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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.26 no.1 Uberlândia jan./abr 2019  Epub 06-Out-2023

https://doi.org/10.14393/er-v26n1a2019-00 

Dossiê Educação em Ciências, relações de gênero e sexualidades: velhos conflitos

Apresentação: Dossiê Educação em Ciências, relações de gênero e sexualidades: velhos conflitos e novos diálogos


No espaço da escola e mesmo fora dele, muitas vezes, professoras e professores das disciplinas escolares Ciências e Biologia são convocados/as a realizarem uma abordagem de temas, conteúdos, assuntos, preferimos dizer, dimensões do viver, que acionam nas/os estudantes - mas não somente neles e nelas, curiosidade e reivindicação de escuta, diálogo, conversas e conhecimento. Estamos falando das interpelações e atravessamentos de gênero, de sexualidades tanto no espaço das aulas dessas disciplinas escolares quanto na escola e fora delas.

Tais interpelações e atravessamentos despontam em meio a confidências, compartilhamentos de vivências, conflitos, busca de saberes da Biologia, discussões sobre noticiários veiculados por meio das diversas mídias, redes sociais, relatos de experiências e modos de existências, dentre outras coisas, que se instalam em diversos espaços da escola. Estes modos de existências transitam em meio às disciplinas Biologia e Ciências, e, estas se produzem a partir de acontecimentos, como por exemplo, as aulas.

Assim, são divulgados e ensinados processos e estruturas biológicas, dentre os quais reprodução, fecundação, gametas, síndromes, genes, o que permite a emergência de vários outros saberes e temas que a estes processos e estruturas se articulam, ou, ainda, que somados a eles e a elas ganham a vida cotidiana; ganham outros sentidos. E é aí mesmo, onde se exige a articulação de campos de conhecimentos, saberes e sentidos, que são estabelecidas disputas. Elas se evidenciam por meio das experiências e a partir de corpos; por meio da aparição e relatos das vivências dos desejos e prazeres, dos processos de identificação que definem o que devem ser pessoas, os modos de viver e experimentar as relações afetivas, interpessoais, os corpos. Nesse burburinho, muitas vezes veem à tona relatos de experiências marcadas pelas violências de gênero e de sexualidade que se nutrem de preconceitos enraizados por uma determinada ordem e moral social.

Todas e todos nós, docentes do campo das Ciências Biológicas, particularmente, no espaço da escola da educação (seja da educação básica ou superior) lidamos com tais experiências e modos plurais de existências. Lidamos com o que se tem definido como certa curiosidade e reivindicação em torno dos sexos, dos gêneros e das sexualidades. Via de regra, as curiosidades são movidas pela instigação provocada por sensações que indivíduos - crianças, adolescentes, jovens - seu corpo e o corpo do outro produzem; pelos significados atribuídos a elas nas diversas instâncias do social; pelo vocabulário que cerca essa experiência - entre nomes científicos e nomes populares, por exemplo, negociações e limites são estabelecidos ou delimitados. Em se tratando da experiência da reivindicação, estamos falando de crianças e jovens que trazem para as salas de aula a demanda pela discussão de suas experiências construídas na relação com normatividades que instituem medo e insegurança, mas também acirram um debate político por direitos e reconhecimento. Nesse caso, estamos nos remetendo a como as aulas, processos de ensino e de aprendizagem nas disciplinas escolares Ciências e Biologia acabam por se constituir em espaços onde saberes que circulam em outras instâncias - a família, a igreja, os artefatos culturais, os sites e as redes sociais, entre outros - passam a funcionar como estopim para dizer de si, dos outros e outras, de suas relações, reivindicando espaços legítimos de discussão.

Nesse sentido, a educação para sexualidades e relações de gênero é marcada pela presença de elementos teórico-conceituais que compõem o regime discursivo das Ciências biológicas, portanto, frequentemente, as explicações para as mais diversas questões relativas às sexualidades e aos gêneros são buscadas nesse campo.

A história recente apresenta as marcas do atravessamento entre ciências biológicas e essas questões, como na ascensão da medicina no século XIX, que toma para si a tarefa de explicar, classificar e hierarquizar práticas sexuais e os sujeitos que as experienciavam, algo que ainda é possível observar na atualidade. Esse movimento reverberou nos currículos escolares, produzindo certo tratamento dos gêneros e sexualidades nas escolas, nos artefatos culturais, nas mídias e na sociedade de modo geral.

