SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.30 número3Indisciplinas, conflitos e violências: uma compreensão do clima escolarEntrevista com Adriana Puiggrós: alternativas pedagógicas - entre a história e a prospectiva da educação latino-americana (parte I) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Reflexão e Ação

versão On-line ISSN 1982-9949

Rev. Reflex vol.30 no.3 Santa Cruz do Sul set./dez 2022  Epub 03-Jul-2023

https://doi.org/10.17058/rea.v30i3.16731 

Artigos do Fluxo

Memórias de velhos(as) chiquitanos(as): identidade de gênero e brincadeiras de infância

Memories of old chiquitanos: gender identity and children’s games

Memorias de viejos(as) chiquitanos(as): identidadde género y juegos de infância

Elidiane Martins de Brito da SilvaI 
http://orcid.org/0000-0001-7684-1314

Léia Teixeira LacerdaII 
http://orcid.org/0000-0003-3752-0790

I Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT - Mato Grosso - Brasil.

II Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS - Mato Grosso do Sul - Brasil.


RESUMO

Este artigo apresenta reflexões sobre a função social do brincar na construção da identidade de gênero a partir das memórias de velhos(as) Chiquitanos. Esses atores narram suas brincadeiras de infância, evidenciando como as relações de gênero se constituíam em um contexto histórico marcado pelos conhecimentos tradicionais desse grupo. Na cultura chiquitana as relações de gênero se processam conforme os códigos culturais e se constituem de maneira singular ao conceber o homem e a mulher em sua cosmologia. Assim, o brincar era organizado de forma espontânea, flexível e desprovido de estereótipos de gênero. Meninos e meninas brincavam juntos e faziam seus brinquedos com os materiais disponíveis na natureza.

Palavras-chave: Identidade de gênero; Brincar indígena; Chiquitanos; Memória de velhos

ABSTRACT

This article presents reflections on the social function of playing in the construction of gender identity based on the memories of old Chiquitanos. Those actors narrate their childhood games, showing how gender relations were constituted in a historical context marked by traditional knowledge of their group. In Chiquitana culture, gender relations are processed according to cultural codes and a cosmology equally applied to man and woman. Thus, children’s games were spontaneous, flexible and without gender stereotypes. Boys and girls played together and made their toys with materials found in nature.

Keywords: Gender identity; Indigenous children’s games; Chiquitanos; Elders’ memories

RESUMEN

Este artículo presenta reflexiones sobre la funciónsocial del juego en la construcción da identidad de género a partir de las memorias de viejos(as) Chiquitanos. Esos actores relatan sus juegosde infancia, que ponen en evidencia como se configuraban las relaciones de género en un contexto histórico marcado por los conocimientos tradicionales de ese grupo. En la cultura chiquitanalas relaciones de género se procesan de acuerdo con los códigos culturales yse constituyen de manera singular alconcebiral hombre y ala mujer en su cosmología, considerando que, según sus concepciones, el juego se organizaba de forma espontánea, flexibley desprovista de estereotiposen lo que se refierea ladiferencia de sexos, ya que niños y niñas jugaban juntos y producían sus juguetes con los materiales disponibles en la naturaleza.

Palabras clave: Identidad de género; Juego indígena; Chiquitanos; Memoria de viejos

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta o recorte de um estudo sobre as questões de gênero presentes nas memórias dos(as) velhos(as) chiquitanos(as) a partir dos resultados de pesquisa intitulada Educação e histórias sobre as concepções de infância de velhos(as) chiquitanos(as): modos de ser, de aprender e de viver, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Educação, da Unidade Universitária de Paranaiba da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, que teve como objetivo analisar o conceito de infância para essas pessoas que residem em Porto Esperidião-MT. O trabalho apresenta a temática da infância indígena inventariada por meio das concepções dos(as) velhos(as) chiquitanos(as) documentadas nas etapas da pesquisa que buscou analisar o conceito de infância que circula nesse grupo, as quais nos possibilitam refletir também como se estruturam as relações de gênero e como as crianças constroem a diferenciação sexual nesse grupo étnico.

Historicamente, o povo chiquitano se constituiu a partir de missões jesuítas chegaram no Brasil no final do século XVII, pelas quais várias etnias foram aldeadas, a fim de propagar a religião católica e integrar os indígenas ao projeto civilizador da coroa espanhola. Conforme Bortoletto (2007, p. 57), muitos indígenas “eram caçados e capturados” em seus territórios tradicionais com o uso da violência, que seguiam em nome da mentalidade dos padres jesuítas a qual preceituava que “[...] aquela gente deveria abandonar sua vida selvagem para ser domesticada e transformada em autênticos homens e bons cristãos” (PUHL, 2008, p. 165). No entanto, diante do fracasso desses redutos missionários em 1850, muitos chiquitanos adoeceram e perderam suas vidas em consequência de doenças, miséria e/ou guerras; enquanto outros retornaram aos seus territórios tradicionais para junto de suas comunidades.

Desde então, os chiquitanos povoam os dois lados da fronteira Brasil-Bolívia, pois a área denominada Chiquitania compreende desde as terras baixas da Bolívia até o Vale do Guaporé, no Brasil, possibilitando que essas comunidades compartilhem seus saberes ancestrais entre entre esses países. Silva (2009), diante dessa discussão, afirma que, com o fim das reduções missionárias na Bolívia, muitos indígenas foram trabalhar na construção da estrada de ferro Ferrocarril (1939-1954), que liga Santa Cruz de La Sierra a Corumbá, na busca por melhores condições de vida. Por esse motivo há famílias chiquitanas nesta cidade brasileira até os dias atuais.

