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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.3 Santa Cruz do Sul set./dic 2022  Epub 28-Jun-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i3.17551 

Dossiê: Alternativas Pedagógicas e Prospectivas Educacionais na América Latina

Educação como formação crítica e cidadã: a experiência da Escola Zandoná, Barra Funda/RS

Education as critical and citizen formation: the experience of the Zandoná School, Barra Funda/RS

La educación como formación crítica y ciudadana: la experiencia de la Escuela de Zandoná, Barra Funda/RS

Telmo MarconI 

Karine PiaiaII 
http://orcid.org/0000-0001-5401-5038

Consuelo Cristine PiaiaIII 
http://orcid.org/0000-0002-8406-7522

I Universidade de Passo Fundo - UPF - Rio Grande do Sul - Brasil.

II Escola Estadual de Educação Básica Antônio João Zandoná - Rio Grande do Sul - Brasil.

III Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS - Rio Grande do Sul - Brasil.


RESUMO

A experiência da Escola Zandoná, Barra Funda/RS, evidencia que é possível pensar a educação escolar como formação intelectual, ética, política e artística das novas gerações. Essas múltiplas dimensões foram sendo integradas num projeto político-pedagógico construído em diálogo com as organizações sociais existentes no município e região. Fazem parte dessa construção a definição dos temas geradores, a formação continuada de professores e o desenvolvimento de um espírito investigativo que permitiu à escola conquistar muitos prêmios em Feiras de Ciência. Quais os riscos dessa experiência sucumbir frente às imposições neoliberais que adentram a escola?

Palavras-chave: Escola transformadora; Cidadania; Democracia; Educação crítica; Gestão participativa

ABSTRACT

The experience of Escola Zandoná, Barra Funda/RS, shows that it is possible to think of school education as the intellectual, ethical, political, and artistic formation of new generations. These multiple dimensions have been integrated into a politicalpedagogical project built in dialog with the social organizations in the town and region. Part of this construction is the definition of the generating themes, the continuing education of teachers, and the development of an investigative spirit that allowed the school to win many awards in science fairs. What are the risks of this experience succumbing to the neoliberal impositions that are entering the school?

Keywords: School; Citizenship; Democracy; Critical education; Participatory management

RESUMEN

La experiencia de la Escuela Zandoná, Barra Funda, RS, muestra que es posible pensar en la educación escolar como formación intelectual, ética, política y artística de las nuevas generaciones. Estas múltiples dimensiones se han integrado en un proyecto político-pedagógico construido en diálogo con las organizaciones sociales del municipio y la región. Parte de esta construcción es la definición de temas clave, la formación continua de los profesores y el desarrollo de un espíritu investigador que ha permitido a la escuela ganar muchos premios en ferias de ciencias. ¿Cuáles son los riesgos de esta experiencia sucumbir a las imposiciones neoliberales que entran en la escuela?

Palabras clave: Escuela; Ciudadanía; La democracia; Educación crítica; Gestión participativa

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

O que esperar da escola? Essa pergunta pode parecer anacrônica, mas ela encontra razão no contexto do presente artigo. Um breve olhar para a história da educação escolar permite concluir que ela foi pensada, organizada e concretizada de múltiplos pontos de vista: desde uma perspectiva de redenção dos graves e complexos problemas sociais, como um aparelho ideológico do Estado a serviço da classe dominante, portanto, reprodutora das desigualdades socioeconômicas e dos valores da classe dominante, como uma instituição desnecessária, ou também a serviço de interesses do mercado.

A pergunta pelo sentido da escola ainda precisa ser posta porque existem inúmeros movimentos que avançam no sentido de esvaziá-la. De outro lado, existem experiências que ressignificam e atualizam sua função intelectual, ética, estética e política. A experiência que vamos analisar aqui trata da Escola Zandoná, situada no município de Barra Funda/RS, que conseguiu imprimir um jeito alternativo de ser escola dentro de um horizonte utópico otimista, norteada pelo princípio de que “um mundo novo é possível”. De que forma essa experiência permite problematizar e repensar a função da escola na formação de sujeitos críticos e criativos? Não partilhamos a ideia que a educação escolar é redentora dos graves e complexos problemas socioeconômicos e culturais, mas que ela pode desenvolver um trabalho coletivo com base no seu projeto políticopedagógico e contribuir na formação de sujeitos críticos e transformadores. Dessa forma, ela ganha novos significados ao assumir-se como uma instituição presente e atuante na comunidade, em diálogo com os múltiplos sujeitos existentes nela, particularmente com movimentos sociais e organizações da sociedade civil. São alguns desses elementos que tornam a Escola Zandoná uma importante referência educativa na região, no estado e no país, mesmo não sendo ainda muito conhecida.

Antes de reconstruir alguns traços que particularizam a experiência da Escola Zandoná, consideramos pertinente aprofundar, mesmo que brevemente, as tensões e disputas vividas pela escola, particularmente nos séculos XX e XXI. Uma experiência atual ganha notoriedade quando confrontada com outras experiências passadas, ou mesmo contemporâneas, e consegue sustentar uma identidade própria.

