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Ensino em Re-Vista

versão On-line ISSN 1983-1730

Ensino em Re-Vista vol.27 no.1 Uberlândia jan./abr. 2020  Epub 27-Mar-2020

https://doi.org/10.14393/er-v27n1a2020-11 

DOSSIÊ: O caminho se faz caminhando: formação docente no fazer e refazer da práxis pedagógica

Epistemologia, Currículo e Formação Continuada de Professores de Ciências

Epistemology, Curriculum and Continuing Education of Science Teachers

Paulo Sérgio Araújo da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-6525-1527

1Doutor em Educação em Ciências e Matemáticas . Universidade do Estado do Pará, Paragominas, Pará, Brasil. paulo_a_s@yahoo.com.br.


RESUMO

Este trabalho trata de investigação desenvolvida durante processo de formação continuada de professores de ciências (das disciplinas Química, Biologia, Física e Ciências da Educação Básica) em uma universidade pública. Consiste em pesquisa narrativa por meio da qual se busca compreender relações entre reflexão epistemológica e formação docente. Procurou-se, particularmente, investigar que tipos de reflexões os sujeitos-professores constroem a partir da introdução de discussões relativas ao processo de produção, validação e apropriação social do conhecimento científico e as relações que estabelecem com suas histórias de atuação e formação pessoal e profissional. A análise do conjunto de materiais produzidos sinaliza que a ação recursiva da memória, estimulada a partir de discussões epistemológicas no presente, potencializou as reflexões docentes em quatro dimensões principais: Ético-política; Curricular, Metodológica e Afetiva, a discussão empreendida neste artigo se refere à dimensão curricular.

PALAVRAS-CHAVE: Epistemologia; Educação em Ciência; Formação de Professores; Currículo Escolar

ABSTRACT

This work deals with research developed during a process of continuous training of science teachers (Chemistry, Biology, Physics and Basic Education Sciences) in a public university. It consists of narrative research through which one seeks to understand relationships between epistemological reflection and teacher training. It was sought, in particular, to investigate what types of reflections the subject-teachers construct from the introduction of discussions about the process of production, validation and social appropriation of scientific knowledge and the relationships they establish with their stories of personal and professional training and performance . The analysis of the set of produced materials indicates that the recursive action of memory, stimulated from epistemological discussions in the present, has potentiated teacher reflections in four main dimensions: Ethical-political; Curricular, Methodological and Affective, the discussion undertaken in this article refers to the curricular dimension.

KEYWORDS: Epistemology; Education in Science; Teacher Training; School curriculum

Introdução

Este trabalho trata de investigação desenvolvida em um processo de formação continuada de professores de ciências (das disciplinas: Química, Biologia, Física e Ciências da Educação Básica) em uma universidade pública.

Consiste em pesquisa narrativa, por meio da qual, se busca compreender relações entre reflexão epistemológica e formação docente. Interessa-me, particularmente, investigar que tipos de reflexões os sujeitos-professores, constroem a partir da introdução de discussões relativas ao processo de produção, validação e apropriação social do conhecimento científico e as relações que estabelecem com suas histórias de atuação e formação pessoal e profissional.

Com essa intenção estimulamos (eu e a formadora) nos professores um processo de desalienação de si, solicitando que produzissem narrativas memorialísticas, nas quais relataram aspectos sobre os quais havia incidido as questões epistemológicas postas em debate durante os, aproximadamente, dois meses em que durou a formação continuada que compartilhamos.

Ao me empenhar mais sobre essas questões de investigação, mencionadas anteriormente, encontrei preocupações/discussões semelhantes na literatura de educação em ciências (MALDANER, 2000a, MALDANER, 2000b, CACHAPUZ et al, 2005, CHAVES, 2005a). Estas sinalizam que a concepção que os docentes têm de ciência tem implicações positivas ou negativas no ensino de Ciências. Sendo recorrente nesta perspectiva que se o professor, por exemplo, concebe o conhecimento científico como pronto e acabado, seu ensino de ciência escolar também projetará conhecimentos científicos como verdades absolutas, cujas(s) teoria(s) que dão sustentação ao referido conhecimento serão apresentadas como estáveis no tempo. O que elimina o contexto histórico-social em que foi desenvolvido o conhecimento científico, por um contexto histórico-cronológico.

A reflexão epistemológica contemporânea nega como algo específico da produção do conhecimento científico a estabilidade deste conhecimento no decorrer do tempo e seu caráter puramente cronológico. Muito pelo contrário afirma diante da visão racionalista contemporânea seu caráter provisório e ideológico, passível de constante reconstrução através dos interesses das comunidades científicas e daqueles que se servem dessas comunidades. Tal reconfiguração sobre natureza da ciência, como muitas outras advindas da discussão epistemológica, pode servir de baliza para a configuração de uma prática educativa pelo ensino de ciências, que questione e amplie a visão do educando sobre o conhecimento científico e não de pura aceitação de tais conhecimentos.

Assim, a legitimação do conhecimento científico no âmbito escolar, como sendo suficiente sem si mesmo, e o com seu caráter fragmentado se perpetua, onde o estudo do átomo, da célula e dos movimentos dos corpos bastam em si, e não tem relação entre si e sem relação com o contexto histórico em que foram produzidos tais conhecimentos. E mais sem relação com alguma relevância social, mas são tomados como referência sábia para os educandos. Essa visão imprime nos demais conhecimentos um caráter exótico nos educandos e um conhecimento alienante. Nesse âmbito como formar cidadãos críticos? Se um dos conhecimentos que é ensinado nas escolas, o científico escolar ratifica o que vemos em muitas situações no mundo contemporâneo, a assunção assombrosa do conhecimento científico hegemônico, como tendo verdades absolutas sobre tudo e assumindo muitas vezes essas verdades como inquestionáveis, pelo simples fato de serem científicas.

