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Ensino em Re-Vista

versión On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.26 no.3 Uberlândia set./dic 2019  Epub 15-Ago-2023

https://doi.org/10.14393/er-v26n3a2019-11 

Artigos

Programa São Paulo Faz Escola: apontamentos sobre o currículo e a ação docente

São Paulo Faz Escola Program: notes about curriculum and teaching action

Programa São Paulo Faz Escola: notas sobre el plan de estudios y la acción docente

Andrea Coelho Lastória1 
http://orcid.org/0000-0002-0060-0116

Sonara da Silva de Souza2 
http://orcid.org/0000-0002-1769-733X

1 Doutora em Educação. Universidade São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. lastoria@ffclrp.usp.br

2 Mestra em Educação. Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEESP), Serrana, São Paulo, Brasil. profa.sonara@yahoo.com.br


Resumo

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEESP) criou o Programa São Paulo Faz Escola (SPFE), que foi implementado em 2008, e ainda hoje (2019), está em vigor na rede estadual de ensino paulista. Nesse texto, analisamos algumas questões sobre esse currículo, dando destaque para a questão da ação docente. Nosso intuito é procurar evidências sobre como esse currículo, prescrito há tanto tempo, ainda persiste como um guia do trabalho docente nas escolas paulistas e que repercussões são percebidas na atuação e no desenvolvimento profissional dos professores. A análise indica que o Programa São Paulo Faz Escola está pautado numa política neoliberal, quantificando o ensino com avaliações externas e com a sistematização da meritocracia que responsabiliza os docentes pela falta de qualidade da escola pública e afeta, diretamente, a autonomia dos professores.

Palavras-chave: Currículo paulista; Política pública; Neoliberalismo

Abstract

The São Paulo State Department of Education (SEESP), created the São Paulo Faz Escola Program (SPFE), which was implemented in 2008 and still today (2019), it’s in force in the state school system of São Paulo. In this text we analyze some questions about this curriculum, highlighting the issue of teaching action. Our aim is to look for evidence on how this long-prescribed curriculum still persists as a guide of teaching work in schools in São Paulo and which repercussions are perceived in the performance and professional development of teachers. The analysis indicates that the São Paulo Faz Escola Program is based on a neoliberal policy quantifying teaching with external evaluations and the systematization of meritocracy that blames the lack of quality of the public school and directly affects the autonomy of teachers.

Keywords: São Paulo curriculum; Public policy; Neoliberalism

Introdução

No Estado de São Paulo há dois currículos elaborados para o uso na rede estadual de ensino que marcam a história da produção curricular do Estado. Nos referimos ao trabalho elaborado pela Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), da Secretaria Estadual de Educação, no desfecho da década de 1980 e o produzido pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEESP), denominado como Programa São Paulo Faz Escola (SPFE), que foi implementado em 2008 e ainda hoje (2019), está em vigor na rede estadual de ensino paulista.

Nesse texto analisamos algumas questões sobre esse currículo, dando destaque para a questão da ação docente. Nosso intuito é procurar evidências sobre como esse currículo prescrito há tanto tempo ainda persiste como um guia do trabalho docente nas escolas paulistas e que repercussões são percebidas na atuação e no desenvolvimento profissional dos professores.

O contexto de construção do Currículo São Paulo Faz Escola

Na década de 1980, movimentos políticos estavam em curso e marcaram o processo de renovação curricular de diferentes áreas da educação. Esses movimentos condiziam com a conjuntura política brasileira e com o cenário educacional, que escrevia em sua história o início da democratização do país e, por conseguinte, de tentativas de democratizar também a escola. Em relação ao movimento de renovação curricular, Moreira (2000, p. 111) afirma que

a intenção prioritária era melhorar a qualidade do ensino oferecido na escola pública e reduzir as altas taxas de repetência e evasão escolar que penalizavam, dominantemente, as crianças das camadas populares. Procurava-se, também, incentivar a participação da comunidade escolar nas decisões, de forma a superar o autoritarismo de reformas anteriores, com frequência impostas de “cima para baixo”.

No período citado, houve uma forte influência das ideias de Paulo Freire, em correspondência ao ideário da educação popular que, na produção dos currículos, se estruturava tendo como eixo organizador a necessidade de considerar o sujeito político e a vida social. Freire, com o conceito de “educação bancária”, ponderou que o educando não pode ser considerado como um ser destituído de experiências e saberes, uma tábula rasa, disposto apenas a receber informações. Pelo contrário, suas experiências vividas em sociedade devem ser base para aprendizagens que o mobilize a entender-se como um ser transformador de sua realidade. Influenciados pelas ideias freirianas, a proposta curricular do Estado de São Paulo foi produzida e ficou conhecida entre os professores como o “Currículo da CENP”, um dos pioneiros no Brasil pós-ditadura militar.

A CENP organizou equipes técnicas, assessoradas por especialistas de diversas áreas do conhecimento que mantinham relação com pesquisas acadêmicas e o ensino superior, as quais foram responsáveis por elaborar a nova proposta curricular na década de 1980. De acordo com Martins (1998), a CENP procurou implementar um projeto de reforma curricular, pós 1985, que privilegiava a descentralização administrativa e a participação popular nas decisões, sendo que entendia por democratização do ensino a escola acessível a toda a população e com mecanismos de participação popular no gerenciamento da escola pública. Ideia defendida por Gadotti (2000, p. 55) como escola cidadã, “uma escola pública universal - igual para todos, unificada - mas que respeite as diferenças locais, regionais, enfim, a multiculturalidade, ideia tão cara e fundamental da teoria da educação popular”.

Vários autores do mercado editorial de livros didáticos, durante a década de 1990, buscaram trabalhar na direção da proposta curricular de Geografia da CENP, considerada progressista em termos políticos e sociais para a época.

Em 1995 é eleito como governador de São Paulo Mário Covas, pelo Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB. A partir de então o Estado passa a eleger de forma sucessiva e ininterrupta governadores desse mesmo partido. Assim, temos no Estado uma situação peculiar, pois ele é gestado por um mesmo partido político por mais de duas décadas. Desde os anos noventa, quando Fernando Henrique Cardoso foi, por duas vezes consecutivas, presidente do Brasil, o PSDB está no poder no Estado3. Isso certamente deixou marcas profundas na política pública educacional, em especial na política curricular.

Conforme adverte Sacristán (2000, p. 107), um currículo nunca está “à margem do contexto no qual se configura e tampouco independentemente das condições em que se desenvolve; é um objeto social e histórico e sua peculiaridade dentro de um sistema educativo é um importante traço substancial”. Esse pensamento se aplica de modo contundente em São Paulo, em sua conjuntura política e histórica.

O partido político dos governadores de São Paulo, o PSDB, vincula-se ao ideário neoliberal. Estamos compreendo aqui como visão neoliberal aquela que adere as receitas econômicas e a programas políticos e sociais próprios da defesa do capitalismo e da aceitação de seus princípios mais liberais que defendem a não intervenção e participação do Estado na economia e a liberalização do mercado como condutor e regulador da ordem econômica. Segundo Sanfelice (2010), os governantes paulistas

partilham de um mesmo ponto de vista quanto à essência da sociedade atual, ou seja, é preciso aceitar o capitalismo globalizado, mesmo que o Brasil continue na periferia da globalização. Dizendo de outra forma: os governantes paulistas oriundos do PSDB olham o mundo de um mesmo e único pedestal que nada mais é senão o estado burguês capitalista. Lá de cima, sempre com os mesmos óculos, detectam as mazelas, consideradas conjunturais e não estruturais, e tentam consertá-las. O pressuposto é que o capitalismo é consertável e, portanto, as elites devem se empenhar nas tarefas que o levarão a eternizar-se. As demais classes sociais precisam se sensibilizar para se constituírem em parceiras do mesmo projeto. (SANFELICE, 2010, p. 146)