A escola tem sido objeto de muitas discussões ao longo dos séculos. Mas foi ao longo do século XX que ela sofreu duras críticas em decorrência da sua função de reprodução social: como mistificadora (CHARLOT, 1979); aparelho ideológico do Estado (ALTHUSSER, 1985); reprodutora do capital cultural e das desigualdades (BOURDIEU, 1966, p. 325-347); ‘desnecessária’ (ILICH, 1985). Por outro lado, a escola também foi pensada como formadora de sujeitos democráticos (DEWEY, 1979); com potencial emancipador (FREIRE, 1987); como instituição pública (MASSCHELEIN; SIMONS, 2019). Muitas dessas reflexões continuam atuais e ajudam a pensar nas possibilidades da escola num contexto em que proliferam projetos e políticas educativas subordinadas aos interesses do mercado.

No contexto dessa reflexão, partilhamos com Masschelein e Simons (2019) a ideia de que a escola, sem desconsiderar seus limites e contradições, é uma instituição fundamental. Ao analisarem a escola, os autores afirmam que, como instituição histórica, ela pode desaparecer, “ mas isso também significa que a escola pode ser reinventada, e é precisamente isso o que vemos como nosso desafio e, como esperamos deixar claro, a nossa responsabilidade no momento atual” (2019, p. 11). A escola é uma instituição social, portanto, está sempre sujeita às pressões políticas, religiosas, militares e econômicas de cada tempo. Laval (2004, p. 7) identifica três grandes períodos históricos da educação, sendo o terceiro período o que estamos vivenciando, no qual “a sociedade do mercado determina mais diretamente as mudanças na escola”. As críticas à função e ao papel da escola são importantes para que permaneçamos vigilantes e possamos desvendar os mecanismos utilizados para a reprodução das desigualdades sociais dentro dela. Por outro lado, é preciso dar visibilidade às experiências emergentes que ajudam a ressignificar positivamente o papel da escola em suas relações orgânicas com a comunidade, na construção de um currículo que dialogue com os complexos problemas socioeconômicos, políticos e artísticos, bem como que prime por uma formação permanente dos docentes. A Escola Zandoná deu passos importantes nesses processos e, por isso, é tomada como objeto de reflexão.

A CONSTRUÇÃO DA EXPERIÊNCIA PARTICIPATIVA NA ESCOLA ZANDONÁ

Objetivando compreender dialeticamente a Escola Zandoná, suas relações e contradições com os múltiplos contextos aos quais faz parte, torna-se necessário analisar como essa instituição educativa foi construindo sua experiência histórica. Segundo Thompson (1981, p. 16), uma experiência desenvolve-se “espontaneamente no ser social, mas não surge sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais, e refletem sobre o que acontece a eles e ao seu mundo”. Neste sentido, compreendemos que a história da Escola Zandoná foi forjada por sujeitos que ousaram pensar e questionar a formação e a organização escolar convencional e seus propósitos.

A escola iniciou suas atividades em 1953 e, no ano de 2022, completou 69 anos. Sua mantenedora é a unidade federativa do Rio Grande do Sul. Até o ano 2000, essa instituição mantinha uma proposta pedagógica e uma estrutura de gestão parecida com a maioria das instituições educacionais brasileiras: currículo escolar fragmentado em disciplinas distribuídas em tempos de 45 minutos, avaliação com data marcada, currículo organizado pela sequência dos conteúdos dos livros didáticos, seriação com aprovação/reprovação dos alunos.

Esse quadro começou a mudar com a eleição de Olívio Dutra a governador do estado do Rio Grande do Sul, pela Frente Popular para o mandato 1999-2002. Entre as iniciativas no campo educacional desse governo, destaca-se a Constituinte Escolar. Como política pública, a Constituinte Escolar no Rio Grande do Sul tornou-se um espaço de compreensão e construção de um processo de conhecimento pautado numa Concepção Dialética de Conhecimento. A sustentação dessa práxis provocou o pensar sobre a reorganização escolar a partir de leituras e encontros que incentivaram a participação da comunidade nessa tarefa. Essa política educacional baseou-se em uma opção dialética de construção do conhecimento, como já dito e, na metodologia de Pesquisa Participante. Para Fleuri (2001, p.122), a Constituinte visava à “participação das camadas populares como sujeitos de um processo de produção de conhecimento e, ao mesmo tempo, de definições de políticas públicas”.

Essa política educativa foi encampada por profissionais da Escola Zandoná que atuaram intensamente na sua reestruturação organizacional e pedagógica. Um grupo de professores, extremamente ativo na escola, também mantinha um engajamento político e militante em movimentos e organizações da sociedade civil, especialmente no movimento sindical e no Movimento Sem Terra (MST). A Constituinte Escolar possibilitou uma aproximação da escola com as dinâmicas desses movimentos e organizações, provocando discussões coletivas em diferentes espaços escolares. As políticas educacionais do governo Olívio Dutra e a conjuntura política contribuíram para esse engajamento e convergiram nas mudanças político-pedagógicas da escola.

