente monta um projeto, que possa, que a sala possa ir até lá. E a sala participa, pergunta, grava, filma e depois eles apresentam pra escola” (M3).

Entre os docentes interlocutores, há o consenso de que os conhecimentos dos anciãos não estão presentes nos livros didáticos oficiais ou na Internet ou que passaria nos programas de TV. Por este motivo, os anciãos têm grande valor no ensinamentos de saberes relativos à cultura, à ciência tradicional e à histórica do povo Terena e da comunidade onde vivem. Através desses conhecimentos os mais jovens podem compreender o que é ser e estar Terena no mundo contemporâneo e dar continuidade a uma história de lutas por uma vida melhor no contexto da sociedade nacional do Brasil. Além disso, o povo Terena tem orgulho de ter o mais alto índice de escolaridade entre os povos indígenas no país, com centenas de parentes ou patrícios licenciados, bacharéis, especialistas, mestres, doutores e pós-doutores em diversos campos do conhecimento. Este orgulho está na capacidade do Terena de se reinventar, de ouvir os mais velhos e de conhecer o mundo dos “brancos”, sem, contudo, deixar de ser o que realmente é: um povo originário aberto à exterioridade e com grande capacidade de compreensão e articulação políticas intra e extracomunidades.

Desta maneira, está na preocupação dos mais velhos transmitir os conhecimentos que não estão enfileirados nas estantes da biblioteca de um estabelecimento escolar. Esta preocupação consta presente nos diversos relatos dos professores interlocutores, como, por exemplo, na fala do docente E3: “Eu peço que os alunos procurem os anciãos. Ou seja, pesquise com os anciãos! Por quê? Tipo assim: escrita, não tem nada registrado, né; não tem registrado. Lá na biblioteca se procurar não encontra” [destaques nossos]. Assim consta demostrado na fala do professor M3, que explica que a língua terena não é de fácil acesso: “Mas eu não achei no Google essa resposta! Em inglês você acha; em terena, não! No [idioma] terena as atividades que vão para casa, a maioria são de conversa com os avós, com os tios”. Sua assertiva é complementada pela fala do professor J1:

Os professores num todo, eu vou dizer, todos os professores, eles têm essa preocupação de trazer, como já disse, os anciãos para dentro de sala de aula. Os anciãos Terena num canto, numa reza, uma dança. Você não encontra em nenhuma cartilha ditada pelo MEC, nela ou do próprio município. (J1)

Os etnoconhecimentos trabalhados por professores, ao menos nos que contam com a maior contribuição dos anciões, são evidentes nas histórias da própria comunidade, incluindo a passagem do tempo na aldeia. As paisagens locais, marcadas por maneiras próprias de preservação do meio ambiente, são a melhor aliada para uma educação científica integrada ao etnoconhecimento. São o laboratório perfeito para a educação escolar e toda a comunidade faz parte de algo maior, o fortalecimento da cultura e da ciência terena.

Dos conhecimentos tradicionais mencionados pelos informantes, estão os referentes ao meio ambiente, à história da comunidade e à história de vida dos anciãos. Por isso, a ciência está em torno das escolas, nas matas e nas paisagens que as circundam. Está presente em tudo daquele microcosmo e por esta razão, cabe aos professores observar, captar e reinventar suas práticas pedagógicas, assim o fazendo para que o conhecimento tradicional seja orgânico aos estudantes, fluindo de maneira dinâmica no interior das comunidades.

O ETNOCONHECIMENTO TRANSMITIDO PELOS ANCIÕES NA INTERAÇÃO COM OS ESTUDANTES

O etnoconhecimento Terena, propagado por seus anciãos nas escolas das aldeias, fortalece sobremaneira a educação escolar indígena, pois complementa os conteúdos oficiais trabalhados em sala de aula. Os conhecimentos trazidos pelos sábios idosos são apresentados de forma concatenada com a história de vida de cada pessoa, que faz parte de uma história, a da aldeia e da região onde vivem, incluindo forma de manejo dos recursos ambientais, como ervas medicinais, plantas alimentícias e outras práticas. Nos relatos dos interlocutores, observa-se que os anciãos entregam aos educandos uma visão do passado no presente, e fazem isso em busca de um futuro diferente e melhor para as comunidades. Os professores se preocupam com o rio ou com um córrego que está secando e com a pesca que está acabando, enfim, com as transformações na aldeia e na terra tradicionalmente ocupada, as quais causam impactos negativos às pessoas. Ao fazerem isso, também buscam soluções práticas para a resolução de problemas enfrentados na comunidade, como o reflorestamento das margens do cursos d’água e o plantio de espécies de valor medicinal, religioso e alimentício.