Uma das contribuições mais importantes que a epistemologia das ciências pode fornecer a formação de professores de ciências (os professores das disciplinas de Química, Biologia, Física, ou Ciências no ensino fundamental), são elementos teóricos para se pensar, a legitimidade do conhecimento científico presente nas disciplinas das ciências da natureza presentes no currículo escolar. Tal reflexão sobre essa legitimidade não é algo banal, uma vez que a mesma confere valores a outros conhecimentos que não os científicos, silencia verdades, enaltece outras, que nem sempre conduzem para uma conhecimento cauteloso para a promoção de vida digna na sociedade.

A situação do aceite ou do não aceite dos alimentos transgênicos é bem reveladora dessa situação, vezes por outra, quando esse assunto é tratado em aula nos cursos de formação de professores, em que se pergunta se os mesmos são a favor ou contra os transgênicos, muitos dizem que são contra, pois não há pesquisas científicas suficientes ou conclusivas sobre os efeitos de tais alimentos sobre o organismo humano, já outros afirmam que são a favor, porque há algumas pesquisas científicas que afirmam que tais alimentos podem ser consumidos. Nestes dois argumentos hegemônicos a favor ou contra está à hegemonia do argumento científico. O poder de decisão é delegado à ciência. Esse endeusamento da ciência é nocivo e opera para o empobrecimento intelectual daqueles que a tomam como referência única. No caso dos transgênicos são silenciados argumentos tais como: -eu sou contra, pois, isso afeta a agricultura familiar, −como o pequeno agricultor, vai manter sua produção se as sementes são estéreis, e se elas pertencem a multinacionais? Ou ainda -eu sou contra, pois não há uma legislação clara sobre informações da presença de OGMs nas embalagens de alimentos, e ninguém é obrigado a consumir o que não quer. Outro argumento: Eu sou favor; pois há em nosso país uma legislação clara sobre informações da presença de OGMs nas embalagens de alimentos, e ninguém é obrigado a consumir o que não quer.

Não há problema nenhum em assumirmos argumentos científicos como tutela nas nossas decisões. O problemático é assumi-los de maneira acrítica, como se tais conhecimentos por terem a chancela da ciência, dessem conta de solucionar todos os problemas do mundo contemporâneo, e que para entender a vida fosse preciso primeiro entender o conhecimento científico, com seu suposto caráter objetivo, neutro, a-histórico, ou como pura aplicação tecnológica na sociedade, de onde emanariam soluções técnicas ou tecnológicas, apresentadas quase sempre como benéficas para tudo e para todos, ainda que contraditoriamente se apresentassem alguns desvios de tais aplicações, como no caso da bomba atômica. Quando professores se dão conta de que pensam assim- que assumem os argumentos científicos como totalmente confiáveis- ficam assustados, percebem quanto à difusão do conhecimento científico no espaço escolar se engendra num currículo que se preocupa mais com a aceitação de conhecimentos do que com sua compreensão para ampliação de visão de mundo dos educandos. Nesse cenário uma noção currículo enculturador e problematizador da natureza do conhecimento científico se faz urgente.

Entendendo que no processo formativo investigado a formadora articulou a discussão da tríade professor-aluno-conhecimento, abalando bases teórico-metodológicas tradicionais, que têm raízes profundas também nas concepções curriculares. Isso porque “o currículo não é um elemento transcendental e atemporal, ele tem uma história vinculada a formas especificas e contingentes de organização da sociedade e da educação” (MOREIRA e SILVA, 2001, p.8), o que nos permite compreender que seleção e tratamento dado ao conhecimento na relação professor-aluno é historicamente constituído seja pelo modelo de educação, seja pelo modelo de sociedade que os sujeitos experênciam. E não tem sido na sociedade ocidental o modelo de educação marcado, sobretudo pela dissonância com a complexidade da vida, com valorização do caráter disciplinar das matérias escolares? Ainda que tais matérias escolares científicas não tenham contribuições apenas das ciências de referências, isso não impede que tramitem na sua constituição concepções positivas com relação à ciência.

E não tem sido também nesta mesma sociedade estreitado as relações entre ciência e industrialização e divisão do trabalho, sinalizando a influência da ciência no capitalismo e do capitalismo na ciência? Não tem sinalizado que vivemos na sociedade da informação e que para um cidadão ser bem sucedido ele precisa está par e dominando estas informações?

Pensar o currículo como artefato social e histórico, a partir da reflexão epistemológica, e fazer emergir nos docentes, preocupação com apropriação e difusão do conhecimentos científicos na escola básica na perspectiva do -o que ensinar? -é uma possibilidade de abrir alas, para entender o que justifica, e o que legitima a inserção de tais conhecimentos na composição do currículo escolar. Que implicações advém de tal legitimidade. Por isso também a reflexão epistemológica é importante na formação docente.

Assim essa preocupação me parece relevante, porque

a reflexão epistemológica pode proporcionar uma visão mais ampla para o que diz respeito a: conhecimentos, sujeitos em interações, currículo, metodologia, ensino e aprendizagem em todos os processos do desenvolvimento humano, que acontecem tanto nos processos formativos formais e informais, quanto na pesquisa e nas reflexões filosóficas.(MALDANER, 2000b, p.61).

