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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.26 no.2 Uberlândia maio/ago 2019  Epub 31-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/er-v26n2a2019-11 

Artigos de Demanda Contínua

Quando o futebol é de mulheres: suspeitas, regulações e transgressões no campo dos gêneros e sexualidades

When football is of women: suspicions, regulations and transgressions in the field of genders and sexualities

Maria de Fátima Salum Moreira1 

Vagner Matias do Prado2 

Maria Cristina Cavaleiro3 

1 Doutora em Educação. Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente, SP, Brasil. E-mail: fatimasalum@gmail.com

2 Doutor em Educação. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: vagner.prado@ufu.br

3 Doutora em Educação. Universidade Estadual do Norte do Paraná, Cornélio Procópio, Paraná, Brasil. E-mail: cris.cavaleiro@uol.com.br


Resumo

O estudo discute a percepção que jovens jogadoras de futebol possuem de si mesmas, frente às relações de gênero e sexualidade a partir de pesquisa que envolveu observações de treinos e seis entrevistas semiestruturadas com uma equipe feminina de município do interior paulista. Ao compreender as sexualidades e o gênero como construções sócio-históricas, problematiza-se a prática do futebol e os dispositivos que produzem “modos de ser mulher” a partir de políticas normalizadoras. Conclui-se que regimes normativos de gênero regulam os corpos das jovens atletas frente a um esporte considerado como masculino; gerenciam modos possíveis de estilização corporal das jogadoras; e instituem regras que visam afastá-las de uma possível aproximação com o desejo lesbiano. Tais achados desvelam o futebol como prática social generificada e generificante, produtora de corpos/subjetividades que são gerenciados pelos dispositivos de gênero e sexualidade. Também permitem (re)pensar as relações estabelecidas entre gênero, sexualidade e práticas corporais.

Palavras-chave: Futebol Feminino; Relações de Gênero; Lesbofobia

Abstract

This study discusses the perception that football playing youths have of themselves, when faced with the relationships of gender and sexuality, based on a study that involved observations during training sessions and six semi-structured interviews with a female team from an inner-state municipality of São Paulo. Through an understanding of sexuality and gender as socio-historical constructs, focus was directed toward the practice of football and the devices that produce "ways of being a woman" from normative policies. The conclusion was reached that normative policies of gender regulate the bodies of these young athletes guided by a sport considered as masculine; manage ways that aid in the body-styling of players; and institute rules aimed at steering them away from a possible approximation with the lesbian desire. Such findings revealed football to be a social practice of gender and gender dominated social practice, producing bodies/subjectivities that are managed through gender and sexuality devices. These also allow for one to (re)think the established relationships between gender, sexuality and body practices.

Keywords: Women’s Soccer; Gender Relations; Lesbophobia

Introdução

Agora as mulheres estão ficando mais bonitas, passando maquiagem. Elas vão a campo de uma maneira mais elegante. Futebol feminino costumava copiar o futebol masculino. Até nos modelos de camisa, que era masculino. Nós vestíamos as meninas como garotos. Então faltava o espírito de elegância, de feminilidade. Agora os shorts são mais curtos, os cabelos são bem feitos. Não são mulheres vestidas como homens. (Coordenador de futebol feminino da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em entrevista concedida para o jornal canadense "The Globe and Mail", em 2015) (FORUM, 2015, p. 1).

Entendemos o esporte como um fenômeno social carregado de significados. Um campo de disputas pelo controle das significações. Terreno fértil para muitas questões que afetam a participação e presença das mulheres na vida social. A esse respeito, o excerto em epígrafe movimenta algumas provocações iniciais. Afinal, como atesta a reportagem, dizer que “agora” [ano de 2015] as mulheres que jogam futebol “vão a campo de maneira elegante” [munidas] do “espírito de feminilidade” [pois] “os shorts são mais curtos, os cabelos são bem feitos” (FORUM, 2015, p. 1), implica na aceitação do discurso do embelezamento quando o futebol é praticado por mulheres: a adequação das vestimentas - uniformes - e da aparência a uma suposta demanda pela valorização de “atributos” femininos, ou seja, o “espírito da feminilidade”. E as mulheres jogadoras que não se enquadram nesse “espírito”?

Neste artigo, dialogamos com estudos que se somam ao interesse contemporâneo das discussões de gênero e sexualidades vinculadas ao esporte, buscando destacar as relações de poder implicadas na produção das diferenças e desigualdades de gênero. Tendo como base uma investigação que versou sobre o modo como mulheres que jogam futebol significam e dão sentido aos seus modos de ser, pensar e agir, em relação à prática dessa modalidade esportiva, evidenciamos como os dispositivos de gênero e sexualidade incidem sobre suas vivências, instituindo condutas e comportamentos dentro de uma perspectiva normalizadora, acionada na regulação das possibilidades de transgressão (dentro ou fora das quadras), na estilização corporal das atletas e no afastamento de uma possível aproximação com o desejo lesbiano e as possibilidades de transgredir as fronteiras contidas nos binarismos de gênero.

