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Reflexão e Ação

versão On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.3 Santa Cruz do Sul set./dez 2022  Epub 30-Jun-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i3.16374 

Artigos do Fluxo

Política de ensino médio em tempo integral: um estudo de caso

Full-time high school policy: a case study

Política de escuela secundaria de tiempo completo: un estudio de caso

Thaiane da Silva D’avilaI 
http://orcid.org/0000-0003-0606-2811

Ricardo Gonçalves SeveroII 
http://orcid.org/0000-0001-8413-7159

I Universidade Federal do Rio Grande - FURG - Rio Grande do Sul - Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande - FURG - Rio Grande do Sul - Brasil.


RESUMO

O artigo analisa a atuação da Política de Ensino Médio em Tempo Integral em uma escola estadual em uma cidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul, considerando que existe o contexto em que a política é produzida e, um outro contexto no qual ela é traduzida e interpretada pelos atores da comunidade escolar. Foi realizada observação participante junto a escola e analisado os documentos que regulam e orientam a referida política. A partir disso, são feitas considerações a respeito do processo de atuação bem como sobre o distanciamento do que foi proposto para o que vem sendo construído.

Palavras-chave: Política Educacional; Ensino Médio; Tempo Integral

ABSTRACT

The article analyzes the performance of the Full-Time High School Policy in a state school in a countryside city of the state of Rio Grande do Sul, considering that there is a context in which the policy is produced and another context in which it is translated and interpreted by the actors of the school community. Participant observation was carried out at the school and the documents that regulate and guide the policy were analyzed. From this, considerations are made about the process of action as well as about the distance between what was proposed and what has been built.

Keywords: Educational politics; High school; Full-time

RESUMEN

El artículo analiza el desempeño de la Política de la Escuela Secundaria de Tiempo Completo en una escuela estatal de una ciudad del interior del Estado de Rio Grande do Sul, considerando que existe un contexto en el que se produce la política y otro en el que es traducida e interpretada por los actores de la comunidad escolar. Se realizó una observación participante con la escuela y se analizaron los documentos que regulan y orientan la política. A partir de ahí, se hacen consideraciones sobre el proceso de actuación, así como sobre la distancia entre lo que se propuso y lo que se está construyendo.

Palabras clave: Política educativa; Escuela secundaria; Tiempo integral

INTRODUÇÃO

O artigo analisa o processo de desenvolvimento da Política de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI) dentro de uma escola estadual em uma cidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul. Tem-se como principal objetivo compreender de que forma os atores, especificamente os professores e gestores, se relacionam e traduzem essa política dentro do contexto escolar. O estudo tem como base a abordagem do ciclo de políticas, a partir das contribuições de Stephen Ball e Jefferson Mainardes. Para estes pesquisadores, os estudos sobre as políticas educacionais se dividem em dois tipos: aqueles de natureza teórica e as análises de políticas específicas (BALL; MAINARDES, 2011). A partir disso, os autores desenvolveram uma proposta de análise dividida em cinco contextos: o contexto de influência, o contexto da produção de texto, o contexto da prática, o contexto dos resultados/efeitos e o contexto de estratégia política (MAINARDES, 2006). Neste artigo, o intuito é discorrer sobre o contexto da prática da Política de EMTI.

Nessa perspectiva, parte-se do pressuposto de que as políticas educacionais não são implementadas tal qual foram previstas, mas sim interpretadas e traduzidas dentro do contexto escolar, num movimento onde todos os membros da comunidade escolar são compreendidos como agentes. Logo, os atores envolvidos possuem protagonismo no processo de atuação, eles interpretam e traduzem a política, contextualizando-a e não apenas “implementando”. Dessa forma, as políticas educacionais não são fixas e imutáveis, ao contrário, estão dentro de um fluxo, em um processo de se tornar algo mais.

A escola em questão tem como oferta educacional o ensino fundamental do primeiro ao nono ano e o ensino médio em dois turnos: no período da noite de forma regular com os três anos desta etapa e, no turno da manhã na modalidade de tempo integral. A escola aderiu ao EMTI no ano de 2019, inicialmente com o primeiro ano do ensino médio. Nos dois anos seguintes, 2020 e 2021 a proposta, que tem caráter gradativo, passou a cobrir todos os três anos do ensino médio. Diante do contexto pandêmico, as atividades presenciais foram suspensas em março de 2020, tendo sua continuidade de forma remota nos últimos dois anos. A pesquisa foi realizada durante os dois primeiros anos da proposta, contando com três procedimentos metodológicos: a observação participante, realizada no ano de 2019; a análise documental, que acompanhou os dois anos de pesquisa; e a realização de entrevistas com os professores e gestores da escola, que foram realizadas de forma remota no ano de 2021. Para esse trabalho, está sendo considerado o primeiro ano de atuação da política, 2019, período em que foi realizada a observação participante e produzido os diários de campo, recursos que embasam este texto. Aliado aos diários de campo, foi realizada a análise dos seguintes documentos: a Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, que dentre outras especificações institui a nível nacional Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral; o Decreto n. 53.913, de 07 de fevereiro de 2018, que institui o Programa de Educação em Tempo Integral no Ensino Médio no Estado do Rio Grande do Sul, a partir da adesão à Política de Fomento; o Documento Orientador do Programa Escola de Ensino Médio em Tempo Integral - EMTI, produzido pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul e disponibilizado no formato impresso para a Escola; e por fim, o documento “Ensino Médio em Tempo Integral - Avaliação Diagnóstica do Programa: Fluxo e Proficiência”, que se trata de uma apresentação no formato de slides elaborada pela SEDUC-RS, que além de ter sido apresentada para a gestão, foi entregue no formato impresso para consulta .