Essa convicção também é corroborada por Cachapuz e colaboradores (2005, p.73), quando propõem que é possível compreender pela explicitação das concepções de professores as implicações de uma educação cientifica projetada consciente e/ou inconscientemente sob determinadas características epistemológicas. E ainda afirmam que “a epistemologia ajuda os professores a melhorarem as suas próprias concepções de ciência e à fundamentação da sua acção didático-pedagógica”, uma vez que há sempre um pressuposto epistemológico subjacente que orienta a prática educativa como entendem esses autores.

Encontro em Cachapuz et al (2005, p.72), o emprego das expressões epistemologia e filosofia das ciências como coincidentes, tal como na tradição latina. É como também as utilizo na presente investigação.

A epistemologia ao pretender saber das características do que é ou não é especifico da cientificidade e tendo como objecto de estudo a reflexão sobre a produção da ciência, sobre os seus fundamentos e seus métodos, sobre seu crescimento, sobre os contextos de descoberta, no entanto não constitui uma construção racional isolada. Ela faz parte de uma teia de relações, muitas vezes oculta, mas que importa trazer ao de cima numa educação cientifica que ao reflectir sobre as suas finalidades, sobre os seus fundamentos e raízes, sobre as incidências que produz no ensino praticado e nas aprendizagens realizadas pelos alunos se esclarece na própria orientação epistemológica que se segue (CACHAPUZ et al, ibid., p.72).

Caminhos metológicos

Nesse processo/percurso, busco na pesquisa narrativa e qualitativa apoio para desenvolvimento da investigação. Entendo, com Connelly e Clandinin (1995), “que a narrativa é tanto o fenômeno que se investiga como o método da investigação” (p. 12). Afinal, “as narrativas revelam o modo como nós seres humanos experienciamos o mundo” (CONNELLY E CLANDININ,1995; ALARCÃO, 2003, p.53). De modo geral, os sujeitos de nossa pesquisa apresentam os seguintes perfis formativos: formadora − com formação básica em Ciências Biológicas é doutora em Educação na área de Ensino de Ciências; professores participantes − professores da área de ciências naturais, ou seja, das disciplinas Química, Biologia e Física e Ciências para o ensino fundamental.

Como método de investigação, a pesquisa narrativa possibilitou transformar os “dados” de investigação em histórias. Nesse processo, “é inevitável a interpretação que se produz, intrínseca inclusive no processo de recolhida de dados” (CONNELLY e CLANDININ, 1995, p.23). Tal interpretação me levou a elencar quatro eixos de discussões para fins de análise, citados mais adiante, que entendo dar conta de responder o problema de investigação destacado. O estabelecimento dos eixos deu-se pela significativa frequência com que apareciam nas narrativas dos professores sobre o processo vivenciado naquele processo formativo.

Para tanto tomei não apenas dos registros nos memoriais, produzidos ao final do curso, também utilizo como instrumentos de investigação as transcrições dos encontros semanais que tivemos com os professores, que foram registrados em áudio; respostas a um questionário aplicado no primeiro momento de contato com os professores e anotações de campo produzidas durante os encontros.

Tal consideração vai ao encontro da perspectiva teórica que assumi. Assim, busco a partir das memórias docentes discutir as reflexões devolvidas pelos professores participantes, investigando os possíveis elos que emergem entre seus escritos e suas histórias de formação. Opto por tomar esse caminho por entender, como Freire (1992, p.19 e 28), que o presente tem parentesco com o passado, ou melhor, dizendo:

Os momentos que vivemos ou são instantes de um processo anteriormente iniciado ou inauguram um novo processo de qualquer forma referido a algo passado. (...) Nós é que não percebemos o ‘parentesco’ entre os tempos vividos e perdemos assim a possibilidade de ‘soldar’ conhecimentos desligados e, ao fazê-lo, iluminar com os segundos, a precária claridade dos primeiros. (...), deixando assim de desvelar a razão de ser fundamental do modo como nos experimentamos em cada momento. (FREIRE,1992,p.19).

A análise do conjunto de materiais produzidos sinalizam que a ação recursiva da memória, estimulada a partir de discussões epistemológicas no presente, potencializou as reflexões docentes em quatro dimensões principais: Ético-política; Curricular, Metodológica e Afetiva, para este artigo selecionamos a discussão da dimensão curricular . Tal dimensão será discutida em maior detalhamento no texto que se segue.

Reflexão curricular

Em torno dessas reflexões, apresento registros que evidenciam que “talvez uma das maiores contribuições que aqueles e aquelas que fazem Educação através do ensino das Ciências podem fazer é emprestar uma contribuição para uma adequada seleção do que ensinar” (CHASSOT, 2003, p.50).

Frente à Sociedade da Informação

Nesse núcleo temático, identifico reflexões que tem relações com a discussão curricular, tais reflexões se deflagram sobre natureza e procedência do conhecimento científico, fragmentação da ciência, disciplinarização, conteúdos/conhecimentos validados e não validados, e as formas de articulação dos conhecimentos científicos no currículo escolar.

As reflexões epistemológicas, também despertaram nos professores, a reflexão sobre o ser professor na sociedade da informação. Nessa dimensão, o currículo escolar apresenta-se como um desafio aos professores, porque oficialmente como tem sido pensado, apresentado, utilizado na escola, ele tem validado uma quantidade considerável de informações, privilegiando-as em detrimento da formação, ou seja, ou se forma ou se informa.