Sobre assuntos desta natureza, Mendonça et al. (2020, p.108) esclarecem que pela oralidade os sábios anciãos se apresentam como defensores da identidade étnica, da conduta ideal e da espiritualidade indígena. São eles que a cada dia promovem um modelo de educação perene que se traduz no respeito de uns com os outros, nos ideais de família e na valorização da vida comunitária e do meio ambiente.

As relações das escolas com o território tradicionalmente ocupado estão nas falas dos interlocutores R1 e W1. O professor R1 relata que “[...] a gente levava muitos ancião lá na escola para contar a história de como foi o início da comunidade, como que se deu o início de onde que eles vieram”. Já o docente D4, por sua vez, explica que “[...] já levei os anciões para eles falarem, né. Para eles falarem como é que eles viviam quando eles eram crianças. Já foi dois ancião na escola para dar essa palestra para nossos alunos”. O professor W1, por último, esclarece que, além da história da comunidade, os anciãos falam sobre a recuperação do território, da luta pela terra ancestral e das datas que são importantes para a aldeia:

Trazendo eles, pra eles fazerem seus relatos, né! Contando como foi, por exemplo, a sua luta pela recuperação dos territórios, datas marcantes em relação aos acontecimento aqui interno da aldeia. Trazendo eles para relatarem em datas importantes, que a escola comemoram e participam. Eles estão inseridos. O desfile, por exemplo, no aniversario da cidade, a escola tem que desfilar. A gente sempre tem a participação das feirantes, dos anciãos, dos caciques, para tá ali como um símbolo, como identidade da comunidade escolar (W1).

O professor A2 fala que na sua monografia de conclusão do curso de graduação foi estudar a cartografia de sua região, e que este trabalho foi concluído com o apoio dos anciões de sua aldeia, os quais muito lhe ensinaram. “Foi à visão cartográfica da Terra Indígena Buriti. E eu procurei o contexto como que era em épocas passadas e nos dias atuais. Pra ver um pouco, tá fazendo essa pesquisa com os anciões”. O mencionado docente faz um trabalho muito importante e prestigiado na sua escola de sua aldeia sobre o espaço geográfico regional. Ele planta várias espécies e promove o reflorestamento das matas ciliares dos córregos locais, além de acompanhar seus alunos em excursões pela região. Além disso, produz mudas de plantas e ensina como e quando plantar, manufatura tintas naturais e explica a seus alunos qual é a época correta para se colher os frutos da região. Em seu relato, fala com muita propriedade sobre sua prática acadêmica e pedagógica acerca do espaço geográfico e do meio ambiente locais:

Falar por exemplo, é... o espaço geográfico no Brasil. Aí, eu procuro trabalhar o espaço geográfico da Terra Indígena Buriti. Aí eu trabalho de uma maneira tirando os alunos da... daquele enquadramento, né, que é o da sala e levo, levo ele nesses espaços, nesses espaços que é vivenciado por nós mesmo. Por mais que eles tenham vivencia no dia a dia, de todo esse espaço, mas eu pego nesse momento que é da aula trazendo ele. Mas como eu vou levar esses alunos pra onde, com quem? E aí eu procuro. Levo pra conversar com o ancião, ou anciã da comunidade pra ouvir. Todo esse momento que os nossos anciões viveram, como era, vai passando e as mudanças que tiveram nos dias atuais. E aí levo eles também neste espaço relacionado à questão do meio ambiente, né! Pra vê como tá hoje relacionado, relacionado ao meio ambiente. E aí, pra ter uma ideia de como que vai estar futuramente, depois sair do ensino fundamental, tanto do ensino médio nesse espaço que eles foram ver acompanhar tudo (A2).

O meio ambiente ao redor das aldeias é preocupação dos professores. Esta inquietude é estendida às suas aulas. No exemplo do professor M2, que informa sobre o solo local: “[...] o solo tá difícil pra poder produzir; falta de água. Você pode ver que tá seco! Muiiito seco! E aí, eles vão vir, pra falar sobre a importância de não queimar; a gente vem conversar isso com eles, para eles poder dar essas palestrinhas para as crianças”. A questão também está presente na fala do docente V1, que se preocupa em realizar projetos de recuperação ambiental, valendo-se do conhecimento dos anciãos:

Inclusive agora, a gente vai voltar a fazer um projeto de recuperação ambiental do nosso único córrego, aqui. E o nosso trabalho vai ser baseado em aulas com pessoas mais velhas, com nossos anciãos, que conviveram na época do córrego tinha mais água e podia pescar, que podia caçar. Hoje não se faz isso, não tem mais peixe. Então são aulas e história sobre Limão Verde. Sobre, enfim, sobre o dia a dia, do conhecimento desse povo. Então, a comunidade, a escola no qual eu leciono, ela é muito aberta para história do cotidiano dos nossos anciões, que são as referências pra nós? Então, a fonte do saber indígena está com os anciões (V1).