Em 1998 o Ministério da Educação (MEC) lançou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Esse documento curricular passou, no final dos anos 1990, a ser a principal referência para os currículos em todo o território nacional, notadamente no Estado de São Paulo que, em concomitância caminhava em direção à municipalização do ensino. Nesse contexto, o governo de São Paulo, anuncia um conjunto de dez metas para a melhoria da qualidade da Educação das escolas estaduais de São Paulo. Segundo Palma Filho (2010), para que essas metas fossem atingidas até o ano de 2010, a SEESP colocou em andamento várias ações, com ênfase nas seguintes:

  1. Incentivos, política de bonificação e avaliação de desempenho;

  2. Programa Ler e Escrever - Formação Continuada, orientação curricular (propostas curriculares), professor auxiliar na 1ª série e material de apoio a alunos e professores - 1ª a 4ª séries do ensino fundamental;

  3. Programa São Paulo faz Escola - novo currículo e material de apoio a alunos e professores - 5ª a 8ª séries do Ensino Fundamental e Ensino Médio. São as propostas curriculares encaminhadas às escolas no início do ano letivo de 2008;

  4. Recuperação da aprendizagem - intensiva nas primeiras seis semanas e paralela ao longo do ano;

  5. Criação de função gratificada para professor coordenador pedagógico;

  6. Concurso para supervisores e revisão de suas atribuições;

  7. Estágio probatório para os novos ingressantes na carreira;

  8. Nova gratificação para diretores, vices e supervisores. (PALMA FILHO, 2010, p. 167)

Em 2007, o Estado de São Paulo criou uma base curricular comum para todo o sistema de ensino estadual a fim de atingir as 10 metas para a educação paulista, elencadas a partir dos resultados do Sistema de Avaliação da Educação Brasileira (SAEB) e do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). No mesmo ano, a SEESP mobilizou esforços para coletar juntos aos professores, coordenadores e diretores relatos de boas experiências de aprendizagem na rede pública de ensino. Essa tentativa visava mostrar o viés democrático da concretização dos materiais elaborados pelo programa São Paulo Faz Escola. Porém, faltaram informações sobre quantos relatos foram colhidos e como esses relatos recebidos foram organizados. Segundo Boim (2010, p. 23),

A ação de ouvir o professor para entender sua prática de ensino e propor um novo currículo com base no que já se faz nas escolas da rede pública confronta o que foi previamente estabelecido. Há muita controvérsia entre os professores sobre essa etapa “democrática” do novo currículo paulista. Segundo as principais organizações de professores de São Paulo - o Centro do Professorado Paulista (CPP), o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP) e o Sindicato de Supervisores de Ensino do Magistério no Estado de São Paulo (APASE)-, a ideia de debater o novo currículo surgiu após "os profissionais da educação entenderem ser a proposta curricular mais uma política implementada pelo governo estadual sem a necessária participação de todos os envolvidos". Para as três entidades, essas avaliações "só têm a preocupação de projetar o estado no ranking das políticas educacionais brasileiras e mundiais".

Essa política de reorganização curricular integra a intenção do governador José Serra (gestão de 2007 a 2010) de provocar mudanças no setor educacional. Segundo Boim (2010), esse dirigente, durante o discurso oficial de lançamento das metas a serem atingidas em 2010, muitas vezes usou a expressão “qualidade de ensino”. Muitos críticos da proposta argumentam que objetivo da reforma curricular paulista foi o de melhorar os índices de qualidade do ensino nas avaliações externas oficiais, não necessariamente a formação do cidadão. Tal pensamento é reafirmado com a exposição de Rossi (2011, p. 42):

Com esse plano de Dez Metas para a Educação no estado de São Paulo, é estabelecido um “norte” para a implementação da proposta curricular na rede onde, tais propostas de ações estarão ligadas diretamente com as políticas neoliberais, levadas a cabo pelo Banco Mundial, quantificando, superficializando e simplificando o destino de milhões de estudantes da rede pública paulista.

