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Ensino em Re-Vista

versión On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.26 no.1 Uberlândia ene./apr 2019  Epub 06-Oct-2023

https://doi.org/10.14393/er-v26n1a2019-7 

Dossiê Educação em Ciências, relações de gênero e sexualidades: velhos conflitos

Ensino de Biologia e transsexualidade

Teaching Biology and Transsexuality

Sandro Prado Santos1 

Elenita Pinheiro de Queiroz Silva2 

1Doutor em Educação. Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. E-mail: sandro.santos@ufu.br.

2 Doutora em Educação. Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil. E-mail: elenita@ufu.br.


Resumo

O artigo, parte de uma tese de doutorado defendida em 2018 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Uberlândia, defende que apesar de a disciplina escolar Biologia e de os cursos de formação docente em Ciências Biológicas serem, em geral, demarcados pela ideia da organização, da classificação, das representações anatómo-fisiológicas e genética do que pode ser entendido como masculino e feminino, é possível que outros modos, ideias, demarcações, sejam pensados e vividos nessa disciplina e na realização desses cursos. Neste trabalho, cuja pesquisa inicial está inserida no campo dos estudos que entrelaçam gênero, corpo, transexualidade e ensino de Biologia, apresenta-se análises e um diálogos-entrevista com docente de Biologia da rede pública do Estado de Minas Gerais. Configuramos enfrentamentos e dificuldades para com a ruptura de modelos duros do ensino de Biologia. Ao final, apontamos que outro ensino e outra educação em biologia são possíveis.

Palavras-chave: Ensino de Biologia; Transexualidade; Gênero; Educação

Abstract

The article, part of a thesis of doutorado, defended in 2018 in the Program of After-Graduation in Education of the Federal University of Uberlândia, defends that although disciplines it pertaining to school Biology and of the courses of teaching formation in Biological Sciences to be, in general, demarcated for the idea of the organization, the classification, the anatómo-physiological representations and genetic of what it can be understood as masculine and feminine, is possible that other ways, ideas, landmarks are thought and lived in this it disciplines and in the accomplishment of these courses. In this article, whose initial research is inserted in the field of the studies that interlace sort, body, transexualidade and education of Biology, presents analyses and an dialogue-interview with professor of Biology of the public net of the State of Minas Gerais. We configure confrontations and difficulties stop with the rupture of hard models of the education of Biology. To the end, we point that another education and another education in biology are possible.

Keywords: Biologies Teaching; Transexuality; Gender; Education

Introdução

Em pesquisa de doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação3, Linha de Pesquisa Educação em Ciências e Matemática, defendemos que, apesar de a disciplina escolar Biologia e de os cursos de formação docente em Ciências Biológicas serem, em geral, demarcados pela ideia da organização, da classificação, das representações anatómo-fisiológicas e genética do que pode ser entendido como masculino e feminino, é possível que outros modos, ideias, demarcações sejam pensados e vividos por essa disciplina, e na organização e realização desses cursos.

Tal defesa sustenta-se no argumento de que as configurações cromossômicas XX ou XY, preponderantes na determinação do sexo e do alinhamento deste com o gênero, é tensionado e colocado em xeque quando, frequentemente, alunas e alunos, no caso da educação escolar e nas salas de aulas de Biologia, insurgem e se apresentam fora do alinhamento sexo-gênero. Elas e eles, portanto, anunciam outros modos de existências que desobedecem à normatividade de gênero4 e da sexualidade.

Todavia, tais modos de existência ganham o campo das invisibilidades e dos silenciamentos nas discussões em que a disciplina escolar Biologia, ou mesmo a escola, utiliza para demarcar os lugares comuns de gênero e das sexualidades5. Isso significa dizer que, tanto em salas de aula de Biologia, quanto em artefatos escolares, como os livros didáticos, a possibilidade da configuração cromossômica XXY (cariótipo 47) só é apresentada quando docentes dessa disciplina se referem às pessoas marcadas pela denominada síndrome de Klinefelter6 - em capítulos atrelados a reprodução humana, sexo e herança genética. No entanto, nesse caso, a narrativa da ciência, tomada pela disciplina escolar Biologia, aponta para o modo como cientistas conseguiram no plano do verificável mapear alguns marcadores genéticos e ambiguidades genitais, respectivamente7.

Neste artigo, apresentamos o recorte de um dos capítulos da tese de doutorado referida, em que a partir da apresentação de experiências de pessoas trans buscamos dar relevo, por meio de um dos diálogos-entrevista realizados com a professora Carolina8, ao deslocamento do que sempre foi considerado como central, nuclear, essencial para se entender o funcionamento da Biologia e por meio de seu ensino dizer dos gêneros e das sexualidades. Buscamos, assim, propor e pensar com uma das viajantes da/na nossa pesquisa - uma professora de ensino médio de Biologia, da rede pública do estado de Minas Gerais - construir outras possibilidades de pensar a Biologia e seu ensino a partir das experiências trans, que, em nosso entendimento, já povoam as escolas. Deste modo, este artigo apresenta e busca defender a ideia de que a Biologia pode dizer mais do que apenas do binarismo de gênero. Efetivamente, ela pode contribuir para a produção de mundos que tornem possíveis experiências humanas múltiplas, plurais e singulares.

A inserção teórico-metodológica da pesquisa

Na pesquisa de doutoramento, nos apropriamos de referenciais pós-estruturalistas do campo dos estudos de gênero e educação, da teoria queer, de biólogas feministas para produção do estudo. Tais referências nos foram caras, por entendermos que estes são campos possíveis para a compreensão do que chamamos de experiências trans. Encontramos em textos como os de Alípio de Souza-Filho (2009), Berenice Bento (2011), Michel Foucault (1982, 1988, 2001 e 2003 ), Gilles Deleuze (2013), Gilles Deleuze e Felix Guattari (2011), Flávia do Bonsucesso Teixeira (2013), Luís Henrique Sachi dos Santos (2000), Judtih Butler (2003, 2010, 2015) e Sandra Mara Corraza (2007), dentre muitos outros, sustentação para pensar os entrelaçamentos entre a performatividade do gênero, a educação escolar, a transsexualidade e a Biologia.