Constata-se, pois, que há uma estratégia comum entre os professores interlocutores: reconhecer os anciãos como os grandes mestres da comunidade e recorrer a eles para falar sobre o meio ambiente por meio do relato oral das expertises que possuem a respeito da natureza. Acrescenta-se a isso a maneira como o professor B1 usa o projeto sobre meio ambiente para ajudar alunos na compreensão do próprio idioma terena: “[...] eu procuro traduzir as palavras que eu vou trabalhar com os alunos em terena. Tipo assim: do lixo, a lata de lixo tem. Cada lixo tem: é de plástico, de papel, de alumínio. Como que fala em terena esse alumínio? Como que é cor? Aí já entra língua materna, aí no meio”. Neste caso, ecologia e língua nativa andam de mãos dadas. Já o professor J1, questiona os anciões sobre “[...] qual é a tática de você consegue uma caça? Quais são as maneiras de se lidar dentro das matas e de como confeccionar os artefatos indígenas, né? Então, tem uma série de... a espiritualização também, que se traga também, para dentro de sala de aula também”. Nesta outra explicação, ecologia e religião tradicional estão juntas. Sobre o assunto, Farias (2015) relata da utilização de ervas medicinais entre os Terena durante as pajelanças:

Outra questão importante na cultura dos povos da etnia Terena é a medicina tradicional, bastante usada e praticada via pajelança e pelo uso cotidiano de ervas medicinais pela comunidade local, principalmente por mulheres avós e mães. As indicações de como e quais ervas utilizar são orientadas através dos xamãs e Anciãos (FARIAS, 2015, p.32-33).

Ainda a respeito do tema, o docente E3 relata que pede aos alunos que procurem os anciãos da comunidade para buscar conhecimento relativo às ervas medicinais: “[...] as ervas medicinais, né, que são conhecimentos que são adquiridos, né, pelos nossos ancestrais”. O professor E4 informa que os conhecimentos das ervas medicinais não estão escritos em lugar algum e que, ademais, são apenas realizados na prática: “Mas nós fizemos o prático, né. Como elaborar ela, o remédio, por exemplo, né. Mas nós escrevemos, por exemplo, a do didal, pra que que serve! Só que nós não ensinamos o processo de fazer ela, passo-a-passo”. Nesta direção, Farias (2015) também explica que dependendo do tipo de aula, principalmente quando envolve extração de material da natureza, torna-se necessário se deslocar até as margens do córrego:

As aulas acontecem da seguinte maneira: muitas vezes os Anciãos vão até a escola, outras vezes os alunos vão para o campo de pesquisa; por exemplo, nas aulas de artes é necessário que sejam realizadas em locais fora da escola, pois esta não possui todos os recursos necessários para a confecção de artesanato. Para a confecção do abanico, por exemplo, é necessário ir buscar a folha de palmeira do pindó, nas margens dos córregos (FARIAS, 2015, p.42-43).

O professor F1 fala como na prática ocorre a interação dos anciãos com seus alunos:

Porque lá na aldeia o mato é presente. E levo esses alunos lá no mato. Olha esse aqui é uma vassourinha; a vassourinha a gente usa para fazer remédio pra gripe; tem mulher que usa também para fazer aborto. Então são coisas que a gente não sabia. Aí, isso aqui é a folha da acerola; acerola é bom para a gripe também, fazer o chá da acerola. Folha de goiaba é bom para dor de barriga. Até você comer o brotinho dela já vai melhorar sua barriga. Então, são coisas importantes, gratificante. E muitas das vezes, eu vejo que é fácil fazer; só que às vezes a gente não consegue ter uma abertura pra se fazer. Entendeu? Inclusive ali no sétimo ano, até falei certa vez de um projeto sobre feira de ciências. Que aqui a gente teve um tempo, né, mas tem que ter sempre alguém pra puxar. E é muito importante essa troca de experiência, quando o ancião vem para a escola. quando ele vem trazer o conhecimento da vivência dele, não que ele é “estudado”, mas a experiência de vida que ele tem; nós passamos na academia, nós não vamos ter (F1).

