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Reflexão e Ação

versión On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.3 Santa Cruz do Sul set./dic 2022  Epub 21-Jun-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i3.16561 

Artigos do Fluxo

Indisciplinas, conflitos e violências: uma compreensão do clima escolar

Indisciplines, conflicts and violences: an understanding of the school climate

Indisciplinas, conflitos y violencias: um entendimento del clima escolar

Pamela Suelli da Motta EstevesI 
http://orcid.org/0000-0002-9555-2099

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Rio de Janeiro - Brasil.


RESUMO

Esse texto é um convite à compreensão da instituição escolar a partir da desnaturalização de sua universalidade e eternidade. O objetivo central é problematizar os conceitos de indisciplina, conflito e violência no cotidiano escolar. Nesse sentido, o texto convida para um olhar problematizador acerca das relações intersubjetivas que se constroem na escola e adverte a importância de compreender o conflito como pedagogicamente positivo para construção de um clima escolar democrático. O texto está fundamentado em uma pesquisa qualitativa realizada com estudantes do Ensino Médio, docentes e gestores de uma escola pública de São Gonçalo, (RJ).

Palavras-chave: Indisciplina; Conflito; Violência; Clima escolar

ABSTRACT

This text is an invitation to understand the school institution from the denaturalization of its universality and eternity. The central objective is to problematize the concepts of indiscipline, conflict and violence in the daily life of schoolchildren. In this sense, the text invites to a problematizing look about the intersubjective relationships that are built in the school and warns the importance of understanding the conflict as pedagogically positive for the construction of a democratic school climate. The text is based on a qualitative research carried out with high school students, teachers and managers of a public school in São Gonçalo, (RJ).

Keywords: Indiscipline; Conflict; Violence; School climate

RESUMEN

Este texto es una invitación a comprender la institución escolar desde la desnaturalización de su universalidad y eternidad. El objetivo central es problematizar los conceptos de indisciplina, conflicto y violencia en la vida cotidiana de los escolares. En este sentido, el texto invita a una mirada problematizadora de las relaciones intersubjetivas que se construyen en la escuela y advierte de la importancia de entender el conflicto como pedagógicamente positivo para la construcción de un clima escolar democrático. El texto se basa en una investigación cualitativa realizada con estudiantes de secundaria, profesores y directores de una escuela pública en São Gonçalo, (RJ).

Palabras clave: Indisciplina; Conflicto; Violencia; Clima escolar

INICIANDO UM CONVITE PROBLEMATIZADOR

Esse texto é um convite! Um convite à compreensão da instituição escolar, e ao mesmo tempo, uma tentativa de desnaturalizar a universalidade e a eternidade desta. O objetivo é pensar a escola como uma instituição inserida em um contexto histórico específico, estruturada a partir de funções sociais singulares e imersa em um projeto político estatal particular, endossado pelo sistema capitalista de produção. De antemão, é preciso assinalar, que aceitar esse convite significa estar disposto a compreender que a escola não é universal e muito menos eterna. Enquanto instituição socializadora, pública, gratuita e obrigatória, a escola é recente, com menos de dois séculos de existência.

Compreender a escola a partir do viés da desnaturalização significa buscar um olhar arqueológico no sentido foucaultiano, investigar as disputas de poder e os projetos políticos que estiveram nas bases de sua construção, formando assim, um sistema de escolarização. Trata-se de pensar a escola como uma maquinaria, um dispositivo de poder e normas disciplinares que ocupou e permanece ocupando o tempo e o espaço de crianças e adolescentes por pelo menos 10 anos. É por esse viés interpretativo que esse texto busca sustentar a arqueologia do sistema escolar como uma maquinaria regulamentadora da condição de ser criança e adolescente. Todavia, há uma ressalva a ser considerada, não se trata de todas as infâncias, aqui estamos considerando a escola nacional, aquela instituída para disciplinar os corpos das infâncias pobres, negras e desfavorecidas.

Um olhar arqueológico sobre o século XX nos possibilita identificar quatro princípios que foram discursivamente e legalmente instituídos para consolidação dos sistemas de escolarização das escolas nacionais: (1) um estatuto da infância foi definido, a criança passou a ser vista como uma instituição social, e educá-la passou a ser uma tarefa do Estado (ARIES, 2001). Várias infâncias foram criadas a partir de critérios socioeconômicos, e a educação escolar se transformou em um dispositivo de naturalização de uma sociedade de classes ao instrumentalizar a existências de infâncias rudes (classes populares) e infâncias de qualidade (classes abastadas). A escola nasceu, assim, como uma instituição legitimadora e reprodutora da desigualdade social e de controle das infâncias, já que os estatutos da infância elaborados tanto na Europa quanto na América caracterizavam a infância como maleável, capaz de ser modelada, débil e por isso necessitando ser tutelada, rude e incivilizada e daí decorre a justificativa para a normatização e disciplinarização dos corpos infantis. (VARELA e URIA, 1991).