Uma coisa que me dava intensa insatisfação durante este curso, estava no papel que muitas vezes como professores desempenhamos, o papel de transmissor de informações. O questionamento que surgia neste caso era: Como ser formador de cidadãos críticos, independentes e transformadores no mundo, repetindo conceitos, fundamentos e leis que um dia me foram repetidos, como dogmas? Por que o professor não pode ter dúvidas? Creio que são justamente as incertezas que nos movem em busca de respostas, que certamente nos melhoram como pessoas e como profissionais. Além disso, atualmente, as informações me chegam em tempo real. Portanto, os conceitos preconizados hoje, podem ser modificados amanhã. Dessa forma torna-se necessário à dúvida constante, e se eu não agir assim, logo serei uma profissional obsoleta”(Márcia - memorial )

Esse relato demonstra a insatisfação que Márcia passou a sentir durante as discussões no curso de especialização, fruto da percepção do papel que ela tanto quanto outros professores muitas vezes desempenhavam; o de professor informador. Esta insatisfação derivou-se de um questionamento, como ela mesma relata: − Como ser formador de cidadãos críticos, independentes e transformadores no mundo, repetindo conceitos, fundamentos e leis que um dia me foram repetidos, como dogmas?

Ao rememorar o processo formativo que viveu e repensar os conceitos, fundamentos e leis que um dia lhe foram repassados, a professora repensa as implicações acerca do caráter informativo do currículo escolar. Para tanto, ela quer se lançar nas incertezas, no âmbito de pesquisar, o conhecimento que é mutável.

Ensinar menos desses conhecimentos inúteis, esotéricos (CHASSOT, ibid.), cada vez mais fragmentados, e apresentados como estáveis no tempo foi à tônica em muitas narrativas dos professores do curso de especialização. Muito do que nós professores de ciências estamos a ensinar em química, biologia, física, para ensino fundamental e médio, no âmbito de um conhecimento escolar, tem tomado essas características. E não é por acaso. Algumas dessas características que se constituíram historicamente estão relacionadas com o próprio desenvolvimento da ciência. Sobre isso a formadora deu algumas pistas:

− A outra [gravura] ilustra a forma como a gente tende a ensinar Biologia: embaixo a biologia real e os balõezinhos [voando, representam a] ecologia para um lado, genética pro outro, e aí vai evolução para outro, biologia celular para outro lado. E a biologia real aqui no mundo no plano e as bolinhas voando, (“voando” [vozes dos alunos atentos]). Já, fizeram isso com a gente também, não é? (F)

− Ela está falando como é lá na física, como é lá? (Pesquisador)

− cinemática, estática... (Valéria)

− química orgânica, inorgânica. E isso aí [outra gravura] também é uma alegoria do que tem sido a escola. É que nem posto de gasolina, entope de conhecimento, entope de informação o outro, força máxima principalmente nestas épocas de PSS e PRISE12 (F)

É também sobre a fragmentação do conhecimento científicos que a formadora quer dar ênfase. Por isso, trata do ensino de Biologia primeiramente e depois de Química e Valéria do ensino de Física, portanto abrangendo a área de ensino de Ciências.

É sobre algumas dessas características que a formadora trabalha quando questionada por Marcos, um dos professores participantes.

A outra [gravura] ilustra a forma como a gente tende a ensinar Biologia: embaixo a biologia real e os balõezinhos [voando, representam a] ecologia para um lado, genética pro outro, e aí vai evolução para outro, biologia celular para outro lado. E a biologia real aqui no mundo no plano e as bolinhas voando, (“voando” [vozes dos alunos atentos]). Já, fizeram isso com a gente também, não é? (F)

− Ela está falando como é lá na física, como é lá? (Pesquisador)

− cinemática, estática... (Valéria)

− química orgânica, inorgânica. E isso aí [outra gravura] também é uma alegoria do que tem sido a escola. É que nem posto de gasolina, entope de conhecimento, entope de informação o outro, força máxima principalmente nestas épocas de PSS e PRISE12 (F)

O pensamento da formadora vai ao encontro ao de Marques (2002, p.98) de que “o conhecimento só faz sentido em suas articulações, nos cruzamentos de interesses e na ultrapassagem das fronteiras tão diligentemente construídas nos últimos 300 anos”. Nesse processo, nos séculos XVI ao XVIII, ocorreram revoluções científicas, entre essas com Copérnico e a teoria do Heliocentrismo e Lavoisier e o estabelecimento da química moderna. A ciência se separa da filosofia. Passando a assumir visão mecânica do universo. A natureza é “dominada” pelo homem como uma máquina, como artefato técnico. Tudo pode ser determinado por leis matemáticas fixas. Há a “emergência de uma nova concepção de ciência e de Método” e Descartes é um dos representantes dessa “consciência filosófica desta nova situação” (SOUZA SANTOS, 1989). No século XIX, o positivismo se torna a consagração filosófica destas teses mecanicistas e deterministas, no mundo social.

Assim, ao longo desse processo para conhecer mais desta máquina da natureza, era preciso tanto mais olhar peça por peça, o que exigia cada vez mais um conhecimento específico sobre determina peça. Era a fragmentação do estudo da natureza, a fragmentação do conhecimento científico. Para tanto, mais se estabelecia nas universidades a disciplinarização do conhecimento. O que em certa medida se prolongou no tratamento das disciplinas científicas no sistema educacional. Mas a proposta de super-especialização do conhecimento científico na escola carece de sentido, porque, diferentemente da formação do especialista, a escola está para formar cidadãos para a vida. Hoje tal proposta tem pouco sentido mesmo nas instituições que formam os especialistas, porque para além de um conhecimento cada vez mais fragmentado Marques (2002, p.95) lembra que “no mundo de hoje marcado pelas complexidades em que se conjugam em unidade as diferenças e a pluralidade, as ciências se fazem ao mesmo passo especializadas e interdependentes em complementareidades”.

Sobre essa complexidade, recordamos que a formadora havia tomado como exemplo os ganhadores do Prêmio Nobel, argumentando coerentemente que muitos dentre os ganhadores deste prêmio não pertencem à área de formação na qual foram laureados. Nem sempre o ganhador do Prêmio Nobel de Química é da área da química, por exemplo. Com isso queremos dizer que a especialidade foi e é importante para grandes avanços na construção do conhecimento científico, mas não é/foi suficiente. Portanto, estamos longe de negar as partes; é precisamente nessa perspectiva que entendemos que é preciso olhar das partes para todo e do todo para as partes, olhar as partes entre si (cf. MORIN, 2004).

É dessas considerações que podemos falar em complexidade, ou seja, a união entre a unidade e multiplicidade (MORIN, 2004). Dessa idéia deriva muito do que se tem chamado na literatura de conhecimento complexo, que se contrapõe à fragmentação. Fragmentação que foi recorrente alvo de críticas nas aulas do curso de especialização.

Desse modo, as críticas da formadora naquelas aulas foram ao encontro de discussões de ordem históricas e filosóficas sobre a fragmentação da ciência e da fragmentação em áreas de conhecimento e dos conhecimentos científicos das ciências naturais como subjacentes à “articulação Educação-Ciência-Biologia[/Química/Física] (...) que parece apenas ‘teórico- metodológica’ em termos didáticos ou de ensino-aprendizagem, mas que, sem dúvida é fundamentalmente epistemológica” (ARAGÃO, 2000, p.92).

Ao trazer essas considerações sobre a produção do conhecimento científico e sua divulgação nos meios escolares, a formadora sinalizou que, ao mantermos concepções como as que valorizam uma grande quantidade de informação cada vez mais fragmentada, estamos cada vez mais nos tornando “abridores de torneiras de conhecimentos”. E afogando-nos junto com os alunos!

De fato, esse “afogamento” é revelador de nossa postura, do quanto temos lidado com conceitos e definições a-históricos e desprovidos de quaisquer reflexões filosóficas. E por isso se tornam também coerentes às críticas ao ensino informativo e dogmático. Assim, parecem entender Mônica e Márcia.

“Através do filme “E a vida continua” ficou bem claro que há disputa entre comunidades científica pelo poder da autoria das descobertas. Muitos cientistas não têm o reconhecimento do seu trabalho, mas mesmo assim nunca desistem. Esta idéia é reforçada na reportagem sobre o HIV segundo o trabalho do biólogo molecular Peter Duesberg, que defende a tese de que a síndrome não é causada pelo vírus, porém não é aceita pela comunidade científica e hoje ele permanece à margem das pesquisas. (...) O ensino deve ser visto por mim dentro de uma ótica que o torne menos asséptico, menos dogmático, menos abstrato, menos a-histórico. (...). Hoje percebo que devo jogar fora a concepção de certo e errado devemos questionar a legitimidade do conhecimento que ensinamos” (Mônica: memorial, destaque meu)

“Essa visão de Ciência limpa, recheada de certeza, neutra e dogmática, tem conseqüências graves no processo de ensino e aprendizagem, desde a seleção de conteúdos, até a ausência de questionamentos sobre legitimidade do conhecimento ensinado, que acaba por ter um valor em si mesmo” (Márcia: memorial).

A inserção de discussões sobre a natureza e procedência do conhecimento foram surgindo nas aulas no curso de formação continuada, tanto pela discussão da produção do conhecimento científico, quanto pela produção do conhecimento escolar, como já mostraram os extratos selecionados até aqui. Por meio do filme E a vida continua e da leitura do texto (reportagem) O HIV da revista Super Interessante (dez/2000), utilizados no segundo e terceiro encontro, a professora Mônica dá ênfase à disputa da comunidade científica, ou melhor, a teorias controversas, ao mesmo tempo em que redimensiona sua responsabilidade ao considerar a necessidade de um ensino cada vez mais distante da assepsia ou da limpeza ideológica. Mas, sobretudo, traz no seu discurso um alerta sobre o quê ensinar. Quando propõe que devemos questionar a legitimidade do conhecimento que ensinamos.

Esse processo de assepsia e dogmatismo está subjacente às idéias e práticas curriculares da atualidade. O currículo escolar passa a incorporar conhecimentos fixos, conceitos estáveis, apresentados aos estudantes. Essa legitimação de conhecimentos desconsidera que tanto a produção do conhecimento escolar quanto do conhecimento cientifico, está sujeita a debates e lutas (POPKEWITZ, 2001). Consciente desse processo de assepsia está a professora Márcia. Para ela a visão de ciência limpa, recheada de certeza, neutra e dogmática, tem implicações no processo de ensino e aprendizagem, na seleção de conteúdos e na ausência de questionamentos sobre legitimidade do conhecimento ensinado. Retomamos mais uma vez a pergunta de Márcia que apresentamos no começo deste tópico: Como ser formador de cidadãos críticos, independentes e transformadores do mundo, repetindo conceitos, fundamentos e leis que um dia me foram repetidos, como dogmas? E entendo que ela encontrou parte da resposta que procurava.

De tudo do que foi discutido até aqui, fica a mensagem de que a reflexão epistemológica pode ajudar a repensar a configuração do currículo escolar, sobretudo com relação ao impacto da fragmentação da ciência, da disciplinarização, da marginalização da elaboração cognitiva, em decorrência do pensamento moderno. Tal como caracteriza Marques (2002, p.87):

Os currículos escolares configuram-se como mera justaposição de disciplinas auto-suficientes, grades nas quais os conhecimentos científicos reduzidos a fragmentos desarticulados se acham compartimentados, fechados em si mesmos e incomunicáveis com as demais regiões do saber. A elaboração cognitiva faz-se em negação das complexidades do mundo da vida, dos engajamentos humanos e da questão dos valores, questão política, em que implica.

O aspecto rígido dos currículos escolares, sobretudo com relação à presença hierarquizada dos conhecimentos científicos sobre outras formas de conhecimentos, também apareceu nas reflexões dos professores participantes, como podemos observar no próximo tópico.

Frente a outras formas de saberes ou conhecimentos que não apenas os científicos

As reflexões dos professores assinalam que é preciso repensar as relações entre conhecimento e poder, que têm levado a currículos que sustentam visão de ciência que desvaloriza os saberes alheios à cultura cientifica (CHAVES, 2005a). Situando o conhecimento científico como a melhor forma de compreender o mundo.

“A professora nem precisou devolver o que eu escrevi sobre ciência. Pois no decorrer do curso percebi o quanto estava errada em pensar que a ciência era a mãe de todos os conhecimentos. Hoje fico pensando em quantas vezes eu devo ter entediado os meus alunos, querendo colocar na cabeça deles todas as verdades dos fenômenos da Natureza que a Física explica, ou que eles teriam que abrir mãos de suas “verdades” para absorverem as minhas”. (Valéria: memorial)

A professora Valéria destaca os conhecimentos que eram selecionados “por ela”, todas as verdades dos fenômenos da Natureza que a Física explica. Vale lembrar que “foram criadas em determinadas épocas algumas ‘regras e padrões de verdade’ para essa disciplina escolar” (Wortmann, 2003, p.130). Assim, o currículo também é formador de subjetividade, não era ela- a professora Valéria- necessariamente que organizava os conteúdos para ensinar, eram seus referenciais, os quais poderiam ter sido: os livros didáticos, cursos de capacitação, histórias de vida escolar (desde aluna até exercer a docência), acadêmica, dentre outras. Essa seleção se dava com a intenção de que os alunos abrissem mãos de suas “verdades” para absorverem as dela, na verdade as que tinha assumido como tal, a ciência. Esse pensamento curricular, expresso pela professora participante, se dava sobre a disciplinarização. Invocava a produção cultural hegemônica científica, os seus conhecimentos como os únicos válidos.

O problemático da disciplinarização é que ela se exerce desde um espaço-tempo privilegiado - a modernidade européia - que, assim, se institui como norma, como referência e fonte de esclarecimento destinada a ordenar tanto o mundo natural como o social. Tudo o mais que possa existir entre o céu e a Terra são ‘outros’, em geral, tidos como exóticos, incompletos, anormais, deficitários e necessitando de coordenação, controle e suprimento. (COSTA, 2002, p. 133).

Nesse processo, as outras expressões culturais, são apenas outras e vão sendo afastadas da produção da identidade dos sujeitos, isso porque há algo a ser aceito, uma outra verdade, um outro conhecimento, no caso o científico escolar.

Dado esse aspecto da intolerância a outras formas de conhecimento, a formadora buscou em algumas situações de aulas uma re-orientação da visão de ciência como conhecimento melhor, esta parece ter sido determinante para que se forjasse uma visão curricular mais inclusiva. Tal como atestam reflexões das professoras Valéria e Ana.

Essa inclusividade parece estar relacionada nas memórias de Ana com relação a uma palavra: enculturação.

“Lembro de ter ouvido uma palavra diferente, a qual me chamou atenção: enculturação! A professora falou seu significado, fiquei impressionada, e logo, iria utilizá-la, não apenas em minha prática pedagógica, mas em outras ações de minha vida” (Ana: memorial).

Olhando por essa perspectiva, a formadora sugere aos professores que suas práticas pedagógicas estejam considerando o ensino de ciências como espaço de enculturação de saberes. Expressão que a própria professora formadora atribuiu a Mortimer (2000) que a define como entrada numa nova cultura, mas que ocorre sem a perda da identidade cultural (p.27).

A introdução dessa palavra foi importante, porque para Valéria, a ciência era considerada mãe de todos os conhecimentos, a matriz de tudo que se conhece, portanto seria dessa fonte que se deveria beber sempre. Assim como foi importante para Ana na consideração de outros saberes a enculturação, pode ser exercida, quando aceito os conhecimentos prévios dos alunos e lhes ofereço outros conhecimentos, como os científicos, por exemplo, para que possam ampliá-los. A partir daí não precisam excluir os conhecimentos antigos. Há uma condição que a professora acrescenta na seleção de conteúdos é necessário ensiná-los com a Ciência e não ensinar Ciência para eles.

Essa condição, e ao mesmo tempo distinção, sinaliza um ensinar com a ciência, ou ainda ensinar sobre ciência ao invés de ensinar ciências para o aluno, o que implica em aprender sobre a ciência.