A equipe gestora da escola iniciou um trabalho de leituras e discussões nos espaços de formação continuada de professores, fato que estimulou o avanço e a qualificação de discussões sobre outras possibilidades de atuação da escola, o que implicava, também, a problematização das práticas pedagógicas até então desenvolvidas. Nessas formações, foram criadas as condições para que a comunidade escolar pudesse participar de grupos de leitura e discussão durante o período noturno, tendo sempre em vista a escola real e aquela desejada. Os 25 cadernos da Constituinte Escolar produzidos pela Secretaria de Educação do Estado do RS contaram com a colaboração de inúmeros intelectuais orgânicos, tratando de múltiplas questões teóricas, pedagógicas, de gestão e planejamento, de gênero, de classe, relações de poder na sociedade e na escola. Esse material didático chegou à Escola Zandoná, foi lido, debatido e alimentou um diálogo crítico com a realidade do município e da escola. As reflexões feitas e as decisões tomadas nesses espaços coletivos eram registradas em atas e incorporadas ao Projeto Político-Pedagógico, bem como ao Regimento Escolar. Esses processos deram condição para questionar e refletir as práticas pedagógicas autoritárias vividas na escola ao longo da sua história, bem como consolidar processos dialógicos e democráticos com a participação da comunidade escolar e as demais forças políticas e sociais existentes no município e na região.

Os primeiros anos da década de 2000 foram marcantes na escola e caracterizados por exercícios de participação pautados pelo diálogo, especialmente entre professores, alunos e pais, visando ressignificar a escola através da construção de uma nova proposta pedagógica, incluindo uma nova forma de gestão escolar. A aproximação da escola com movimentos e organizações sociais populares não foi e ainda não é unanimidade. Existem disputas, contradições, concepções e interesses diferentes ou mesmo antagônicos que resultam em embates e afloram em diferentes momentos nos espaços escolares. Essas tensões eram problematizadas nos diferentes momentos de formação, bem como aprofundadas com leituras que possibilitaram a construção de consensos.

O diálogo foi concebido como mediação pedagógica e pressupõe que os diferentes pontos de vista dos sujeitos envolvidos pudessem ser compartilhados. Confrontar pontos de vista distintos, no entanto, exige predisposição, abertura, humildade e argumentação. Neste sentido, Carlson e Apple (2000, p. 34) propõem pensar a escola como espaço público, na qual os múltiplos grupos existentes na comunidade “podem reunir-se para dialogar, tanto para clarear suas diferenças quanto para trabalhar no sentido de alguns entendimentos e acordos em relação ao significado de equidade, liberdade, comunidade e outros construtos democráticos em situações concretas”. O diálogo demanda um esforço permanente dos gestores para contornar conflitos, tensões, disputas, partilha dos poderes e das responsabilidades. Parte da comunidade escolar absteve-se ou resistiu em participar desse diálogo. Os que participaram, por sua vez, escreveram uma nova página na história da Escola Zandoná.

Na medida em que os espaços de diálogo foram sendo consolidados, novas indagações e reflexões emergiram, entre as quais: que ser humano queremos formar? Preparar as novas gerações para que sociedade? Como desenvolver uma formação crítica? As formas avaliativas existentes na escola dão conta dessa formação e daí a pergunta: é possível desenvolver outras formas de avaliar? Essas indagações foram provocando reflexões que resultaram na construção de uma nova proposta de educação, pautada na valorização da vida e focada numa formação cidadã e crítica. Esses princípios éticos impulsionaram a construção de uma nova proposta de escola democrática e popular (ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2000b). Por meio dos diferentes documentos e artigos elaborados pelos professores da escola, é possível identificar uma opção políticopedagógica por uma educação libertadora. Um pequeno recorte do material produzido pela escola (ESCOLA ZANDONÁ, 2013, p. 3), explicita as implicações da opção por uma educação libertadora,

voltada para a formação humana do educando. Aquela que fornece meios para que o aluno cresça e se transforme num ser consciente, sujeito do processo educativo e social; que estimula a criatividade com responsabilidade, despertando o interesse pelas questões que envolvem o educando, não vinculados apenas ao conteúdo e que oferece condições ao educando para que ele possa se libertar das diferentes formas de opressão para se transformar, não em opressor, mas em libertado. [...] essa educação precisa ser aberta para entender as individualidades, estar preparada para atender aos anseios da comunidade e também precisa ser idealizadora para despertar a vontade de um mundo melhor.

Essa perspectiva emancipadora coloca-se como horizonte, mas também como elemento articulador das ações de toda a comunidade escolar. A superação das relações de opressão é uma clara referência à pedagogia do oprimido de Paulo Freire (1987). A possibilidade real dos integrantes da comunidade escolar serem sujeitos da história, escreverem e ressignificarem a escola com uma identidade de comprometimento para com os problemas e demandas sociais, deixou marcas na formação desses sujeitos e permitiu a esse espaço escolar constituir-se efetivamente numa experiência social e histórica (THOMPSON, 1981).