A pesquisa de caráter exploratório, na forma de estudo de caso (GIL, 2009), tratou das experiências vividas por seis garotas4 praticantes de futebol em uma equipe, composta basicamente por estudantes universitárias, que representava um município do interior do Estado de São Paulo5. Os procedimentos metodológicos se pautaram em observações diretas (BECKER, 1997) dos treinos de futebol e em entrevistas semiestruturadas (QUEIROZ, 1988; BRANDÃO, 2000), articuladas aos objetivos centrais da pesquisa. Cada entrevista era precedida de um questionário, visando construir um perfil mais geral das jovens participantes.

As entrevistas foram gravadas e transcritas6. Os conteúdos das entrevistas foram alvo de uma análise temática, com base na técnica de conteúdo, conforme proposta por Bardin (1977). O material produzido foi desdobrado em eixos temáticos elaborados a partir das repetições, aproximações, cruzamentos ou omissões observadas nas falas das interlocutoras. Para o escopo deste artigo, selecionamos os eixos: 1. Jogos de gênero no futebol feminino; 2. Suspeitas, regulações e transgressões.

A perspectiva analítica que auxiliou nas problematizações dos eixos temáticos elaborados priorizou estudos de inclinação pós-estruturalista que compreendem as sexualidades e o gênero como construções sócio-históricas, políticas e culturais que gerenciam modos de “ser” e estar no mundo, especificamente os trabalhos de Judith Butler e Michel Foucault. Sobre as relações entre gênero e esporte destacamos as contribuições de Silvana Goellner.

Futebol feminino: capturas, mecanismos e estratégias normativas

Em nossa sociedade, as diferenças entre homens e mulheres são comumente remetidas ao primado explicativo da natureza e encobrem o longo processo de socialização que nos tornou humanos/as. Com base na ideia de que a distinção sexual é natural, universal ou invariante, edifica-se um sistema de discriminação e exclusão. Como destaca Vale de Almeida (1995), trata-se de um sistema polarizado, hierárquico e cristalizado, cujas mudanças de ordem social e política, apoiadas na biologia, arquitetam arranjos que deslocam a responsabilidade das evidentes desigualdades sociais, políticas e econômicas para a natureza.

Os elementos não visíveis desse sistema, em cujo quadro geral as desigualdades foram naturalizadas, explicitaram-se em estudos vinculados ao campo feminista de gênero ou, ainda, protagonizados pela luta feminista das mulheres no âmbito acadêmico (MATOS, 2010). O conceito de gênero traz como pressuposto a preocupação social, histórica e cultural de superar as explicações biologizantes acerca de algo que se considera como as “relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” (SCOTT, 1995, p.14).

Existe um aprendizado de gênero que compreende nossa socialização na família e na escola, dentre outras instituições sociais por onde transitamos durante a vida (ROHDEN, 2009). Tal aprendizado envolve regras culturais que nos constroem como pessoas, como homens ou mulheres. Se entendermos que categorias de gênero binárias (masculino e feminino) são socialmente construídas, também podemos compreender como arbitrárias a hierarquia ou distribuição diferencial de poder nelas baseadas.

Como uma importante dimensão da vida social, o gênero envolve a busca de nosso lugar no mundo e sua permanente reconfiguração, a partir de nosso corpo sexuado, mas em confronto com o que os outros nos dizem a respeito do que nós somos e do que deveríamos ser. Aliás, a própria noção de corpo sexuado foi ampliada por autores como Laqueur (2001) e Butler (2003), os quais, embora partindo de diferentes perspectivas, afirmam que o efeito de materialidade física é uma construção ancorada em práticas discursivas, inclusive quando nos referimos à aparente diferença sexual.

Assim como o gênero, a sexualidade é uma construção social, histórica, política e cultural, de maneira que também podemos questioná-la como algo que mulheres e homens possuiriam “naturalmente”.

homens e mulheres são ausentes de uma programação biológica (...) os seres humanos necessitam de um aprendizado social na coordenação de sua atividade mental e corporal para saberem de que maneira, quando e com quem agir sexualmente (BOZON, 2004, p. 14).

Contudo, como sugerido por Foucault (1979), as relações estabelecidas entre corpo-sexualidade são alvos de dispositivos que, de forma estratégica, consistem em anunciar uma concepção de poder:

O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. É isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. (FOUCAULT, 1979, p. 246).

Tomamos como dispositivo “arranjos de poder em relações dispersas no cotidiano, possibilitando afirmações, negações, teorias e todo um jogo de verdade, que podem ser identificados nas práticas discursivas” (SILVA; SOUSA, 2013, p. 86). O dispositivo produz certos efeitos de verdade. Para Agambem (2005, p. 9) trata-se de um “conjunto heterogêneo que inclui virtualmente qualquer coisa, lingüístico e não lingüístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas etc.”.

Algumas “perturbações” parecem ser mais notadas quando, por qualquer razão, certos corpos não são tão facilmente identificados em concepções binárias. A insistência de que formas de masculinidades e feminilidades devem ser estabelecidas como rigidamente opostas, fixas e cristalizadas, desvinculadas do processo de construção social, acionam dispositivos que afirmam, primeiramente, a existência de um gênero correto e a heterossexualidade como norma (BRITZMAN, 1996).

Assim, tanto o gênero quanto a sexualidade apresentam funções estratégicas que consistem em construir, inclusive, a noção de natureza ao estabelecer a ficção da diferença sexual, legitimados por regimes normativos que pretendem legislar sobre nossas vidas e categorizá-las socialmente para que sejam mais bem administradas (LAQUEUR, 2001).