Outra estratégia de sobrevivência foi o envolvimento dessa população para Mato Grosso para trabalhar na extração da borracha e da poaia nos seringais em condições desumanas impostas pelos grandes fazendeiros, como nos afirma Silva (2015, p. 79):

A história dos Chiquitano no Brasil esteve relacionada ao medo e à vergonha, oriundos de seu processo nas reduções jesuíticas; do “trabalho escravo” nos seringais com o extrativismo de borracha e poaia; e nas fazendas com manejo do gado, construção de cercas, cujo processo os forçou ainda a deixar de falar a própria língua, para que se tornassem “cristãos e civilizados”, “brasileiros” ou ainda “pobres”.

Dessa forma, é possível afirmar que os chiquitanos contribuíram para o crescimento econômico de Mato Grosso com a exploração de sua mão de obra, contratada por valores inferiores aos praticados no mercado e excedente em relação às jornadas de trabalho. Além disso, também trabalharam como demarcadores territoriais, protegendo as fronteiras brasileiras das invasões espanholas (MEIRELES, 1989).

Assim, vivenciavam seus saberes tradicionais dialogando com a sociedade não indígena, estabelecendo relações sociais com fazendeiros e militares que povoavam os destacamentos da fronteira Brasil-Bolívia. Durante décadas, o povo chiquitano viveu nessa situação, invisibilizado pela sociedade não indígena quanto aos seus direitos legais.

Esse quadro começou a mudar no final da década de 1990, a partir da identificação de suas comunidades na rota do Gasoduto entre os dois países. Moreira da Costa (2006, p. 15) salienta que “[...] durante os procedimentos do Estudo de Impacto Ambiental - EIA, foi realizado um levantamento das comunidades de índios Chiquitano existentes no traçado do gasoduto [...], apresentando uma população significativa”.

Esse trabalho evidenciou a presença do povo chiquitano no cenário brasileiro e contribuiu decisivamente para seu reconhecimento étnico junto à Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em 1999. Desde então, eles “[...] passaram a fazer parte de ações afirmativas de diversos programas de governo, visando ao desenvolvimento dessa região fronteiriça” (MOREIRA DA COSTA, 2006, p. 16).

Atualmente, esse povo habita em Mato Grosso a Terra Indígena Portal do Encantado, localizada nos municípios de Pontes e Lacerda, Porto Esperidião e Vila Bela da Santíssima Trindade, e suas aldeias estão bem próximas à fronteira Brasil-Bolívia. Os chiquitanos se organizam em pequenos núcleos familiares, divididos entre as aldeias Acorizal, Central, Fazendinha e Vila Nova Barbeicho . Sua sobrevivência depende do “[...] trabalho na terra com a roça, a pesca, a coleta de frutos, portanto nem sempre são suficientes para a sobrevivência das famílias” (QUEIROZ, 2013, p. 26). Desse modo, alguns deles trabalham em fazendas vizinhas em troca de diárias bem abaixo do valor de mercado em busca de complementarem a renda familiar

No espaço urbano de Porto Esperidião (MT), os chiquitanos representam 50% da população e, no cotidiano urbano, são reconhecidos pelo etnônimo bugres. Muitos preferem esse nome por entenderem que assim estariam associados ao homem civilizado, diferente de chiquitano, que os relacionaria ao selvagem e aos povos das matas, segundo Pacini (2012). Como uma estratégia de resistência e para a preservação de suas raízes culturais, eles organizam grupos locais de curussé na tentativa “[...] de manter sua identidade étnica que os diferencie dos brancos da cidade” (BORTOLETTO, 2007, p. 109), tendo em vista que a luta pelo reconhecimento étnico e territorial ainda é um obstáculo para a emancipação política e social dos chiquitanos.

Nessa complexa problemática social está inserida a criança, que vivencia as influências dessas batalhas estabelecidas em busca do direito de ser índio(a) chiquitano(a) nesse espaço de fronteira entre o Brasil e a Bolívia. Ela está sujeita às ingerências da sociedade não indígena, que desconsidera a “alteridade sexista” (BANDEIRA; FREIRE, p. 2006), atribuindo às mulheres uma posição subordinada em uma sociedade marcadamente machista. Nesse contexto, identificamos no espaço lúdico do curussé um lugar de aprendizagens no que se refere à construção das identidades de gênero alinhada ao respeito, às diferenças e à igualdade humana.

De igual modo, pensar a relação das brincadeiras infantis em favor da construção da identidade de gênero abre reflexões sobre representações de ser homem e mulher na sociedade brasileira e sobre suas relações ainda desiguais, uma vez que essas identidades são culturalmente construídas a partir das interações sociais entre os sujeitos envolvidos no processo de socialização. Para Bicalho (2013, p. 44), é possível “[...] entender gênero como interligado ao conceito de identidade, como uma forma de representação social e cultural ativa, que passa por vários processos de mudança e transformação, que produz o que somos hoje e o que poderemos ser no futuro”.

Dessa maneira, cada cultura estabelece seus códigos culturais com base em sua cosmologia e visões de mundo. Na cultura chiquitana, por exemplo, fica pouco evidente o estereótipo da superioridade masculina e da inferioridade feminina - no processo de intercâmbio cultural - tendo em vista que as pessoas são consideradas importantes. Elas se complementam na manutenção da ordem social, a partir das suas histórias de vida, seus saberes e conhecimentos tradicionais transmitidos oralmente entre as gerações.

As brincadeiras também são marcadas por símbolos e sentidos culturais, agindo como um meio de incorporação de rótulos impostos pela sociedade, como é o caso da brincadeira de casinha, usualmente restrita às meninas. O brincar se constitui, portanto em um espaço pelo qual transitam valores, crenças e sentimentos sobre as identidades de gêneros e as vivências da sexualidade difundidas socialmente, que constituem modelos de como ser e agir no contexto social.

Ao considerando que este estudo aborda a temática da identidade de gênero sob a perspectiva lúdica de jogos, brinquedos e brincadeiras chiquitanas - a partir das histórias de infância dos(as) velhos(as) dessa etnia - buscamos refletir sobre como as crianças constroem sua diferenciação no que se refere aos gêneros no interior desse grupo étnico.