O campo da educação em ciências e biologia tem sido questionado, em pesquisas, ações dos movimentos sociais, por ter contribuído e ainda contribuir com a produção de discursos essencialistas, normatizadores e normalizadores dos sexos, gêneros e sexualidades. Este campo ao participar dessa mobilização discursiva cria pilares que dão sustentação para colocar à margem aqueles e aquelas que não se enquadram numa matriz de inteligibilidade heteronormativa, e termina servindo de parâmetro para definir a posição central e a posição daquelas/es que estarão em suas margens.

Nosso propósito com este dossiê não é abandonar ou negar as ciências biológicas e sua relação com a escola, mas pensar com e a partir delas arranjos que permitam a circulação de outras leituras e práticas em relação aos gêneros e as sexualidades para além de uma perspectiva fixa, naturalizante, essencialista e determinista. Perspectiva esta que institui um modelo normativo binário associando um sexo que seria dado pela natureza, e, este a um gênero atribuído a partir da constatação de certas estruturas biológicas - centralmente, o pênis e a vulva. Tal leitura biológica também vincula a inteligibilidade dos gêneros a certa forma de expressão do desejo - a heterossexual.

Assim, de muitos modos, identificamos as aulas de Ciências e Biologia como lugares de reiteração de normas, porém, apostamos na ideia de transformação, de perturbação de saberes instituídos e de contextualização e pluralização das experiências corporais que são apresentadas nessas aulas. Nos contextos em que atuamos, seja nas disciplinas que ministramos na universidade, ou nas práticas de formação docente continuada e ações extensionistas, a presença de docentes da área de ciências e biologia é marcante. Frequentemente, elas e eles enunciam-se e são enunciados/as como responsáveis pela abordagem das questões relativas aos gêneros e sexualidades, constituindo modos muito específicos de discuti-las, em geral, a partir de uma visão científica, neutra, isenta de contextualização histórica e cultural, alheia às experiências das/os estudantes com os desejos e os prazeres, com as relações sociais de poder, com as violências produzidas pelo sexismo, machismo e LGBTTIfobia. Porém, outras possibilidades se anunciam para as relações entre esses campos, algo que diz da trajetória de pesquisadoras e pesquisadores que atuam e militam em ambos, mas que também se dá nas brechas cotidianas da sala de aula, com docentes e estudantes que burlam as normatividades e trazem para a escola novos temas, outras questões, curiosidades e vontades de saber. Com esse dossiê, propomos pensar de que modos a educação em ciências atravessa e é atravessada pela abordagem das relações de gênero e sexualidades, a partir de trabalhos que dialoguem com os dois campos e que problematizem essa relação.

A problemática anunciada e discutida nos artigos que compõem este dossiê é relevante para problematizar as relações que se estabelecem entre os campos da educação em ciências e biologia e os estudos de gêneros, sexualidades e educação. Nos artigos, resultantes de muito estudo e pesquisa, estão assentados em argumentos que podem desalojar práticas clássicas, como a redução das abordagens dos gêneros e das sexualidades aos estudos de conteúdos estritamente ligados aos sistemas reprodutores ou às Infecções Sexualmente Transmissíveis, bem como anunciam outros modos de pensar essa abordagem neste campo disciplinar e na escola.

Os autores e as autoras, a partir de leituras e análises diversas, apontam para o modo como outra biologia tem sido possível; defendem que a produção das verdades nas ciências da vida não são isentas, neutras e muito menos a-políticas. Elas estão imbricadas em modos de ver o mundo; em modos de defender qual vida é tornada possível e qual vida não importa.

Além disso, todo o debate público contemporâneo, no Brasil e fora dele, vem nos mostrando a necessidade de uma ampliação da discussão das questões tratadas neste dossiê, tendo em vista o recrudescimento de uma moral conservadora religiosa (especialmente cristã), que repudia direitos conquistados por grupos historicamente deslegitimados, bem como as transformações culturais no campo das sexualidades e dos gêneros que vêm apontando para a múltiplas existências que rompem com binarismos.

Por fim, convidamos a todos e a todas a se deliciarem com o que apresentamos, a estabelecerem e ampliarem o diálogo que este dossiê apresenta por meio de um conjunto de artigos de pesquisadores e pesquisadoras de contextos de dentro e de fora do nosso país.

Esperamos que apreciem a leitura!

Roney Polato de Castro
Organizador
Marcos Lopes de Souza
Organizador
Elenita Pinheiro de Queiroz Silva
Organizadora

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