A gestão participativa na Escola Zandoná ocorreu nos diferentes espaços internos, mas também se irradiou para outras esferas da comunidade, ou seja, o diálogo e a participação tornaram-se instrumentos de formação democrática (BENEVIDES, 1996). Nesse processo, a coordenação pedagógica ressaltou a necessidade de repensar, especialmente, os conteúdos curriculares. Além dos conteúdos a selecionar, discussões conceituais sobre se era conteúdo ou conhecimento fizeram-se presentes no cotidiano da escola. A preocupação, neste sentido, foi trazer para as aulas outros conhecimentos que não estavam nos livros didáticos. Arroyo (2011) destaca a centralidade do currículo no âmbito da escola, compreendendo-o como espaço de disputa e de poder. Nele, competem conhecimentos que representam ou negam identidades e culturas. O currículo representa, na Escola Zandoná, a emergência de novos e pulsantes conhecimentos em disputa com conhecimentos anacrônicos e alienantes. Daí, o desafio de incorporar os conhecimentos existentes na comunidade e na região ao currículo, assim como o desafio metodológico de como fazer com que esses conhecimentos adentrassem à escola de modo crítico.

ELEMENTOS QUE TORNAM A EXPERIÊNCIA DA ESCOLA ZANDONÁ CRIATIVA

A escola brasileira contemporânea orienta-se, de um modo geral, pelo distanciamento da criança em relação ao cotidiano. A esse distanciamento, Charlot (1979) denomina “desvio cultural”. Entende por desvio cultural o método pedagógico que se esquiva dos conflitos, das desigualdades sociais, enfim, dos problemas existentes na sociedade e prescreve-se como um roteiro estritamente cultural (1979, p. 39), ou seja, o método pedagógico resulta na separação entre a criança e o contexto sociopolítico, econômico e cultural no qual ela está inserida.

A dificuldade em ouvir a comunidade escolar e o estímulo à competição, ao individualismo e ao consumismo são fenômenos sociais que adentraram as instituições educativas. A escola tem o dever de questionar essa racionalidade na medida em que tem, como função e compromisso, a formação do ser humano e não sua instrumentalização. Ao não trabalhar essas questões de forma crítica, a escola torna-se ideológica (CHARLOT, 1979, p. 31). Esse autor entende que a educação é, ao mesmo tempo, um processo cultural individual e um fenômeno social. “A pedagogia, teoria da educação, põe em evidência o primeiro aspecto da educação e oculta o segundo. Mascarando assim a importância social da educação por trás do seu sentido cultural, a pedagogia desempenha um papel ideológico”. A experiência da Escola Zandoná possibilitou a ruptura dessa perspectiva ideológica e o político-social adentrou o fazer pedagógico em toda sua amplitude, superando o distanciamento da escola com o contexto, problematizando as lutas sociais e as contradições existentes entre os diferentes grupos sociais.

A Escola Zandoná optou por trabalhar os conhecimentos vivos (ARROYO, 2011) e, nesse movimento, assumiu o protagonismo e o exercício da cidadania como um princípio que é inerente à função social da escola, almejando contribuir com a transformação da sociedade. Para tanto, foi necessário desenvolver uma metodologia que permitisse pensar a realidade local no contexto das relações socioeconômicas e políticas mais amplas. Assim, a escola desenvolveu pesquisas na comunidade, mesclando vários elementos, especialmente, antropológicos. A respeito da pesquisa antropológica, Oliven (1996, p. 10) afirma que ela faz uso de técnicas, incluindo “entrevistas abertas, observação participante, que são de natureza qualitativa e, portanto, mais adequadas para reconstituir o universo de participação social e o sistema de representação dos informantes”. Na medida em que a pesquisa foi se estruturando como um dos eixos da organização pedagógica da escola, foi sendo qualificada e tornando-se efetivamente uma pesquisa participante. Piaia e Signor (2015, p.31) fazem as seguintes observações a respeito:

A metodologia construída e regimentada pelo coletivo é uma prática de investigação desencadeada com o propósito de incorporar os elementos da realidade local, dos grupos sociais às esferas de decisão. Mais que isso, sua função política é oportunizar o olhar, o ouvir e o indagar, ou seja, problematizar a realidade e contribuir para a transformação das condições de dominação. Exige-se, para esta prática, a assunção de um compromisso com a transformação social. É o ponto de partida para produzir conhecimentos, oportunizar a fala àqueles que constituem e transformam os contextos sociais.

A metodologia de investigação precisa ser capaz de apreender os elementos socioculturais e políticos que constituem os cotidianos das pessoas que vivem na comunidade. Daí a necessidade, como observa Geertz (1978), de uma descrição densa, capaz de apreender em profundidade os elementos cotidianos e, ao mesmo tempo, problematizá-los pelo conjunto da comunidade escolar, ou seja, a realização da pesquisa na comunidade exige uma ampla preparação envolvendo professores, gestores e alunos. A pesquisa ocorre a partir de uma discussão prévia e da organização de cada etapa pelo coletivo da escola, tendo, como prioridade, a coleta das falas, assim como a escuta e um olhar atento e sensível, considerando a oralidade, as expressões, os dados e demais elementos que traduzem ideias da coletividade. Esse levantamento leva em consideração as várias dimensões sociais: economia, religiosidade, educação, saúde, lazer. Os executores das pesquisas são professores, funcionários e alunos. Eles atentam para as diversas possibilidades de ouvir as pessoas que, através de suas narrativas, contribuem para o conhecimento da realidade local: visitas às famílias, encontro nas comunidades, entrevistas semiestruturadas, atas, fotografias, depoimentos, mapeamentos e audiências públicas.