O aprender sobre a ciência é assumidamente, diferente de aprender ciência. É diferente de aprender o conhecimento em si. É diferente das explicações científicas sobre o mundo. Tem a ver com a compreensão da natureza da ciência. Questiona o estatuto e propósitos do conhecimento científico (SANTOS, 1999, p. 55).

Desse modo, a concepção curricular que se passa a projetar nessa perspectiva, é a enculturadora e problematizadora da própria natureza do conhecimento científico com seus conceitos e generalizações. Ou seja, que não apenas insere outras formas de conhecimento, mas que assumi também as implicações filosóficas, históricas e sociais do conhecimento científico nos processos de ensino e aprendizagem. Das discussões nesse tópico surgiram reflexões a respeito de uma organização curricular enculturadora em que os docentes se mostraram sensíveis à incorporação de outros conhecimentos que não apenas os científicos no currículo escolar. Dentre esses novos/outros conhecimentos as experiências e vivências dos estudantes passou a ter papel de destaque, como veremos a seguir.

Frente à vivência dos alunos

A perspectiva de enculturação parece ter desencadeado em alguns professores participantes reflexões que indicam a valorização e inclusão de conteúdos/conhecimentos que possuam significado para os estudantes. É o que podemos observar nos extratos abaixo.

“Compreendi melhor que para ensinar Ciência (Biologia) é essencial o desenvolvimento de posturas e valores pertinentes às relações entre os seres humanos, entre eles e o meio, entre o ser humano e o conhecimento, contribuindo para uma educação que formará indivíduos sensíveis e solidários, cidadãos conscientes dos processos e regularidades de mundo e da vida, capazes assim de realizar ações práticas, de fazer julgamentos e tomar decisões”. (Hugo: memorial)

“Hoje quando penso no ensino de ciências, me preocupo com o que realmente eu quero que meus alunos aprendam, e ainda que diferença isso fará na vida de cada um deles.(...) sempre acompanhado de uma problematização, que motive à curiosidade, à indagação, à dúvida e à interpretação. Isso servirá para que ele se posicione, se questione diante de situações que [vive/] viverá no futuro, como cidadão”(Lucas: memorial)

A essência do pensamento curricular de Hugo é o desenvolvimento de posturas e valores que dizem respeito às relações entre os seres humanos e o meio, entre os seres humanos e o conhecimento, entre as suas consciências e o mundo em que vivem. Essa essência curricular assinala valores específicos, sensibilidade e solidariedade para que se formem sujeitos capazes de realizar ações práticas, de fazer julgamentos e tomar decisões. Nessa perspectiva, “não há como formar cidadãos sem desenvolver valores de solidariedade, de fraternidade, de consciência do compromisso social, de reciprocidade, de respeito ao próximo e de generosidade” (SANTOS e SCHNETZLER, 2010, p.261).

Ainda para Hugo e Lucas foram determinantes algumas problematizações relacionadas à seleção de conteúdos, pois as suas concepções curriculares estão amparadas em o que ensinar (uma preocupação expressa por Lucas) posturas e valores pertinentes a uma série de relações que envolvem o ser humano, a sua vida e o conhecimento, ou seja, não apenas conhecimento em si (algo essencial para Hugo), e a um por que ensinar, para prepara o aluno para o exercício da cidadania que contempla a vivência dos alunos.

Nesse âmbito, tanto Hugo quanto Lucas “não se limitam a perguntar ‘o quê?’, mas submetem este ‘quê’ a um constante questionamento.(...). Por que esse conhecimento e não outro?”(SILVA, 2002, p.16). Esse questionamento da legitimidade do conteúdo é marcante na concepção de Lucas. Esse professor participante foi despertado para a idéia de que “rever criteriosamente a seleção de conteúdos será um excelente exercício na busca da formação da cidadania” (SANTOS e SCNHETZLER, 2010, p.263), ao destacar que passou a se preocupar com o que ensinar e ao afirmar que os conhecimentos selecionados servirão para que o aluno (a) se posicione, se questione diante de situações que [vive/] viverá no futuro, como cidadão, tal qual se defendeu inúmeras vezes em situações de aulas no curso de especialização.

No quinto encontro, por exemplo, houve um momento em que professores participantes e formadora discutiram sobre o que ensinar em ciências, conhecimentos que incluam a vivência dos alunos, os seus contextos concretos de vida? Ou conhecimentos descontextualizados da vida dos estudantes do ensino básico?

A possibilidade elencada pela formadora é a de que, como professores, podemos selecionar conteúdos induzindo o interesse do aluno por discussões relacionadas aos impactos da ciência na sociedade, usando do argumento que o ensino que se quer propor é valido para que eles (os alunos) se posicionem no mundo com a linguagem cientifica, tanto quanto para fazerem os chamados concursos ou processos seletivos. Ou seja, essas discussões dos conhecimentos científicos atuais dos transgênicos, da clonagem, dos feromônios, do uso das novas tecnologias, isso é cobrado nesses exames também, então a gente pode induzir o interesse por essas discussões (F).

O enfretamento dessa possibilidade suscitada pela formadora, no nosso entender, forja saídas, cria frestas da visão propedêutica tão arraigada em nosso sistema educacional. Esse enfrentamento mexeu com as concepções do professor Elton, como pode ser vislumbrado nesse trecho de seu memorial.