Além da elaboração de um estatuto específico para infância, o sistema de escolarização contemplou (2) um espaço específico destinado à educação das infâncias (3) a emergência de um grupo de especialistas dotados de conhecimentos específicos do universo infantil e (4) o enfraquecimento de outras formas de socialização/educação, como, por exemplo, o reduzido papel deixado às família, já que a escola foi institucionalizada como obrigatória, decretada pelos poderes públicos e sancionada pela legislação vigente.

Nesse sentido, um olhar arqueológico sobre a instituição escolar nos permite compreender a origem da escola a partir de uma perspectiva problematizadora e investigativa, compreendendo as funções sociais, políticas e econômicas que estiveram nas engrenagens da formação da maquinaria escolar, e principalmente escavando os discursos de poder que distorcem e camuflam as diversas formas de regulamentação justificadas sob a égide de uma suposta “Ciência Pedagógica”.

É a partir desse olhar de desnaturalização/problematização que esse texto tem como objetivo compreender os diferentes componentes da construção do clima escolar, no que tange às relações intersubjetivas que constituem os processos de socialização. Essa compreensão direciona-se, em um primeiro momento, para investigação dos conceitos de indisciplinas, conflitos e violências que, na contemporaneidade, se configuraram em marcas singulares do cotidiano educacional. Nossa intenção é problematizar como essas marcas singulares influenciam o clima escolar, entendendo este conceito como um conjunto de ações e expectativas recíprocas compartilhadas pelos sujeitos em um ambiente institucional.

Em um segundo momento, o texto se concentra na investigação arqueológica dos conflitos específicos da vida escolar, ou seja, busca-se compreender a origem, a motivação, o cenário e o desenvolvimento destes conflitos. Nessa sessão, o convite acerca da problematização do cotidiano escolar é direcionado à defesa do conflito como positivo para a construção e fortalecimento de um clima escolar democrático, crítico às práticas de normatização e disciplinarização e alinhado a uma proposta de educação em direitos humanos.

Em termos metodológicos, os argumentos defendidos neste texto são oriundos de uma pesquisa no campo educacional sobre a judicialização dos conflitos escolares no município de São Gonçalo, (RJ). A pesquisa foi desenvolvida nos anos de 2017 - 2019. O campo investigativo contemplou duas escolas públicas estaduais de grande porte. Os sujeitos da pesquisa foram compostos por 177 estudantes do Ensino Médio, 26 docentes e 08 gestores. Os estudantes foram selecionados a partir do desejo em participar da pesquisa, os docentes entrevistados foram selecionados a partir do tempo de casa e da maior quantidade de aulas no Ensino Médio. Os gestores ouvidos nas entrevistas foram os que se dispuseram a colaborar. A pesquisa foi realizada em três etapas metodológicas: 1- levantamento bibliográfico realizado pelos bolsistas de iniciação científica e supervisionado pela coordenação; 2- Observação do cotidiano escolar discente das duas instituições de ensino e elaboração de diários de campo. 3- A partir dos registros nos diários foi elaborado um roteiro de entrevistas semiestrurado e aplicado aos docentes. Esse texto foi escrito com base nas duas últimas etapas, sendo circunscrito aos relatos dos docentes e à observação do cotidiano escolar discente.

INDISCIPLINAS, CONFLITOS E VIOLÊNCIAS: UMA ANÁLISE DO CLIMA ESCOLAR A PARTIR DAS RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS

Na virada do século, pesquisas sobre o universo escolar (Sposito, 2001; Velho, 1996) destacaram a intensidade e a recorrência das agressões físicas e verbais entre os estudantes, professores, gestores e famílias. A gravidade de alguns casos produziu uma nova agenda de pesquisa acerca das relações intersubjetivas que constituem o clima das escolas brasileiras.

Via de regra, o senso comum do imaginário social produzido (na) e (pela) comunidade escolar adjetiva o comportamento do aluno que não se encaixa na disciplinarização escolar como o de um estudante indisciplinado, e interpreta a desobediência às normas escolares como um impeditivo ao processo de escolarização. Há ainda uma visão que naturaliza a indisciplina, perceptível no corriqueiro discurso do “eles são selvagens mesmo”, “aquela turma é uma selva”, “não falam, apenas gritam”. Estereotipar o aluno que não se encaixa no perfil de escolaridade constituído pela contemporaneidade não ajuda a enfrentar os desafios da educação atual, principalmente no que tange às relações intersubjetivas. É preciso compreender a indisciplina como um sintoma do esgotamento e ineficiência do nosso modelo de escolarização (AQUINO, 2016).

De antemão, é importante salientar que o comportamento indisciplinado não tem nacionalidade, endereço, e muito menos classe social (BOARINI, 2013). A indisciplina escolar não é uma problemática específica de países periféricos como Brasil, uma vez que, Portugal, Espanha e França registram muitos casos desde meados doas anos 1990 (FERSAP, 2008). Também não é uma questão socioeconômica, já que “a indisciplina é um fato desde a universidade e escolas cuja clientela tem maior poder aquisitivo, até colégios considerados de periferia. Assim, o fenômeno da indisciplina escolar fragiliza explicações sustentadas em diferenças de classes sociais” (BOARINI, 2013, p. 24).