AS IMPLICAÇÕES DAS BRINCADEIRAS INFANTIS NAS RELAÇÕES DE GÊNERO PARA AS CRIANÇAS

Desde o nascimento, a nossa identidade de gênero é constituída a partir das referências culturais que recebemos do meio que nos cerca. Essa afirmação pode ser evidenciada diante da ansiedade da gestante em saber o sexo do bebê, para que possa organizar o quarto e o enxoval. Essa descoberta muitas vezes direciona ações, como escolher a cor de menino ou de menina, os brinquedos e as representações simbólicas que aos poucos serão apresentados à criança no cotidiano familiar e nas instituições sociais.

Entretanto, os diferentes arranjos familiares do século XXI têm mudado essa mentalidade social, pois hoje encontramos na sociedade brasileira, diferentes tipos de arranjos familiares: pai/mãe/filhos, pai/pai/filhos, mãe/mãe/filhos, vó/vô/netos, entre outros. Isso porque a época histórica molda diferentes formas de representação social - exercida por homens e mulheres - como a atuação feminina, restrita ao espaço doméstico no Brasil colonial atendendo as funções como procriar, educar os filhos e ser uma boa esposa. Atualmente, e principalmente pelos movimentos feministas, as mulheres transcendem diferentes espaços de poder na sociedade em busca de seus direitos humanos e trabalhistas.

Sobre a definição de gênero, Scott (1990, p. 14) explica que se trata de “[...] elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos [e] um primeiro modo de dar significado às relações de poder”. Ele se difere da sexualidade, ou seja, das estruturas anatômicas do sujeito, ultrapassando o aspecto biológico e sendo uma maneira culturalmente construída de evidenciar a primazia masculina nos diferentes espaços sociais. Conforme Moore (1997, p. 822):

A disparidade entre as representações culturais de gênero e as atividades de homens e mulheres individuais levanta mais uma vez as questões de como o status das mulheres será avaliado em um dado contexto e que tipo de informação é necessário para poder determinar a natureza e o grau da subordinação das mulheres em relação aos homens.

Para essa autora, o sexo se refere às definições biológicas dos sujeitos, enquanto o gênero está relacionado aos “[...] significados simbólicos associados às categorias homem e mulher que são socialmente construídos” (MOORE, 1997, p. 814). Assim, para uma educação orientada pela inclusão e pela igualdade, que desconstrua as diferentes formas de hierarquização e inferiorização do sexo feminino - disseminadas historicamente desde o nascimento das antigas civilizações - as brincadeiras podem e devem ser um mecanismo de luta contra as desigualdades de gênero. Isto se constitui em uma estratégia para formar intelectual e socialmente pessoas que se reconheçam conforme suas diferenças em um único grupo: o humano.

O brincar pode desconstruir estereótipos como as tipologias: rosa é de menina e azul, de menino; carrinho é brinquedo de menino e boneca é de menina; menino não chora ou menina cuida da casa. Assim, desde a infância, as pessoas vão se constituindo como homens e/ou mulheres, principalmente por meio da linguagem, pois ouvem, internalizam e reproduzem essas narrativas em suas ações cotidianas. Se observarmos um grupo de crianças brincando de faz-de-conta, por exemplo, identificamos como diferentes referências culturais emergem nas falas e nas ações infantis.

Nesse sentido, o aspecto lúdico se constitui como uma possibilidade de construção das identidades de gênero, tendo em vista que nos remete às reflexões mais profundas e possibilita uma educação voltada para a construção de diferentes subjetividades em um único contexto: a escola. Sobre esse aspecto, Louro (1997, p.81), afirma que “[...] a sexualidade está na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela não é algo que possa ser desligado ou algo do qual alguém possa se ‘ despir’[...]”.

No entanto, na fase da infância, questões relacionadas ao sexo e ao gênero ainda são consideradas como um tabu, pois as discriminações ainda predominam na mentalidade social, tendo em vista ser esse um assunto pouco discutido nas escolas de Educação Infantil brasileiras. Bandeira e Freire (2006) confirmam esse entendimento ao argumentarem que as relações de gênero que distinguem homens e mulheres ultrapassam a esfera biológica, navegando por diferentes aspectos que nos permitem compreender a concepção de ser mulher e homem na sociedade.

Isto não quer dizer que se está negando as características biológicas dos sexos, mas esse não é o foco de interesse da discussão, uma vez que a valorização/desvalorização das pessoas com base na diferença sexual é socialmente e não biologicamente construída (BANDEIRA; FREIRE, 2006, p.40).

Durante as brincadeiras, o adulto mediador pode propor novos desafios, como, por exemplo, questionar as crianças: por que os meninos não brincam de casinha? Por que rosa é cor das meninas? Essas e outras questões, quando problematizadas, suscitam reflexões que gradativamente desconstroem narrativas preconceituosas e estereótipos estabelecidos por muitas vozes de uma sociedade machista, como a brasileira.

A pesquisa de Pagliuca (2017) revela as histórias de infância dos(as) velhos(as) chiquitanos(as), demonstrando como as relações de gênero dessa etnia diferem da sociedade não indígena. Os chiquitanos consideram o brincar como um ato lúdico desprovido da classificação sexista de brincadeiras, tendo em vista que as memórias dos/as velhos(as) apontaram que as crianças brincavam todas juntas ou em grupos e em outras ocasiões organizadas de acordo com o sexo.

Esses dados evidenciam que o lúdico nessa cultura não se orienta por padrões que evidenciam a masculinidade em detrimento da feminilidade, pois, ambos têm suas particularidades que oportunizam trocas simbólicas no grupo de maneira harmônica. Podemos considerar então que, quando as brincadeiras se restringem ao gênero, habilidades e capacidades são limitadas, inclusive a habilidade de re(criação) é prejudicada, pois o universo infantil pode se restringir aos padrões sexistas regulamentados pela sociedade.