A partir do que foi exposto, optou-se para a realização desta pesquisa pela utilização da observação participante, pois, acredita-se que a observação participante se configura enquanto uma ferramenta extremamente relevante para a compreensão do contexto e, por conseguinte, as formas de expressões e representações dos atores que ali estão.

[...] permite também que o observador chegue mais perto da “perspectiva dos sujeitos”, um importante alvo nas abordagens qualitativas. Na medida em que o observador acompanha in loco as experiências diárias dos sujeitos, pode tentar apreender a sua visão de mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações. (LÜDKE; ANDRÉ, 2018, p.31)

Possibilitando, dessa forma, observar o cotidiano da atuação do EMTI, seus desafios e/ou avanços, além de oportunizar o acompanhamento das experiências diárias dos atores dessa pesquisa. Com vistas a registrar as observações, o procedimento adotado foi a construção de um diário de campo, um registro escrito que foi produzido na sequência dos momentos de observação. Cabe ressaltar que, a realização dessa metodologia dentro da referida escola foi viabilizada em virtude da participação da pesquisadora em um projeto de extensão - (suprimido para não identificar autoria). O projeto em questão está em atividade junto à escola desde o ano de 2018, promovendo oficinas junto aos estudantes do ensino médio. Em virtude desse tempo, a equipe que compõe o Projeto acompanhou as mudanças e transições do modelo de ensino médio politécnico para o ensino médio em tempo integral. Ademais, o vínculo estabelecido com o Projeto permitiu com que houvesse uma aproximação entre a Universidade e Escola.

O artigo apresenta na primeira parte os aspectos legais que orientam a implantação do EMTI e, a seguir, analisam-se como tais diretrizes foram produzidas na escola.

O FOMENTO AO ENSINO MÉDIO EM TEMPO INTEGRAL COMO POLÍTICA NACIONAL

O advento do Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI), enquanto uma política nacional, é oriundo da Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017 - antiga Medida Provisória 746 de 22 de setembro de 2016. Ainda que o histórico de iniciativas e discussões a respeito da ampliação da carga horária do ensino médio estivesse presente em diversas pautas, inclusive aquelas levantadas por Anísio Teixeira ainda no século XX, foi somente a Portaria Nº 1.145, de 10 de outubro de 2016 que institui o Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral e, mais tarde pela Lei 13.415 que o EMTI se configurou enquanto iniciativa nacional. A referida Lei, além de instituir a Política de Fomento, também alterou o currículo do Ensino Médio por meio da “aclamada” Reforma do Ensino Médio, pautando uma suposta crise nesta etapa de ensino para a qual não haviam, ainda, propostas resolutivas (RAMOS; FRIGOTTO, 2016).

Com base na Reforma do Ensino Médio, os parâmetros e critérios da Política de Fomento foram definidos a partir da Portaria Nº 727 de 13 de junho de 2017, que fora substituída em 2019 pela Portaria Nº 2.116 de dezembro de 2019, com pequenos ajustes. A Portaria Nº 2.116 descreve que o objetivo do EMTI é apoiar, através da transferência de recursos para as Secretarias Estaduais e Distrital de Educação - SEE’s, a ampliação da oferta de ensino médio em tempo integral nas escolas da Rede Estadual, que ocorria de forma isolada em alguns estados. Para tal repasse, as SEE’s precisam, conforme consta no texto político, manifestar interesse e estar de acordo com os critérios para a adesão, expressos no Art. 6º da Portaria:

Art. 6º São consideradas elegíveis para o EMTI as escolas das SEE que atenderem aos seguintes critérios: I - mínimo de quarenta matrículas no primeiro ano do ensino médio, de acordo com o Censo Escolar mais recente; II - alta vulnerabilidade socioeconômica em relação à respectiva rede de ensino, considerando o indicador socioeconômico desagregado por escola; III - existência de pelo menos três dos seis itens de infraestrutura exigidos no Anexo III a esta Portaria, necessariamente registrados no Censo Escolar mais recente ou comprovados pelas SEE no ato da adesão; IV - de ensino médio em que mais de 50% dos alunos tenha menos de 35 horas semanais de carga escolas horária, de acordo com o último Censo Escolar; e V - não ser participante do Programa. § 1º Serão priorizadas as escolas: I - localizadas nas regiões com menores índices de desenvolvimento humano e com resultados mais baixos nos processos nacionais de avaliação do ensino médio; II - que apresentem Indicador de Nível Socioeconômico das Escolas de Educação Básica - INSE nos grupos 1, 2 e 3. (BRASIL, Portaria 2.116, de 6 de dezembro de 2019)