Nesse sentido, é preciso compreender a complexidade que está por trás do conceito de indisciplina a fim de não cair em armadilhas do senso comum. Para os propósitos desse texto a indisciplina não é exclusivamente uma transgressão, ou seja, agir indisciplinadamente não significa somente quebrar regras. A indisciplina também não deve ser interpretada como sinônimo de violência, e em muitas situações do cotidiano escolar os alunos utilizam a indisciplina como um mecanismo de defesa, uma maneira de serem ouvidos e denunciar que estão sendo violentados simbolicamente e/ou fisicamente. A violência envolve a intenção de causar dor e sofrimento a outrem, já a indisciplina é um comportamento oriundo de motivações distintas e pode estar relacionado, por exemplo, a reivindicação de autonomia discente. Uma escola que registra muitos casos de comportamentos indisciplinados carece, antes de naturalizar a indisciplina, observar se o problema não está no excesso de normas disciplinares, no exagero de proibições injustificáveis e ineficazes. Corroborando com essa visão Boarini, (2013, p. 128), salienta que:

Nessa linha de raciocínio, há que se pensar, também, que o comportamento indisciplinado pode estar revelando os conflitos velados da instituição, e mais do isso, pode estar indicando a insatisfação com uma escola que dia a dia se torna cada vez mais anacrônica e incompetente para cumprir sua função social.

Lidar com a indisciplina discente é um desafio recorrente do cotidiano escolar. É também um importante ponto de observação e investigação acerca da construção do clima escolar no que tange aos processos de socialização e na configuração dos relacionamentos interpessoais. A indisciplina é naturalmente interpretada como desvio, vandalismo, desinteresse, bagunça, desordem. Essa visão identifica na indisciplina a distorção das normas disciplinares e adverte para impossibilidade do processo de ensino-aprendizagem se desenvolver em um clima escolar permeado por comportamentos indisciplinados.

Duas assertivas precisam ser ressaltadas em relação à compreensão do conceito de indisciplina escolar. Primeiro, do ponto de vista antropológico, o conceito de indisciplina, como toda criação cultural, não é estático, uniforme, nem tampouco universal. Ele se relaciona com o conjunto de valores e expectativas que variam ao longo da história, entre as diferentes culturas e numa mesma sociedade. Disso depreende-se que determinados comportamentos que são considerados indisciplinados em escolas militares, em outras instituições mais progressistas podem ser vistos como gestão democrática e participativa, ou ainda como ensino personalizado e autonomia discente. Além da singularidade cultural constituinte do clima escolar, o projeto político pedagógico e as práticas pedagógicas docentes também são importantes sinalizadores acerca da compreensão do conceito de indisciplina.

Nos adverte Saviani (2005, p. 28),

Em grande parte das escolas até mesmo a forma com que são organizadas as carteiras em sala tem a ver com esse autoritarismo onde o poder é centralizado no professor”. Os lugares são fixos e voltados para um determinado ponto onde se encontra o professor (...) por isso é uma sala silenciosa, de paredes opacas. Esta disciplina, muitas vezes imposta, causa certo saudosismo por parte de alguns professores que foram educados nesta pedagogia e veem ainda nisto uma forma de enfrentar os problemas encontrados em sala de aula.

A segunda ressalva é sobre a necessidade de investigar as motivações do comportamento indisciplinado. Quais são as razões que conduzem os estudantes a desrespeitar as normas instituídas pela instituição escolar? Esse questionamento pode ser problematizado a partir de outra indagação: será que os estudantes se sentem representados na formulação das normas disciplinares? Será que são consultados acerca da organização e construção das avaliações, do tempo de intervalo, da estrutura e funcionamento das aulas, da configuração dos projetos, ou ainda, sobre a utilização do material didático, a divisão das tarefas cotidianas, a disposição e utilização dos espaços? Esses questionamentos nos ajudam a desnaturalizar a escola da maneira como foi constituída: sobre os pilares da hierarquia daquelas e daqueles que dominam o campo intelectual através do acúmulo de capitais cultural e social (BOUEDIEU, 2004). Essa lógica de funcionamento da escolarização felizmente vem se mostrando ineficiente e não contempla mais as demandas de sociedades culturalmente plurais e democráticas.

Antes de estereotipar o corpo discente como aluno-problema, aluno-desinteressado e aluno sem-limites (AQUINO, 2016), é fundamental que a gestão escolar e o corpo de docentes e funcionários promovam uma autoavaliação acerca da participação que os estudantes possuem nos processos decisórios que constituem a construção das normas disciplinares. O que é proibido precisa ser antes de tudo acordado coletivamente para que a proibição faça sentido para todos os envolvidos. Esse é um caminho viável para evitar o autoritarismo e o punitivismo que são constantemente utilizados como mecanismo de controle da indisciplina. (GOMES, 2018).

Se analisarmos os discursos explicativos sobre a indisciplina escolar vamos constatar que as propostas de soluções são, geralmente, direcionadas à própria escola como instituição e/ou à família. Mesmo tendo ultrapassado os limites da sala de aula e alcançado a grande mídia, essa problemática ainda não é interpretada pelo viés da responsabilidade civil, ou seja, é preciso considerar que a escola, o aluno e a família não existem isolados de uma estrutura social demarcada em um tempo histórico específico constituidor de um contexto singular. No caso, estamos chamando atenção para a necessidade de investigar a indisciplina escolar de modo mais holístico, e também como um produto de uma sociedade contemporânea líquida (BAUMAN, 2013), fragmentada (SENNETH, 1999), descentralizada (HALL, 2005) e permeada por encaixes e desencaixes (GIDDENS, 1991).