A ATUAÇÃO SOCIAL DE MENINAS E MENINOS CHIQUITANOS(AS)

As categorias sociais desempenham uma funcionalidade nas relações estabelecidas. Quanto à criança indígena, existe um lugar destinado a ela em seu grupo étnico. Cohn (2000, p. 205) afirma que as crianças Xikrins “[...] atuam como mensageiras entre as casas, levando e trazendo recados e presentes, o que lhes permite desenvolver muito cedo um conhecimento da rede de relações sociais em que se encontram inseridas [...]”.

Por outro lado, Lecznieski (2012), em seus estudos sobre as crianças Kadiwéu oriundas do Pantanal sul-mato-grossense, salienta a centralidade infantil no cotidiano desse povo, pois, os adultos admiram as crianças e lhes oferecem diferentes cuidados. Elas se destacam na mitologia Kadiwéu como personagens principais nos mitos. A autora afirma que são “[...] dotadas de uma extraordinária capacidade criativa e capazes de tecer conexões e manter relações não apenas entre parentes e não parentes, mas também com outros mundos” (LECZNIESKI, 2012, p.25).

Na cultura Galibi-Marworno - oriunda do norte do Amapá - por sua vez, as crianças indígenas são consideradas atores potencialmente autônomos para construir suas ricas aprendizagens por meio das interações entre seus pares (CODONHO, 2012). Elas se revelam protagonistas no cotidiano por meio de brincadeiras, falas e atitudes. Codonho (2012, p. 68) assevera, pois, o “[...] o protagonismo infantil e a importância das crianças na transmissão de práticas culturais”.

No que diz respeito à cultura chiquitana, as crianças presenciam diariamente disputas territoriais fronteiriças, ameaças e preconceitos da sociedade não indígena. Seus territórios tradicionais são alvo de lutas em favor da vida coletiva de seu grupo étnico, pois seus saberes estão alinhados ao conhecimento do campo, do pantanal mato-grossense. Eles se ocupam do plantio e da colheita na roça, inclusive as mulheres, como nos elucida Silva (2015, p. 77-78): “[...] com a ausência do marido que sai para trabalhar na fazenda, a mulher assume também as atividades na roça [...]”.

Ademais, a humanidade chiquitana somente é consolidada por meio do ato batismal. Antes disso, a criança é uma mera criatura, sem dono e sem alma. No entanto, após o batismo, ela passa a ser gente, cristã, filha de Deus. Em outras palavras, “[...] somente após o rito de passagem, receberá o nome de santo e, dessa maneira, inicia seu pertencimento a um coletivo - ‘nós’ (cristãos, batizados, filhos de Deus, gente)” (SILVA, 2015, p. 80).

Meninos e meninas são concebidos/as e educados/as no interior da cosmologia chiquitana de forma bem semelhante: sua socialização se fundamenta no respeito aos saberes tradicionais do que em distinções sexistas, inclusive no ato de brincar, no qual vivenciam as mesmas experiências lúdicas cotidianas, como é o caso do compadrio de boneca.

Compadrio de “boneca” é a relação criada entre crianças quando brincam com suas bonecas, confeccionadas em tecido, para a qual realizam cerimonialmente um batismo com água. Um menino e uma menina são convidados pela dona da boneca para serem padrinho e madrinha, e um terceiro menino é chamado para ocupar a posição de um padre. A madrinha presenteia a boneca com um vestido novo. O batismo ocorre com o derramamento de água sobre a cabeça da boneca, com palavras cerimoniais e a sua nominação; recebe um nome de humano e, por fim, as demais crianças participantes realizam uma festa, ou comem juntas e pode haver a presença de adultos (SILVA, 2015, p. 114-115).

De acordo com essa autora, meninos e meninas reproduzem o cotidiano, por meio da brincadeira citada, de maneira que ambos também compartilham ambos o prazer e a diversão. Essa linguagem na cultura chiquitana está desprovida de restrições e preconceitos sexistas, já que esses sujeitos representam diferentes papéis, reconhecendo-se em suas particularidades.

O convívio entre meninos e meninas chiquitanas foi relatado pela Sra. Aladia Surubi Pachuri, Chiquitana:

nós plantávamos e fazíamos a peteca para brincar nos dias de sábado. Nos sábados e domingos, o dia inteiro nós brincávamos. E na semana ia para o serviço. A bola não tinha na época, meu pai fazia da resina da mangaba, eleava ela assim (apontando para o antebraço) no pauzinho e ia fazendo a bola, até ficar grande. Meu tio fazia também para nós jogarmos. (PAGLIUCA, 2017, p. 124).

As brincadeiras, os jogos e os brinquedos eram vivenciados sem construções estereotipadas, respeitadas, porém, as representações de gênero, as representações sociais e a divisão do trabalho por sexo. Nas aldeias, mulheres e meninas cuidam da casa e ajudam nos labores da roça, enquanto os homens trabalham nas roças ou em fazendas da região.

Essa divisão do trabalho pode ser constatada na organização social chiquitana, tendo em vista que as crianças estão inseridas nos diferentes eventos, rituais e espaços da aldeia para apreenderem os saberes alinhados às referências culturais dessa etnia. No caso da preparação da festa do curussé, essa manifestação cultural constitui a identidade étnica. Queiroz (2013) nos informa que meninos e meninas participam do preparo dos quitutes e da chicha dias antes do festejo - pois é preciso que os ingredientes passem pela fermentação alguns dias. A autora ainda relata que “[...] mesmo aquelas muito pequenas participam dos processos de mastigação para que se obtenha o fermento para a chicha: ensinar a fazer fazendo junto, valorizando os saberes dos mais velhos e não limitando idade para o aprendizado” (QUEIROZ, 2013, p. 85).

Fonte: Pagliuca, (2017, p. 117)

Em um primeiro encontro com o velho chiquitano Francisco Massai Jovio (Figura 1), este nos apresentou os instrumentos musicais do curussé - feitos artesanalmente - e relatou que aprendeu a confeccioná-los e a tocá-los com o pai e com outros velhos da comunidade. Explicou ainda que a função de produzir os instrumentos e tocar o curussé é direcionada aos homens chiquitanos, ficando o preparo das comidas a cargo das mulheres. Contudo, nas rodas do curussé, todas as pessoas “pulam” juntas.