“Hoje tenho concepções sobre o ensino de ciências que há um tempo atrás não tinha. (...) O ensino de ciências agora, não concerne apenas em dar o conteúdo e obedecer ao programa do vestibular, isso ainda é necessário, mas também é possível, promover a educação em química, conscientizar e formar cidadãos éticos e alfabetizados cientificamente”. (memorial)

Durante os debates realizados em aula também foi discutido o papel do corpo técnico e administrativo da escola, na imposição de normas e regras rígidas, de condução pedagógica, como elemento dificultador e por vezes impeditivo de mudanças. Muitas vezes, essas ponderações foram incluídas nas discussões para reafirmar o “estado das coisas” como estão, transpondo a responsabilidade (melhor seria dizer a culpa) para outras instâncias que não a pessoal (a do professor), é o que está evidente nos próximos extratos.

“ −Com relação essa questão de conteúdos fechados. Hoje é uma cobrança muito grande sobre o profissional de educação para se fechar aquele programa, as escolas nos cobram. E aí vem a questão é importante que você cumpra o programa, agora não interessa para escola muitas vezes se o aluno adquiriu aquele conhecimento ou qual a função que se está dando a esses conhecimentos. Então se tu fazes um trabalho no decorrer do ano e tu consegues vencer oitenta por cento do programa, se tu fazes um bom trabalho; tu observas que a turma realmente correspondeu, assimilou a tua mensagem. Mas se tu não fizestes cem por cento para escola isso aí não é importante, não é mesmo. (Luiz, no início do curso)

Ou ainda Leandro:

− Tem a pressão de todos os lados dos pedagogos, da diretora, dos colegas. Então se torna muito mais fácil passar o conteúdo do mesmo jeito. (num momento final do curso”.

As reflexões desses professores participantes revelam a presença de um “mal-estar” docente e “desculpismo”, tal como assinala Nóvoa (1992, p.22):

As conseqüências do mal-estrar que atinge o professorado estão à vista de todos: desmotivação pessoal e elevados índices de absentismo e de abandono, insatisfação profissional traduzida numa atitude de desinvestimento e de indisposição contante (face ao Ministério, aos colegas, aos alunos, etc.), recurso sistemático a discursos-alibi de desculpabilização e ausência de uma reflexão crítica sobre acção profissional etc. [destaque no original]

Em outras ocasiões alguns professores manifestaram explicitamente que preferem apoiar-se em uma noção de currículo que transmite e valida conhecimentos seguros, dogmáticos, estilo receita de bolo, prontinhas para serem aplicadas a situações de ensino e de aprendizagem, porque são mais fáceis de serem trabalhados. Mesmo porque dão mais segurança ao fazer pedagógico dos professores. O extrato seguinte traz fala de um professor participante proferida em uma situação de aula, que reflete as situações descritas.

“− Mas se a gente trabalhar com uma concepção dessa [de conteúdos abertos e questionáveis] o leque se abre para várias discussões e para a incerteza, e eu não quero ter incerteza, quero ter certeza” (Antônio, no meio do curso).

A problematização sobre “o que” ensinar em ciências, advindas das discussões epistemológicas se mostrou produtiva não só no sentido de produzir mudanças nas formas dos professores encararem e lidarem com os conteúdos curriculares, mas também de assumirem-se nas suas dificuldades de sair dos lugares seguros, familiares e estáveis do já feito. Em ambos os casos os sujeitos parecem ter ampliando suas concepções acerca do “o que e por que” ensinar. Ainda que tal ampliação possa não significar transformações efetivas em suas práticas, ela possibilita mais consciência e deliberação, nas ações pedagógicas, algo que é (ou deveria ser) inerente a ela.

As reflexões curriculares dos professores participantes problematizaram ainda que: não existe professor que domina todos os conteúdos, até porque esses são mutáveis e investigáveis; questionar a fragmentação do conhecimento escolar, que tem áreas científicas de referência pode contribuir, por meio da reflexão epistemológica, com a reorganização de um conhecimento esfacelado para uma concepção de conhecimento complexo; que o respeito a outros saberes/conhecimentos se faz necessário no processo de ensino e de aprendizagem; e que quando se prioriza a inclusão de conteúdos que se preocupam com a vivência dos alunos tem que se saber que cidadão quer formar, ou seja, que identidades estamos ajudando a forjar.

As constatações advindas da interpretação das reflexões curriculares dos sujeitos desta pesquisa encontram eco nas afirmações de Maldaner (2000b) sobre a reflexão epistemológica. Este autor diz que esse tipo de reflexão pode proporcionar uma visão mais ampla para o que diz respeito a conhecimento e currículo. É também o que acreditam Cachapuz et al (2005), quando mencionam que não é apenas o enriquecimento do currículo que implica os desvelamento crítico da natureza da ciência. É muito mais. Significa incluir as dimensões procedimentais e axiológicas da atividade cientifica na educação, ou seja, professores e alunos portam-se como investigadores do conhecimento que estão a estudar. Foi bem isso que emergiu no memorial de Márcia, num extrato citado no começo do primeiro tópico da seção reflexão curricular, ao se questionar por que não ter dúvidas com relação ao conhecimento que durante sua história de formação na escola ou mesmo na universidade foram apresentados como dogmas, verdades absolutas.

Retomando o que diz Maldaner (2000b, p.64-65) sobre a reflexão epistemológica, encontro nos seus argumentos preocupação com a prática profissional, sobretudo, dos professores com a consideração de outras verdades e formas de conhecimentos que não os científicos e com a formação de educadores competentes para o debate sobre “os critérios de seleção dos conhecimentos escolares válidos na formação das novas gerações”. Preocupações semelhantes foram registradas nos memoriais dos sujeitos desta investigação.

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Recebido: 01 de Maio de 2019; Aceito: 01 de Novembro de 2019

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