O que nossa sociedade tão complexa e individualista consegue construir do ponto de vista coletivo? Será que o indivíduo contemporâneo se interessa e valoriza os problemas coletivos? Sabemos a resposta para esses questionamentos e não é necessário elaborar aqui uma lista de pesquisas e autores. O descaso com o bem público é um dos pilares da indiferença aos problemas sociais atuais. Uma sociedade que não defende o bem comum como estrutura vital é incapaz de se sensibilizar verdadeiramente com a fome, a chacina e a prostituição infantil. Enquanto esses problemas só afetam o Outro, são capazes apenas de produzir pequenos espasmos de mal-estar que são subitamente esquecidos/substituídos pelo fetiche do consumo de outras notícias da indústria cultural.

Não é somente uma fragilidade na alteridade. “A memória do homem contemporâneo está talhada para resolver essas questões: não registra. É a banalização do horror e a desconsideração da dignidade alheia” (BOARINI 2013, p. 13). E qual o contraponto de tudo isso? O individualismo, que é claramente ovacionado e reverenciado através do discurso da capacidade, da meritocracia, da busca pelo inatingível, da inovação pela inovação, e contraditoriamente, da égide de ser feliz.

Mas, o leitor deve estar se perguntando qual a relação entre os macroproblemas sociais e a indisciplina escolar? Basta lembrar que não podemos ignorar que a escola, o aluno e a família são partes constituintes dessa sociedade gravemente anômica (DURKHEIM, 1999). Justamente pela escola está imersa nessa sociedade é que seu cotidiano não está isento dos sentimentos, dos discursos, das ações e principalmente das soluções que são encaminhadas socialmente. O clima escolar que constitui o cotidiano das relações sociais escolares também é afetado por esse individualismo exacerbado, resultando assim no desprestígio do que é público, no descaso ao próprio magistério enquanto função pública e na descrença no diálogo como mecanismo eficaz de administração dos conflitos.

A escola ainda objetiva e necessita ser o espaço de inserção do que é público. Ela é um importante espaço público de socialização. No entanto, a escola ainda encontra muitas dificuldades em motivar os alunos para valorizar o que é público e refletir sobre sua importância, e, ainda, traduz em ações a ideia de que o que é público não é bom (TOGNETTA e VINHA 2008). Ao homogeneizar as diferenças, pasteurizando os comportamentos, as ações e as atitudes dos estudantes, em nome do respeito às disciplinas institucionais que viabilizam a convivência harmônica, a escola desconstrói a importância do público enquanto espaço de socialização.

Da mesma forma, é significativo pensar como é que a escola, muitas vezes se contradiz e acaba por sancionar comportamentos inadequados (rotulados como indisciplinados) através de punições coletivas, fato que nos obriga a afirmar que a condição do que é público se traduz como o que não é agradável ou bom para todos (TOGNETTA e VINHA, 2008). O resultado dessas ações é que os estudantes parecem pouco se preocupar com a esfera pública. E as consequências disso são visíveis na banalização e naturalização de comportamentos agressivos nos espaços públicos escolares, como veremos nos casos selecionados na última parte desse texto.

Tognetta e Vinha (2008) ressaltam que muitos professores elegem o cumprimento de uma regra institucional que é comum a todos em detrimento do valor da pessoa humana. Por exemplo, um professor cobra de seu aluno que tire o boné em sala de aula, validando a regra da escola, contribuindo para uniformização e disciplinarização de todos os estudantes, mas no mesmo dia resolve o problema de uma aluna que lhe procura dizendo que a chamaram de “piranha” com uma pergunta “Você é peixe? Então, não ligue”. Nesse exemplo, o que está em jogo é exatamente a ausência de validar o “autorrespeito” necessário ao respeito do outro. Manter a organização igualitária da sala de aula foi visto como mais importante do que resolver os conflitos interpessoais dos estudantes. É paradoxal, mas a preocupação com o que é público vem acompanhada do desejo de tornar todos iguais. Quando a diferença aparece, ela não é somente negada, mas é também inferiorizada, naturalizada e banalizada. A escola, em muitas de suas práticas, insiste em negar as diferenças em nome da igualdade porque compreende que o respeito ao que é de todos NÃO pressupõe o respeito e o reconhecimento ao que é individual e ao que é dos outros.

Na escola atual, a igualdade (enquanto uniformização das diferenças) e disciplina (enquanto um conjunto de normas para manutenção da ordem) são elementos estruturais na equação do chamado sucesso escolar. Todavia, quando um desses elementos enfraquece, o conceito utilizado para interpretar a situação, comumente, é a indisciplina. Logo, temos então que o comportamento disciplinado é somente aquele padronizado, rígido, igualitário e submisso. Ora, em uma instituição escolar esse comportamento impede a criatividade, a liberdade, inviabiliza o aprendizado autônomo e estorva o desejo pelo conhecimento.