O conhecimento das ervas medicinais foi um importante aliado dos Terena no combate à pandemia do Covid-19 dentro das aldeias, como demonstrado no relato do professor D4:

O conhecimento, né! Bem recente que eu vou colocar, eu vou agora... foi relacionado à pandemia, né, do Covid-19. Então, os nossos anciões, eles tinham remédio que é o fedegoso, o calunga. E quando a ciência chegava falando que não podia, né. Então, como que a gente, no que que a gente ia trabalhar, né. Se a ciência dizia que não podia tomar nada, mas a gente ficou seguro, né, pela... porque os nossos anciões já tinham, já usavam o medicamento, e as raízes tradicionais. E foi um sucesso, né. Inclusive agora, quando, porque as crianças começou a entender agora as raízes, né. Nessas pesquisas, né. (D4)

Durante o cenário da pandemia de Covid-19 que assolou muitas aldeias Terena em Mato Grosso do Sul, assim escreve em um jornal da região no dia 19 de Abril de 2021, quando se comemora o Dia dos Povos Indígenas ou o Dia da Resistência Indígena no Brasil, o Terena professor e historiador Eder Alcantara Oliveira:

Nós, indígenas, podemos usar tecnologias desenvolvidas pelos não-índios tanto quanto os não-índios também se valem de tecnologias desenvolvidas por nós e por nossos antepassados. Se usando certas tecnologias não-índias seguimos sendo indígenas, os nãoíndios por certo não se tornarão indígenas usando as nossas tecnologias: redes, canoas, arcos e flechas, culinária, ciências nativas aplicadas à agricultura etc. Fomos nós, povos indígenas, que legamos à humanidade as matas e as florestas, os rios, as lagoas e os córregos preservados e muitos alimentos presentes na mesa de milhões de pessoas: desde variedades de milho, batatas, mandioca, abóbora e feijão, passando por frutas das mais diversas (pequi, guavira, tamarindo, maracujá, bocaiúva etc.), até o cuscuz, beiju e tapioca popularizados no país. Soma-se a isso o legado das plantas medicinais que curam doenças das mais diversas, como é o caso da raiz do fedegoso, do cerne do maleitoso e das sementes de sucupira usados regionalmente no combate à covid, dentre tantas outras, inclusive algumas que foram pirateadas e transformadas em medicamentos produzidos por laboratórios multinacionais e vendidos em farmácias mundo afora (OLIVEIRA, 2021) [destaques nossos].

Neste caso em particular, fica explícito que os Terena têm clareza de sua contribuição à humanidade e que não se negam a compartilhar saberes tradicionais com os não-índios da sociedade nacional envolvente, ajudando-os em momentos de dificuldade.

Além do conhecimento dos anciãos acerca do meio ambiente e da natureza, outros pontos são importantes no etnoconhecimento proveniente desta interação na escola: arte, culinária e cosmologia, dentre outros temas transversais. Primeiro exemplo: “A gente leva até a casa da pessoa que faz a cerâmica, né! Marca hora com a gente e a gente vai no horário da aula. E é aonde ela faz a palestra. E aonde os alunos vão anotando e vai escrevendo, uma aula diferenciada assim” (M1). Segundo exemplo: “De chamar os ancião mesmo pra contar as plantações na fases da lua. Que eles na hora de tirar a taquara para fazer a pá, fazer o balaio [cesto grande para transportar ou para guardar objetos], né. Que se tem um tempo, senão caruncha, os bichinhos aparece. Começa dar aqueles pozinhos” (F1).

O relato do professor J3 demonstra que o conhecimento pode ir para além dos bancos escolares e que a ciência está no conhecimento intrínseco dos mais velhos. Ele destaca a importância de se fazer uma ponte entre os conhecimentos tradicionais do povo Terena e os conhecimentos científicos do Ocidente, haja vista que os dois podem coexistir dentro da educação escola indígena:

Por exemplo, porque no antigo, no antigamente, meu avô que é o patrono dessa escola Armando Gabriel... É, só ele que ia fazer o cálculo; ele não falava de área, calcular área, por exemplo, de uma determinada lavoura, ele fala. Não sei se sua cultura é isso daqui? Mas eles falava a palavra “cubicá”! Já ouviu falar? “Cubicá”! Esse daí, por exemplo, eu tenho uma terra ali. Aí, ele chegava no meu avô Armando Gabriel e falava, eles falava: “Tio Armando - eles falava assim - eu quero que tu faz para mim é “cubicá” essa área. Então, não usava o cálculo da área como nós, matemática, hoje sabemos, né. Então, essa relação a gente traz pros nossos alunos. Por exemplo, uma palavra que era usada no passado como essa palavra “ cubicá”, né. Eu não sei daonde que saiu essa palavra, não sei também... a gente pode pesquisar mais fundo com os nosso, nossos ancestrais. Mas essa palavra aí a gente já sabia que era cálculo de área. Interessante que ele tinha um jeito de fazer esse cálculo de área. Mas eu, depois eu fui entendendo com ele, que é esse “cubicá” a área. Era fazer o cálculo das áreas. E a gente sempre aplica com isso na sala de aula, né! Os antigos faziam desse, esse tipo de cálculo. Tinha essa noção e a gente vai fazer esse tipo de cálculo. (J3)