Como é possível perceber, o texto apresenta como critério atender as escolas com altos índices de vulnerabilidade socioeconômica, além de atribuir prioridade às escolas localizadas em regiões onde o IDH possui resultados baixos - o que não implica exclusividade à estas escolas, ainda que no caso deste estudo a escola em questão cumpra estes critérios. Com isso, o texto político se propõe a atender estudantes que se relacionam com o mundo do trabalho durante o período de formação escolar. Nesse sentido, desde o momento de sua formulação é possível observar uma contradição, visto que o texto prevê a ampliação do tempo na escola para jovens que, em geral, ocupam o contraturno escolar com atividades laborais. Além dos critérios descritos, a Portaria prevê o prazo de dez anos por escola para a implementação da proposta, a contar a partir da data de adesão. Visto que a política tem caráter gradual de expansão, isto é, ao aderir à proposta as escolas possuem três anos para contemplar todos os anos do ensino médio, de modo que os demais anos servirão para concretizar a política .

Diante do que foi exposto, em fevereiro de 2018 foi criado pelo Governo Estadual do Rio Grande do Sul por intermédio da Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul o Programa Ensino Médio em Tempo Integral, através do Decreto 53.913 de 7 de fevereiro de 2018. Neste mesmo ano, doze escolas foram contempladas com a proposta de EMTI seguidas, em 2019, por mais nove escolas. Dentre essas nove escolas, está a escola analisada. Como dito anteriormente, a proposta do EMTI será implementada de forma progressiva, isto é, a SEDUC-RS deliberou a adesão inicialmente do primeiro ano do ensino médio, estendendo a proposta gradativamente até 2020, com escolas que aderiram ao programa em 2018. As escolas que ingressaram em 2019 terão o ensino médio amplamente coberto somente em 2021.

De acordo com o Decreto 53.913, o Programa “tem por objetivo o planejamento, o desenvolvimento e a execução de um conjunto de ações inovadoras relativas ao currículo e à gestão escolar, por meio da implementação de políticas públicas para o ensino médio em tempo integral no Estado” (Decreto Nº 53.913 de 07 de fevereiro de 2018, p. 1). Ainda nesse sentido, o decreto destaca o apoio na expansão da proposta por toda a rede de escolas estaduais, gradativamente. Também ressalta a existência de uma Equipe de Implantação que atuará prestando apoio às escolas por meio das Coordenadorias Regionais de Educação.

Além do Decreto que institui o EMTI, o Estado disponibilizou para as escolas o Documento Orientador do Programa que, como o nome sugere, visa orientar a gestão escolar sobre os objetivos e caminhos da implementação. Nessa perspectiva há um destaque à formação integral do estudante seguindo os princípios da BNCC, dessa forma

[...] a proposta pedagógica das Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral no RS tem por base a ampliação da jornada escolar e a formação integral e integrada do estudante, tanto nos aspectos cognitivos, quanto nos aspectos sócio emocionais, observados os seguintes pilares: aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser. (SEDUC-RS, 2018, p.4)

Com base nesses pilares, o documento apresenta quatro princípios educativos que fundamentam o modelo pedagógico que são, respectivamente, os quatro pilares descritos: o protagonismo do estudante; a pedagogia da presença; e a educação interdimensional, que, nas palavras exatas, significa “A consideração das dimensões da corporeidade, do espírito e da emoção, na formação humana e não apenas a dimensão cognitiva.” (SEDUC-RS, 2018, p. 5). Espera-se que, até a conclusão do EMTI, os jovens desenvolvam esses princípios. Após essa apresentação, o documento irá explicitar a carga horária destinada para cada disciplina, que vai, justamente, na contramão da formação integral proposta, como será exposto no decorrer do texto.

Na sequência do modelo pedagógico proposto, o documento orientador atenta para o apoio pedagógico, ressaltando que ambas estratégias estão interligadas de forma indissociável de modo que “visam educar pessoas em um ambiente educacional no qual todos, gestores e educadores, sintam-se estimulados a aprender e a pôr em prática seus conhecimentos a serviço do estudante e de seu Projeto de Vida.” (SEDUC-RS, 2018, p. 6). Para tanto, a gestão da escola será assistida pela "Tecnologia de Gestão Educacional - TGE”, com o propósito de promover interação tecnológica, bem como dos conhecimentos e ferramentas de gestão. A proposta é que essa plataforma, denominada Rede de Aprendizado Presencial, sirva como um intercâmbio de informações entre as gestões, os professores e os estudantes que dela fazem uso em todo o estado. A fim de que a troca de experiências positivas e materiais informativos sobre o EMTI sejam difundidos entre toda a rede, dando base para a construção de estratégias que reduzam os índices de reprovação e evasão.

Considerando os propósitos do programa, os professores devem atuar em período integral na escola, correspondendo a 40 horas semanais, assim como os coordenadores pedagógicos de cada área do conhecimento - linguagens, ciências humanas, matemática e ciências da natureza. O documento orientador do programa também prevê a formação continuada (dentro da carga horária) para os professores e gestores de cada escola, por se tratar de um documento de 2018, suas datas não estão atualizadas, entretanto, a estimativa é de ao menos uma vez ao mês propor alguma atividade diferenciada para estes funcionários. Como mencionado anteriormente, esse documento foi produzido em 2018 para o primeiro ano de “implementação” e utilizado também para as escolas que aderiram em 2019. Ainda assim, no decorrer do ano de 2019 esse sistema não foi fornecido para os professores e estudantes da escola analisada.