Esse cenário é também desafiador nas escolas privadas, pois a leitura da indisciplina é atravessada pelo débil argumento da falta de motivação discente. Os alunos não estão devidamente motivados e a culpa é da escola (docente) que não consegue “prender a atenção” da turma, sendo que, paradoxalmente, o docente visto como mais capacitado é aquele cuja turma permanece o tempo todo em silêncio. A questão é que, evidentemente, esse tipo de silêncio é contraproducente e apenas indica a manutenção de uma suposta ordem improdutiva e regulamentadora. Por outro lado, se o docente “perde” o controle da turma, ele pode também perder o emprego, afinal de contas a tirania do aluno cliente que “paga a escola” não é um conto de fadas.

Dessa forma, o tema da indisciplina escolar é abstruso e urgente, principalmente quando entrelaçado e/ou derivado em situações de conflito. Previamente é importante compreender o conflito como toda forma divergente de opinar, enxergar e defender determinado argumento. Nesse sentido, claramente vivemos em uma sociedade estruturalmente conflituosa, onde as divergências de pensamentos e ações marcam o nosso pluralismo e solidificam nossa democracia. Visto por esse viés o conflito é apresentado não apenas como positivo, mas como fundamento da liberdade de pensar e agir dos seres humanos na vida em sociedade. Porém, a nossa sociedade apresenta múltiplas dificuldades em compreender o conflito a partir dessa perspectiva. Em geral, nas escolas e mesmo na vida social percebemos o conflito como um acontecimento negativo, violento, destrutivo à harmonia social. Esse entendimento limitado nos leva a buscar resoluções para conflitos também perpassadas pela violência contribuindo assim para solidificação da intolerância e da agressividade como marcas do nosso tempo.

Numa proposta de reflexão mais abrangente trabalhamos com o conflito como um produto da diferença. Pode parecer simples essa defesa, mas há implicações contundentes, como por exemplo, o diálogo entre grupos que lutam pelo reconhecimento de suas diferenças tende a ser fundamentalmente conflituoso, já que essa luta é pautada na redistribuição de recursos escassos e/ou na urgência de reconhecimento social (FRASER, 1999).

No ambiente escolar o conflito é um mensurador do clima escolar. Em geral as causas dos conflitos são variadas, podem estar associadas à falha na comunicação, a dificuldade de diálogo entre as partes devido as divergências de interpretações e até mesmo ao excesso de normas disciplinares (nesse caso o conflito pode se transformar em um comportamento indisciplinado). Todavia, o que mais dificulta a administração de conflitos escolares é identificar as circunstâncias produtoras dos conflitos, sendo assim insuficiente compreender a motivação, uma vez que esta já é um indicativo que o conflito está configurado. O que estamos chamando de circunstâncias constitui um conjunto de fatores, como o espaço da escola onde o conflito ocorreu, as características dos sujeitos envolvidos, as disputas de poder, as atividades praticadas, e principalmente a origem das primeiras divergências.

Essas circunstâncias são por nós ignoradas tanto na escola como na vida cotidiana. Só percebemos o conflito quando ele já se configurou em formas de violência, por essa razão, há no senso comum identificação do conflito como uma violência. No entanto, o sintoma de quando o conflito se transforma em atos de agressão e violência é o indicador de que nós falhamos enquanto comunidade escolar e sociedade em identificar suas circunstâncias propulsoras, e nesse momento temos a tendência a resolver esse conflito que se transformou em violência, através de outras formas de violência física e/ou simbólica.

Essa constatação é recorrente na escola. A título de ilustração citamos aqui um conflito que presenciamos durante a etapa de observação do cotidiano escolar de uma escola pública de grande porte em São Gonçalo. Um grupo de estudantes do Ensino Médio chegou atrasado para a aula e justificaram que estavam esperando a reposição de papel higiênico no banheiro. A professora não aceitou a justificativa e os deixou sem assistir à aula. O grupo argumentou com a professora e sem sucesso foi dirigido à diretoria e reclamou da situação. Qual foi a atitude da diretora diante da situação? Ela chamou todas as turmas no pátio e comunicou que não iria repor o papel higiênico nos banheiros, que cada aluno deveria trazer o seu de casa, e ainda ressaltou que essa atitude estava sendo realizada para que os estudantes parassem de “matar aula” nos banheiros e colocar a culpa no abastecimento de papel.

Ora, antes do conflito com a professora a situação era, supostamente, um ato de indisciplina, isto é, “matar aulas” e ficar no banheiro, já que é difícil acreditar que 8 estudantes da mesma turma estavam aguardando o papel higiênico! Mas o desdobramento da situação possibilitou que um ato de indisciplina, que deveria ter sido minimamente investigado, se transformasse em um conflito entre o grupo de alunos e a professora. Não suficiente a derradeira dos acontecimentos a direção optou por administrar o conflito derivado de uma indisciplina com uma violência simbólica: o autoritarismo.