Orientados por Butler (2003), entendemos que a heterossexualidade configura-se como:

[um] modelo discursivo hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade. (BUTLER, 2003, p.16).

No que se refere aos diversos espaços sociais que acionam práticas reguladoras que legitimam determinados modelos de masculinidades, feminilidades e expressões de sexualidade como ideais, os esportes devem ser problematizados. A entrada das mulheres no cenário esportivo não foi realizada de forma tranquila. Historicamente, os esportes foram considerados como práticas para os homens, não somente pela marcação de atributos tidos como “virilizantes” (a demonstração de força, o suor excessivo, a rivalidade, os músculos demarcados), como também por constituir-se em um espaço público de socialização masculina.

Ao indicar que há muito tempo as mulheres protagonizam histórias no futebol brasileiro e que é significativo o aumento de mulheres praticantes de futebol em clubes, escolas, áreas de lazer, além das conquistas da seleção nacional brasileira, desde finais dos anos 1990, Goellner (2005b) ressalta que tal avanço deve ser avaliado com cautela. A autora lembra que “homens e mulheres ainda não possuem iguais condições de acesso, participação e visibilidade no âmbito das atividades corporais e esportivas” (GOELLNER, 2005b, p. 149).

Outra dimensão importante dos estudos no tema é a constatação da necessidade de afirmar, tornar público e divulgar a condição de beleza e feminilidade das jogadoras, a qual é tributária da tentativa de preservar as jogadoras de uma possível associação com a masculinização, que é o território ao qual o futebol está associado. Tais questões indicam o quanto essa modalidade esportiva se encontra sustentada em um campo generificado, permeado por relações de poder e pleno de ambiguidades. (GOELLNER, 2005a; GOELLNER, 2005b; KNIJNIK, 2006; CAVALEIRO; VIANNA, 2010).

Percebe-se, assim que feminilidades e masculinidades são entendidas como algo natural, justificando e legitimando obstáculos, preconceitos e desigualdades de acesso das mulheres às práticas esportivas. Goellner (2005b) destaca que as mulheres que jogam futebol se defrontam com preconceitos e estão sujeitas ao enfrentamento de inúmeras estratégias de poder, com base em representações estereotipadas e excludentes, visto que transgridem o que “convencionalmente se designou como sendo próprio de seu corpo e de seu comportamento questionando a hegemonia esportiva masculina historicamente construída e culturalmente assimilada” (GOELLNER, 2005b, p. 149).

Para Kessler (2012, p. 51), “a mulher que joga futebol afronta as práticas de controle e normas sociais. Sua presença nas quadras e campos, por vezes, é considerada um insulto à sociedade e à visão corrente de masculinidades e feminilidades”.

Contudo, ao enfrentarem um universo caracterizado como próprio do homem, jogadoras também podem buscar vincular sua imagem “em conformidade com uma representação hegemônica de feminilidade ‘medida’, como se pode esperar, pela aparência dos corpos” (GOELLNER, 2005a, p.147).

Em pesquisa realizada por Salvini e Marchi-Júnior (2013) sobre a representação do futebol feminino na Revista Placar, entre os anos de 1980 e 1990, essa conformação se evidencia em muitos relatos de opinião publicados em favor da prática do futebol por mulheres: “apesar de jogar futebol, me considero muito feminina ou quem diz que a mulher que joga futebol é homossexual está muito enganado, pois nós somos tão mulheres quanto as que não o praticam” (SALVINI; MARCHI-JÚNIOR, 2013, p. 100).

Knijnik (2006) identificou que o discurso de jogadoras de futebol possuía uma denúncia principal: o preconceito que sofriam por praticarem a modalidade.

Preconceito. Esta é a palavra que parece estar na mente das atletas, e que salta de suas bocas, quando instadas a falarem sobre suas vivências no futebol. Preconceito vivido na época em que eram crianças jogando bola nas ruas; preconceito na família, nos amigos, na comunidade e na escola. (KNIJNIK, 2006, p. 388).

Tais constatações nos convidam a investir em análises que possam indicar como se constituem as capturas, os mecanismos e estratégias normativas que buscam controlar e assegurar os gestos e legitimam os sentidos das feminilidades e masculinidades, delimitando aquilo que pode ou não fazer uma mulher que transita em espaços tradicionalmente tomados como masculinos. Também nos interessa reconhecer quais são as possibilidades de transgressões frente a essas estratégias normalizantes e excludentes.

Jogos de gênero no futebol feminino

As relações estabelecidas entre a presença de mulheres no futebol e as estratégias normativas que objetivam demarcar que tal prática não é adequada para as mesmas se faz presente em diversos contextos. Nesta investigação, as jogadoras percebem os olhares depreciativos, principalmente por parte de homens, os quais buscam desqualificar suas atuações em uma prática tida como masculina.

(...) alguém que passava, principalmente homem, a primeira reação é: - Mulher não sabe jogar futebol! (...) (I2).

Eu... principalmente pelos homens, há um preconceito absurdo! (...) às vezes, quando a gente vai jogar, assim é, é sentada na arquibancada, os homens zoando, eu acho ridículo isso (...). (I5).