Em 2008, a SEESP enviou para toda a rede de ensino o Jornal do aluno e, durante o primeiro bimestre, foi estipulado um período de “recuperação da aprendizagem” para os alunos, pautada em duas disciplinas: Língua Portuguesa e Matemática. Para Boim (2010, p. 30), a partir desse momento as propostas de reformulação e uniformização dos conteúdos dos componentes curriculares e o uso obrigatório de materiais didáticos elaborados para garantir uma base de aprendizagem comum a todas as escolas caracterizaram o ensino oferecido em São Paulo. Para acompanhar o uso do Jornal do Aluno, os docentes receberam a Revista do Professor. Ambos posteriormente denominados como Caderno do Aluno e Caderno do Professor.

Em 2009, os materiais de apoio para o desenvolvimento do currículo foram expedidos para toda a rede, já aperfeiçoados a partir das devolutivas de professores, gestores e de alunos, segundo a SEESP. O Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (SARESP) do mesmo ano foi elaborado com base na Proposta Curricular do Estado de São Paulo. Assim, delineia-se o interesse em produzir um currículo e um sistema de avaliação externa atrelados, visando que os estudantes obtenham êxito e demonstrem a suposta qualidade de ensino da rede paulista.

Em 2010, a Proposta Curricular do Estado de São Paulo foi consolidada e transformou-se em Currículo do Estado de São Paulo. Em 2012, a SEESP distribuiu, além dos Cadernos do Aluno e do Professor, a primeira edição atualizada do documento básico curricular dividido por áreas do conhecimento: Ciências Humanas e suas tecnologias (composto por História, Geografia, Filosofia e Sociologia); Linguagens, Códigos e suas tecnologias (composto por Língua Portuguesa, Língua Estrangeira Moderna - Inglês e Espanhol, Arte e Educação Física); Ciências da Natureza e suas tecnologias (composto por Ciências, Biologia, Química e Física); Matemática e suas tecnologias (composto apenas por Matemática). Em 2014, uma edição atualizada dos Cadernos do Professor e do Aluno foi expedida com a informação de que não haveria outra versão até 2017. Entretanto, a mesma versão foi utilizada em 2018, isto é, o mesmo material, sem atualização, esteve em vigor. No ano de 2019, o material de apoio teve seu uso expressamente proibido e outros materiais têm sido produzidos pela gestão (2018-2021) do governo do Estado.

O programa SPFE e a ação docente

Podemos perceber que o material de apoio para o desenvolvimento do Currículo do Estado de São Paulo, objeto no qual se concretiza o que está exposto no Currículo do SPFE, é contraditório em algumas de suas concepções, pois não há um consenso no material sobre qual abordagem seguir na construção das atividades. O material apresenta uma miscelânea de concepções no desenvolvimento das Situações de Aprendizagem, o que contradiz o que está oficializado no Currículo, que afirma ter uma abordagem pela perspectiva histórico-dialética.

Esse fato evidencia que o material supostamente produzido por uma equipe, na verdade abarcou as concepções de diferentes autores com princípios distintos e visões marcadas de Educação. Estas, ora tendem a fazê-la emancipadora, ora como um instrumento de políticas públicas visivelmente neoliberalistas. Como adverte Oliveira (2015, p. 230):

O neoliberalismo tem sido uma espécie de releitura atualizada do liberalismo a partir das concepções econômicas neoclássicas. Trata-se, pois de uma determinada visão social do capitalismo a partir da ótica dos capitalistas, portanto, da burguesia. Assim, tornou-se um conjunto de ideias capitalistas de políticas e economia fundadas principalmente na não participação do Estado na economia e, na liberalização total do comércio (mercado livre) em nível mundial. Enfim, defende a livre circulação de capitais internacionais, abertura das economias nacionais para a entrada de multinacionais, a implantação de ações que impeçam o protecionismo econômico, adoção de política de privatização de empresas estatais etc. (OLIVEIRA, 2015, p. 230)