Ainda no que compete às questões administrativas, a organização da carga horária das escolas fica a cargo da direção, com orientação para que no primeiro horário da manhã seja oferecido o café da manhã, ao meio dia o almoço e o lanche da tarde no término das atividades, considerando que em algumas comunidades com índices de vulnerabilidade social e econômica essa poderá ser a última refeição (SEDUC-RS, 2018). Se trata de uma proposta pertinente, visto que o programa é destinado, ao menos nesse primeiro momento, para as escolas que estão inseridas nessas dinâmicas.

Cabe ressaltar que o documento orientador enfatiza que a matrícula no EMTI dos estudantes que cursam o ensino médio na escola não é opcional, ao contrário, é obrigatória a permanência de todos os estudantes por no mínimo 8 horas diárias dentro da escola. Neste caso em questão, todos os estudantes do primeiro ano do ensino médio devem estar matriculados no EMTI, visto que se trata do primeiro ano de adesão.

O Documento Orientador disponibilizado para a escola, sugere, ainda, a criação de Salas Ambientes, onde as salas são “caracterizadas com diferentes materiais pedagógicos, tornando o espaço um lugar lúdico e prazeroso para a aprendizagem” (SEDUC-RS, 2016, p.15). Isto é, as salas poderão/deverão ser organizadas com os recursos necessários para cada disciplina ofertada pelo EMTI e seu diferencial é propor que os estudantes mudem para salas que estarão mais estruturadas e adaptadas para recebê-los. A proposta de salas ambientes é potente e tende a estimular o estudante que naquele espaço se encontra. Entretanto, para tal ação é necessário recursos do Estado, o que no caso da escola em questão não ocorreu ao longo do ano de 2019.

No que tange às questões curriculares, estas deverão seguir as orientações já existentes como as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular, além das normas estaduais. A matriz curricular prevê em sua organização a distribuição de carga horária semanal de “um mínimo de trezentos minutos semanais de língua portuguesa, trezentos minutos semanais de matemática e quinhentos minutos semanais dedicados para as atividades da parte flexível” (Decreto nº 53.913 de 07 de fevereiro de 2018, p. 3), reforçando o que está presente tanto no documento orientador quando nas Portarias 727 de 13 de junho de 2017, quanto nas diretrizes atuais da Portaria 2.2116 de 6 de dezembro de 2019. Com essa estruturação, resta para as demais áreas do conhecimento, apenas 1.150 minutos para a divisão entre todas as disciplinas presentes no currículo do ensino médio.

Nessa perspectiva, a “parte flexível”, também denominada como parte diversificada, contempla as seguintes atividades: Estudo Orientado; Projeto de Pesquisa; Culturas Juvenis; e Projeto de Vida. De acordo com a proposta curricular, para a área do conhecimento de linguagens o total de períodos na semana será de doze, sendo que 5 desses períodos são destinados à língua portuguesa e os sete demais distribuídos entre: artes, educação física, língua estrangeira moderna - inglês e língua estrangeira moderna espanhol (SEDUC-RS, 2018, p. 10). Já para a área do conhecimento de ciências humanas, o total semanal de períodos é de seis, a serem distribuídos entre filosofia, geografia, história e sociologia. Na área do conhecimento de ciências da natureza o total de períodos é seis, divididos entre biologia, física e química. Para a área do conhecimento de matemática são 5 períodos semanais. Além desses períodos, outros 5 são destinados aos componentes diversificados (Projeto de Vida, Culturas Juvenis, Projeto de Pesquisa e Estudo Orientado), além de um período para o ensino religioso.

Para Ramos e Frigotto (2016) no quesito currículo o Programa visa intensificar as disciplinas de português e matemática com vistas a uma melhoria nos exames em larga escala. Os autores atentam ainda ao fato de que foram divulgadas duas portarias em sequência: a primeira foi a Portaria nº 1.144 (10 de outubro de 2016) que instituiu o Programa Novo Mais Educação e a segunda foi a Portaria nº 1.145 (11 de outubro de 2016) que Institui o Programa de Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral, ambas caracterizadas com o reforço de disciplinas como português e matemática, sendo a primeira destinada ao ensino fundamental e a segunda direcionada ao ensino médio. Para os autores esse movimento comprova “a finalidade do reforço daqueles componentes curriculares visando ao êxito nas avaliações internacionais e da especialização nos itinerários, às custas da formação básica comum” (RAMOS; FRIGOTTO, 2016, p. 39).

Corroborando com reflexão de Ramos e Frigotto (2016), como método avaliativo interno do aluno, a SEDUC-RS através do Documento Orientador, sugere a realização de avaliações mensais, considerando os componentes curriculares. Já para o acompanhamento do programa, “será implementada uma avaliação diagnóstica do rendimento do aluno em Língua Portuguesa e Matemática” (SEDUC-RS, 2018, p.13) com o propósito, para o programa, de produzir um diagnóstico dos aprendizados dos alunos, identificar os motivos de tal desempenho e elaborar planos de ação. Para a escola, esse “diagnóstico” auxiliará na compreensão das necessidades de aprendizagem específicas dos alunos, na detecção das habilidades não dominadas e, também, na elaboração de metas e projeções (SEDUC-RS, 2018, p. 13).