Todo esse trabalho é permeado por uma perspectiva metodológica interdisciplinar. O planejamento é coletivo e os registros são feitos nos Cadernos de Sistematização , que são socializados durante os encontros de formação que acontecem semanalmente em dois momentos: na formação dos Anos Iniciais do Fundamental e na formação dos Anos Finais do Fundamental e do Ensino Médio. Nesses espaços, são aprofundados os significados da Pesquisa Participante, bem como a construção pedagógica a partir do material reunido. O passo seguinte implica a discussão sobre como a pesquisa vai adentrar a escola e as práticas pedagógicas através dos Temas Geradores. Os problemas mais evidentes na comunidade vão definir o foco do trabalho pedagógico, que é precedido pelo planejamento e organização das falas e demais materiais produzidos pela pesquisa. A metodologia de pesquisa pressupõe uma postura dialógica que está presente desde a coleta de falas e das expressões significativas que traduzem o universo dos entrevistados. Adentrar a realidade na qual esses sujeitos estão submersos, sem preconceitos, é um desafio constante, uma vez que é preciso identificar, nas narrativas, elementos constitutivos dos conhecimentos espontâneos, ou seja, do senso comum.

Após esse trabalho de campo, é realizada a seleção dos materiais, destacando as falas que melhor traduzem as percepções do senso comum. Daí, a necessidade de levar em conta a dimensão analítica, explicativa e descritiva. Na sequência, ocorre: a) a seleção por categorias; b) a elaboração da rede de falas; c) a elaboração da rede temática com os elementos estruturais das falas e apontamentos mais relevantes e o contra-tema, que é a possibilidade de superação da concepção fragmentada do conhecimento selecionada para a rede temática; d) a problematização das falas; e) o levantamento de conceitos por áreas de conhecimento e socialização deles; f) a elaboração da questão geradora. Na sequência do trabalho, conforme pudemos acompanhar participando do processo, busca-se em autores como Paulo Freire, Moacir Gadotti, Danilo Streck, Carlos Rodrigues Brandão, Frei Beto, Boaventura de Sousa Santos, Antônio Gramsci, Pedro Demo, entre outros intelectuais orgânicos, o embasamento para pensar uma práxis pedagógica libertadora (ROSSETTO; PIAIA; SIGNOR, 2015, p. 117).

A construção da proposta pedagógica exige uma reflexão sobre o que precisa ser investigado e problematizado junto aos estudantes para que haja transformação, pessoal e social, processo que exige a elaboração de uma pergunta que guiará o planejamento. A escola mantém arquivado todo esse material, que é construído coletivamente. Parte-se, então, para o planejamento interdisciplinar por área de conhecimento, envolvendo o coletivo da escola. Feito esse trabalho, segundo De Rocco e Dos Santos (2015, p. 70), desdobram-se os três momentos pedagógicos da aula.

Estudo da Realidade, Organização do Conhecimento até a Aplicação do Conhecimento. Todo esse processo tem por finalidade transformar a visão ingênua em momentos de problematização e transformação. São proporcionados debates para levantar alternativas a fim de romper as concepções pré-estabelecidas e as práticas tendem a objetivar a aprendizagem crítica e reflexiva.

Cabe observar, ainda, que a pesquisa não é apenas utilizada para a coleta das falas, mas é compreendida como um princípio educativo. Ela transversaliza todo o planejamento, buscando transformar os educadores e os educandos em pesquisadores, sujeitos que agem e, ao aprender, também ensinam. Esse é um princípio fundamental.

A pedagogia tradicional, ainda muito presente nas escolas brasileiras, prima pelo enclausuramento da escola em relação aos contextos sociais, mas a Escola Zandoná faz um movimento inverso e edifica suas práticas pedagógicas numa articulação dialética entre o conhecimento acumulado historicamente pela humanidade e as questões do contexto em que estão inseridos os sujeitos e a própria escola. A comunidade escolar ao investigar os contextos dialoga com as experiências dos sujeitos sociais. Neste sentido, os movimentos e organizações sociais oxigenam os espaços educativos formais com as experiências existentes. Conhecer realidades como a de um sindicato, os dramas dos hospitais, a vida dos sem teto, as lutas dos sujeitos engajados nas causas populares, uma aldeia indígena, uma favela, um acampamento ou assentamento de Sem Terra favorece a reflexão e o conhecimento das realidades existentes no município e na região. Essas experiências ao serem refletidas crítica e articuladamente com conhecimentos históricos, filosóficos, sociológicos, entre outros, favorecem uma formação ampla e permitem a construção de novas relações com o saber. (CHARLOT, 2000)