Neste trecho da entrevista, nota-se que os professores chamam à atenção para a importância de se ter uma formação acadêmica para traduzir em uma linguagem científica os conhecimentos tradicionais, e vice-versa. Os docentes indígenas, portanto, conseguem traduzir conhecimentos tradicionais no âmbito de suas competências para os bancos escolares. Esta situação também é verificada em comunidades de outros povos indígenas. Cohn (2005, p.499), por exemplo, relata que para o povo Xikrin, aprender significa também vir um dia a ensinar a alguém: “ Eles enfatizam muito essa ligação, de aprender para um dia passar adiante, ensinar aos mais jovens”. Significa dizer que o aprender diz respeito a ter a chance de poder ensinar mais adiante, pois a educação indígena tradicional, praticada no interior das comunidades, e a educação escolar indígena, praticada no interior da escola formal, estão intimamente associadas no caso do povo Terena e de outros tantos povos indígenas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os recursos tecnológicos para a captação e o registro de áudio e vídeo, cada vez mais utilizados da vida globalizada, têm sido cada vez mais recorridos entre os professores indígenas na preparação de material didático, das aulas e para obtenção de conhecimentos dos mais velhos. Registrar e repassar o etnoconhecimento significa preservar e valorizar, para as próximas gerações, a cultura, a arte e a ciência dos povos indígenas.

Neste contexto, os anciãos ou troncos velhos são atores sociais importantíssimos e prestigiados nas comunidades Terena. Os conhecimentos que são repassados às gerações mais jovens fortalecem a solidariedade geracional e contribuem decisivamente para o sucesso da educação tradicional e da educação escolar indígena. Aos professores cabe o papel de mediadores e tradutores dos conteúdos transmitidos pelos mais velhos aos mais jovens. Fazem isso de maneira a concretar e fortalecer a ponte entre o conhecimento tradicional e o conhecimento científico ocidental, (re)elaborando e (re)pensando práticas pedagógicas que vislumbrem os dois universos.

Um dos desafios na formação profissional do professor, seja ele indígena, seja não-índio, está justamente na correlação entre as duas formas de conhecimento, o que requer tempo disponível para ler, ouvir e aprender constantemente, assim o fazendo de modo a interagir com saberes tradicionais e conhecimentos tidos como científicos e apreendidos na academia stricto sensu. O docente que propor e ministrar uma aula inter, multi ou transdisciplinar dever ler muito e pesquisar exaustivamente, como revelou a fala de um docente, colocada na epígrafe deste artigo. Esta prática exige superar as fronteiras de conhecimento disciplinar, constituídas no Ocidente, sobremaneira na Europa e a partir dos séculos XVIII e XX. Para o professor indígena, o conhecimento tradicional não está necessariamente registrado em livros didáticos ou nas plataformas de busca na Internet. Está vivo na memória dos anciãos da comunidades, naqueles que detêm os conhecimentos tradicionais ainda que não tenham estudado em faculdades e universidades.

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Recebido: 04 de Abril de 2022; Aceito: 05 de Abril de 2022

Paulo Roberto Vilarim Professor de Física do Instituto Federal (IFMS). Bacharel em física pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), Licenciado em física pela Universidade Tecnológica Federal (UTFPR), Mestre em Física da Matéria condensada pela UEM e Doutorando em História da Ciência e Educação Científica pela Universidade de Coimbra (UC).

Décio Ruivo Martins Tem Doutoramento em História e Ensino da Física pela Universidade de Coimbra. Tem diversos trabalhos publicados sobre História da Ciência e Etnociência. Pertenceu à Comissão científica do Museu da Ciência da Universidade de Coimbra. É coordenador do Curso de Doutoramento em História das Ciências e Educação Científica da Universidade de Coimbra

Sérgio Paulo Jorge Rodrigues Sérgio Paulo Jorge Rodrigues é doutorado em química e professor da Universidade de Coimbra. A sua área de investigação é a química teórica e computacional e as suas aplicações em química ambiental, astroquímica e química medicinal. Tem também interesse pelo ensino e história da química, assim como pela divulgação e comunicação de ciência

Jorge Eremites de Oliveira Doutor em História/Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), docente na Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

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