O neoliberalismo vem ganhando espaço no mundo desde a década de 1990, após a desintegração da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e, com seu projeto de hegemonia vem influenciando a Educação em vários países, inclusive o Brasil. Segundo Silva (1994, p. 12):

nesse projeto, a intervenção na educação com vistas a servir os propósitos empresarias e industriais tem duas dimensões principais. De um lado, é central, na reestruturação buscada pelos ideológicos neoliberais, atrelar a educação institucionalizada aos objetivos estreitos de preparação para o local de trabalho. No léxico liberal, trata-se de fazer com que as escolas preparem melhor seus alunos para a competitividade do mercado nacional e internacional. De outro, é importante também utilizar a educação como veículo de transmissão das ideias que proclamam as excelências do livre mercado e da livre iniciativa. Há um esforço de alteração do currículo não apenas com o objetivo de dirigi-lo a uma preparação estreita para o local de trabalho, mas também com o objetivo de preparar os estudantes para aceitar os postulados do credo liberal.

Assim, a política implementada por meio do SPFE está inserida em um contexto amplo, que não se restringe na escala local. Fonseca (2009, p. 173) ao analisar a qualidade da educação brasileira expressa nos planos nacionais de educação afirmou que “os organismos internacionais de crédito e cooperação técnica passaram a interferir gradativamente na definição da agenda educacional”. A autora conclui que

na prática, a ação educativa deu ênfase a programas e projetos orientados pela lógica do campo econômico, dirigindo a ação escolar para as atividades instrumentais do fazer pedagógico e para a administração de meios ou insumos. A qualidade, por sua vez, foi sendo legitimada pelo horizonte restrito da competitividade, cuja medida é uma boa colocação no ranking das avaliações externas. (FONSECA, 2009, p. 173).

No Estado de São Paulo uma das estratégias para estabelecer a política de cunho neoliberal na Educação foi notadamente a efetivação do currículo oficial. Sacristán (2000, p. 17) considera que os currículos “são a expressão do equilíbrio de interesses e forças que gravitam sobre o sistema educativo num dado momento, enquanto que através dele se realizam os fins da Educação no ensino escolarizado”. Desta forma, percebemos que o currículo prescrito paulista trouxe consigo um sistema de ideias pautada pela vertente neoliberal. Esta, ao considerar que objetiva melhorar a qualidade de ensino o faz atrelando as provas do SARESP e o alcance das metas pelo sistema estabelecido de bonificação aos professores por meritocracia. Enfatiza, assim, a prática neoliberal, incentivando a competitividade e não o cooperativismo, orientando a Educação pelas diretrizes de mercado. A educação pública institui-se nas perspectivas do campo econômico e não no compromisso com a sociedade e a formação da cidadania ativa. Tal fato fica evidente quando apreendemos de modo sintético o viés da proposta:

a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo adota um currículo único e fechado, utiliza material instrucional padronizado, acompanha os resultados por supervisão cerrada através da avaliação, usa os resultados da avaliação como critério para concessão de vantagens salariais (bônus) e utiliza o incentivo monetário para o aumento da produtividade do trabalho. (SANFELICE, 2010 p. 151)

O currículo também se materializa colocando disciplinas como a Geografia e a História como um “apêndice” da Língua Portuguesa e Matemática, minimizando todo o conhecimento construído por essas disciplinas ao longo dos séculos. No caso da Geografia, por exemplo, Pereira (2015, p. 107) afirma que:

Transformar a Geografia em disciplina anexa, secundária, faz parte do projeto educacional neoliberal administrado pela ordem democrática dos governos, mas foi aprofundado pela agenda política conservadora do governo de direita, que não via com bons olhos, como uma parte importante da legitimidade do sistema social alcançado, foi quebrada por causa desse "conhecimento subversivo, incendiário e perigoso sobre as formas de produzir e habitar o mundo" que deixou de estar nos currículos prescritos e tornou-se conhecimento de vida, em saber de experiência.

A visão sobre a autonomia do professor explicitada no texto curricular não se efetivou na integralidade dos documentos analisados. No Caderno do Professor, por exemplo, o discurso é operacional e aplicacionista, escapando dos pressupostos básicos de autonomia do profissional docente. O professor passa a ter uma ação cerceada e circunscrita ao poder do currículo prescrito.

Corroboramos com a ideia de que o professor é o profissional que não apenas executa todas as atividades prescritas em um currículo, mas age sobre ele, o reescreve nas situações vividas nas experiências. Se o currículo é uma prática, todos os que dele participam ativamente, são sujeitos e não meros objetos das políticas públicas. Como afirma Sacristán (2000, p. 165):

É evidente que no professor recai não apenas as determinações a serem respeitadas provenientes do conhecimento ou dos componentes diversos que se manifestam no currículo, mas também as obrigações em relação a seus próprios alunos, ao meio social concreto no qual vivem, e isso o chama inevitavelmente a intervir, devido à responsabilidade para com eles. Enfim, o currículo tem a ver com a cultura à qual os alunos têm acesso; o professor, melhor do que nenhum outro, é quem pode analisar os significados mais substanciais dessa cultura.

Certamente, ao reconstruir o currículo prescrito no cotidiano escolar, os docentes desempenham um papel político singular. Eles escolhem efetivamente o que será tratado com os alunos, como será tratado, fato que pode delimitar uma abordagem bem diferente do que o prescrito tenta instituir. As brechas, gretas, frestas aparecem nas mais singelas situações pedagógicas da sala de aula. Sobre isso Gadotti (2003) indaga acerca do posicionamento político do professor:

A mudança de qualidade nas relações que mantêm a sociedade ativa é fruto de uma lenta e, por vezes, violenta maturação quantitativa, no interior dessas mesmas relações. É uma guerra surda, cotidiana, e, até certo ponto, inglória. É o trabalho muitas vezes anônimo, do professor, por exemplo. A educação só pode ser transformadora nessa luta surda, no cotidiano, na lenta tarefa de transformação da ideologia, na guerrilha ideológica travada na escola. Por que ela pode ser transformadora? Porque o trabalho educativo é essencialmente político - e é o político que é transformador. (GADOTTI, 2003, p. 172)

O pensamento de Gadotti (2003) filia-se a perspectiva de Freire (1996, p. 38) para o qual a prática do professor deve ser crítica, considerando que o pensar sensato do professor envolve o “movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer”. Isso é o contrário do pensar ingênuo e pueril. Para Freire (1996) esse pensar crítico e questionador faz com que a formação permanente do professor seja fundamental para a reflexão crítica sobre a prática. Assim o próprio discurso teórico, “necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. O seu “distanciamento” epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise, deve dela “aproximá-lo” ao máximo” (FREIRE, 1996, p. 39). Porquanto esse exercício deve ser ativo e persistente para que o docente desenvolva a sua inteligência reflexiva e permita a superação da ingenuidade e de seguir prescrições de modo pouco refletido.

Do professor é esperada a análise, a reflexão e a criticidade, fatores basilares na construção de práticas educativas escolares. Entretanto, isso não engendra a análise de que se pode responsabilizar os docentes das mazelas da educação, dos baixos resultados alcançados pelos estudantes em testes padronizados e da tão propalada baixa qualidade da escola pública. Os percursos escolares dos estudantes e o seu sucesso ou fracasso são fruto de complexas relações, e são multifatoriais. Os alunos se encontram inseridos em um contexto e em uma política pública institucionalizada, participam de uma sociedade, fazem parte de determinada classe social, estão envoltos em múltiplos processos de socialização. Por sua vez, as ações dos docentes também estão inseridas em um determinado sistema, dependem de uma institucionalização e tropeçam em muitos fatores, inclusive nas desigualdades sociais, tão marcantes em nosso país.