Nesse contexto, a conexão entre o currículo e os diferentes contextos dá-se também com Projetos de Iniciação à Pesquisa, que existem paralelamente à construção dos Temas Geradores. Os projetos de pesquisa são orientados por uma professora, geralmente a orientadora da turma. De modo geral, os alunos de cada série aglutinam-se em grupos de três (de forma esporádica em dois ou quatro componentes) e escolhem um tema ou problema que os inquieta e que pode ser objeto de estudo. Ao longo dos anos, a escola foi construindo uma metodologia de projetos e muitos deles foram premiados em Feiras de Ciências na região e no país. (PIAIA, 2016, p. 225)

A iniciação científica acontece desde os anos iniciais do Ensino Fundamental e vai até o Ensino Médio e tem, na Feira de Iniciação à Pesquisa, um espaço socializador dos trabalhos. A abertura da feira, com acesso livre ao público, traduz, por meio da arte, os princípios de uma educação libertadora e humanizadora. Arte, inclusão, sensibilização, denúncia e anúncio articulam-se para acolher e motivar o público e convidá-lo à reflexão sobre a sociedade.

Esses espaços oportunizam aprendizagens e rompem com o enclausuramento da escola, bem como ressignificam o saber diante de uma conjuntura que exacerba o individualismo, o consumismo e o egoísmo (PIAIA, 2016). Essa formação é crítica e, por isso, possibilita uma análise da realidade, sendo que, neste sentido, rompe com a crença de um sentido único de transformação sobre e com a sociedade. Ao contrário, a realidade é diversa e plural, apresentando-se como um campo de possibilidades.

Destacamos, neste sentido, outro elemento que torna a experiência da Escola Zandoná diferenciada: a Formação Letiva. Esse é um momento de socialização de atividades trabalhadas e construídas durante as aulas. Compartilha-se esse conhecimento em forma de oficinas, teatros, reflexões e exposições. Esse é um avanço importante que foi construído e está regimentado pelo coletivo da escola e favorece a partilha de saberes, a reflexão e a avaliação da prática educativa, além de oportunizar aos estudantes uma autonomia como seres que aprendem e ensinam.

Todos os alunos são envolvidos nessa dinâmica. O momento de Formação Letiva é considerado um dia normal de aula que ocorre nos três turnos e é aberto à comunidade. A organização das atividades é de responsabilidade da Direção, da Coordenação Pedagógica, dos educandos e educadores. É respeitada a opção de expor o que foi aprendido no trabalho desenvolvido em sala de aula. Após a Formação Letiva, os estudantes refletem sobre os trabalhos socializados e são convidados a registrarem, no Caderno de Formação (documento da escola), as percepções e as problematizações que surgiram durante as apresentações. Nesses momentos, são partilhados os conhecimentos através do teatro, da poesia, da música, da dança, da literatura e da história, enfim, as artes e as humanidades contribuem para fazer uma escola diferenciada. As Artes, assim como a Filosofia, a História, a Sociologia e a Antropologia, desempenham um papel indiscutível na edificação de uma proposta pedagógica humanizadora. Nussbaum (2015) acredita que a escola precisa desenvolver uma educação das emoções para que, a partir do sentimento de compaixão em sua acepção etimológica de “sentir com” o outro, aprimoremos nossas relações interpessoais, visando à construção de uma sociedade solidária, compreensiva e plural.

O protagonismo e a construção do conhecimento pautam o currículo escolar que se consolida num fazer pedagógico emancipatório. Por isso, requer uma avaliação formativa e diagnóstica, que entende ser o Portfólio um documento em que é possível observar o processo de evolução da aprendizagem do estudante. O parecer descritivo rompe com a lógica de resultados numéricos e classificatórios. Consta, no Regimento, a progressão continuada até o 9º ano do Ensino Fundamental. Conceber a avaliação da aprendizagem como parte do processo pedagógico e que possa contribuir na construção social do conhecimento, utilizando-se os mais variados instrumentos e critérios, continua sendo um desafio.

A avaliação emancipatória por não estar centrada no resultado, mas se constituir num processo, exige uma postura reflexiva que conceba o Conselho de Classe Participativo como um espaço coletivo em que alunos, pais, professores discutem a aprendizagem das turmas, sugiram encaminhamentos para superar as limitações e enfrentar os múltiplos desafios, sejam comportamentais, de acompanhamento da vida escolar, de planejamento da aula ou de gerência escolar por parte da direção.

AMEAÇAS AO PROJETO PARTICIPATIVO DA ESCOLA ZANDONÁ

A característica da Educação Popular, segundo Saviani (2008), é a metodologia da escuta em que se colocam os “intelectuais” que mergulham na cultura popular. Neste sentido, o grupo de educadores que desencadeou as mudanças na Escola Zandoná estava imerso na vida da comunidade e mantinha vínculos orgânicos com Movimentos Sociais, em especial, o Sindicato dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS). Um dos principais impactos que se pode notar na Proposta Político-Pedagógica da escola atual é um distanciamento progressivo dos seus professores da militância política. Isso não ocorre por acaso. O contexto social impulsionou esse gradativo afastamento das lutas sociais, além das crescentes pressões pela municipalização da educação, movimento presente em Barra Funda e nos municípios vizinhos. Estudantes da Escola Estadual Zandoná migram para a escola municipal, o que resulta na redução do número de matrículas e, por conseguinte, o fechamento de turmas no Ensino Fundamental na Escola Zandoná. Muitas famílias estavam descontentes com o currículo da escola, com a participação dos professores em movimentos sindicais e em greves, assim como a prática pedagógica voltada à formação de cidadãos críticos e participativos.