Após o posicionamento arbitrário da direção será que os estudantes deixarão de ficar no banheiro? Será que através dessa nova norma (banheiros sem papel higiênico) o comportamento indisciplinado de “matar aulas” vai sessar? Por que a professora não buscou problematizar a justificativa dada e não aproveitou o momento para esclarecer as consequências de “matar aulas”? Ou ainda não refletiu sobre as possíveis razões para que 8 estudantes combinassem de não assistir aula? E mesmo depois, já com o conflito instaurado após a discussão da professora com os estudantes, por que a direção também ignorou potencial pedagógico desse conflito? De que forma uma atitude autoritária que recorre a mais normas disciplinares injustificáveis, e nesse caso descabida, pode ser mais produtivo do que problematizar o conflito?

Ao partirmos da perspectiva que o conflito é um produto da divergência de opinião, conseguimos compreender por que a escola contemporânea é tão conflituosa. As divergências entre estudantes, professores e gestores são reflexos do pluralismo que a democratização do acesso à educação vem produzindo.

Logo, é justamente a não explicitação do conflito que pode desencadear manifestações violentas. Explicitar o conflito é um caminho produtivo para a compreensão do cotidiano escolar, já que através do conflito é possível educar, estimular a empatia, incitar a reflexividade e pensar a complexidade das demandas oriundas das relações discentes, das condições institucionais, das diferentes concepções de educação e das diversas expectativas docentes.

O oposto desse caminho, isto é, a não investigação/problematização dos conflitos escolares além de contribuir para o aumento da violência escolar nas relações intersubjetivas, constituindo assim um clima escolar de intolerâncias, avesso à uma educação de valorização dos direitos humanos, também consolida a naturalização e eternização desse sistema de escolarização que não contempla as demandas sociais atuais.

VIOLÊNCIA NÃO, CONFLITO SIM: ALGUNS APONTAMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM CLIMA ESCOLAR DEMOCRÁTICO

Pesquisadores ingleses e norte-americanos se debruçaram sobre a dinâmica interna das escolas, enfatizando as relações intersubjetivas e o comportamento dos estudantes diante dos processos e normas disciplinares (BROOKE; SOARES, 2008). Rutter et al. (1979), foi um dos pioneiros a mencionar a existência de um ethos ou clima escolar que representaria o conjunto de relações sociais estabelecidas entre os sujeitos da comunidade escolar; a existência de objetivos claros e aceitos por todos os membros da escola; oportunidades concedidas de participação nos assuntos escolares (gestão participativa) e a percepção que os membros da escola, principalmente os estudantes possuem acerca da escola a respeito da própria participação nesse espaço.

Há muitas pesquisas que direcionam o clima escolar para compreender a violência escolar (PETERSON e SKIBA, 2001). Para esses pesquisadores os sentimentos que são cultivados e a preservação do respeito e todas as relações constitui um clima positivo. No Brasil a literatura que trabalha com o conceito de clima escolar desenvolve pesquisas que investigam o desempenho acadêmico dos alunos, outros trabalhos priorizam aspectos não cognitivos, principalmente os que são relacionados a fatores comportamentais. Em todas essas pesquisas é consensual que, “as escolas com clima escolar positivo tendem a ter alunos e funcionários mais satisfeitos e motivados e possuem baixos índices de evasão, sendo vistas como ambientes acolhedores e seguros”.

Juan Casassus (2007), realizou uma importante pesquisa longitudinal de 1995 a 2000 em 14 países da América Latina, inclusive no Brasil, e destacou que um clima escolar favorável à eficiência dos processos de aprendizados fundamenta-se em um clima emocional adequado, caracterizado pelo acolhimento, pelo reconhecimento das diferenças e principalmente pelo investimento de toda comunidade escolar na construção e fortalecimento de boas relações interpessoais. A pesquisa ressaltou que escolas onde as decisões e processos são interpretados como justos e equitativos a consequência é percebida na melhoria dos resultados no que se referem também ao desempenho escolar.

Nesse texto argumentamos que a construção de um clima escolar positivo passa pela investigação arqueológica das situações de conflitos que caracterizam o cotidiano escolar. Os conflitos constituem a singularidade de cada escola, são formados a partir de demandas e expectativas específicas e muitas vezes opostas; são permeados por condições institucionais assentadas em práticas tradicionais e também inovadoras; são os reflexos da necessidade de mudanças nos processos e nas concepções de aprendizagem, e fundamentalmente, são construídos por uma multiplicidade de identidades em disputa.

Encarar um conflito escolar é o mesmo que estar diante de um emaranhado de fios embolados, quando um fio é puxado surgem novos caminhos, novas vozes, novos posicionamentos e uma complexidade que parece não ter fim. Mas isso é a escola! Nesse emaranhado os fios puxados possibilitam a construção de novas formas de dialogar, de novos métodos de ensino, de novas identidades que são violentamente silenciadas quando soluções simplistas e reducionistas são direcionadas na tentativa de ignorar o conflito. Há uma tradição na escola de interpretar o conflito como negativo, essa tradição endossa uma cultura escolar que, geralmente, age de três formas: 1- camufla os conflitos, 2- culpabiliza os alunos e 3- interpreta o conflito como um fracasso da ação educacional. (GALVÃO, 2004). Essas três atitudes podem resultar numa simetria entre situações de conflitos e situações de violência. O oposto dessas atitudes pode ser pensado através de uma interpretação arqueológica do conflito. Onde começou (interno/externo à escola)? Quando? Qual o discurso de cada parte envolvida? O que está por trás dos posicionamentos? E principalmente, em quais situações determinados conflitos podem ser pedagogicamente potencializados? E em quais outras situações o conflito aponta para uma estagnação, para uma ameaça de violência?