Assim, durante o curussé meninos e meninas incorporam saberes culturais na interação com os demais indivíduos, a partir da oralidade, da musicalidade e da corporalidade humana. Pelos dados produzidos por Pagliuca (2017) é possível afirmar que a cultura infantil dos chiquitanos não é orientada por narrativas preconceituosas e não há uma imposição sexista. Dessa maneira, a experiência infantil direciona-se pelas relações entre crianças/adultos/velhos(as) e a interdependência entre cultura e natureza.

Pelas narrativas dos(as) entrevistados(as) constatamos que produziam seus brinquedos e brincadeiras a partir dos elementos da natureza e da tecnologia disponível, como é o caso da bola feita da resina da mangaba, das bonecas feitas de pano, do carrinho feito de madeira e dos banhos nos rios. Assim, a produção da vida na cosmologia chiquitana articula o uso sustentável dos recursos naturais, as crenças e os costumes, aliados às atividades produtivas, à confecção de brinquedos e às vivências do jogo lúdico estruturado nas brincadeiras.

Segundo Pagliuca (2017) nessa cosmologia, a infância apresenta-se como um espaço social de trocas de informações culturais, de aprendizagem das histórias de seu povo, de seus territórios e, sobretudo das lutas, tendo em vista que no processo lúdico do brincar educa-se o corpo e exercita-se o imaginário, articulados à produção de vida do povo Chiquitano. Dessa forma, é possível afirmar que não vigora no imaginário social chiquitano essa divisão por gênero, o que prevalece é a tecelagem das existências e resiliências de meninos e meninas chiquitanos(as) nos diferentes lugares dessa comunidade.

Conforme a autora (2017, p. 127-128), os(as) velhos(as) chiquitanos(as), quando perguntados se na época de sua infância existia a classificação de brincadeiras de meninas e meninos, responderam:

Brincávamos as mesmas brincadeiras, mas sempre separados. Pega-pega e escondeesconde também, mas era separado. Eu brincava com as meninas no rio, ficávamos todos pelados meninas e meninos. E nem tinha malícia menina montava no lombo do menino, menino montava na menina maior, lá na água brincava todo mundo, brincando saía da água e vestia sua roupinha e ia embora (Antonio Maconhão Poquiviqui, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 11/10/2016). Brincávamos todos juntos, meninas e meninos. Nós sabíamos fazer campo, o terreiro era cheio de areia e nós jogávamos peteca, cada um fazia a sua peteca (Aladia Surubi Pachuri, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 14/10/2016). Era tudo separadinho, mas se quisesse misturar, misturava também, não tinha problema. Tudo unido e naquele tempo não existia bola, ninguém tinha bola, não existia de jeito nenhum, eram só as petecas que estou falando, que aprendemos só naquilo, não tinha mais outro (João Jovio Soares, 80 anos, Porto Esperidião, MT, 13/10/2016). As meninas brincavam de bonecas feitas de sabugo de milho, de garrafa ou de pano e os meninos de peteca, cavalo e à noite diziam que um deles virava cachorro para pegar lobete, diziam que um era bicho, o lobete e o cachorro. Essa era a brincadeira deles e as meninas brincavam separadas dos meninos e era tudo separadinho. Mas às vezes misturavam todos (Carmem Justiniano Leite, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 15/10/2016). Os meninos brincavam de carrinho de madeira, eles lutavam para conseguir fazer um carrinho e tantas coisas, era esse que eles faziam. E nós brincávamos de bonecas, fazíamos bonecas de pano (Luzia Sie,63 anos, Porto Esperidião, MT, 18/10/2016). Elas brincavam de cobra-cega, aí tampava os olhos com um pano aqui e começava a correr atrás de um, atrás de outro, depois outro e outro até que pegava um, aí aquele que era pego iria também tampar a cara. E os meninos brincavam de birosca, pião e a brincadeira do rato (Francisco Massai Jovio, 76 anos, Porto Esperidião, MT, 15/10/2016).

Pelas narrativas apresentadas, constatamos que os(as) velhos(as) chiquitanos(as), ora brincavam todos juntos, ora separados e não existiam regras durante as vivências das brincadeiras: as crianças brincavam pelo prazer e pela diversão do brincar. Assim, é possível constatar que o constante contato com a mãe natureza e a aprendizagem das tecnologias de produção de brinquedos, como o caso do carrinho de madeira, insere a criança nos modos de ser, de aprender e de viver os códigos sociais da Chiquitania.

Além disso, o espaço da infância na concepção dos(as) velhos(as) chiquitanos revela-se em “[...] um período para educar o corpo e vivenciar as cosmologias do povo chiquitano, seja pelas práticas das brincadeiras, por ouvir as histórias dos velhos, por degustar as comidas indígenas ou pelas vivências cotidianas na comunidade” (PAGLIUCA, 2017, p. 151). Assim, as identidades de gêneros se constituem a partir das transferências culturais entre crianças, adultos e velhos(as), que se iniciam desde a infância, momento em que se aprende o valor de ser menino/homem e menina/mulher indígena no convívio social, como relatado pelo velho chiquitano a partir de narrativa registrada pela referida autora (2017, p. 130):

Os adultos faziam uma gracinha ali e conversavam, só que conversas eram muito difíceis os meninos ficarem escutando. Eles contavam histórias, eu fui, aprendi com o meu avô que ele era um guerreiro em 1930 na Guerra do Paraguai e Bolívia, então ele contava da juventude dele, também nos ensinava e falava dos velhos e nós escutávamos, contava as histórias dele de quando ele começou quando ele era jovem e ele dizia assim: não existe outra coisa boa a não ser o respeito. Era sua lição de vida, ele falava: roubar nunca, não “panha” nada que é dos outros, não seja ambicioneiro: se você quiser uma botina trabalhe e compre uma, se você quiser chinelo trabalhe e compre o seu chinelo (Antonio Maconhão Poquiviqui, 68 anos, Porto Esperidião, MT, 11/10/2016).