Do ponto de vista metodológico construímos um estudo cuja inspiração tomou a entrevista como diálogo e assim compomos os diálogos-entrevistas com dez colaboradores/as: quatro professoras de Biologia, sendo duas da rede pública estadual da cidade de Ituiutaba/MG, e duas professoras trans - uma da cidade de Catalão/GO e outra no momento da pesquisa residia em Maringá/PR; uma aluna trans da cidade de Ituiutaba/MG; e quatro professores/as e uma aluna trans da Universidade Federal de Uberlândia, atuantes no Curso de Ciências Biológicas9, além de uma professora da Universidade Federal de Sergipe.

Dessarranjos provocados pela imagem de um homem grávido

Para mobilizar uma das viajantes da nossa pesquisa (uma professora de escola pública da rede estadual de ensino médio da cidade de Ituiutaba - MG), apresentamos a ela a imagem de um homem grávido10. A professora, a quem nominamos Carolina, assim se referiu a uma experiência em sala de aula:

Pedem-me, mas eu não tenho essa informação. [...] Não sei se existe um gene que tem essa informação. [...] a gente não tem uma certeza, não é igual a uma Síndrome de Down que posso falar que é no cromossomo 21. [...] eles (alunos) perguntam: Então tem algum cromossomo? Eu falo: Não tem [...] os cromossomos são todos iguais, os sexuais são perfeitos, o XX e XY. [...] Então não é ali. [...] Então eu falo a questão do… A gente pensa que pode ser a questão do hormônio, mais ai faz a análise [...] faz exame de sangue tá normal; progesterona, testosterona, colesterol, tudo tá normal. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016)

Considerando o apresentado pela professora, observamos o quanto ela recorre as verdades biológicas e estas a deixam, não se tornam suficientes para dizer da transexualidade, o que indica que as experiências de pessoas trans provocam abalos e permite que outras coisas sejam pensadas a partir da própria Biologia.

No trabalho, recorremos as críticas produzidas por Richard Lewontin (2000) e Anne Fausto-Sterling (2006) quanto ao que ditam a maneira pela qual, a partir do surgimento da genética e dos genes, temos sido determinados/as social e culturalmente. Por outro lado, estudiosas indicam a emergência de estudos que buscam isolar os ‘genes’ do gênero. Dentre elas, encontra-se a socióloga Berenice Bento que defende: “[...] os estudos para determinar a biologia dos gêneros são expressões das convenções culturais dominantes que supõem que a verdade mais profunda de nós mesmos estaria em algum lugar mapeável do corpo”. (BENTO, 2015, p. 14). Defendemos, a partir da pesquisadora, que a busca por uma determinação biológica dos gêneros buscam uma verdade no organismo. Uma verdade capaz de explicar a existência trans, àquela que tem causado rupturas no mapa estático, da anatomia e fisiologia humanas, configurado ao longo dos últimos séculos. Como dizer, a partir das lições de Anatomia, Genética e Fisiologia Humanas recebidas no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, sobre um homem que engravida, é a pergunta que a professora Carolina fez no diálogo conosco.

As asserções de Carolina carregavam referências aos órgãos e cromossomos que, supostamente, diferenciam os homens e as mulheres. Uma busca de legitimidade instalada nesses referenciais, como verdade presumida de pertencimento ao masculino ou ao feminino. Na aula, ao dialogar com os/as alunos/as, ela prescreveu alternativas do masculino e do feminino em uma lógica binária e essencialista de correspondências corretas entre o sexo biológico (ser macho ou fêmea a partir da própria dotação genital e genética) e gênero. Esse jogo forçado gerou atritos; a professora ficou em situações embaraçosas, borradas e confusas pela desestabilização da bio-lógica que buscava pelos pilares da ciência biológica e não pela busca da pluralidade: “Como eu iria explicar isso agora que ele está grávido?” (SANTOS, 2018, p. 210)

Para o diálogo acerca do apresentado por Carolina, recorremos à antropóloga Laurence Hérault (2015), que demarca a impossibilidade da admissão da gravidez de um homem se ele for pensado pelo mote essencialista que configura o masculino ou o homem a partir de características ditas como próprias para demarcar um homem.

Se considerarmos a identidade sexualizada de T. Beatie em termo essencialista, ou seja, em termos de propriedade, ela é efetivamente contraditória com as definições comuns da masculinidade: sua gravidez é uma negação do seu pertencimento à classe dos homens, visto que um homem, por definição não engravida. Frente a essa contradição, o reflexo de muitos [...] é qualificar sua identidade sexual: se ele engravidou, não é homem (ele é mulher, uma mulher tentando fingir que é homem [...] etc.). (HÉRAULT, 2015, p.151)

Contudo, Hérault chama a atenção para o fato de que não é o inventário das características de uma pessoa o elemento suficiente para dizer dela, se torna mister, contar sua história, pensar a sua singularidade.

No entanto [...] definir/descrever uma pessoa não consiste apenas em inventariar suas características, mas, ser capaz de contar sua história [...] que a define efetivamente na sua singularidade [...] dando conta dos nexos múltiplos e variados que a ligam nos demais, fazendo que ela exista dentro de um contexto social particular. [...] ele engravida porque ele é um homem transgênero, quer dizer, não é um homem menos autêntico que os demais mas, simplesmente, um homem com uma história particular que sua constituição corporal rende-nos presente [...] não é nada incompatível com as propriedades orgânicas do seu corpo nem com o uso que ele fez dele: “eu era um homem antes de dar à luz, era um homem durante minha gravidez e sou homem agora [...] não me tornei mulher novamente para engravidar. Eu sou um homem capaz de engravidar e simplesmente fiz isso”. (HÉRAULT, 2015, p. 151-153).