Foi exatamente com essas duas últimas indagações que iniciamos em 2017 uma pesquisa sobre a judicialização dos conflitos escolares em São Gonçalo. Nas próximas linhas resgatamos um caso singular de violência escolar que nos foi narrado por professores durante a etapa de entrevistas da pesquisa.

Tenho uma aluna que sofre bullying desde o início do ano. Ela tem um sinal avermelhado no rosto, bem grande e com alguns pelos sobressalentes. Meninos e meninas caçoam dela. Antes dos testes eles fizeram um desenho dela em uma cartolina e recortaram um pedaço de absorvente, colaram no rosto dela, no desenho, né! E pintaram o absorvente de vermelho. Penduraram o desenho no quadro, antes do início da aula, e escreveram no quadro que ela menstruava pela bochecha. Foi horrível. Me senti muito mal com tudo aquilo. Tive raiva da turma, não consegui pensar em nenhum tipo de punição à altura da humilhação sofrida pela aluna. (P5)

A aluna que sofreu bullying tinha uma marca da diferença bem no seu rosto, mas para professora a humilhação sofrida pela aluna não pode ser explicada somente pelo fato da aula carregar no rosto uma marca estigmatizada que a torna diferente:

É verdade que essa aluna é diferente, é perseguida por conta do seu sinal. Mas convenhamos, estamos falando de jovens de 15 e 16 anos. Não acredito que eles fizeram isso com ela só porque ela é diferente. Eles fazem o tempo todo, com qualquer um, com aqueles que são diferentes e com aqueles que não se submetem. Esses alunos são ruins, devem ter algum desvio de índole, não sei... (P5)

A continuação do relato da professora não apresenta nenhum indício ou tentativa de interpretação arqueológica dos supostos conflitos que antecederam a violência simbólica produzida pelo grupo de alunos. Perguntamos a professora se ela procurou saber do grupo que produziu o cartaz o que os levou a ofender publicamente a menina. Ela respondeu que não, que não há tempo para isso e que só tem contato com a turma uma vez na semana.

Podemos indagar se a menina foi escolhida por conta do sinal, ou seja, se a marca estigmatizada da diferença foi realmente o motivo que desencadeou toda humilhação. Será que o grupo teria escolhido uma pessoa que não destoasse do que é padronizado e aceitável? A professora nos disse que não, que o grupo é capaz de fazer bullying com qualquer estudante. Então, nesse caso, a diferença não poderia ser desconsiderada, mas não explicaria a motivação para a humilhação. Para além da diferença, a professora nos relatou que esses alunos são ruins... deve ser um desvio de índole.

Nesse caso específico a professora colocou em prática a segunda estratégia que mencionamos acima, culpabilizar os alunos. Mas uma escola marcada por situações como essa, é possivelmente estruturada em um clima escolar negativo, já que os estudantes se autorizam humilhar publicamente uns aos outros. O que fazer numa situação dessa? Como proceder? Talvez um caminho seja investigar a origem do bullying, em que momento esse grupo começou a ofender a menina? Que estratégias utilizaram? Como a menina reagiu? Há quanto tempo essas humilhações acontecem? A turma é conivente? Outras situações semelhantes acontecem? É velado? Ou algum professor já percebeu? A menina tem uma rede de amigos? Se sim esses amigos também são humilhados e perseguidos? No grupo responsável pela elaboração do cartaz existe uma liderança? Entre os demais integrantes da comunidade escolar (docentes, gestores e funcionários) as relações são hostis?

Todos esses questionamentos funcionam como tentativas de puxar fios para desembolar o emaranhado de conflitos que antecederam o dia do cartaz pendurado. É evidente que essa violência foi antecedida por situações de conflitos que foram ignoradas, e/ou em que os estudantes foram e continuam sendo culpabilizados.

Na escola, a lógica da justiça retributiva de culpados e inocentes não fortalece o processo pedagógico. Isso não significa negar a responsabilização daqueles e daquelas que desrespeitam as normas e acordos de convivência social. Mas, agir buscando encontrar os culpados e aplicar punições apenas com intuito de evitar a impunidade, ou ainda, produzir o discurso que os estudantes são assim, não querem estudar, são mal educados, se tratam como animais... Nenhuma dessas posturas se configura como caminho eficaz para compreender o clima escolar dessa instituição e tentar buscar soluções que impeçam a violência escolar.

Todavia, a escola em geral nega o conflito por compreendê-lo como violência. E quando admite culpa os estudantes e/ou os docentes e gestores. Ainda no caso narrado, a professora não apenas deixou de interpretar e conhecer as raízes da situação, como perdeu uma excelente oportunidade de transformar a violência contra a menina em uma reflexão educativa para o reconhecimento das diferenças, para a promoção dos direitos humanos e para construção de uma escola justa. Negar o conflito, culpabilizar os estudantes ou insistir no discurso da escola fracassada são estratégias não transformadoras que acabam por solidificar um clima escolar marcado pela hostilidade.

Entretanto, é fundamental pensar os motivos que levam a comunidade escolar a desconsiderar o conflito como inerente à socialização escolar e ainda como um instrumento potencializador de novos aprendizados. No caso em questão, a professora escolheu direcionar o grupo responsável pela elaboração do cartaz para direção e dar prosseguimento a aula. Essa atitude não problematizou o mal-estar deixado na turma, não protegeu a menina humilhada e não problematizou a ação do grupo como uma violência, uma agressão moral. Nem ao menos questionou o grupo sobre suas motivações e a finalidade de um gesto tão desumano. Ao continuar normalmente seu planejamento de aula a professora (como autoridade educadora dentro da sala de aula) foi conivente com a agressão, mesmo tendo recorrido à direção.

Por que tudo evoluiu dessa forma? Muito provavelmente porque a professora não sabia a origem daquelas relações de hostilidade, não conhecia os conflitos que estavam por traz da decisão de elaborar um cartaz com tamanha humilhação. Não tinha conhecimento das relações interpessoais da turma e de como determinados grupos e identidades são marginalizados. Essa professora reproduziu um comportamento comum que muitos de nós frequentemente realizamos, isto é, ignoramos conflitos que julgamos menores e direcionamos violências que julgamos mais graves para o último escalão na hierarquia da justiça punitiva: a direção. E por que agimos assim? Porque partimos da premissa que não fomos formados para lidar com a diferença que desafia à escola; que não fomos formados para administrar conflitos e muito menos educar em valores através das situações de indisciplinas, conflitos e violências.

E para o quê fomos formados? Ora, para um modelo de escola nacional que naturalizamos como universal e eterna. Fomos formados para lecionar na escola disciplinadora e normatizadora de corpos, uma escola que civiliza a criança selvagem e domestica suas formas de pensar e agir. Nessa escola os docentes somente transmitem conhecimentos e informações, ensinam a ler, escrever, calcular e conhecer princípios básicos da ciência. Por isso esse modelo de escola nega os conflitos, culpa os estudantes ou afirma incapacidade de resolução.

O modelo desse sistema de escolarização é em si violento. Nesse modelo, investigar arqueologicamente os conflitos, escavar suas motivações originárias e buscar compreender os microfísicos discursos de poder que os permeiam é, simplesmente, inviável, pois a escola é blindada como um lugar de igualdade e proteção.

ESTENDENDO O CONVITE PARA ALGUMAS CONSIDERAÇÕES NADA CONCLUSIVAS

O objetivo desse texto foi esclarecer e ao mesmo tempo problematizar as situações de indisciplinas, conflitos e violências que ocorrem no cotidiano escolar e contribuem para a construção do clima escolar. Dois argumentos foram defendidos: 1- a indisciplina discente como um comportamento compreensível diante do excesso de normas disciplinadoras que limitam a autonomia estudantil e tornam o clima escolar autoritário e punitivo e 2- o conflito como positivo para a construção e fortalecimento de um clima escolar democrático, crítico às práticas de normatização e disciplinarização e alinhado a uma proposta de educação em direitos humanos.

Acreditamos que a defesa desses argumentos nos leva a problematizar esses conceitos e diferenciá-los da violência, uma vez que esta, em geral, se constitui como mecanismo de resolução dos conflitos que não foram explicitados, problematizados e potencializados pedagogicamente. Nesse sentido, um caminho profilático para violência escolar seria, num primeiro momento, desconstruir o mito do conflito como um comportamento negativo e violento. O conflito é inevitável, é sinônimo de liberdade de pensamento, de crenças, de atitudes. Na escola, uma instituição essencialmente socializadora, o conflito tem inúmeras vantagens que contribui para o processo educativo, mas que dificilmente são reconhecidas pelo caráter negativo que é interpretado.

Resgatamos aqui o convite feito na introdução. Desnaturalizar e desconstruir a eternização da escola, olhar a escola como uma instituição que surgiu em um contexto de disciplinarização das massas para que estas estivessem preparadas e domesticadas para o mercado de trabalho. Esse projeto político de escolarização reforçou durante décadas a indisciplina como desrespeito às ordens e o conflito como violência. Nosso convite é compreender a indisciplina pelo viés da reivindicação de estudantes que não aceitam mais esse projeto de escola e buscar as vantagens que as situações de conflito nos proporcionam para compreensão do clima escolar e para construção de novas formas de educar.

É através dos conflitos escolares que as relações intersubjetivas são construídas e fortalecidas. Os conflitos ajudam os estudantes a enxergar o mundo pela perspectiva do outro, pelo viés da diferença, pela alteridade.

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Pamela Suelli da Motta Esteves Socióloga e Psicanalista. Professora do Departamento de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e do Programa de Pós-Graduação em Educação, Comunicação e Culturas nas Periferias Urbanas - PPGECC.

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