O medo de perder alunos, o fechamento de turmas e de turnos provocou um recuo na proposta pedagógica em seu potencial transformador, bem como no trabalho com os temas geradores e na pesquisa participante. Timidamente, o currículo voltou a ser pensado de acordo com normativas ditadas pela Escola do Município, com enfoque na preparação para o vestibular, uma preocupação com a classificação dos alunos e a assimilação de conteúdos. Além disso, existem fatores mais amplos como a intervenção do governo estadual do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, na greve de 2018, cortando o ponto dos grevistas e fragilizando ainda mais o movimento sindical. Antes disso, a reforma trabalhista (2017) tinha cortado direitos dos trabalhadores e enfraquecido muito o papel dos sindicatos.

Além disso, cabe uma observação em relação às políticas educacionais no país. Os intelectuais que embasaram teoricamente o projeto de educação popular da Escola Zandoná foram sofrendo ataques, especialmente, após a eleição de Bolsonaro. O ataque de bolsonaristas à Educação Popular e a Paulo Freire e seu legado traduzem bem o alcance desses embates. Esse foi mais um fator que potencializou o distanciamento da escola em relação à sua postura críticotransformadora que implicava uma consciência dos professores e alunos de pertencimento à classe trabalhadora. Embora o coletivo da escola continue participando como protagonista do Fórum Paulo Freire, escrevendo, compartilhando e recebendo “oxigênio” para alimentar a práxis pedagógica de forma coerente com a utopia transformadora, muito se perdeu, uma vez que o coletivo se sente pressionado pelas forças políticas reacionárias que esvaziam a escola de sentido, transformando-a em instrumento a serviço dos princípios neoliberais, ou seja, do mercado.

As discussões iniciais a respeito de que sujeito, escola e sociedade almejamos enquanto comunidade escolar sofreram inúmeros ataques por parte de setores conservadores da comunidade local. A percepção de que a escola desenvolvia um trabalho educativo emancipatório provocou reações e resistências pedagógicas. Daí, as estagnações e recomeços, mas muitas resistências administrativas e políticas.

Não dá para desconsiderar como os discursos gerencialistas, alicerçados em pressupostos neoliberais, vêm influenciando as políticas educacionais. No caso do governo estadual, o discurso da redução de gastos foi traduzido, desde o governo Sartori, no atraso e no congelamento de salários, na precarização das relações trabalhistas e nas condições de trabalho. Para dar conta do aumento no custo de vida, muitos professores procuraram trabalho em outras escolas. O discurso em defesa do Estado Mínimo esconde outras dimensões de um Estado que se torna forte na defesa do capital especulativo. A Escola Zandoná não está fora desses embates e disputas. O fato é que muitas educadoras foram remanejadas de escola, exoneraram-se e outras aposentaram-se. Esse movimento ocasionou a saída de profissionais descontentes, cansados e com carga horária máxima. Outros ainda completam a carga horária em até quatro escolas na região.

Em síntese, o que observamos é uma crescente fragilização da proposta pedagógica participativa e emancipadora construída na Escola Zandoná. As discussões sobre as disputas e interesses de classe existentes na sociedade em geral, na região e no município, cedem lugar a outros discursos e dinâmicas próprias dos pressupostos neoliberais ditados pelo mercado. O pedagógico vai enfraquecendo e dando lugar ao administrativo. “Não comprar briga com a mantenedora” tem sido uma justificativa para o fortalecimento de uma pedagogia do medo, que dá espaço para uma gestão verticalizada e não mais democrática.

Em meados de 2018, no contexto da aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018) e do Referencial Curricular Gaúcho (ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL, 2018), a proposta da Escola Zandoná sofreu inúmeras intervenções metodológicas. Com base no discurso neoliberal da competição, avançam propostas que pretendem elevar os índices da educação. Para tanto, proliferam fundações e institutos empresariais que chegam até a escola vendendo alternativas e soluções. Esses grupos articulam-se aos discursos hegemônicos capitaneados pelos organismos internacionais, entre os quais a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial (BM). Essas fundações e institutos empresariais propõem a remodelagem de currículos, oferecem material didático, aplicam avaliações educacionais e defendem uma educação privada. Novos conceitos entrem em cena: competências, habilidades, itinerários formativos, aprendizagem, motivação. Tudo isso, dizem, para preparar os jovens para o mercado de trabalho. Esses discursos são reproduzidos por muitas organizações, como observa Peroni (2003), entre as quais, a Fundação Lemann, o Instituto Ayrton Senna, o Instituto Natura, a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, o Instituto Unibanco, a Fundação Itaú Social, a Fundação Roberto Marinho, a Fundação SM e Itaú BBA. São organizações que não nasceram com função educativa, mas estão adentrando de modo voraz nas instituições públicas e privadas e vendendo pacotes completos, incluindo formação pedagógica, materiais didáticos e metodologias de trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do artigo, tentamos justificar a importância histórica da experiência construída na Escola Zandoná desde o início do século XXI. Essa experiência tem, como marca, uma forte inserção da escola na realidade local e regional, um diálogo intenso com organizações e movimentos sociais, um processo participativo-dialógico envolvendo a comunidade escolar, a reestruturação dos procedimentos avaliativos, a ampliação dos conhecimentos estudados para além dos livros didáticos, a consolidação da pesquisa desde o Ensino Fundamental, mas, principalmente, no Ensino Médio, fato que deu condições para o desenvolvimento de projetos investigativos que resultaram em muitas conquistas de premiações em feiras de ciência na região e no país, formação continuada de professores. Esses, entre outros elementos, deram condições para a Escola Zandoná projetar-se como inovadora frente às escolas tradicionais ainda centradas na transmissão de conteúdos, em avaliações classificatórias, fragmentação do saber, relações pedagógicas verticalizadas.

A Escola Zandoná foi construindo um projeto político-pedagógico original e conseguiu avançar substancialmente nos primeiros anos do século atual. No entanto, um conjunto de transformações globais, nacional e regional vêm criando obstáculos que põem em risco a sobrevivência do projeto. Toda proposta participativa demanda esforço, formação permanente, investimentos e uma intensa vigilância. Mesmo assim, proliferam muitas propostas sedutoras que prometem alavancar resultados numéricos de desempenho de forma simples e rápida. Uma das tensões vividas por experiências participativas, dialógicas e democráticas na atualidade é justificar e convencer que educar é uma tarefa complexa, lenta e que demanda muitos esforços, tanto de gestores públicos quanto da comunidade escolar.

Além disso, está havendo uma crescente presença de instituições sem qualquer tradição educacional que intervêm em redes públicas de ensino e em escolas. São instituições que se denominam filantrópicas, mas que estão profundamente alinhadas aos discursos oriundos do mercado: eficácia, gerencialismo, competição e resultados quantificáveis (AZEVEDO, 2006). A Escola Zandoná não está fora desse campo de disputas e é desafiada permanentemente a manter um trabalho participativo e qualificado. As transformações provocadas pelo neoliberalismo vão muito além da defesa de um Estado Mínimo e constituem-se efetivamente como modos de vida. Como observam Dardot e Laval (2021, p. 412-413), o neoliberalismo como forma de poder “estende a lógica capitalista a toda a vida, e, em particular, à subjetividade, ao domínio íntimo, à representação de si. Não se trata apenas de um individualismo, uma promoção do indivíduo contra a sociedade, pois isso é muito geral”. A solidariedade deixa de ser um valor fundamental para a convivência social e a competição ganha centralidade.

Como foi argumentado no quarto tópico, ameaças ao projeto participativo da Escola Zandoná, a presença crescente de instituições com propostas alinhadas aos discursos gerencialistas e competitivos oriundos do mercado estão a ameaçar a experiência construída na Escola Zandoná. A lógica dessas instituições e organizações é verticalizada e não dialógica, ou seja, é orientada pelo princípio da meritocracia, desconsiderado os aspectos históricos e culturais dos sujeitos, pressupondo todos serem iguais, diferenciados pelo esforço e empenho. Dentro dessa lógica, os que têm mais condições econômicas e culturais tenderão a ocupar as primeiras posições nos ranqueamentos. Essa tendência representa um retrocesso em tudo o que foi construído ao longo de duas décadas na Escola Zandoná.

Mesmo havendo essas situações de risco é preciso considerar que a história não está previamente determinada. O futuro não está predeterminado e depende do fortalecimento de equipes gestoras e de professores comprometidos com uma educação participativa, dialógica e emancipadora. Para tanto, é necessária a participação da comunidade escolar que, por sua vez, demanda condições de tempo e de trabalho. Uma perspectiva educacional que valorize os sujeitos em todas as dimensões e que fortaleça as artes como condição de humanização demanda tempo e esforço coletivo. A tendência de mercantilizar a educação vai na contramão desse projeto e retoma os princípios pedagógicos comportamentalistas mecanizados. Essa perspectiva educacional não prepara sujeitos e nem contribui para a cidadania.

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Telmo Marcon Doutor em História Social pela PUC/SP. Pós-doutorado em Educação intercultural pela UFSC. Professor e pesquisador na Faculdade de Educação e no PPGEDU/UPF (mestrado e doutorado).

Karine Piaia Graduada em Letras pela UPF, especialista em gestão educacional pela UFSM e mestrado em Educação no PPGEDU da UPF. Coordenadora pedagógica da escola estadual de educação básica Antônio João Zandoná

Consuelo Cristine Piaia Graduada em História e Pedagogia, especialista em História Regional, mestrado e doutorado em Educação pelo PPGEDU da Universidade de Passo Fundo. Professora na Unideau-Getúlio Vargas/RS e UFFS, Erechim

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