Desse modo, a Escola, seus e suas profissionais, como também todas as outras instituições sociais, está diante de modos de existências que provocam torções, rupturas; produzem fissuras na configuração da vivência do que é dito como feminino e/ou masculino e desafiam nossos modos de pensar. Elas colocam em xeque o que é um verdadeiro homem, uma verdadeira mulher; o que a experiência da sexualidade e dos gêneros que desmontam a linearidade sexo-gênero provoca e faz pensar o ensino de Biologia na escola. Vemos escorrer por entre os dedos o modelo estabelecido pelo binarismo de gênero, uma vez que os corpos mulheres-útero-XX e homens-XY-sem útero que amarram uma verdade profunda do sexo, da natureza humana e da reprodução ao campo da heterossexualidade são desmontados por experiências mulheres-sem útero-XY ou homens-com útero-XX.

Os afetos gerados pelos hiatos, do homem grávido, nos territórios do Ensino de Biologia e o desvio produzido pela pergunta “Como eu iria explicar isso agora que ele está grávido?”, lançaram e instalaram Carolina em lugares de meio nesses territórios. Ao se deslocar com esse meio, a professora recuperou um texto intitulado “Espermatozoide de mulher” (Imagem 2) do livro didático11 que estava adotando. (SANTOS, 2018, p. 211-212)

A imagem a que a citação referencia, informada pela professora Carolina (participante da pesquisa), integra, como texto complementar, o livro didático de Biologia de autoria de César da Silva-Júnior; Sezar Sasson e Nelson Caldini-Júnior (2010, p.132). O texto complementar é uma reportagem do veículo de comunicação, O globo, Ciência, datada de 01 de fevereiro de 2008. Nela, indica-se a aspiração de pesquisadores britânicos, da Universidade de Newcastle, em obter a autorização da comissão de ética para continuidade de investigações cujo foco é a obtenção de espermatozoide a partir de células-tronco da medula óssea feminina; apresenta as dificuldades reveladas pelos cientistas em criar o espermatozoide a partir de células femininas, “que não tem o cromossomo Y, que determina o sexo masculino [...]” e estes “[...] teriam que ser criados em laboratórios com cromossomos artificiais ou obtidos de doadores de espermatozoides masculinos [...]”. Reporta-se também a pesquisa realizada por pesquisadores do Instituto Butantan, no Brasil, divulgada na revista New Scientist, em que estes estariam desenvolvendo óvulos e espermatozoides a partir de uma “[...] cultura de células-tronco embrionárias de ratos machos”; e apresenta uma fala da coordenadora da pesquisa sobre o desenvolvimento de experimentos com células-tronco embrionárias humanas para descobrir se “[...] óvulos masculinos poderão ser feitos a partir de outras células [...]”.

O texto complementar do livro didático, referido no parágrafo anterior, apresenta, após a reportagem, uma imagem cuja legenda assim expressa: Espermatozoides ao redor de óvulo humano vistos ao microscópio eletrônico de varredura. Será possível, um dia, criar, células reprodutivas a partir de células somáticas? (Cores artificiais)” em fundo de cor preta, com representação gráfica de um óvulo, como geralmente figurado em textos de divulgação científica, em formato ovoide, com aspecto esponjoso e cor palha, e os espermatozoides em cor de tom branco provocando a sensação de movimento na superfície do óvulo, seguido de três questões intituladas “Explorando o texto”. As questões que seguem a imagem são:

  1. Por que um “espermatozoide feminino”, desenvolvido a partir de células-tronco retiradas do organismo de uma mulher, não seria capaz de determinar descendentes do sexo masculino?

  2. Um “óvulo masculino”, desenvolvido por meio das mesmas técnicas, poderia dar origem a uma menina?

  3. O que poderia ocorrer se um “óvulo masculino” portador de cromossomo Y fosse fecundado por um espermatozoide com outro cromossomo Y? Justifique sua resposta. (SILVA-JÚNIOR; SASSON; CALDINI-JÚNIOR, 2010, p.132).

Se de um lado o livro didático apresenta para a professora uma possível saída para explicar aos/as alunos/as a notícia do homem grávido, de outro, ela recorre às técnicas de reprodução assistida como possibilidades reprodutivas para pessoas trans. As técnicas reprodutivas têm sido divulgadas, pensadas e associadas, por professores/as de Biologia e livros didáticos no Brasil, com relações de gênero que sustentem a heterossexualidade.

Em texto produzido por uma das autoras desse artigo “Corpo e Sexualidade no Ensino de Ciências: experiências em sala de aula”, ela apresenta o modo como imagens e sequência de apresentações do conteúdo de reprodução humana em textos didáticos de Ciências e Biologia na maior parte das vezes “[...] ainda refere-se à gravidez ‘clássica’, proveniente da relação sexual, contudo há textos que já assinalam para a reprodução humana assistida. No entanto, elas apontam para a mesma narrativa, qual seja do exercício da heterossexualidade”. (SILVA, 2012, p. 7).

Desse modo, em nossas pesquisas podemos verificar o quanto as imagens e sequências dos conteúdos escolares das ciências biológicas estabelecem uma relação direta entre heterossexual-gravidez-feminino-mulher-mãe; heterossexual-provedor-masculino-homem-pai. Tais sequências terminam sustentando a ideia da experiência da reprodução biológica circunscrita apenas ao campo da heterossexualidade. No entanto, a notícia do homem grávido provoca um borramento nas sequências ensinadas pela Biologia escolar: “Como [...] ele está grávido?”. O homem grávido abalou essa relação e a ideia de reprodução biológica instalada pela biologia.

Retomando ao texto de Heráult (2015), ela apresenta a decisão de Nancy e Thomas Beatie de fazer uso do organismo dele como fonte de fornecimento de óvulos. Thomas é um homem com útero, portanto ele poderia desenvolver a gestação e assim o fez. Todavia, a nossa professora Carolina, ao se deparar com a fissura esperma= pai e útero + ovários = mãe, acionou a possibilidade de o homem grávido produzir espermatozoide feminino, pois nessa situação a figura “esperma = pai” foi borrada e a gravidez nos modos da reprodução biológica materializa uma relação sexual com outro homem.

Já que estava grávido, de onde veio o espermatozoide? Desse modo, ela mobilizou o texto do livro didático que lhe apresentou técnicas de manipulações biológicas ainda em caráter experimental que poderá, futuramente, possibilitar a reprodução (não somente) de pessoas trans, por meio da obtenção de óvulos e espermatozoides a partir de células-tronco. Entretanto, mesmo que uma possibilidade, a professora afirmou silenciar ou se afastar desses exemplos nas aulas.

Nos lugares de meio que foi lançada, mesmo com a tentativa de ensaiar uma resposta, o texto encontrado e recuperado no livro didático a deixou outros estranhamentos e perguntas. A professora assim narra:

[...] sempre foi vinculado o espermatozoide ao gameta masculino, sempre foi assim!? [...] Estudando em faculdade, qual é o gameta masculino? Espermatozoide. Gameta feminino? Óvulo! Onde eles são produzidos, testículo e útero, pronto! Aí você depara com isso espermatozoide de mulher, de que forma? Como que a mulher? Aí você começa a imaginar, como? Aonde que ela tá produzindo isso? A primeira coisa que veio, em que lugar do corpo que ela tá produzindo espermatozoide, sendo que eu vim com a bagagem aprendendo que o ovário libera o óvulo. Então de onde que tá saindo? Aí lendo a reportagem que eu fui entender! (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016)

Consideramos que o texto do livro didático tomado pela professora provocou, timidamente, as durezas dos territórios da Biologia ao deslocar a inscrição especular do gênero ao óvulo, ao espermatozoide, ao testículo, ao ovário, aos cromossomos XX e XY, fustigando as ilusões de origem. As possibilidades com as células-tronco podem desatar nós do masculino e do feminino que germinam nos territórios. A possibilidade de produção de óvulos por indivíduos XY e espermatozoides por indivíduos XX. Desatam linhas da organicidade e das funções biológicas de um determinismo, trazendo desterritorializações.

O texto, ao anunciar “espermatozoide de mulher” e “óvulos masculinos”, provocou em Carolina um embaralhamento dos arranjos das fronteiras do masculino e feminino, por isso salta o estranhamento dessas fissuras que vibram uma das lições mais difíceis que podemos desconstruir ou roubar da Biologia.

Diante da provocação Ensino de Biologia-experiências de pessoas trans e dos questionamentos dos/as alunos/as, que deixaram Carolina em meio a forças caóticas, sem coordenadas, direções e sem imagens definidas, ela reinvestiu nos espaços reguladores que habita os territórios do Ensino de Biologia.

A professora Carolina questiona: “[...] Se eu herdei XX, por que eu não me comporto como XX? [...] já que os meus hormônios são mais progesterona do que testosterona [...] o que é o erro desse corpo? [...]”. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016). E continua: “A gente fica em uma situação difícil, porque para a Biologia o sexo é masculino ou feminino. Sistema reprodutor masculino e feminino. E aí, a gente não tem como colocar o que aconteceu que ele está transitando? O que é...? São experiências novas? Pode ser experiências novas que eles... Diferentes...”. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016)

Aqui, a professora começa a produzir buracos, cambalear e ficar em estado de indecisão. Começa pensar os modos de vida das pessoas trans como algo em vias de se fazer, enquanto experiências. No entanto, o modelo da Biologia do sexo e do sistema reprodutor não fraqueja, não titubeia e amarra a mobilidade do masculino e do feminino. Desse modo, ela explica que há um erro no corpo das pessoas trans. Nesse território recaem as linhas duras de uma lógica, de uma racionalidade que é lembrada por Judith Butler (2015): “As marcas instituídas pela diferença sexual ficam amarradas na lógica dicotômica. A hipótese de um sistema binário dos gêneros encerra implicitamente a crença numa relação mimética entre o gênero e o sexo”. (p. 26).

Com a institucionalização dessa relação mimética “o único lugar habitável para o feminino é em corpos de mulheres, e para o masculino, em corpos de homens”, como bem destacado por Berenice Bento (2008, p. 31). Nesse sentido, o aprisionamento em um corpo errado é a significação das experiências de pessoas trans.

No diálogo estabelecido o questionamento de Carolina é provocado “O que é o erro desse corpo? ”, ela responde:

É como assim, eu nasci num corpo errado. Eu entendo que é assim. O meu cérebro não encaixa nesse corpo. [...] É a questão da mente e de estar em outro corpo. [...] Está no cérebro [...] dali sai todas as ordens de comando [...] lá no encéfalo, no hipotálamo. Algo que está ai [...] tem alguma informação que está sendo mandada e não combina com o que eu tenho. [...] É como se seu cérebro fosse se desenvolvendo e as outras partes fossem geradas, só que houve um erro [...] e como se eu fosse um cérebro feminino e estou com os órgãos masculinos. O meu cérebro sendo feminino, e o fora masculino, ou, por exemplo, eu sou menino tenho os órgãos genitais masculinos, mas não são meus, não quero, eu não aceito eles! (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016).

As explicações da professora deslocam do determinismo genético e cromossômico, ficando com margens de dúvidas (Onde e como reconhecer?). No entanto, ela busca uma causa que estaria em algum lugar do corpo. Desse modo, estabelece-se que a verdade do endereçamento das experiências de pessoas trans está na composição do cérebro. Sobre isso, ela reforça:

Se a célula do menino que vai ser trans é igual as nossas, se ele tem a quantidade de cromossomos iguais, se ele tem aquelas fases da mitose e da meiose, tudo normal, durante todo o desenvolvimento embrionário foi igual. Se as células são normais, e desenvolveram todos os órgãos normais, então a gente acaba colocando que seria na parte do encéfalo. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016).

Carolina lança linhas de apelo ao imperativo biológico das explicações orgânicas, especialmente cerebrais, de captura e modelação dos corpos. Nesse território, as experiências de pessoas trans ficam presas no desenrolar de um script que as concebem em termos de negações “órgãos sexuais” e na órbita da contradição da incompatibilidade entre o desenvolvimento cerebral específico do gênero e o desenvolvimento do corpo e genitais. Assim ela entende que:

[...] ele não vai aceitar aquele corpo. É como se o cérebro fosse masculino e o que está fora fosse feminino. Eu entendo assim, porque você sabe que, realmente, a pessoa não está feliz assim com o corpo que está. Então, eu vou tirar isso, vou tirar aquilo. O órgão não me serve. Eu fico pensando que é um sofrimento. [...] O que mais incomoda é a parte anatômica. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016)

Nessa perspectiva, as experiências das pessoas trans foram posicionadas como um ‘problema’ a ser ‘tratado’ que territorializa e endurece a alteração desses corpos para ajustá-los, tanto quanto possível, a normalidade do masculino ou do feminino. Com isso, Carolina acionou a cirurgia como prática de correção do sofrimento e menosprezo do corpo que revela, misteriosamente, uma vontade de recusar a materialidade dos órgãos genitais. Sobre isso, ela conta:

[...] a pessoa trans vai ser aquela que, realmente, opta vai ser aquele que, realmente, optar por fazer a cirurgia [...] é como se eu aqui dentro adorasse os vestidos, as roupas, um batom, mas aí me deparo e olho e tenho um órgão masculino [...] não vejo como meu, por isso que eu quero uma cirurgia, porque ele não é meu, eu não quero isso. [...] eu fiz a cirurgia [...] Agora eu estou no corpo certo. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016).

A territorialização dos órgãos sexuais como erro nos corpos das pessoas trans reforça que a verdade última está na biologia dos corpos e a cirurgia teria a responsabilidade de recolocar a harmonia entre o corpo (reduzido à genitália) e as estruturas cerebrais. Desse modo, “[...] toma-se a parte (as genitálias) pelo todo (o corpo). É como se a genitália fosse o corpo [...] em que o sexo define a verdade última dos sujeitos”. (BENTO, 2009, p. 97).

Há uma recuperação do discurso de desqualificação do órgão sexual pelas pessoas trans, pois traz uma ameaça do feminino ou masculino reivindicado. Aqui, ele não serve, precisa ser retirado. Um alinhamento universal, para a professora, de sofrimento, de infelicidade e de uma incompletude, pois desaloja a exclusividade do original, do real, do verdadeiro, do essencial, do autêntico e da identidade genuína do ser masculino e feminino no campo do Ensino de Biologia.

Ortega (2008) provoca a pensar que os manejos dessas linhas compõem um território que faz caber os corpos na norma que mantém a divisão de gênero, objetivam produzir corpos normais e a normalização dos gêneros. Um jogo de forças que amarra o estranho e o incerto da corporeidade trans em algo familiar e previsível, traduzindo a nitidez, a visibilidade e a certeza; evita a multiplicidade, as fendas, as rachaduras, as dobras, os limiares e os direitos da variação.

No entanto, Carolina fez escorrer algumas durezas do que inicialmente fora estratificado em relação ao endereçamento cerebral e o destino das correções cirúrgicas aos corpos das pessoas trans. Nas suas palavras:

[...] não tenho como provar que é assim no cérebro [...] não tenho como falar assim, é aqui. [...] não temos certeza, tem pesquisas, mas não apontam certezas. [...] Fica difícil de dizer. Em relação à cirurgia estou aqui pensando... Por que alguns querem fazer cirurgia outros não? (pausa) eu fiquei agora... [...] Se ele é trans por que um aceita, não quer modificar o órgão e não incomoda? Por que para o outro incomoda? Então aí já começa a ficar... (pausa). Por que alguns querem fazer cirurgia e outros convivem com eles (órgãos genitais)? Essa pergunta que fica para mim (…) por quê? Então não dá para gente definir realmente que é a questão do cérebro. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016)

A ideia da professora, no endereçamento das experiências em um juízo cerebral, fez atualizar um conjunto de determinações resultantes de taxas hormonais. Segundo ela, os comandos das regiões cerebrais que atuam na regulação das taxas de produção, ou não produção, de hormônios determinam a causalidade das pessoas trans. Ela conta:

[...] a comunicação de ordem parte do encéfalo para liberação de hormônios, a menos que essa ordem não esteja sendo dada, e ele libera uma quantidade menor ou não produz [...] pode ser que essa quantidade de hormônio seja diferente, para que ele não tenha os caracteres secundários, ou tendo a mais, por exemplo… menina que tem o jeito mais masculino pode ser que a influência desse hormônio pra que ela seja mais masculina e o feminino fiquem mais inibido, e às vezes do menino também. Que ele tem um jeito mais afeminado que os outros, então eu vejo que pode ser dali que parte o estímulo pra ele estar liberando esse hormônio. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016)

Nessa esteira, para além da anatomia genital, das gônadas, da configuração genética XX e XY, dos gametas, ela reforça o estrógeno, a progesterona e a testosterona como inscrições especulares do gênero que circulam tranquilamente pelos territórios do Ensino de Biologia, condicionando nossas ideias sobre os corpos masculinos e femininos.

[...] quando você vai dar sistema endócrino, hormônios, já tem uma tabela que diz masculino e feminino, os que estão nas glândulas masculinas e são liberados e os que são produzidos nas glândulas femininas. [...] Não tem como sair disso. Quando pergunto, me de um exemplo de hormônio feminino e masculino, os/as alunos/as já vem com a resposta. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016).

A ideia de que os hormônios têm gênero e o modo como eles estão imbricados se fazem presentes no Ensino de Biologia. O gênero está intricado nos hormônios e glândulas, de modo que a professora não consegue pensar fora dessa rede substâncias químicas e glandulares-gênero. Como então essa rede foi produzida? Para responder a esta questão, recorremos ao texto Glándulas, hormonas sexuales y química de gênero de a Anne Fausto-Sterling (2006), onde ela problematiza o surgimento de uma biologia hormonal estritamente ligada a uma determinada política de gênero e visibiliza o empenho da imposição do gênero nas secreções internas dos ovários e dos testículos humanos.

A autora aponta para o modo como moléculas químicas se converteram em parte do sistema de gênero, na ligação das diferenças de gêneros aos hormônios. Carolina reforça que a feminilidade e masculinidade dependem da atividade das secreções hormonais internas, considerando que o estrógeno é um hormônio feminino e a testosterona um hormônio masculino.

Anne Fausto-Sterling (2006), a partir da problematização “Existem realmente hormônios sexuais?”, aponta para pesquisas que sinalizam que ambos os hormônios estão presentes em todos os tipos de corpos e produzem seus efeitos também em outros órgãos. Os estudos por ela apontados, nos permite destacar informações que produzem vazamentos e inquietações nas durezas dos territórios do Ensino de Biologia, tais como: isolamento de hormônios femininos de procedência masculina; a detecção de hormônios femininos ativos nos testículos e na urina de homens ‘normais’; a ação dos estrógenos pode inibir o crescimento, acelerar a degeneração do timo, dentro outras; a presença de hormônios femininos onde se supunham que não deveriam estar; a detecção de hormônios de um sexo nos corpos do outro; a descoberta que diversos órgãos, por exemplo as glândulas suprarrenais, podem sintetizar hormônios esteroides e uma variedade ainda maior pode responder a sua presença.

Ao retomar as discussões com a professora sobre as possibilidades de fissurar as inscrições especulares do gênero na anatomia genital, das gônadas, da configuração genética XX e XY, dos gametas e dos hormônios nos territórios do Ensino de Biologia. Ela afirma: “Não, o problema é esse, porque desde as células e os órgãos já começam com masculino e feminino, o gênero já está separando a forma de falar [...] para me desvincular eu teria que ter outra forma de abrir espaço, né?” (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016).

Nesse momento de abertura, Carolina retoma o texto do livro didático, mencionado em páginas anteriores, sinalizando alguns nós que podem ser desatados do masculino e do feminino que perduram nos territórios do Ensino de Biologia. Com isso, ela aponta:

[...] essa matéria do livro do “espermatozoide de mulher”. Poderia chegar e falar se realmente através de células-tronco na pesquisa, a mulher tem essa capacidade de produzir esses espermatozoides [...] pela biotecnologia [...] eu poderia desvincular o masculino e o feminino das células (gametas) e dos cromossomos XX e XY [...] daria para desvincular isso (masculino e feminino) [...]. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016)

Outra abertura mencionada por Carolina na desarticulação das genitálias ao gênero foi recorrida na Biologia, com a utilização de exemplos de animais na aula de Zoologia. Ela narra como seria:

[...] os/as alunos/as tem que fazer um trabalho sobre aves. [...] Questionaria: as espécies que vocês encontraram como sei qual é o macho e qual é a fêmea? Por causa da pelagem, do porte... [...] Não é a genitália [...] Em outras espécies não está vinculado à genitália, está vinculado à cor, ao canto e ao tamanho. (CAROLINA, diálogo-entrevista, agosto 2016)

Talvez a saída da professora, ainda que busque um lugar mapeável do corpo para estabelecer o macho e a fêmea, pode ser potente para problematizar que há outras possibilidades de demarcar o gênero que não apenas as genitálias. Entretanto, mesmo no caso das aves, que ela indica para a pelagem, o porte, o canto, a cor, a delimitação do gênero ainda é concebida no marco de um sistema social de convenções sobre sexo e gênero.

O encontro com Carolina e as provocações do que chamei Ensino de Biologia-experiências de pessoas trans possibilitaram aventuras pelos territórios do Ensino de Biologia, perguntas, não saberes e embaralhamentos. No entanto, no encontro, também fui mergulhado nas durezas dos territórios que muito me ensinaram respostas que circulam tranquilamente no Ensino de Biologia. Entre aventuras e durezas, que ora possibilitam a criação de discursos potencializadores de corpos, gêneros e sexualidades e ora os submetem.

No caminhar, encontrei pelos territórios com as linhas duras que os ocupam. Territórios imbricados pela mimetização entre o sexo e gênero com correspondências especulares em uma codificação (gen)italizante, hormonal e gonodal que acaba por colar sexo e genital, e genital e gênero, imobilizando outras experiências como ininteligível, recorrentemente incompleta e desencaixada em um corpo errado e equivocado.

No entanto, pude vislumbar vibrações de linhas latejando e vazando entre as segmentaridades duras, dando outros contornos nos territórios e traçando rotas com sentidos outros dos significados estabelecidos pelo Ensino de Biologia. Foi um encontro com microespaços que ensaiam movimentos. As interrogações e as desestabilizações que aconteceram deixaram Carolina em meio a forças caóticas, sem coordenadas, direções e sem imagens definidas; abriram brechas, fissuras e possibilidades de escapes no Ensino de Biologia. Fui tentando pulverizar pinceladas de possibilidades de multiplicidades de corpos, gêneros e sexualidades. Pequenas trepidações e abalos ventaram na regulação e nos determinismos dos significados que circulam nas aulas de Biologia, produzindo zonas de indeterminação e sinalizando possíveis passagens das variações nos corpos, gêneros e sexualidades.

Os territórios do ensino de Biologia se referendam nas Ciências Biológicas que se apropriam “[...] das recorrências observáveis nas relações entre os gêneros para conferir cientificidade aos seus achados [...]”, para fazer circular “[...] a diferença sexual natural, subsumindo nessas ‘verdades’ os aspectos culturais e simbólicos que constituem nossas percepções sobre corpos, gêneros, órgãos e fluídos”. (BENTO; PELÚCIO, 2012, p. 575).

Desse modo, se agarrarmos nessa bio-lógica, os territórios do ensino de Biologia continuarão sendo à morada da verdade, da essência, do significante. Territórios privilegiados com um solo fértil para toda espécie de determinismo e ensurdecedor para outras possibilidades.

Há, portanto, um modelo de inteligibilidade de gênero que atravessa os territórios do ensino de Biologia. Tal modelo é um marco de um sistema social de convicções sobre o sexo e o gênero que governa a materialização dos corpos e os circunscrevem, como diz Bento (2008), numa coerência entre “[...] vagina-mulher-feminino versus pênis-homem-masculino”. (p. 44). Embora nos territórios do ensino de Biologia esse modelo é a(linha)vado como uma determinação biológica desapartada das tramas sócio-culturais e entendido como natural. Raramente circulam nos territórios a consideração dos corpos como faz Fausto-Sterling (2001/02):

[...] são complexos demais para dar respostas claras sobre a diferença sexual. Quanto mais procuramos uma base física simples para o ‘sexo’ mais claro fica que o ‘sexo’ não é uma categoria física pura. Aqueles sinais e funções corporais que definimos como masculinos e femininos já vêm misturados em nossas idéias sobre o gênero. (p. 19).

De outro lado, a bióloga ecologista, mulher trans, Joan Roughgarden em sua obra “Evolução do Gênero e da Sexualidade” (2005), enfatiza que a gloriosa diversidade, variações de gênero e sexualidade encontradas no mundo animal é o resultado do benefício da mistura de genes “[...] de ‘comitês de genes’, passando por várias reações bioquímicas”, que “[...] valida biologicamente expressões divergentes de gênero e sexualidade”, não podendo ser encarada como desvio do natural. (ROUGHGARDEN, 2005, p. 6-7). Desse modo, grande parte do seu livro apresenta registros de inúmeras situações relacionadas à diversidade dos vertebrados. Nessa perspectiva, a autora fez uma vasta pesquisa sobre a extensão da variação de gênero e sexualidade, o que ela denominou de “Arco-íris da Evolução”. Com essa catalogação, ela encontra e descreve a existência de variações de gênero e sexualidade nos animais, sinalizando fissuras na Biologia. Joan Roughgarden destaca que a determinação do sexo e as categorias de macho e fêmea não são estáveis, exclusivas e nem abrangentes. Desse modo, ela faz severas críticas a Biologia que enquadra as variações de gênero e sexualidade como um defeito, pensando talvez que o defeito não esteja nos organismos, mas sim na Biologia12.

Essas questões, para além das espécies de vertebrados, como conta Joan Roughgarden, invadiram a sua (nossa) mente enquanto caminhava na “Parada do Orgulho Gay”, em São Francisco (e a nós enquanto realizávamos a tarefa da tese e da do nosso exercício profissional e pessoal).

Como a biologia classifica essa população tão imensa, que não se enquadra no padrão que a ciência considera normal? - quis saber. [...] Eu estava intrigado e resolvi investigar mais, se tivesse chance. Nos meses seguintes, planejava me transformar em uma mulher transgênero. Não sabia o que o futuro traria - se perderia meu cargo de professor de biologia, se me tornaria garçonete de uma boate, ou mesmo se ainda estaria vivo. Não podia fazer planos de longo prazo. [...] Como a diversidade se desenvolve à medida que o indivíduo cresce: que papéis exercem os genes, os hormônios e células do cérebro? [...] onde poderíamos localizar diversidade na expressão de gêneros e orientação sexual em toda a estrutura da diversidade humana. [...] Encontrei mais diversidade do que jamais sonhei em existir. [...] encontrei que, à medida que evoluímos de minúsculos embriões para adultos, nossos genes tomam decisões. Nossa gloriosa diversidade é o resultado dos nossos ‘comitês de genes’ passando por várias reações bioquímicas. (ROUGHGARDEN, 2005, p. 5-6)

Considerações finais

Ao final do trabalho que realizamos, a perspectiva de que o encontro Ensino de Biologia-experiências de pessoas trans produziu linhas de vazamentos nas durezas dos territórios que organizam os órgãos, os cromossomos e os hormônios num sexo-gênero, e operam como significantes universais na interpretação dos corpos, nos invadiu. Linhas que fissuram o masculino e feminino decorrendo do sexo, de órgãos e hormônios; e o privilégio dos homens biologicamente definidos e das mulheres biologicamente definidas, respectivamente. Movimentos para territórios outros que possibilitam pensar os corpos humanos como uma multiplicidade de expressões que não podem se reduzir ao masculino e ao feminino.

Desse modo, o campo do ensino de Biologia trata as existências e os corpos por elas mobilizados, como também o faz hegemonicamente a área de conhecimento biológico, a partir do verificável; do que permite a narrativa binária calcada em genes, em certa fisiologia hormonal e na constituição anatômica. Ou seja, em corpos biologicamente imutáveis e com antecedentes, implicando uma redução abusiva e um empobrecimento da existência a partir das experiências do gênero e da sexualidade.

A partir do diálogo com professoras de Biologia, ao apresentarmos corpos que são demarcados por existências da transexualidade (os XXY ou os que desalinham o entrelaçamento sexo-gênero), nos deparamos com afirmações de que estes são corpos problemáticas e polêmicos, uma vez que eles esbarram na verdade disseminada na formação em licenciatura - aquela que as atrelam às significações binárias da anatomia e fisiologia do sistema reprodutor humano; aquelas que abalizam, sob o olhar de certa biologia, o que pode ser dito como masculino ou feminino. Nessas circunstâncias, se apresentaram para nós as dificuldades e conflitos que vivem professoras e professores do campo das ciências biológicas com os quais entramos em contato. Eles e elas, em geral, ao serem questionados pela existência da transsexualidade, se mostratam diante de um campo do não saber.

Observamos também o quanto as discussões de gênero, por levarem em considerações elos culturais e sociais, são colocadas para fora dos territórios do Ensino de Biologia. Nesse movimento, a Biologia vai sendo reforçada como uma instância desapartada da coexistência dos componentes sociais e culturais de sua produção e naturalizada como uma fabricação neutra na procura de orientações, classificações, definições e verdades determinadas. Reiteramos o que temos dito ao longo de nossas produções e que foi, nos anos 2000, impulsionado no campo do ensino de Biologia pelo biólogo Luís Henrique dos Santos com seu texto “A biologia tem uma história que não é natural”. Como afirmou este biólogo, o conhecimento biológico “[...] por sua tradição, pelas pessoas que o fazem, pelo método que emprega etc, tem sido entendido como completamente imune a quaisquer idéias, valores, interesses, costumes, crenças, políticas etc”. (SANTOS, 2000, p. 243).

Para afastar dessa concepção precisamos tomá-lo como “[...] um conhecimento inscrito na política cultural” e entender que a biologia é

[...] um conhecimento interessado que [...] vem traçando, através de suas novas e atualizadas narrativas, fronteiras muito claras entre os sexos, as diferentes orientações sexuais, o que se entende por raças, entre o que é um corpo saudável e o que um corpo doente, entre o que é natural e o que é naturalizado etc. (SANTOS, 2000, p. 232).

Defendemos, portanto, que a “[...] a biologia precisa ser perguntada quanto àquilo que está produzindo [...]”, questionada “[...] em que narrativa se está imerso para ensinar e aprender biologia” (p. 234-235) e problematizada como uma produção interessada, uma produção que se aliar aos fluxos, multiplicidades, conexões e intesificações de ruptura da ideia d’O corpo. Do modo como operado na tese que produzimos, se torna urgente, para que possamos borrar o ensino de Biologia, o entendimento de que as sexualidades, os sexos e os gêneros “[...] devêm singularizações, experimentações, criações a partir dos movimentos dos corpos que seguem linhas pelos territórios do ensino de Biologia, (des)fazendo formas, organismos, (des)pontecializando forças num princípio rizomático.” (SANTOS, 2018, p. 155)

Referências

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3Referimo-nos a tese intitulada Experiências de pessoas trans-ensino de biologia, de autoria de Sandro Prado Santos e orientação de Elenita Pinheiro de Queiroz Silva, defendida em 2018.

4A noção de normatividade de gênero é tomada especialmente em Judith Butler na obra Problemas de gênero:feminismo e subversão da identidade (2003). Para a autora a questão da linguagem é central para pensarmos e analisamos o gênero enquanto performatividade. A linguagem nos constitui e define quais vidas valem e podem ser vividas; quais vidas são precárias.

5Utilizamos o plural dada a nossa defesa de que há múltiplas possibilidades de vivência da sexualidade

6O campo da Endocrinologia aponta que esta síndrome resulta da presença de um cromosso X a mais no cariótipo humano. Ela pode levar ao que se denomina de hipogonadismo hipergonadotrófico, azoospermia e hipodesenvolvimento dos caracteres sexuais secundários. Também indicada como doença de curso crônico com incidências sobre o sistema reprodutor masculino, e apontada como uma das possíveis causas da infertilidade no mundo.

7Estes apontamentos nos são possíveis em detrimento da tese de doutoramento que nos referimos neste texto e na pesquisa intitulada, Saberes sobre corpo, gênero e sexualidades em manuais escolares/livros didáticos de Biologia - Brasil/Portugal. Chamada Universal 01/2016 - CNPQ/MCTI, que temos realizado sobre livros didáticos em andamento no âmbito do nosso grupo de pesquisa - GPECS (Grupo de Pesquisa Corpo, Gênero, Sexualidade e Educação).

8Nome fictício utilizada para uma das professoras de ensino médio da rede pública estadual na tese de doutoramento à qual este artigo está vinculado.

9O campo de autação dos/as docentes são: Fisioliga, Genética e Endocrinologia Humanas.

10A imagem circulou na rede munidal de computadores (internet) e está disponível em: http://g1.globo.com/planeta-bizarro/noticia/2014/11/americanoconhecido-com-homem-gravido-e-preso-por-perseguir-ex.html. Acesso em setembro de 2016.

11A imagem está presente no seguinte livro: SILVA-JÚNIOR, César da.; SASSON, Sezar.; CALDINI-JÚNIOR, Nelson. Biologia 3: Genética, evolução, ecologia. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p.132.

12Vídeo: A diversidade sexual na natureza. Joan Roughgarden. TEDXAmazônia. Tradutor: Leonardo Silva. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KJ3lcCa0G4Y. Acesso em 09 de outubro de 2016.

Recebido: Abril de 2018; Aceito: Janeiro de 2019

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