Dessa perspectiva, a interação entre as crianças e os adultos com os conhecimentos tradicionais são construídos culturalmente e virtudes como integridade e honestidade são ensinadas aos menos experientes. Pela narrativa apresentada, por exemplo, é possível constatar que as crianças aprendiam muito ao ouvir e presenciar ações, estas incorporadas as suas práticas infantis, inclusive brincadeiras, espaço em que a fantasia e a imaginação estão em constante ação. De acordo com Pacini (2012), esse intercâmbio cultural também se processa pelas ricas interações estabelecidas entre as comunidades brasileiras e bolivianas situadas na grande Chiquitania que envolve os dois países, a partir de relações que se estabelecem por meio dos conhecimentos tradicionais, das práticas e dos mitos.

Entre as práticas culturais chiquitanas, o curussé é vivido e revivido em nessas comunidades fronteiriças. Nele, há uma classificação em categorias: meninas, rapazes e adultos, como uma forma de organizar as cirandas e garantir a sintonia entre músicos e dançantes.

[...] Aprendi a pular o curussé olhando os adultos, porque nós não dançávamos, só no último dia que dançavam as crianças, só que eram assim separadas: só as meninas assim separadas, numa rodinha. A outra segunda dos rapazinhos não misturavam com as meninas os rapazes novos, e a terceira só adultos, assim era a festa (Luzia Sie, 63 anos, Porto Esperidião, MT, 18/10/2016).

No curussé as questões de gênero emergem a partir da produção dos espaços chiquitanos, como a divisão do trabalho em sua organização e apresentação. Por exemplo, a produção dos instrumentos de percussão se deve aos homens; às mulheres compete preparar as comidas, e as crianças transitam entre esses dois espaços. Antigamente, estas participavam somente nos últimos dias da festa, como explica a Sra. Carmem Justiniano Leite, chiquitana.

[...] Nós ficávamos em casa, todos festavam e nós ficávamos em casa, só os adultos dançavam. Aí depois, foi indo, foi indo que só na terça-feira eles reuniam todas as crianças para dançar, quando saísse o povo e fosse dançando, as criancinhas pequenininhas todas na frente, todas de vestidinhos enfeitados de fita, só esse dia que elas (PAGLIUCA, 2017, p. 135).

Segundo essa autora, havia uma espera ansiosa e uma preparação para vivenciar o curussé, os vestidos e as fitas nos cabelos das meninas denunciam os minuciosos preparativos que antecediam essa manifestação ritualística. Os meninos também certamente se arrumavam para esse dia, como também presenciavam a produção de comidas, bebidas e instrumentos de percussão - caixa, pífano, apito, flauta e bombo - do curussé.

Esses momentos descrevem a originalidade do povo chiquitano, com seus sentidos e signos peculiares e desprovidos de padrões europeus impostos pela sociedade não indígena, tais como ser o homem forte e viril e a mulher frágil e delicada, o que mascara preconceitos contra as sociedades tradicionais, como os indígenas e os afrodescendentes.

O REPERTÓRIO DAS BRINCADEIRAS VIVENCIADAS PELOS(AS) VELHOS(AS) CHIQUITANOS(AS) E SUAS CONTRIBUIÇÕES PARA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE GÊNERO

Evidenciar as vozes e as identidades dos(as) velhos(as) chiquitanos(as) nos permite descrever como esse povo vivencia suas práticas culturais e seus saberes ancestrais no cotidiano indígena, por meio de suas memórias, foi possível conhecer preciosidades de suas infâncias, como as brincadeiras e os brinquedos pertencentes ao universo infantil dessa população.

A sensibilidade da criança, cuja forma de perceber o mundo é diferente da de outras fases da vida, tem na liberdade um dos principais ingredientes para aprender. Suas aprendizagens devem por isso mesmo ser significativas para ela, ter sentido próprio, mesmo que esse sentido seja do mundo imaginário, pois, nesse processo de aprender e apreender o mundo que descobre com suas experiências, ela amplia suas formas de recriar o mundo e aprender, apreendendo-o de forma cada vez mais enriquecida e complexa (GRANDO; ALBUQUERQUE, 2012, p. 8).

A criança indígena, como sujeito potencialmente livre, circula pelos diferentes espaços de sua comunidade com a finalidade de interagir e conhecer o mundo social que a envolve. Por isso, suas aprendizagens são mais significativas, estando desvinculadas de regras impostas pelos adultos e manifestando assim estratégias de compreensão do universo social além da aparência, conforme sua essência. E uma das possibilidades de se produzirem sentidos quanto à identidade de gênero é vivenciá-la por meio dos jogos, dos brinquedos e das brincadeiras. No caso dos(as) velhos(as) chiquitanos(as), as brincadeiras que praticavam não eram classificadas em referência aos sexos, mas negociadas pelas próprias crianças, todas juntas ou em pequenos grupos. Pagliuca (2017) identificou nos relatos analisados alguns jogos, brinquedos e brincadeiras vividos por eles(as) em suas infâncias.

Bailinho do curussé, balanço feito de cipó, banho no rio, birosca (bolinha de gude), bodoque, bola de mangava, bonecas feitas de sabugo de milho, de garrafa e de pano, brincadeira do lobete e cachorro, brincadeira do rato e cachorro, carrinho de madeira, casinha, cobra-cega, cavalo de pau, esconde-esconde, jogar tinta nas pessoas (carnaval), pega-pega, pescaria e pião (PAGLIUCA, 2017, p. 129).

As atividades lúdicas inventariadas por Pagliuca (2017) revelam que o brincar é uma linguagem característica da infância, desprovida de estereótipos que visa divertir, (re)criar e experimentar tanto o vivido quanto o imaginado, regada por sentidos e códigos culturais.