(...) o preconceito acho que é dos homens, o olhar é dos homens, nem tanto das mulheres, mas dos, dos meninos mesmo (...). (I3).

Percebe-se que o olhar do outro constitui uma linha de captura normativa que intenciona estabelecer a incoerência da participação de mulheres na prática do futebol. As narrativas que visam desqualificar as jogadoras são constituídas por discursos que naturalizam os gêneros e produzem a ideia de “incapacidade feminina” para a realização de determinadas atividades, justificando que tal afirmação se deve a uma disposição biológica. O contrário é observado quando o foco é a análise da atuação de homens futebolistas, fato facilmente percebido em programas televisivos sobre esportes. Nestes, os jogadores são avaliados por suas habilidades motoras, capacidades físicas e estratégias de jogo, ou seja, por suas qualidades atléticas.

Historicamente, é apenas a partir da década de 1980 que o futebol feminino encontra terreno produtivo para se estabelecer em território nacional (GOELLNER, 2005a).

Se por um lado, sua inserção no futebol pode ser observada como uma atitude transgressora porque as mulheres fizeram valer suas aspirações, desejos e necessidades, enfrentando um universo caracterizado como próprio do homem, por outro, pode significar uma adaptação aos valores e práticas comuns a esse esporte (GOELLNER, 2005a, p. 147).

Tal representação acabou reforçada por muitas mulheres futebolistas que, para justificarem a sua presença na modalidade, se valiam de argumentos que buscavam marcar sua adequação ao feminino e exibição da heterossexualidade. É recorrente essa fala padronizada entre as nossas interlocutoras de modo que a necessidade da apresentação da feminilidade esperada pela sociedade - “ser feminina” - é apontado quase como uma obrigação para a inserção das mulheres na modalidade.

(...) acredito que, independente de qualquer coisa, a menina tem que ser mulher e feminina. (I6).

(...) tem muitas meninas que, ao invés de melhorar a imagem do futebol feminino, continuam com atitudes que provocam desconfianças, como, por exemplo, se vestindo como homens e se masculinizando. Isso acaba sendo associado ao esporte (...) (I6).

Corroborando as argumentações de Butler (2003), o gênero é um mecanismo discursivo que nos constitui como sujeitos. Dessa maneira, mesmo ao defenderem a participação das mulheres no futebol, ao criticarem os olhares indagativos a elas direcionados, algumas jogadoras legitimam igualmente os discursos que as oprimem.

Ao partirem da assertiva de que “a menina tem que ser mulher e feminina” (I6), os silêncios contidos na frase determinam, tal como sugerido e nomeado por Halberstam (2008), que a masculinidade feminina encontra dificuldades para ser considerada como uma forma possível de existência. Segundo sua perspectiva, a masculinidade, como construção social, não é privilégio dos “machos” e diversos corpos marcados como fêmeas performatizam múltiplas maneiras de vivenciar as masculinidades, desde mulheres que viviam se fazendo passar por homens nos séculos XVIII e XIX, até as novas culturas contemporâneas de transgêneros, drag kings, transexuais masculinos e culturas butcth (HALBERSTAM, 2008).

No que se refere às pesquisas sobre masculinidades, Romero e Pereira (2008) apresentam estudos que desconfiam da masculinidade como um atributo natural e universal de “homens”. Seria, assim, necessário compreendê-la como fluida, negociável e dependente das representações produzidas sobre o “homem” em determinados contextos. Corroborando com Halberstam, o autor e a autora contribuem para problematizar os processos performativos estabelecidos para que um indivíduo possa ser reconhecido (e se autorreconhecer) como masculino ou feminino.

Welzer-Lang (2001), adiantando-se aos estudos antes destacados, demonstra como o processo de fabricar masculinidades depende de uma organização social que estimula o indivíduo a internalizar modos de agir condizentes com as ideias de superioridade, virilidade e dominação. Tal processo se faz a partir da construção de diferentes formas de violência que estruturam a homofobia7 e estratégias para a dominação de seres considerados como mulheres. Talvez seja por tais procedimentos que a masculinidade se estabeleça no plano social como uma aparente propriedade de “homens”.

A relação entre os dispositivos de sexo e gênero também institui modelos normativos com respeito aos desejos. As normas regulatórias de gênero não apenas produzem modos de adequar as marcas biológicas dos corpos aos símbolos e significados culturais considerados como apropriados para machos e fêmeas. É necessário também regular as maneiras de expressão dos desejos afetivos, eróticos e sexuais a partir da normativa heterossexual. Ainda:

efetuar uma leitura foucaultiana da categoria gênero, é destacar a construção dos discursos sobre o masculino e o feminino, as assimetrias e desigualdades nos blocos de correlações de forças, em oscilações de micro e macropoderes nas relações homem/mulher. (SENA, 2004, p. 200).

Contudo, queremos destacar que, se as regras estão postas, sobre elas se pode agir subvertendo os lances, buscando espaços para aquilo que não está previsto, golpeando, passo a passo, astuciosamente, as regras. São as resistências, ou ao menos as manobras, entre forças desiguais, maneiras de fazer, destreza, ardis cotidianos (CERTEAU, 2002). Há uma dinâmica nas interações cotidianas que se caracteriza por práticas singulares e plurais, apontando para as diferentes formas de enfrentar e viver as transformações pelas quais passamos.