Na apresentação documento “Ensino Médio em Tempo Integral - Avaliação Diagnóstica do Programa: Fluxo e Proficiência” realizada pelos representantes da SEDUC-RS para a equipe diretiva da escola, foi destacado que essa "avaliação" que deve ocorrer nos dois primeiros anos será composta por 30 questões, dividida em dois cadernos: português e matemática e sua elaboração será com base nos descritores da Prova Brasil, ENEM e SAERS. Ainda nessa apresentação, foi sugerido aos professores que os mesmos considerem a avaliação diagnóstica como a avaliação do aluno, visto a necessidade de participação na avaliação diagnóstica. Também foram feitas recomendações sobre a utilização dos descritores das provas mencionadas em sala de aula, a fim de acompanhar o desempenho dos alunos. Ademais, a prova ficará na escola para “uso pedagógico”.

No que compete às provas de avaliação dos resultados do programa, de acordo com a Portaria 2.116, Art 14 “A avaliação de resultado será realizada anualmente e utilizará como critério a melhoria no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB, tanto no componente de fluxo quanto no de proficiência.” (BRASIL, Portaria 2.116, de 6 de dezembro de 2019). O fluxo mencionado será avaliado a partir dos dados de evasão, abandono e reprovação divulgados no censo escolar. Nesse sentido, a apresentação proporcionada pela SEDUC-RS na escola analisada, assim como os materiais impressos deixados para consulta na escola, enfatiza um excerto presente na Portaria 727 (presente também na Portaria 2.116, atualização da Portaria 727) que diz que “Uma vez selecionadas, tanto as SEE como as escolas participantes serão submetidas a avaliações de processo e de resultado como critério para se manterem no EMTI” (BRASIL, Portaria 727 de 14 de junho de 2017). Reafirmando, dessa forma, a importância dessas avaliações para a permanência da proposta junto as escolas, Gawryszewski (2018) ao analisar a Política de Fomento ao Ensino Médio em Tempo Integral discorre sobre a existência de uma ênfase na preparação para os exames e avaliações e que as escolas que não corresponderem poderão perder o investimento, logo:

[...] depreende-se que a gestão educacional das Secretarias de Educação e da Direção Escolar se constituem em meros executores da política central definida pelo Estado regulador. Numa conjuntura em que a maioria dos estados sucumbe a uma queda brutal de receitas proveniente de impostos, os critérios de acesso ao dinheiro do governo federal, ao prezar pela incisiva responsabilização dos gestores, transformam a adesão das SEEs não numa demonstração de sucesso do regime de colaboração entre os entes federativos, mas na regulamentação da possibilidade de mecanismos de coerção exercidos por uma política pública (GAWRYSZEWSKI, 2018, p. 838).

Dessa forma, diante de um contexto de incerteza a adequação ao Programa acaba instigando nos gestores um sentimento de medo em não conseguir responder a estes critérios, fragilizando os vínculos existentes entre as SEE’s e a União.

O ENSINO MÉDIO EM TEMPO INTEGRAL EM ATUAÇÃO

A escola analisada aderiu a proposta de EMTI considerando as condições de fomento para a “implementação” do programa. Isso significa que, aliado ao novo modelo de ensino, viriam, de acordo com a narrativa da equipe da SEDUC-RS e representantes da CREA, mais recursos para qualificar as condições de estrutura e trabalho na escola, proporcionando, consequentemente uma melhoria no ensino, que também contava com promessas relacionadas ao novo currículo e as ações inovadoras.

Nesse sentido, ainda no início do ano de 2019 foram realizadas diversas reuniões, entre elas, uma com todos os professores para apresentar a proposta e, na sequência, para mapearem as necessidades de cada área do conhecimento para contemplar a proposta de salas temáticas, de acordo com o Documento Orientador. Logo, também como orientação da SEDUC-RS, os professores foram divididos a partir das áreas do conhecimento, com um representante por área, para listar os materiais necessários para a construção das salas temáticas. O objetivo era encaminhar as listas aos apoiadores da CREA, conforme foi orientado, a fim de que fossem adquiridos os materiais. No decorrer do ano, poucos materiais foram enviados para a escola, o que significou que, na prática, a maioria das salas permaneceram no formato original, contando apenas com quadros, mesas e cadeiras, com exceção da sala de informática, sala de vídeo, biblioteca e sala de artes.

Assim como a proposta das salas temáticas não foi concretizada, os recursos para a qualificação da estrutura da escola também não foram e, por este motivo, a escola enfrenta a desafio de contemplar todas as etapas de ensino oferecidas em um espaço escolar que não havia sido pensado para tal situação. No ano de 2019, a escola contava com a oferta do ensino fundamental pela parte da manhã e da tarde, o ensino médio politécnico pela parte da manhã - com turmas de 2º e 3º ano - e, o EMTI. Durante o turno da manhã, não havia conflito, visto que as turmas se mantinham as mesmas: o 1º, 2º e 3º ano do ensino médio - com propostas curriculares diferentes, mas com o mesmo número de turmas e, as mesmas turmas do ensino fundamental. As questões eram mais complexas no período da tarde, visto que a oferta de ensino fundamental compreendia mais turmas e ocupavam a maioria das salas, o que ocasionava em mudanças recorrentes de salas pelos estudantes do EMTI. Mesmo que conturbado, esse cenário ainda era funcional no ano de 2019, o que gerava desconforto à coordenação pedagógica era o segundo ano da proposta de EMTI. Isso pois, mais turmas seriam adequadas ao ensino integral e, consequentemente, haveria mais turmas no período da tarde do que salas para comportar todos os estudantes.

Durante o período de observação foi possível identificar a preocupação da escola diante do risco de não comportar todos os estudantes do Ensino Fundamental e Médio, concomitantemente na escola. Visto que, a opção para solucionar essa demanda é a extinção da oferta do Ensino Fundamental. Além de estar situada em uma região com índices altos de vulnerabilidade socioeconômica e alta concentração populacional, a escola em questão é referência para, ao menos, cinco bairros das redondezas, sendo que é a única escola com oferta de Ensino Médio entre todos os bairros e uma das poucas com oferta de Ensino Fundamental até os anos finais.

Ao passo que se problematiza a escola para qual este Programa é pensado também se abre espaço para pensar que perfil de aluno é “contemplado”. Ciente de que as escolas contempladas serão, preferencialmente, aquelas situadas em regiões com alto índice de vulnerabilidade socioeconômica, é possível identificar o possível público da proposta serão jovens da classe popular. Dentro desta perspectiva, Casagrande e Alonso chamam atenção “para o caráter seletivo da escola que acolhe jovens que podem ficar o dia todo no espaço escolar, o que não corresponde à realidade de muitos estudantes pobres do país” (CASAGRANDE, ALONSO, 2019, p. 975). Isto é, um número considerável destes jovens já está inserido no mercado de trabalho, o que inviabiliza a sua permanência na escola em turno integral, portanto, a proposta seleciona indiretamente qual será o seu público e exclui os demais que não poderão se adequar. Essa seleção gera outra demanda que é a procura por ensino médio regular noturno, logo, deve-se considerar qual será a procura, bem como se haverá vagas disponíveis, dado que se trata de uma proposta a nível nacional.

Esse movimento foi observado na escola pesquisada, que possui oferta de ensino médio noturno. Ocorre que o número de estudantes frequentes no noturno é quase equivalente ao número de estudantes frequentes no EMTI. Ao longo de uma oficina realizada com esses estudantes, foi possível constatar pelos seus relatos que a grande maioria exerce tarefas remuneradas ao longo do dia e/ou, participam de cursos profissionalizantes. Casagrande e Alonso (2019) atentam que esse fenômeno pode acarretar em altos índices de evasão escolar no EM que atualmente já são expressivos, visto que em um dado momento o ensino noturno não irá comportar toda a demanda advinda do ensino politécnico que ocorre no turno da manhã. Como parte do movimento de traduzir a política, a equipe diretiva da escola adotou, como resposta imediata, a criação de mais turmas de ensino médio noturno.

Outro ponto problemático da proposta foi observado no início do ano de 2019, este com relação a alimentação. Conforme descrito pelo Documento Orientador, os estudantes devem permanecer na escola por 8 horas diárias, realizando as três refeições: café da manhã, almoço e café da tarde. Ocorre que, na prática, os estudantes demandam de outro lanche no meio da manhã, visto que o horário de chegada é às 7h30 e o almoço só é servido no final da manhã, por vezes até mesmo após o meio dia. Na escola observada essa realidade foi ainda mais conturbada, pois, o ensino ainda estava híbrido em 2019, ou seja, haviam turmas de EMTI e turmas de ensino médio politécnico. Nesse sentido, aos estudantes do politécnico era oferecido apenas o café no meio da manhã e, para os estudantes do EMTI, havia o café e o almoço, gerando um certo tumulto para a coordenação pedagógica que organizava essa rotina. Ocorria que, na prática, todas as refeições eram importantes para todos os estudantes, independente da modalidade, mas, não havia suporte para tal intento. Dessa forma, ainda em 2019, a coordenação pedagógica precisou estabelecer outras estratégias, de modo que os estudantes do EMTI realizavam as refeições nos momentos em que os demais estudantes estavam ainda em atividades. Ainda com relação à alimentação, como mencionado anteriormente, o horário de início das atividades escolares é às 7h30, o mesmo horário de início das atividades das trabalhadoras responsáveis pela alimentação. Essa coincidência de horário impedia a produção, com antecedência, do café da manhã dos estudantes. Desse modo, a estratégia adotada pela gestão foi a disponibilização de alimentos prontos, como frutas e bolachas, na bancada do refeitório, para que os estudantes pegassem os mesmos e se dirigissem para a sala de aula para realizar o consumo enquanto as atividades tinham início.

Observar esse episódio foi interessante, não só pela problemática em si, que foi muito relevante, mas por todo o movimento ocasionado por uma ação que não foi prevista pelos órgãos competentes, mas que, ainda assim, a escola precisou se articular para solucionar e, de fato, traduzir essa política de forma adaptada ao seu contexto. Este e outros elementos demonstram o quanto a política em ação se distingue da política proposta. Corroborando com as ideias de Ball, Maguire e Braun (2016), de que “[...] os textos de políticas são tipicamente escritos em relação à melhor de todas as escolas possíveis, escolas que só existem na imaginação febril de políticos, funcionários públicos e conselheiros e em relação a contextos fantásticos” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016, p. 14). Isto é, mesmo que os textos políticos não projetem contextos específicos, eles ainda são pensados para modelos educacionais que não se aplicam na maioria das escolas, ainda que considerando apenas o contexto local do Rio Grande do Sul. Nessa perspectiva, a política é desmaterializada (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016), isto é, ela não é compatível com a infraestrutura da escola e, tampouco, com os recursos financeiros e recursos humanos disponíveis para a sua efetivação.

As questões relacionadas ao currículo são emblemáticas até mesmo em sua idealização, visto que há uma ênfase nas disciplinas de matemática e português em detrimento das demais áreas do conhecimento, que se mantém nas mesmas condições de antes do EMTI. Porém, na atuação da política além do destaque para essas disciplinas que são direcionadas aos exames de larga escala, existem outras problemáticas relacionadas à “parte flexível”. De acordo com o Documento Orientador, assim como o Decreto 53.913/RS, a escola deveria conter em seu currículo as disciplinas de Estudo Orientado, Projeto de Pesquisa, Culturas Juvenis e Projeto de Vida, no entanto, na prática da atuação da política essa parte flexível não foi contemplada conforme previsto devido à falta de professores.

Desse modo, ainda que preocupante, o foco em disciplinas específicas como português e matemática não se configura enquanto o problema mais grave enfrentado ao longo de 2019 com relação ao currículo, visto que a falta de professores era ainda mais alarmante. O Estado do Rio Grande do Sul tem em seu histórico recente, precisamente desde 2015, o parcelamento dos salários dos professores da rede estadual de ensino, assim como de outras categorias também vinculadas ao órgão. Soma-se a isso uma dificuldade imposta ao magistério estadual desde antes do parcelamento, que é a falta de professores na rede. Observamos, portanto, que antes da preocupação com um currículo voltado para os exames em larga escala e com pouca possibilidade de desenvolvimento crítico, é necessário retroceder e lidar com uma demanda ainda mais cara que é a falta de professores. Diante disso, os dois questionamentos realizados por Moll (2017) ao analisar a política de fomento nos parece bastante pertinente: Sob que condições e com quais objetivos. Não há articulação com uma educação integral, em sua essência - que prevê a formação dos indivíduos em diferentes dimensões: produtiva, intelectual, física, política, ética e estética (RODRIGUES, 2016) -, considerando as escolhas curriculares, assim como também não há articulação entre o que é proposto e o que é oportunizado à escola.

O Estado tem como atribuição a realização de concursos para chamamento de novos professores para as escolas estaduais, no entanto, o que ocorre frequentemente são os “contratos temporários”, onde as condições de trabalho dos professores são ainda mais precárias do que ocorre com os professores concursados. Essa tentativa de sucateamento da educação pública reflete, por óbvio, diretamente no contexto escolar e na ausência de professores. Na escola analisada, foi somente no fim do ano de 2019 que chegou o professor de Projeto de Vida. Ademais, em conversa com as estudantes, as mesmas expressaram dúvidas quanto a este profissional, visto que sua formação era em Direito. Além da falta de professores, a escola teve de lidar com o aumento da carga horária de trabalho para 40 horas semanais, conforme previsto nas orientações legais, e com a impossibilidade de alguns professores de executar essa ampliação, considerando que já exerciam atividades em outras escolas no turno da tarde. Outro ponto que vai na contramão do texto político, considerando o mesmo apresenta como obrigatoriedade uma carga horária de 40h semanais para os professores do EMTI - sem considerar que os professores desempenham atividades em outras escolas, tanto municipais, quanto estaduais. Isto é, o Estado sequer garante a contratação de professores, logo, pensar em uma dedicação exclusiva para a escola é uma realidade ainda mais distante. Na prática, esse movimento se expressa, na escola em questão, com a permanência das disciplinas obrigatórias e a falta de professores para as disciplinas complementares. Com a ampliação da carga horária do ensino médio e com o vazio ocioso entre os horários.

Todas estas questões observadas demandavam a atenção tanto dos professores e estudantes, quanto, fundamentalmente, da gestão da escolar. Desse modo, além de lidar e se responsabilizar com essa tradução do texto político para a política na prática, a equipe da gestão também lidou, ao longo de 2019, com a pressão para obter os resultados esperados no primeiro ano de “implementação”. Ou seja, dentre os critérios para permanência no programa os que mais eram destacados pela gestão durante o período de observação estavam relacionados ao número de evasão e/ou abandono e, o número de matrículas para os demais anos. Esses aspectos eram preocupantes em decorrência, justamente, do contexto onde a escola está inserida. Os jovens que estudam nessa escola fazem parte da camada popular e, por este motivo, um número expressivo deles necessita exercer tarefas remuneradas no contraturno escolar. Frente a isso, manter esses jovens na modalidade integral e, ainda, realizar novas matrículas para as novas turmas de primeiro ano e, no ano de 2020, a do segundo ano também, não é uma tarefa simples. Uma estratégia adotada pela escola para lidar com a demanda de trabalho dos estudantes foi a criação de uma “ liberação” para as atividades desenvolvidas na escola pela parte da tarde. Em consenso com os responsáveis, a escola liberava os alunos que necessitavam desenvolver atividades laborais no turno da tarde sem que os mesmos perdessem seu vínculo com a escola e sua matrícula no EMTI. Na prática, eles concluíam o ano letivo da mesma forma que os demais colegas, mas sem cursar todas as disciplinas de forma presencial. Essa estratégia foi adotada pela escola com vistas a garantir a permanência dos jovens e evitar o abandono e/ou evasão. Ball, Maguire e Braun (2016) ao analisarem a atuação de políticas educacionais, pontuam que atuar envolve processos criativos de interpretação e recontextualização por parte dos atores envolvidos, que contextualizam ideias que foram produzidas de forma abstrata ou, em casos mais preocupantes, pensadas para contextos irreais.

Ao término do ano de 2019, em conversa com a coordenação da escola, a mesma relatou e demonstrou um grande receio com o processo de matrícula para o segundo ano do EMTI. E como mencionado no início desse artigo, esses são alguns dos critérios para que a escola se mantenha no programa e, cabe salientar, que sua permanência não influencia apenas na escola, mas também no Estado do Rio Grande do Sul, visto que, o Art. 27 da Portaria N° 2.116 prevê que “A SEE que tiver mais de 50% das escolas desligadas poderá ser desvinculada do Programa mediante recomendação técnica da SEB-MEC” (BRASIL, Portaria 2.116, de 6 de dezembro de 2019). Logo, há uma pressão grande exercida sob a gestão escolar que aparentemente age com receio frente as tantas demandas, num modelo de governança através do medo, conforme ressaltado anteriormente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho foram trazidos alguns tópicos observados no decorrer da pesquisa de campo realizada junto à escola, assim como, os elementos presentes tanto na legislação quanto no documento orientador da escola e no material de apresentado para a equipe diretiva. Com base nisso, os primeiros apontamentos dizem respeito ao impacto da Política para o contexto onde a escola está inserida. É sabido que a proposta de ensino em tempo integral é uma ferramenta potente se construída com o propósito de uma formação integral e considerando, de fato, o indivíduo em sua integralidade. Com isso, não se pode abster de pensar para qual público a proposta é destinada, e, afinal, de que alunos estamos falando. Muitos daqueles que se encontram nas comunidades para as quais a política foi pensada não podem se beneficiar com essa proposta, visto que precisam trabalhar, conforme foi observado na turma de ensino médio noturno. Nos direcionamos, dessa forma, a um outro ponto problemático do EMTI que é a migração desses estudantes para outra modalidade de ensino que, atualmente, não tem capacidade para tantos estudantes.

Soma-se a essa problemática a falta de professores e condições estruturais para a efetivação do EMTI. Dito isso, uma das considerações possíveis é a de que houve a ampliação da carga horária, mas, sem o segundo pressuposto da proposta que seria a formação integral, diante da ênfase em disciplinas específicas que garantem melhor desempenho nos exames nacionais.

Além da preocupação com a permanência dos estudantes e a qualidade do ensino fornecido a eles, há também a preocupação com os professores, que estão desassistidos e enfrentando a precarização do trabalho pelo Governo Estadual do Rio Grande do Sul. E, assim como os gestores, sendo pressionados por melhores resultados e melhor desempenho dos estudantes. Essa pressão é evidente até mesmo nos documentos de apresentação do programa para a escola, onde as metas e resultados possuem destaque.

Outro fator que, inevitavelmente, afetou e afetará a atuação da Política de Ensino Médio em Tempo Integral é o contexto da pandemia do Covid-19, onde, diante de tantas consequências difíceis, foi necessário instaurar o ensino remoto. Desse modo, a ampliação da carga horária de permanência dos estudantes na escola se limitou ao ano de 2019, visto que em 2020 no mês em que as aulas teriam início foi declarada a pandemia no Brasil. Ainda que a reformulação do currículo permaneça, houve uma flexibilização frente os diversos entraves do ensino remoto nas escolas públicas.

REFERÊNCIAS

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande, vinculada à linha de pesquisa Políticas Educacionais e Currículo. Possui graduação em História pela mesma instituição e atualmente cursa Pedagogia. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. Integra o Grupo de Pesquisa Dinâmicas Políticas, Estado e Movimentos Sociais e o Projeto Debates Escolares.

Ricardo Gonçalves Severo Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Doutor em Ciências Sociais (PUCRS). Participa dos grupos de pesquisa DIPEM (FURG) e GERAJU (UNB). Professor do Programa de PósGraduação em Educação e da Especialização em Sociologia da FURG

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