Essa experiência narrada sobre o brincar revela uma forma de explorar e conhecer o mundo vivido com detalhes e riquezas naturais: no rio meninos e meninas juntos, todos nus, bebem a água, mergulham seus corpos, nadam e pulam sem nenhuma malícia. Assim, o corpo apresenta-se como um instrumento para compreender as esferas cosmológicas do grupo chiquitano. “[...] Pelo corpo e de forma aparentemente lúdica e despretensiosa, o brincar lhe[s] proporciona a aprendizagem necessária para viver com seu grupo social e com ele garantir sua sobrevivência de forma harmônica com os diversos mundos que compõem seu cosmos” (GRANDO, 2014, p. 110).

Contudo, algumas brincadeiras eram vivenciadas conforme os papéis sociais desenvolvidos pelos adultos cotidianamente, mas sem nenhuma imposição quanto à categorização de brincadeiras/brinquedos para meninas e meninos. Percebemos essa liberdade desprovida de imposições machistas, concepções tão comuns à cultura não indígena.

Grando (2014, p. 102) considera o brincar “[...] como parte do processo de formação da pessoa”, inclusive da constituição da identidade de gênero, pois, por meio dessa atividade, a criança indígena reproduz e vivencia os sentidos atribuídos ao papel social do homem e da mulher em sua cosmologia, posto que “[...] a constituição de gênero deve ser pensada como um processo individual que se desenvolve durante toda a vida do sujeito, de diferentes formas e em tempos distintos para cada pessoa” (BICALHO, 2013, p. 44).

O brincar desprendido de estereótipos sexista permite àscrianças chiquitanas vivenciar seus códigos culturais de forma autônoma, em contraposição a intenções, símbolos e discursos preconceituosos que inferiorizam a figura feminina e hierarquizam a masculinidade em favor de uma cultura machista imposta pela sociedade não indígena.

Frente ao exposto, os jogos, os brinquedos e as brincadeiras podem ser considerados na cultura chiquitana como um suporte de apropriação da identidade de gênero, e suas “[...] influências vão interferir na forma como as crianças irão se perceber e na definição de seus papéis de gênero na sociedade” (BICALHO, 2013, p. 48).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao abordarmos a identidade de gênero a partir das vivências lúdicas dos(as) velhos(as) chiquitanos(as), entendemos que o sexo, o corpo, não são definidores de gênero. Isso dependerá da subjetividade do indivíduo e de como ele se apropria do seu corpo e o materializa. Nesse processo, foi possível constatar que as referências culturais influenciam fortemente aspectos biológicos do sujeito, de modo que há uma interpretação do corpo alinhada à cosmovisão de seu grupo social. Conforme Moore (1997, p. 2) “[...] as diferenças biológicas entre os sexos não podem constituir uma base universal para definições sociais”.

O brincar, como uma das linguagens infantis, revela-se uma possibilidade de oferecer ricas aprendizagens às crianças e simultaneamente de desconstruir rótulos machistas, narrativas preconceituosas e discriminação sexista. As piadas e os demais discursos são instrumentos que reforçam as representações, que indicam o homem como superior e uma depreciação da mulher. Diante desse contexto, as brincadeiras vivenciadas no cotidiano, como o faz-de-conta, podem ser consideradas como mecanismos para desconstruir “o discurso machista” que pode se materializar nas atitudes e nos pensamentos das novas gerações de crianças e jovens.

Os relatos dos(as) velhos(as) chiquitanos(as) nos apresentam ainda que as brincadeiras vivenciadas não eram orientadas pela diferenciação de sexos. Nesse contexto meninas e meninos compartilhavam as mesmas diversões: peteca, banho no rio, pega-pega, esconde-esconde, cobracega, futebol, entre outros. Consideremos ainda que, mesmo que em outras ocasiões, as crianças se dividiam em pequenos grupos; contudo, esses arranjos dependiam somente delas, que tinham autonomia para decidir como o brincar seria organizado.

No cotidiano chiquitano, meninos e meninas vivenciam em conjunto seus códigos culturais, com sua participação em diferentes espaços sociais e em eventos protagonizados por esse grupo étnico. No caso do curussé, elas se envolvem com a preparação das comidas e eles se unem aos homens adultos para aprenderem sobre a musicalidade dessa manifestação cultural chiquitana.

Durante as brincadeiras e pela aprendizagem de saberes tradicionais, crianças reproduzem as ações dos adultos com base nos papéis sociais desenvolvidos por estes, comportamentos esses desprovidos de estereótipos quanto à diferença entre os sexos. Nesse processo de intercâmbio cultural, todos são considerados indispensáveis, e é por meio de discursos e de práticas ancestrais que atribuem ao homem chiquitano e à mulher chiquitana valores de equidade social.

Assim, homens e mulheres chiquitanos(as) vivenciam juntos os labores da roça, meninas e meninos compartilham as mesmas brincadeiras e colaboram coletivamente para o fortalecimento cultural da etnia. Entendemos então que categorizar os diferentes sujeitos atribuindo-lhes maior ou menor importância em um grupo enfraquece a coesão social, por isso o reconhecimento da alteridade sexista é uma estratégia para aceitar o Outro em suas diferenças, inclusive em relação ao seu modo de ser e estar no mundo histórico, social e cultural.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA, Maria de Lourdes; FREIRE, Otávio. Três categorias do pensamento antropológico. Cuiabá: Editora da UFMT, 2006. [ Links ]

BICALHO, Chaiton Washington Cardoso. Brincadeiras infantis e suas implicações na construção de identidades de gênero. Revista Médicas de Minas Gerais, v. 23 (Supl2), p. 41-49, 2013. Disponível em: https://doi.org/10.5935/2238-3182.2013S007. Acesso em: 03 maio. 2022. [ Links ]