Ademais, no caso do currículo prescrito do Estado de São Paulo, o professor que ousa fugir das “sugestões de estratégias” descritas no Caderno do Professor, precisa ser cauteloso ao registrar suas próprias estratégias nos diários de classe ou em outras documentações escolares. Esses documentos são fiscalizados pela gestão interna e externa da escola, com o objetivo de averiguar se estão em conformidade ao que foi estabelecido pelo currículo do Estado de São Paulo. Além disso, com o estabelecimento de avaliação externa, sobretudo o SARESP, vemos delinear o cerceamento da autonomia do professor sobre a sua ação pedagógica. Segundo Lastória (2015, p. 71),

O currículo paulista busca atender a uma avaliação externa, conhecida como prova SARESP, que é um instrumento produzido pelo Sistema de Avaliação de Desempenho Escolar do Estado de São Paulo. Tal avaliação é elaborada com base em habilidades e competências pré-definidas por áreas de conhecimento. O intuito do programa é avaliar a aprendizagem dos alunos, para, depois, propor ações de intervenção nas escolas. Dependendo do desempenho alcançado, cada escola redefine suas metas. Baseado no resultado obtido, um índice é aplicado para definir os “bônus” a serem entregues aos professores pertencentes às escolas que obtiveram “bons resultados”. Acontece que, nos anos iniciais, a referida prova do Saresp também prioriza as áreas de Língua Portuguesa e Matemática, reforçando a lógica do currículo implantado nas escolas. O ciclo acaba tornando-se evidente, ou seja, os professores usam o material do programa Ler e Escrever, buscando atender às demandas impostas pelas avaliações externas e pelo currículo oficial implantado. Do contrário, correm o risco de os alunos não conseguirem bons resultados na prova do Saresp e eles próprios (alunos e suas escolas) serem mal avaliados e não receberem bonificação alguma.

Apesar de Lastória (2015) referir-se ao Ciclo I, identificamos que o mesmo recorre no segundo ciclo do ensino fundamental e no ensino médio. Assim, o professor perde ainda mais sua autonomia, ficando preso às arestas do sistema e da política pública educacional vigorante, que pouco valoriza o profissional em termos de salário, colocando-os em conflito ao pagar o chamado bônus para apenas uma parcela dos docentes da rede de ensino, pois é uma porcentagem sobre o seu próprio salário e depende da meta atingida pela escola. Muito diferente seria o aumento salarial real para todos como uma política de valorização da carreira e dos profissionais da educação.

Considerações finais

Em síntese, podemos afirmar que em São Paulo, desde o final da década de 1990, temos como enfeixe uma política pública de Educação que instituiu:

a) um currículo fechado e único para toda a rede escolar. b) a utilização de material instrucional padronizado e consequente uniformização dos conteúdos e procedimentos em todas as escolas da rede e padronização do trabalho docente. c) o uso dos resultados da avaliação de aprendizagem escolar dos alunos como critério para concessão de bônus salarial aos trabalhadores docentes e gestores da escola. d) a adoção de escala numérica para expressar o resultado do aproveitamento escolar dos alunos. (RUSSO e CARVALHO, 2012, p. 10)

Frente a essa situação adversa podemos questionar: ao professor cabe a aceitação dos currículos prescritos que o concebe como um técnico de aplicação das estratégias instituídas pelo poder político vigente? O que fazer frente a materialização de uma política pública educacional que considera o professor como um técnico que deve seguir recomendações para que o sistema de ideias apregoado se efetive? Como fica a ação docente frente a conjuntura que já perdura por mais de duas décadas? Os resultados dessa política educacional têm sido dramáticos para os docentes. Conforme aponta Harvey (2011, p. 15), o neoliberalismo decompôs as regras do jogo político e social. Nele, “a governança substituiu o governo, a lei e parcerias público-privadas sem transparência substituíram as instituições democráticas, a anarquia do mercado e do empreendedorismo competitivo substituíram as capacidades deliberativas baseadas em solidariedades sociais”.

Apesar disso, a alternativa, por mais que se repita, aponta para um caminho predominante, qual seja o resgate do protagonismo político do professor. Os direitos, a valorização, a autonomia e a autoridade do professor devem ser tomados no movimento cotidiano da imaginação política.

Referências

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3Em 2018 o PSDB venceu a 7ª eleição seguida para o governo do Estado de São Paulo. Foram governadores dessa sigla Mario Covas, Geraldo Alkmin, José Serra, João Dória e Bruno Covas.

Recebido: 1 de Janeiro de 2019; Aceito: 1 de Junho de 2019

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