Na investigação realizada, o fortalecimento das relações interpessoais foi apontado como fator importante para a adesão inicial a uma prática esportiva concebida como não apropriada para as mulheres. Todas as jovens entrevistadas destacaram o apoio recebido das pessoas do seu entorno familiar para que chegassem a compor as equipes de futebol, indicando socializações sucessivas constituídas por experiências positivas.

(...) eu gosto muito, é uma prática que... não sei por que, mas me atrai muito (...) eu jogava, assim, na família, com meu irmão e com meu primo, então era uma coisa que eu ia ver meu irmão jogar e ficava batendo balãozinho às vezes em casa (...) o técnico do meu irmão, ele tinha falado, tinha um time feminino e aí me chamou (...). (I2).

(...) sempre gostei de futebol (...) o meu pai e minha mãe, eles me incentivavam muito (...). (I5).

(...) eu comecei a me interessar, foi por incentivo do meu pai, né? (...) ele não tinha com quem jogar ou brincar, brincar de boneca ele não ia brincar comigo, né? (...). (I1).

(...) brincava com os meus irmãos, não tinha menina para brincar, então eu jogava futebol por causa deles (...) meu pai foi meu... grande incentivador (...) foi ele que... primeiro, o primeiro time que eu comecei a jogar foi meu pai que montou pra mim. (I3).

Em vários depoimentos, foram usados verbos assertivos, como “eu gosto”, “me atrai”, “eu quero”, “eu acho legal”, os quais se associaram ao destaque dado aos incentivos recebidos por pais, irmãos, amigos. As atitudes e opiniões dos familiares são variadas, mas destacamos que o empenho em fazer valer o gosto e a vontade de jogar futebol, certamente, contou com os estímulos que receberam, porém, tiveram que enfrentar adversidades e obstáculos em seus vários espaços de sociabilidade, desde que eram crianças, inclusive na escola.

Agora, por parte das minhas tias, não só por parte das minhas tias, até na escola que eu estudava sempre existia preconceito, uma menina praticar futebol? Sempre existia os apelidinhos, sempre as fofoquinhas (...) inclusive por parte da minha professora de Educação Física, (...) ela [professora] não deixava, nas aulas de Educação Física, ela não deixava é... eu jogar com os meninos, falava que isso não podia, que não era certo e colocava eu pra jogar queimada com as meninas (...). (I1) (destaques nossos).

O cenário positivo de incentivo à prática do futebol teve como contraponto momentos nos quais as jogadoras foram alvo de policiamentos acerca de possíveis transgressões e/ou rupturas nas regulações de gênero e sexualidade. Embora motivadas para a atividade, atraiam olhares carregados de dúvidas e suspeitas sobre sua adequação ao gênero e à sexualidade considerados corretos. Afinal, para a garantia da norma “sempre existia os apelidinhos, sempre as fofoquinhas”! (I1).

Suspeitas, regulações e transgressões

O receio de masculinização do corpo feminino por meio de determinada prática esportiva pode ser considerado como uma estratégia regulatória que intenciona gerenciar as possibilidades de atuação de meninas em modalidades predominantemente associadas ao “campo” masculino. Em relato de uma das jogadoras entrevistada, a preocupação com a feminilidade é enfatizada como medo da perda do gênero.

Só minha mãe que não gostava que eu jogava bola [risos]. Nunca gostou. Meu pai sempre... meu pai é tudo no futebol, mas minha mãe não (...). Porque tinha umas mulheres muito masculinizadas etc. Ela falou: - Isso aqui não é pra você, não (...). (I3).

Segundo Butler (2003), o medo dessa “perda” garante a coerência culturalmente atribuída ao sistema de inteligibilidade acionado pela noção causal e ordenada entre sexo biológico, gênero e desejo. Em outras palavras, um corpo, que por meio do discurso biológico é marcado como macho ou fêmea, evoca normas sociais que pretendem construir nele características concebidas como masculinas ou femininas, sendo que o desejo afetivo deverá se estabelecer a partir da noção de heterossexualidade.

Reiterado pelas práticas sociais, o dispositivo de gênero atua em nossa constituição enquanto indivíduos, repercutindo em nossas formas de pensar, sentir e agir. A força dessa referência cultural é tal que, mesmo quando se observa certa ruptura nesse cenário, nota-se que nossas interlocutoras acabam justificando seus atos em função do sistema sexo-gênero-desejo. No caso do futebol, pode-se pensar em um movimento de subversão, pois temos a presença da mulher em um espaço social construído como próprio do homem. Todavia, quando são emitidas suspeitas sobre suas “feminilidades”, as jogadoras demonstram se tornar suscetíveis a novas capturas normativas, conforme se verifica na declaração de uma delas:

(...) por parte dos meus pais, meu pai sempre me incentivou e incentiva até hoje, a minha mãe não, não criticava, mas também não apoiava (...) houve uma melhora, porque tô conseguindo mostrar pra eles... que é um esporte normal, como qualquer outro, praticado por homens ou por mulheres, tem sua diferença, claro, mas é... (...). Aí eles tão respeitando mais agora, eu também coloquei, agora tô mostrando que o futebol não é isso, o futebol... o futebol feminino também por trás tem uma... tem uma coisa boa, não é aquela ahm... não vai transviar as meninas por aí... [risos]. (I1) (destaques nossos).

A iminência do perigo de subversão da feminilidade, aliada à noção de transviar o corpo “feminino”, aciona a representação histórica e política do gênero como um atributo da natureza (SCOTT, 1995). Butler (2003), por sua vez, explica que não existe um corpo prévio às regulações que definem o que será considerado como masculino ou feminino. Em seu entendimento, seriam os discursos sociais que materializam as possibilidades de compreensão da matéria física e que instituem a desconfiança das vidas que tomam forma a partir de outras possibilidades.

No que se refere a tais expectativas, umas das entrevistadas relatou que, devido a sua conformação corporal, sua mãe e seu namorado colocaram em dúvida sua sexualidade, levantando “suspeitas”:

Houve é, é... como eu posso dizer pra você, suspeitas da minha mãe, mas eu num... tipo assim, eu fui conversei com ela, falei: - Oh, você tem que acreditar em mim! Aí ela pegou e falou: - Não, filha, tudo bem (...). (I4).

Ele perguntou já umas três vezes pra mim se eu já fiquei com mulher, eu falei que não, não fiquei. Aí se ele perguntar de novo eu vou falar, qual é que é? O que você está achando de mim? (...). (I4).

No relato do caso com a mãe, o falar sobre si não foi totalmente possibilitado no ato formal da entrevista, mas após seu término, durante uma conversa “informal”, momento em que ficaram mais claras as regulações sofridas com base nas suspeitas levantadas sobre sua “possível” lesbianidade. Ela continuou a relatar que, para a mãe, “(...) com aquele corpo, não era possível que ela não fosse...” (I4) e que, por isso, a mãe, chegou a levar a sua casa uma mulher homossexual - “sapatão mesmo!” (I4) - para tirar eliminar as suas dúvidas e ter certeza quanto a sua orientação sexual.

Temos, portanto, que as práticas regulatórias acionadas pelo dispositivo de gênero também estilizam os corpos. Ou seja, o processo de atribuição de certa “identidade de gênero” é acompanhado pela conformação corporal considerada como apropriadamente masculina ou feminina para dar coerência a um corpo. Talvez seja por esse motivo que travestis, por exemplo, embaralham aquilo que é prescrito, ao produzirem em um mesmo corpo caraterísticas consideradas como masculinas e femininas.

Outro ponto a ser destacado é que, para diversos esquemas de significação cultural, o corpo é concebido como a base para a construção da sexualidade. Não queremos dizer que o corpo físico não se constitui em uma dimensão para uso dos prazeres, todavia, atribuir exclusivamente à matéria a origem do desejo é algo que deve ser problematizado. Para Weeks (1999, p. 38), “a sexualidade tem tanto a ver com nossas crenças, ideologias e imaginação, quanto com nosso corpo físico”.

A estilização dos corpos, segundo as normas de gênero, demarca as possibilidades para o uso da matéria biológica. Assim, a construção do pensamento a partir da dicotomia masculino-feminino se expressa ainda nos gestos, modos de andar, gostos, “escolhas”, comportamentos etc. A captura de gênero modela os corpos desde o momento em que a pergunta é menino ou menina? é respondida (BUTLER, 2003).

As regulações de gênero também homogeneízam os modos de viver a masculinidade ou feminilidade, impedindo que se pense como possível uma masculinidade feminina (HALBERSTAM, 2008), dificultando compreender que mulheres constroem formas singulares e plurais para vivenciarem o gênero.

A depreciação da homossexualidade aparece igualmente no universo representacional das jogadoras. Sendo ou não lésbicas ou bissexuais, elas parecem acionar mecanismos que as afastem da possibilidade de tal identificação ou, ao menos, da associação entre futebol feminino e lesbianidade.

Ah, mas há homossexualismo no futebol! Há... sabe? Sempre fazem aquelas perguntas assim, aí associam a masculinidade ao futebol, olham, acham que as meninas que praticam, que jogam bem, têm que ser masculinizadas, é... só que é aquela história, cada um é por si, se existe isso no futebol, existe no basquete, no vôlei, em todo lugar, entendeu? (...). (I1).

Buscando compreender as dificuldades de permanência de mulheres em práticas esportivas consideradas masculinas, o estudo de Moura et al. (2009-2010) destacam a importância significativa da identificação esporte-masculinidade e como esse valor persiste nas escolhas e práticas, trazendo várias rotulações, dentre as quais, a vinculação a “uma orientação sexual homoerótica” (MOURA et al., 2009-2010, p. 3).

Outra inferência que podemos realizar a partir da fala dessa jogadora é que a associação entre gênero e orientação sexual parece ser estabelecida pela ótica de relação causa-efeito. Ao afirmar que existe “homossexualismo” no futebol, a interlocutora também comenta que esse fato se deve à compreensão da modalidade esportiva como predominantemente masculina. Assim, mulheres em uma prática culturalmente reconhecida como masculina só poderiam ser lésbicas, o que está em acordo com aquilo que também constataram Moraes (2012) e Silveira e Stigger (2009).

Todavia, para outras jogadoras, essa associação aparenta não abalar a construção social da afinidade com a prática, demonstrando que esses “olhares” não são potentes para afastá-las da vivência na modalidade. Ao relatar que, para o imaginário social, a prática do futebol ainda “é coisa de homem” e que quem joga é “mulher-homem”, uma das interlocutoras diz:

Ah, que é coisa de homem (...) têm mulheres masculinizadas que jogam futebol, e tem gente que pensa que só mulher-homem que joga futebol, eu não ligo muito pro que, pro que os outros pensam, não (...) (I3).

(...) Aqui em [munícipio] [risos], futebol feminino não é muito bem visto não, mas... eu não sei... é que, é... que o futebol feminino aqui não tem uma fama muito boa, então, tá usando futebol feminino, já é tachado de, de, de alguma coisa, entendeu? (...), mas sei lá, não altera nada pra mim, não muda muita coisa, não. Eu uso e pronto. Eu jogo e pronto. (I3).

Para além da anatomia, o uso de determinadas vestimentas pode ser igualmente associado a uma forma de expressar determinadas condutas corporais. Trajar o uniforme do time é uma prática que visibiliza as relações estabelecidas entre as meninas e o futebol, de modo que essa ação não passa despercebida aos olhares “alheios”, tanto quanto os detalhes que constituem suas roupas.

As pessoas encaram, olham você de cima em baixo [risos]. Olham você de cima em baixo. Olham até a forma como você se expressa ou olham a forma como você senta, como você anda... Olham tudo, desde a sua aparência, até o que você vai dizer, como que, como que conversa, é... sempre... e sempre menospreza, é, por exemplo... acha que a pessoa que joga futebol é burra, entendeu? (...) (I1).

Bom, eles olham bastante, sei lá, eles ficam olhando bastante (...) na rua, o pessoal fica olhando muito, tipo, fica... olha, repara a conversa assim, eu de boa, né? Tipo, vejo, mas ah, dá nada, não (...). (I4).

Inevitável, todo mundo fica olhando assim. É estranho, eu acho, sabe? Eu penso que é meio estranho ainda pra eles. Pô, acho que mulher tem, é associado a quê? A shortinho grudado, né? Blusinha e, sabe, tênis normal. Nunca meião, tênis de salão, nunca é imaginado, é meio estranho o olhar assim, tipo, é meio chocante assim. (I5).

A subversão enfatizada em determinadas falas como, por exemplo, não se importar com os olhares negativos ou insinuantes sobre suas práticas se apresenta de forma contrastante em algumas narrativas.

Nunca observei se as pessoas olham ou dizem algumas coisas. (...) têm muitas meninas que, ao invés de melhorar a imagem do futebol feminino, continuam com atitudes que provocam desconfianças como, por exemplo, se vestindo como homens e se masculinizando. Isso acaba sendo associado ao esporte (...) (I6).

Há um aprendizado quase que consubstancial ao aprendizado da linguagem: “do olhar lançado ao mundo e aos outros, o do lugar que podemos ocupar neste mundo e na relação com os outros” (ERIBON, 2008, p. 83). Culpabilizar a “má fama” do futebol feminino, ao associar que as meninas masculinizadas contribuem para a construção de uma imagem negativa sobre o futebol, pode ser compreendido como um movimento de captura pelas normas. A feminilização da mulher que joga futebol parece ser necessária, inclusive, para justificar tal prática, fato já ressaltado em nossa incursão analítica.

Na fala da participante apreende-se o entendimento generificado de que, na sociedade, há um tipo de roupa mais adequada para uma mulher usar, uma roupa mais “feminina”, portanto. O ato de cruzar fronteiras de comportamentos masculinos ou femininos considerados “apropriados”, ou seja, a transgressão dos limites impostos pela ideia de “um gênero correto” sobressai como algo que obedece à fórmula “dentro” e “fora” das quadras, como se depreende nas falas abaixo:

É assim, futebol é futebol, eu jogando lá dentro da quadra, eu me visto, é o uniforme, é, pode até ser igual ao dos meninos, mas lá fora acho que é outra coisa, então (...), eu prefiro sem uniforme [risos] (...) (I3).

Eu, eu não ando assim naturalmente, né? Claro que eu gosto de andar com roupa mais feminina, né? (...) (I5).

As fronteiras em relação às aptidões e habilidades das jogadoras são aqui tomadas como espaços generificados e generificantes, pois as suas narrativas nos possibilitam inferir que essas fronteiras determinam em quais “cenários” sociais a subversão de algumas determinações de gênero será autorizada. “Dentro” das quadras parece ser possível romper o ideal de feminilidade prescrito pelos modos de comportamento, vestimentas ou autorrepresentação como mulher regulados pelo dispositivo de gênero. Já “lá fora” é “outra coisa”, de modo que as jogadoras sinalizam que, em territórios não pautados pela destreza atlética, é preciso agir em consonância com os padrões que “autenticam” a feminilidade desses corpos.

É nesse jogo de negação, aceitação, acomodações, negociações e subversões que se constituem as subjetividades e expressões de gênero e sexualidade de nossas entrevistadas. Em alguns momentos, suas atitudes indicam transgressões e questionamentos aos padrões que afirmam a impossibilidade de “se sentir” ou de “se considerar” mulher em uma prática esportiva, historicamente direcionada aos homens. Em outros, as práticas reguladoras do gênero legitimam determinados modelos de masculinidades, feminilidades e expressões de sexualidade como ideais, incluindo o rechaço da possibilidade de que, eventualmente, possam ser identificadas com o desejo lesbiano. Tais discursos parecem prescrever um modelo de conduta que possibilita com que mulheres possam “até ser” jogadoras de futebol, desde que heterossexuais! Formas não menos intensa de discriminação dirigida às mulheres atletas que não atendem a esse slogan.

Considerações finais

O discurso binário sobre o que seria adequado para machos ou fêmeas revela um constante investimento social para capturar os corpos e conformá-los a determinados padrões. No entanto, como assegura Butler (2003), se a norma precisa ser reiterada para ter eficácia, é porque o próprio padrão a ser alcançado é uma ficção e requer um ritual constante de repetição, a fim de que possa ser concebido como possibilidade.

As jogadoras entrevistadas relataram que, durante a infância, foram diversos os incentivos por parte dos pais, irmãos, amigos e técnicos que as auxiliaram a “ver” na prática do futebol uma possibilidade de atuação, tal como também tem sido indicado em outros estudos, conforme o de Altmann e Reis (2013).

Nos chama a atenção, a estilização dos corpos, por meio das regulações de gênero, fato que é reiterado em vários relatos. Não basta ser considerada feminina. É preciso que o corpo performatize a feminilidade. Configurar a estética corporal a partir da demarcação visível dos músculos, construir determinados “jeitos” de andar ou se comunicar, optar por um corte de cabelo diferenciado (“mais curto”) são práticas que atraem olhares desconfiados para si.

Outro ponto a ser destacado é o receio de que as jovens se apropriassem de características culturalmente associadas a ideia de masculinidade e, em consequência disto, se tornassem lésbicas. Além disso, a negatividade com que a lesbianidade é representada por algumas jogadoras, ignora a presença de vivências diversas do desejo sexual entre elas. Em muitas narrativas, as entrevistadas demarcaram a necessidade da construção de uma estética feminina que as afastem da associação com uma sexualidade não heterossexual. Vestir-se de modo “mais feminino” é uma estratégia utilizada, inclusive, para possibilitar possíveis aproximações afetivas. Observa-se igualmente que, em alguns relatos, a “má fama” do futebol feminino seria “culpa” da existência de mulheres masculinizadas ou lésbicas, na prática da modalidade.

Finalmente, ressaltamos que a repetição ritualística também cria brechas nos discursos normativos, construindo resistências frente às normalizações. Aderir a uma prática considerada masculina como, por exemplo, o futebol, pode se tornar um mecanismo que autoriza ressignificar representações socialmente atribuídas a homens e mulheres. Permite pluralizar as experiências e se constituir a partir de referentes que subvertem o esperado, contribuindo para a diversificação das relações sociais e reconhecimento de formas plurais de existência.

É nas situações cotidianamente vividas pelas jogadoras que encontramos as dinâmicas sociais que expressam como ocorrem as práticas de ressignificação sobre os corpos e dos corpos. Assim, o exercício do futebol por essas mulheres se constitui em um jogo de relações que sustenta certa subversão social - passes, dribles, desvios - entretanto, também aciona mecanismos, em geral sutis, de capturas pelas normas - impedimentos, bloqueios, retardamentos - baseados nos binarismos de gênero.

A pesquisa apresenta resultados que visibilizam processos de internalização (performatividade) de regras regulatórias de gênero que produzem formas de “ser” e estar no mundo. Também sinaliza que tais regras são, constantemente, negociadas, ressignificadas e subvertidas, no caso deste estudo, pelo protagonismo expressado por nossas interlocutoras.

Tais achados permitem problematizar o esporte, a saber, o futebol, como espaço social generificado e generificante que institui modos de produção de corpos/subjetividades acionados pelos dispositivos de gênero e sexualidade. Tal evidência pode contribuir para a elaboração de estratégias formativas no campo da Educação Física que desvelem de que maneira os esportes são transpassados por processos de gerenciamento social de corpos, bem como possibilitar a criação de processos educativos que contribuam para um constante (re)pensar das relações estabelecidas entre gêneros, sexualidades e práticas corporais.

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4As participantes possuíam idade entre 18 e 33 anos, todas universitárias e cursando graduação na área da Educação em uma instituição pública estadual. Questões referentes à autorrepresentação de cor e religião não foram objetos de questionamentos.

5A investigação contou com financiamento da FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.

6A fim de preservar a identidade das jovens interlocutoras, as mesmas foram identificadas como: I1, I2, I3, I4, I5 e I6.

7Rogério Junqueira sugere que entendamos a homofobia como um fenômeno social que se relaciona a “preconceitos, discriminação e violência voltados contra quaisquer sujeitos, expressões ou estilos de vida que indiquem transgressão ou dissintonia em relação às normas de gênero, a heteronormatividade, à matriz heterossexual” (JUNQUEIRA, 2007, p. 39). Por sua vez, Mello et al. (2012) explicam que o preconceito que afeta os homossexuais difere-se da opressão e desprezo que afeta travestis, transexuais, bissexuais e lésbicas, e enfatizam que estas são triplamente desprezadas pela lesbofobia, sexismo e machismo. Assim, nomeiam esse ódio e desprezo às pessoas desses grupos como lgbtfobia.

Recebido: 01 de Maio de 2018; Aceito: 01 de Janeiro de 2019

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