BORTOLETTO, Renata Silva. Os chiquitano de Mato Grosso. Estudo das classificações em um grupo indígena da fronteira Brasil-Bolívia. 226 p. Tese (Doutorado). Departamento de Antropologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH). São Paulo: USP, 2007. Disponível em: https://doi.org/10.11606/T.8.2008.tde-04072008-140131. Acesso em: 03 maio. 2022. [ Links ]

CODONHO, Camila Guedes. Cosmologia e infância Galibi-Marworno: aprendendo, ensinando, protagonizando. In: TASSINARI, Antonella Maria; GRANDO, Beleni Saléte, ALBUQUERQUE, Marcos Alexandre dos Santos (Orgs.). Educação Indígena: reflexões sobre noções nativas de infância, aprendizagem e escolarização. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012, p. 53-75. [ Links ]

COHN, Clarice. Crescendo como um Xikrin: uma análise da infância e do desenvolvimento infantil entre os Kayapó-Xikrin do Bacajá. Revista de antropologia, São Paulo, USP, v. 43, nº 2, p. 195-222, 2000. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-77012000000200009. Acesso em: 03 maio. 2022. [ Links ]

GRANDO, Beleni Saléte. Infância, brincadeiras e brinquedos em comunidades indígenas brasileiras. Revist Aleph, n. 22, ano XI, dezembro, p. 97-113, 2014. Dossiê Temático. [ Links ]

GRANDO, Beleni Saléte; ALBUQUERQUE, Marcos Alexandre dos Santos. Convite às reflexões sobre educação indígena e infância. In: TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz; GRANDO, Beleni Saléte; ALBUQUERQUE, Marcos Alexandre dos Santos (Orgs.). Educação Indígena: reflexões sobre noções nativas de infância, aprendizagem e escolarização . Florianópolis: Editora da UFSC, 2012, p. 07-14. [ Links ]

LECZNIESKI, Lisiane Koller. Seres hipersociais: a centralidade das crianças na mitologia, nos rituais e na vida social dos povos sul-ameríndios. In: TASSINARI, Antonella Maria; GRANDO, Beleni Saléte, ALBUQUERQUE, Marcos Alexandre dos Santos (Orgs.). Educação Indígena: reflexões sobre noções nativas de infância, aprendizagem e escolarização . Florianópolis: Editora da UFSC , 2012, p. 25-51. [ Links ]

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6. Ed. Petrópolis: Vozes, 1997. [ Links ]

MEIRELES, Denise Maldi. Guardiães da Fronteira Rio Guaporé, Século XVIII. Petrópolis: Vozes , 1989. [ Links ]

MOORE, Henrietta. Compreendendo Sexo e Gênero. Do original eminglês: “Understanding sex and gender”. In: INGOLD, Tim (Ed.). Companion Encyclopedia of Anthropology. Tradução de Júlio Assis Simões, exclusivamente para uso didático. Londres: Routledge, 1997, p. 813-830. [ Links ]

MOREIRA DA COSTA, José Eduardo Fernandes. A coroa do mundo: religião, território e territorialidade Chiquitano. Cuiabá: Editora Universidade Federal de MatoGrosso, 2006. [ Links ]

PACINI, Aloir. Identidade étnica e território Chiquitano na fronteira (Brasil - Bolívia). 634p. Tese (Doutorado). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2012. [ Links ]

PAGLIUCA, Elidiane de Brito. Educação e histórias sobre as concepções de infância de velhos(as) chiquitanos(as): modos de aprender, de ser e de viver. 199p. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Educação). Paranaíba: Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, 2017. Disponível em: http://www.uems.br/assets/uploads/biblioteca/2017-12- 08_11-01-50.pdf. 03 maio. 2022. [ Links ]

PUHL, João Ivo. Converter índios, animalia Dei, em homens, cristãos e súditos civilizados. In: ANZAI, Leny Caselli; MARTINS, Maria Cristina Bohn (Orgs.). Histórias coloniais em áreas de fronteiras: índios, jesuítas e colonos. São Leopoldo: Oikos; Unisinos; Cuiabá, MT: Editora da UFMT, 2008, p. 158-187. [ Links ]

QUEIROZ, Letícia Antonia de. Educação da Criança Chiquitano: o Curussé como expressão das práticas corporais sociais educativas. 117p. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Educação). Cáceres: Universidade do Estado de Mato Grosso, 2013. Disponível em: Disponível em: http://portal.unemat.br/media/oldfiles/educacao/docs/dissertacao/2013/leticia_antonia_de_q ueiroz.pdf . Acesso em: 03 maio. 2022. [ Links ]

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e realidade. Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul/dez., 1990. Disponível em: Disponível em: https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/viewFile/71721/40667 . Acesso em: 03 maio. 2022 [ Links ]

SILVA, Giovani José da. A presença Camba-Chiquitano na fronteira Brasil-Bolívia (1938-1987): identidades, migrações e práticas culturais. 291f. Tese (Doutorado em História). Goiânia: UFG (Universidade Federal de Goiás), 2009. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.bc.ufg.br/tede/handle/tde/1235 . Acesso em: 03 maio. 2022. [ Links ]

SILVA, Verone Cristina. Carnaval: alegria dos imortais - Ritual, pessoa e cosmologia entre os Chiquitano no Brasil. 296p. Tese (Doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.11606/T.8.2015.tde-31072015-161505. Acesso em: 03 maio. 2022. [ Links ]

Elidiane Martins de Brito da Silva Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Professora da Rede Pública do Estado de Mato Grosso - SEDUC. Discente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Membro do Grupo de Pesquisa: Educação Cultura e Diversidade, UEMS/CNPq.

Léia Teixeira Lacerda Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Docente do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado Profissional em Educação da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Líder do Grupo de Pesquisa: Educação Cultura e Diversidade, UEMS/CNPq. Pesquisadora associada do Centro de Pesquisa, Ensino e Extensão em Educação, Linguagem, Memória e identidade/CELMI-UEMS

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons